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SUS: desigualdade, justiça social e a legitimidade da política1.
Camila Gonçalves De Mario
Escola de Artes Ciências e Humanidades – USP
Núcleo de Estudos de Políticas Públicas – UNESP (Franca)
e-mail: [email protected]
GT9: Cidadania e Sistemas de Saúde. O desafio da participação cidadã nos Países de
Língua Portuguesa.
Resumo:
O objetivo deste artigo é apresentar a discussão teórica de minha pesquisa de pós-
doutoramento, cujo propósito é orientar a reflexão sobre as concepções de justiça e noções
de saúde sustentadas pelo cidadão brasileiro e sua importância para a análise do SUS
(Sistema Único de Saúde) e de sua legitimidade. Considero que tais concepções são
orientadoras das relações que se estabelecem entre os diferentes atores envolvidos com a
política pública de saúde (e para as políticas públicas de modo geral) e fundamentais para
uma análise empírica da política voltada para a justiça de seus resultados e sua
legitimidade. As teorias da justiça de Rainer Forst, John Rawls e Jürgen Habermas
constituem o parâmetro normativo adotado para a análise. A reflexão desses autores sobre
a justiça distributiva e o papel do direito nas sociedades democráticas, somada à
compreensão das políticas públicas enquanto um dever do Estado de direito para a
garantia dos direitos fundamentais, alinha-se neste artigo a uma análise das políticas
públicas focada no papel das ideias e valores sustentados pelos atores sociais, e
principalmente, que nos permite reconhecer as concepções de justiça presentes na política
pública de saúde, como essas se manifestam, e como são articuladas na esfera pública
para a justificação da política. O ponto de partida é a reflexão acerca do ethos neoliberal
como balizador das relações na sociedade brasileira, buscando pistas que nos permitam
1 Este artigo é fruto de minha pesquisa de pós-doutoramento realizada no âmbito do programa de
pós-graduação de Gestão em Políticas Públicas na EACH – USP (SP), com auxílio pesquisa PNPD –
CAPES.
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refletir sobre seu impacto na ação estatal e sobre as concepções de justiça sustentadas
pelas pessoas. As concepções de justiça são aqui entendidas como elemento fundamental
para a análise da legitimidade das políticas públicas em uma sociedade democrática,
plural e cujos princípios constitucionais definem a igualdade e o direito à participação
política como parâmetros fundamentais das relações entre Estado e os cidadãos.
Palavras-chave: teorias da justiça; políticas públicas; concepções de saúde;
políticas saúde.
1 - Introdução
Esta pesquisa tem sua origem na constatação de um problema corriqueiro no
cotidiano da administração pública brasileira: a falta de efetividade dos direitos sociais e a
maneira como os cidadãos lidam com a questão, no que se refere a percepção da injustiça
a qual estão expostos.
Muito já foi dito pela sociologia política sobre um ethos do brasileiro que perceberia
o Estado como “pai dos pobres”, entendendo os direitos sociais como benesses,
assistência àqueles que não podem pagar por tais bens no mercado. Tal postura seria fruto
de uma cultura política coronelista, dos favores, de uma perversa confluência entre os
mundos público e privado e, resquício de uma cidadania ainda marcada pela lógica da
“cidadania regulada”2, gramática essa que pautaria as relações em sociedade3.
Trabalho com a hipótese de que mais forte do que esse ethos, que a partir dos
2 Refiro-me ao conceito de Wanderley Guilherme Santos.
3 Essa colonização do público por interesses privados é denunciada pela sociologia política, que
percebe nesse movimento uma perversa confluência de valores colocando o público a serviço dos interesses
dos mais poderosos e as políticas públicas sociais como apaziguadoras das classes oprimidas. No âmbito do
direito administrativo essa confluência entre público e privado também é tida como negativa, por um viés
diferente porém com consequências semelhantes, pois um Estado pautado exclusiva ou essencialmente pela
orientação do direito público seria antiliberal e autoritário. São discussões distintas mas que se somam no
entendimento dos sentidos do agir estatal.
3
códigos orientadores do privado esvazia o espaço público de sentido, seria o ethos
neoliberal, fenômeno mais recente para a sociedade brasileira e consonante com a
concepção de justiça sustentada pela teoria “libertariana”4. Ethos fortemente marcado pela
crença no mérito, tomando o indivíduo como lócus central, e quase exclusivo, do direito
positivo e avesso a uma noção comunitária que se fundamenta na ideia de redistribuição
de bens, recursos e riquezas, mais do que benesses os direitos seriam serviços aos quais
teriam acesso àqueles que se esforçarem para tal. Porém, trata-se de uma visão de mundo
que encontra ecos na anterior, que pensa o público colonizado pelos interesses do privado,
mas principalmente na noção de cidadania regulada.
Essas questões remetem diretamente ao problema ao qual estou aqui me referindo:
concepções de justiça social. Mais do que perguntar sobre o que é justo, a proposta deste
artigo é trazer elementos da filosofia e da sociologia política que nos auxiliem a pensar a
formação das concepções intuitivas de justiça e seu impacto sobre as políticas públicas.
Mais do que uma empreitada normativa, o fim da linha é fornecer elementos para
pensar nos impactos dessa percepção (intuitiva de justiça) nas políticas públicas, na
prática da administração e no direito públicos. Se as políticas públicas encerram valores
socialmente sustentados; esses valores são articulados como justificadores não somente da
elaboração das leis que a demandam e do desenho da política (o que em uma sociedade
democrática requer deliberação e acordo entre as partes), como também para a prática
administrativa e legal que confronta dever (do Estado) – direito (de cidadania) – demanda
(da sociedade civil) para tomada de decisão, julgamento e justificativas dos atos públicos.
Adoto como ponto de partida a seguinte ideia: a justiça de uma política pública não
está dada apenas por sua conformidade com as leis, normas e regulamentos institucionais.
Uma política pública pode ser legal e ao mesmo tempo profundamente injusta.
O SUS é um exemplo de política com a qual normativamente poucos divergem,
entretanto ela contém em si sérias incongruências, dadas já em seu desenho e que
impactam em sua implementação e nos resultados alcançados.5 Em um primeiro momento
4 Concepção de justiça sustentada por autores como Robert Nozik e Friedrich Hayek.
5 Apontei tais incongruências e divergências em minha tese de doutorado, “Saúde como questão de
Justiça” (2013).
4
podemos aventar que o SUS é injusto, (1) por não garantir a plenitude de um direito, qual
seja, o acesso universal à saúde (atenho-me aqui a ideia estreita de não cumprimento da
norma); ou (2) sua justiça pode ser definida pela coerência do sistema com as concepções
de justiça sustentadas pela sociedade.
É este segundo ponto que pretendo explorar. A pergunta de fundo é: como ações do
sistema que percebidas como injustas, e por vezes ilegais de acordo com o primeiro viés
de justiça, se reproduzem?
Em minha pesquisa de doutoramento busquei demonstrar que o desenho da política
e os objetivos do sistema brasileiro de saúde se baseiam em concepções de justiça que não
só são distintas como divergentes entre si, divergência que transparece durante o processo
de implementação da política. Trata-se de um paradoxo no qual está imerso o SUS e
demais instituições, mais, diria que nossa sociedade como um todo.
Os princípios que norteiam o direito à saúde – universalidade, integralidade,
gratuidade e igualdade - no Brasil se justificam perante concepções de justiça próximas ao
que é defendido pelas teorias liberais-igualitárias, ao mesmo tempo, também estão em
conformidade com os princípios constitucionais norteadores dos deveres e direitos do
cidadão, e dos direitos humanos internacionais ratificados pelo Brasil. O mesmo acontece
com a noção de saúde, ou seja, com o que se entende por saúde, esse entendimento está
orientado por uma concepção específica de direitos de cidadania e de pessoa humana. Tais
princípios requerem uma determinada configuração da política e da administração pública
para que o direito à saúde se realize, torne-se facto. Entretanto, há em sociedade outros
valores, concepções de justiça social, de saúde, e projetos políticos em disputa que
interferem nessa organização e em como tais princípios serão sustentados no cotidiano da
política.
O que o Estado pode fazer é resultado de uma confluência de diversos fatores
determinantes das decisões políticas tomadas pelos governantes e das decisões técnicas a
encargo do gestor público, e da burocracia de um modo geral. Tais fatores são dados pelos
projetos políticos em disputa na sociedade civil, no Estado e também pela relação que se
estabelece entre os usuários e a cidadania, de modo geral, com a política.
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Nesse artigo refletirei sobre o papel das ideias, dos valores morais e as concepções
de justiça a que esses se referem, fundamentais para a análise da legitimidade da política.
Não tenho conhecimento de pesquisa que tenha proposto tarefa semelhante, ao
menos não quanto a concepções de justiça voltadas para pensar especificamente a justiça
de políticas de saúde. Recentemente, enquanto eu desenvolvia esta pesquisa, Lena
Lavinas e Barbara Cobo publicaram livro com resultado de um survey nacional que
trabalhou com as percepções e concepções de justiça dos brasileiros com foco na
desigualdade e nas políticas redistributivas.
Elas também destacam a ausência de trabalhos nesse sentido, chamam atenção para
os esforços que vêm sendo empreendidos por pesquisas que buscam explicar o apoio das
pessoas às políticas redistributivistas na área da economia normativa e da filosofia
política.
Nas ciências políticas e nas pesquisas na área de políticas públicas desconheço
pesquisas com esse intuito, o que temos são avaliações de percepção de qualidade dos
serviços e dos procedimentos democráticos e suas instituições. A justiça ainda é tema
secundário e visto como tarefa da teoria política.
Cobo (2014) ressaltam que conhecer as preferências normativas dos cidadãos é útil
para que possamos desenhar políticas mais propensas a terem seu apoio, e acrescento,
mais propensas a serem consideradas legítimas, pois muito provavelmente o cidadão
típico deve ter concepções de justiça distintas daquelas que nós cientistas sociais
tendemos a valorizar, em suas palavras:
Compreender tal hiato entre concepções teóricas de justiça (e de
políticas públicas que dela decorrem) e concepções intuitivas seria
importante, portanto, não apenas como uma forma de “diagnóstico de
preferências”, mas também possivelmente como precondição para
qualquer estratégia de reforma progressista (ou de outra natureza).
(COBO et al. 2014: 37)
É o que proponho. Conhecer as concepções de justiça e de saúde das pessoas nos
permite entender os problemas enfrentados pela política que identifiquei como injustiças
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perante a dois parâmetros normativos de justiça, um advindo das concepções teóricas e
outro retirado do próprio desenho da política e da legislação constitucional e
infraconstitucional balizadora da política e dos princípios norteadores da ação do Estado.
O cidadão brasileiro pode ter concepções intuitivas distintas a partir das quais essas
situações não sejam consideradas injustas; podem haver desacordos quanto ao
entendimento do que é saúde, e consequentemente do que deve ser uma política de saúde;
ou, talvez as concepções de justiça – a minha, liberal-igualitária; a sustentada pelo SUS e
pela nossa Carta Constitucional – até sejam semelhantes com as concepções intuitivas das
pessoas e o problema esteja na distribuição de poder político e no direito à justificação,
assim uma distribuição justa do direito à justificação, em sentido forstiano, permitiria as
pessoas a reivindicarem uma política de saúde mais justa, de acordo com uma concepção
comum de justiça.
Em qualquer dos casos são necessárias ações que levando em consideração essa
percepção sobre a justiça social e política de saúde sustentadas pelos cidadãos, visem uma
reforma no sistema orientada pelos requisitos da justiça.
2 - Justiça e Legitimidade das políticas públicas: o papel das ideias
Por que as pessoas confiam e apoiam as políticas públicas? O que faz uma política
legítima e garante sua manutenção ao longo do tempo?
A recente história brasileira é marcada pela luta da sociedade civil pela efetividade de
direitos sociais e democratização das relações políticas em sociedade. Um de seus
objetivos era a realização da justiça social, através da construção de um Estado
democrático com políticas voltadas para mitigar o fosso social marcado pela desigualdade
através da implementação de políticas redistributivas e, que reconhecessem a
universalidade dos direitos da cidadania.
A democracia que por aqui se construiu tem traços únicos, e foi forjada na luta, na
prática política de atores que através de um amplo debate travado pelos movimentos
sociais e pelos partidos de esquerda buscou também a mudança no padrão de relações
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entre Estado e Sociedade, construindo-se uma “nova gramática social” e dando uma nova
configuração ao Estado.
Esses atores construíram um espaço para a justificação pública de suas demandas em
um exercício político orientado por valores morais por eles considerados fundamentais
para uma sociedade democrática. Tais valores são, hoje, base de nossas leis e instituições
e funcionam como orientadores de nossas ações.
Ideia fundamental que perpassa esse trabalho é a de que esses valores são sustentados
por nossas instituições e pelos atores que delas fazem parte. Esses valores são o cerne das
políticas públicas.
Dentre as muitas definições que podemos levantar de políticas públicas, certamente a
noção de que essas encerram valores sustentados pela sociedade não será objeto de
controvérsias acirradas. Trata-se de uma ação do Estado que leva esses valores em
consideração e a questão central passa então a ser o que o Estado é ou não capaz de fazer,
e como faz uso desses valores para justificar seus atos. Acrescento, nas políticas públicas,
(...) se a autoridade desempenha um papel central, estamos longe
de afirmar que o Estado age só. As políticas recebem intervenções
de vários agentes, que com sua lógica e prioridades agem com
autonomia, e suas intervenções se refletem no curso das coisas e
das escolhas. (Cruz, 2012: 74)
Meu objetivo é jogar luz sobre os usuários, diretos e indiretos da política, que enquanto
cidadãos formulam suas concepções morais, agem e julgam as instituições e os demais
atores a partir delas.
O debate sobre a relação entre as ideias e as instituições precisa certamente ser mais
explorado, mas, a hipótese central é a de que se queremos entender as instituições e seus
resultados é preciso uma abordagem normativa que discuta as ideias, valores e motivações
que definem as instituições e também serão base para sua avaliação e legitimidade social.
Defendo uma abordagem que conflita com a tradição institucionalista mais dura, para a
qual o escrutínio das ideias não permite o desenvolvimento de uma abordagem teórica
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adequada para a análise das instituições políticas, já que essas são muito mais do que
ideias. Alinho-me à abordagem defendida por Rogers Smith. O autor ao expor suas
opções teóricas assim formula sua perspectiva:
I have stressed, like others, that the purposes, rules, roles, and
patterns of behavior found in institutions all represent incarnations
of the ideas of those who participate in them and that the creation
and maintenance of institutions cannot be understood apart from
the ideas of the members of the political coalitions that do the
creating and maintaining. (Smith, 2006: 93)
A tarefa a que me proponho nesse trabalho é pensar como articular as concepções de
justiça sustentadas pelas instituições e pelas pessoas para a análise dos resultados e
legitimidade das políticas públicas. Se as políticas públicas são fruto de valores morais
definidores de nossas concepções e princípios de justiça socialmente validados e
reconhecidos publicamente, o que as justifica perante a sociedade, então a legitimidade da
política e a aceitação de seus resultados por parte dos cidadãos é profundamente
perpassada por tais valores.
Não se trata de afirmar que as ideias são mais importantes que as instituições mas sim
que há uma relação dialética entre instituições e ideias que não pode ser ignorada, por
mais que as instituições sejam definidoras de valores, e influenciem comportamentos, o
outro lado também é verdadeiro, ou seja, os valores sustentados pela sociedade também
influenciam na organização e no cotidiano das instituições que precisam se organizar e
reorganizar em torno desses valores para se manterem estáveis.
O terreno da legitimidade, de Estados, governos e instituições é demasiadamente
movediço. Como identificar tais ideias e sua influência sobre a legitimidade das
instituições é outra questão em aberto e difícil de ser enfrentada. Semanticamente, o termo
legitimidade remete à noção de legalidade, bastaria estar de acordo com a lei para uma
instituição ser considerada legítima. Mas o que faz de uma lei legítima? Em última
instância essa é a pergunta que nos importa.
A resposta a essa questão nos leva a um terreno normativo e substantivo que nos
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convida a indagar sobre as ideias e sua justificação. É em seu sentido substantivo que a
legitimidade se liga à justificação (Morris, 2005:156). De início para a construção do
argumento trago a definição de justificação proposta por Morris (2005:158), o autor
afirma que «justificar algo é mostrar que é justo ou certo, razoável, ou, ainda, autorizado;
é validar ou provar. [...] Justificar um Estado, então, seria mostrar que seus poderes são
justos (ou certos) ou razoáveis». Neste ponto Morris adentra a argumentação rawlsiana
acerca da justificação, retendo a argumentação de John Rawls sobre a justificação de sua
própria teoria.
Nessa passagem, em “Uma Teoria da Justiça”, Rawls ressalta que a discordância é
central para a justificação. É no conflito de pontos de vista que buscamos argumentos
razoáveis a partir dos quais convencer os outros, buscando reconciliar através da razão.
As políticas públicas enquanto instituições que criam regras para o jogo político,
intervêm e moldam as vidas dos cidadãos (Pierson, 2006: 114). Precisam, portanto,
justificar-se perante esses, para que sejam vistas como legítimas, e para que os cidadãos
possam confiar em suas ações, mais, são regras que para serem seguidas é preciso que
confiem que os demais também as aceitam e seguem.
As instituições influenciam o comportamento das pessoas e limitam as escolhas dos
atores; é comum pensá-las a partir desse ponto de vista, da instituição para os atores, já
que essas, dado seu caráter, também são organizações difíceis de se modificar. Entretanto,
há momentos históricos, especiais, no qual elas são criadas, e então nos movemos dos
atores para as instituições, como coloca Rothstein (1998: 138) «This means that what is
rational, socially acceptable, or politically possible is not given once and for all by some
true, unchanging human nature, but can be influenced through conscious, rational political
choice.»
A ideia é a de que no momento da criação das instituições estamos diante de uma
escolha racional, consciente de princípios e de valores que darão origem às instituições.
Entretanto, o foco de Rothstein é outro, e o autor prossegue afirmando que um
importante papel das instituições políticas é o de estabelecer normas. Em suas palavras:
The idea is that institutions not only influence what political actors
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find to be a rational course of action, seen from the standpoint of
their self-interest, but also what they consider to be a morally
defensible behavior. [...] The morality prevailing in a society is, in
other words, a product of the institutions built by that society’s
citizens and their representatives. My hypothesis, then, is that
social norms are not given by any such metaphysical entities as
“the gender system”, “class consciousness”, or “the national
character”. They are instead a product of the institutional
conditions which have been created de facto by political decisions.
(Rothstein, 1998: 139)
Ou seja, as instituições cumprem importante papel na formação e promoção dos
valores em sociedade o que leva o autor a afirmar que instituições justas incentivariam um
comportamento justo. E quando os resultados de uma instituição não são justos, o que a
sustenta ao longo do tempo?
No caso brasileiro as políticas públicas e o Estado que se constituiu com a Constituição
de 1988 são fruto de um momento histórico, tal como o que Rothstein chama de especial,
no qual os atores a partir de escolhas racionais criam as instituições. A premissa aqui é
que tais instituições refletem as ideias sustentadas por esses atores e são frutos de um
amplo debate para sua justificação no espaço público.
É o processo de construção e avaliação das instituições que se dá a partir da moralidade
sustentada pelos atores que delas participam que me interessa.
É na chave de Smith (2006) que vejo um campo aberto à investigação, para a análise
de políticas públicas tanto no que se refere a avaliação de seus resultados como à sua
legitimidade. Estou supondo que mais do que estarem de acordo com a legalidade e com
as normas, para que as instituições sejam legítimas é preciso que sejam coerentes com a
moralidade sustentada pela sociedade. Se é verdade que elas influenciam e orientam
comportamentos, também é verdade que são feitas por pessoas que imprimem nas
instituições seus valores, sua moralidade. Dentre aquilo que se estabeleceu como desenho
institucional, com suas normas, princípios e objetivos, e os resultados alcançados pela
instituição há um jogo de forças político que pode ou não garantir que os resultados sejam
coerentes com as metas propostas.
Políticas Públicas são o tipo de instituição que estão sob forte influência desse jogo e
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dos projetos políticos em disputa em seu âmbito e na sociedade de forma mais ampla. Por
sua estrutura estão abertas à indeterminação e sujeitas a um constante processo de
transformação, seja pelas demandas da sociedade que se alteram em um ritmo mais
acelerado do que aquele que a própria instituição é capaz de incorporar, seja através da
ação dos atores que fazem parte de seu cotidiano que ou aperfeiçoam ou burlam suas
normas para realizar os fins da própria instituição, e os seus em particular.
3 - Brasilidade e o Ethos neoliberal
Em livro recente Jessé Souza (2009) tece uma reflexão que em muito colabora para
pensarmos a perspectiva que proponho. O autor inicia nos lembrando de uma premissa
básica da cidadania moderna, a ideia de comunidade, constitutiva tanto do imaginário e
das identidades nacionais como da cidadania.
A construção da identidade nacional é a construção do mito moderno que como
coloca Souza (2009: 31) dota a realidade de sentido moral e espiritual para os indivíduos.
É o sentido moral que permite ao indivíduo solidificar relações de identificação social e
pertencimento a um grupo, garantindo a criação de laços de solidariedade e, acrescento, a
tolerância.
Para Souza (2009) o Brasil se percebe como mercado, seria esse seu “DNA
simbólico”. Uma identidade nacional precisa sempre se estabelecer em relação/oposição a
um outro, e o outro externo do Brasil é o EUA, superior em quase tudo, principalmente
para um Brasil que em 1822 sofria de complexo de inferioridade. Portanto, para a
construção da identidade nacional primeiro articulou-se o que havia de positivo, que era a
grandeza da natureza e sua força, a amalgama para o próximo passo foi fornecida pela
obra de Gilberto Freyre, “Casa Grande e Senzala”, que possibilitou transformar a
miscigenação, até então motivo de vergonha em orgulho: o povo mestiço se transforma
em virtude de um povo capaz de articular e unir contrários. É a aversão ao conflito
transformada em núcleo da identidade nacional, forjada sobre o mito do homem cordial.
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É na ideia de cordialidade e de que havia entre os brasileiros mestiços um todo
harmônico que o Estado de Getúlio Vargas encontrou «a energia simbólica para o esforço
de integração nacional». (Souza, 2009: 37) Tínhamos de um lado o elogio da unidade e
índole pacífica do povo brasileiro e de outro a demonização da crítica e da explicitação do
conflito e das diferenças.
Está criado nosso DNA simbólico, o DNA simbólico do Brasil moderno,
um conjunto de ideias que legitimam práticas sociais e institucionais de
toda espécie que se destinam, em última instância a tirar toda a
legitimidade do diferente e da diferença, do crítico e da crítica.
(SOUZA, 2009: 38 [grifos do autor])
Através da metáfora do DNA o autor demonstra o perigo contido na ausência de
crítica em uma sociedade como a brasileira que vai naturalizar sua vida social como no
caso do DNA genético individual. Soma-se a isso que a sociedade brasileira é uma
sociedade que só percebe o dinheiro e suas materializações sem sequer perceber a enorme
influência das ideias e dos valores. A realidade assim se apresenta como dada, e não
construída. Quando se transforma cultura em natureza não se percebe o principal:
Que toda a nossa orientação na vida e toda justificação de nossas ações e
comportamentos dependem de “ideias” contingentes e fortuitas,
formuladas por outros, e que comandam nossas decisões e julgamentos
tanto mais quanto menos temos consciência delas. (SOUZA, 2009: 39)
Dessa forma a gênese da identidade nacional é fundamental para a compreensão da
forma como a sociedade e seus membros percebem a si próprios, e ajuda a pensar as
concepções de justiça sustentadas e o grau de justiça de suas instituições.
De acordo com Souza (2009) os indivíduos precisam de uma definição acerca de
quem são, de como devem agir e do que caracteriza uma sociedade justa. A grande
maioria busca tais referencias no senso comum.
No que se refere a questões de justiça é ainda mais importante que os indivíduos
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sejam autônomos e capazes de formular e exercitar seus julgamentos morais, incluindo a
capacidade de desenvolver um senso de justiça e a de decidir e de revisar sua concepção
de bem. Tal importância é afirmada tanto por John Rawls como por Rainer Forst. Souza
(2009) coloca que a existência de indivíduos autônomos e pensantes é importante para a
existência de uma esfera pública verdadeiramente democrática, neste ponto as concepções
dos três autores se complementam.
Jessé Souza nos remete a uma das questões centrais da teoria da justiça de Rawls, o
autor afirma que no mundo moderno o poder não se manifesta abertamente, que as
relações e o como a estrutura social determinam as expectativas dos indivíduos não são
visíveis: «existiria no mundo moderno uma igualdade de oportunidades falaciosa que
justifica a noção de mérito e assim as desigualdades seriam fortuitas e justas» (Souza,
2009: 43)
Para Rawls, uma sociedade justa precisa de uma estrutura básica que garanta a
efetividade e o exercício das liberdades fundamentais básicas, que garanta a Igualdade
Equitativa de Oportunidades e que as desigualdades existentes funcionem a favor de
todos. A noção central desses princípios 6 é a de que a injustiça se constitui de
desigualdades que não são vantajosas para todos. Nos termos de Rawls:
Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e
riqueza, e as bases sociais do autorrespeito – devem ser
distribuídos de formal igual, a não ser que uma distribuição
desigual de um ou de todos esses valores seja vantajosa para
todos. (Rawls, 2008: 75)
Os princípios na teoria de Rawls se aplicam às instituições da estrutura básica da
sociedade responsáveis pela distribuição dos direitos e deveres fundamentais o que
determina a divisão das vantagens decorrentes da cooperação social. Dessa maneira as
instituições ao definirem os direitos e deveres das pessoas repercutem em seus projetos de
6 Os princípios que descrevi são seus dois princípios da Justiça, o primeiro garantidor das liberdades
fundamentais básicas e o segundo voltado para a distribuição de renda e riqueza. Ver “Uma Teoria da
Justiça” (2008).
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vida, nas suas expectativas e no grau de bem-estar que podem almejar.
O que Souza (2009) está apontando é que a meritocracia que se sustenta no
imaginário e na nossa identidade nacional cria uma falsa ideia de justiça social. Uma
justiça social que na prática funciona aos moldes das concepções “libertarianas” de justiça
mas que se legitima sobre a capa de um pretenso discurso “liberal-igualitário” destorcido
em seus conteúdos, perversamente esvaziado de sentido, mas que dificilmente seria
diretamente negado na esfera pública.
Dessa forma o ataque à noção de igualdade fundamental dos cidadãos e aos direitos
humanos e sociais dela derivados se dá pela manipulação, uma maquinação de seus
sentidos que estabelece um campo de luta político entre “esforçados que fizeram por
merecer” e “preguiçosos que acharam mais fácil viver das benesses do Estado”.
Preguiçosos porque afinal as oportunidades estão aí, a disposição de todos.
Esse discurso tem graves consequências não somente no que se refere ao
reconhecimento e legitimidade de políticas de cunho mais assistenciais e de políticas
compensatórias como o “bolsa família”, mas também daquelas que têm como objeto a
implementação de serviços que garantam a efetividade dos direitos dos trabalhadores, do
direito à saúde, à educação, à habitação, para citar alguns.
Soma-se a isso que o status social do brasileiro está fortemente ligado ao consumo.
Voltado para o mercado, o cidadão define-se mais enquanto consumidor que tem o direito
à propriedade privada e a consumir ao seu bel prazer do que pela igualdade fundante da
noção de cidadania.
Dentro dessa perspectiva a noção de mercado e o consumo enquanto marcador
central do status social e da brasilidade têm forte impacto sobre as Instituições estatais e
sobre a Gestão Pública. No centro de tudo está a Economia e o Mercado, motor do
crescimento e do desenvolvimento, às margens o Social, o Cidadão e seus Direitos.
Consequentemente o Estado é atacado em seu cerne.
Estamos adentrando o terreno do papel das ideias e seu impacto sobre as
instituições. E do como essas agem e reagem, como são organizadas, avaliadas,
percebidas e legitimadas. Paradoxalmente, ou não, o ideário neoliberal entra no Brasil
com força e evidência no mesmo tempo histórico em que a luta por uma Constituição
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Cidadã também ganhava força e visibilidade política. O Estado a partir de 1989 se forja
neoliberal contraditoriamente (ou não) perante a um arcabouço jurídico de pretensões
igualitárias. Essa história já conhecemos. A legitimidade desse processo foi garantida
pelas ideias, e concepções de justiça já incorporadas pela sociedade.
Cada perspectiva normativa de justiça pensará a distribuição de direitos e deveres,
bens e recursos de maneira distinta. O libertarianismo de Robert Nozick, que mencionei
anteriormente, entende o Estado como um tirano cujo poder de dominação deve ser
minimizado pelo mercado. Para a lógica deontológica fundante do pensamento de Nozick,
e também de Hayek, a injustiça não está em uma desigual distribuição de bens e recursos
em sociedade, mas sim, em uma ação que infrinja o direito de outrem ou que venha a
causar sofrimento a outra pessoa. Para os libertarianos é o indivíduo e não a comunidade
que está no centro de tudo. O direito à propriedade funciona como uma maneira de
estabilizar a democracia, e não podem de maneira alguma serem restringidos. (DeMario,
2013, p.263)
Nessa esteira o princípio da equidade seria temível e condenável porque deturpa o
princípio da auto-propriedade, já que as teorias igualitárias permitem direitos de
propriedade parciais sobre outras pessoas.
A redistribuição de renda ou a definição de direitos sociais
caracterizam uma violação dos direitos fundamentais da pessoa,
cujos bens são frutos diretos de seu trabalho ou das trocas justas
no mercado livre. Dessa forma, o Estado, ao buscar igualdade,
estaria perpetrando uma violação desses direitos. (DeMario, 2013:
266)
A perspectiva libertariana alinha-se com o ideário neoliberal que deu a tônica das
reformas do Estado Brasileiro nos anos 1990 e 2000 e também tem reverberações na
maneira como a sociedade brasileira compreende a distribuição de bens e riquezas e o
papel dos direitos sociais.
Para Jessé Souza o que colabora para a força que o ideário neoliberal assumiu entre
os brasileiros, juntamente a celebração do mérito individual versus a discriminação do
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fracasso é o esquecimento do social no individual. Para o autor há um silenciamento do
processo social que constrói indivíduos fadados ao sucesso ou ao fracasso. Para Souza a
família cumpre importante papel na transmissão dos valores que ratificam essa ordem e
colaboram para reprodução da desigualdade, injustiças e privilégios.
A questão central é a de que o quê as famílias ensinam não é forjado pela própria
família, é aprendido diariamente fora dela, em “outro” lugar, como coloca o autor. A
classe social a qual as famílias pertencem e sua economia moral é o que dá o tom dos
valores que elas reproduzem. É a presença da classe e da economia moral que determina
os comportamentos individuais, mesmo que essa determinação seja sistematicamente
escondida ou esquecida, esse esquecimento da classe social é para Souza (2009) o mais
bem guardado segredo do senso comum.
Nessa esteira os lares de classe média ensinam como valores a autodisciplina, o
autocontrole, o pensamento prospectivo, o respeito ao espaço alheio, através da
transmissão de regras que impõe horários para comer, ao valorizar o estudo, ao orientar a
evitar confrontos direitos com os amigos, chegar em casa nos horários certos. Mas
também ensinam algo mais importante ainda para uma sociedade meritocrática e
individualizada, suas crianças aprendem desde cedo que são “um fim em si mesmas”
(princípio que como vimos é ponto de partida das teorias da justiça e do direito) e a ser
autoconfiantes, através da autoconfiança sustentada pela certeza de um amor
incondicional que vem dos pais desenvolve-se a certeza do próprio valor, o que permite
encarar as derrotas como transitórias e alimentar a esperança. Esse aprendizado só não é
tematizado porque é afetivo, emocional.
Dentre as classes mais pobres que Souza (2009: 46) denomina ralé esses valores não se
sustentam. No que se refere a autodisciplina e a importância do estudo, é difícil para os
pais das classes mais pobres sustentarem isso emotivamente, já que sua experiência que
vida não se alinha à crença de que o estudo e a vida escolar traz benefícios. Quanto a
sustentar seu valor e a autoconfiança, é extremamente difícil fazê-lo entre seres humanos
que estão habituados a serem usados, dentro e fora de seus lares. As mulheres são
normalmente expostas a uma sexualização precoce, e sexualmente instrumentalizadas
dentro de suas casas e por familiares, como seus pais, padrastos, tios, irmãos.
Em universos tão distintos os valores e crenças transmitidos provavelmente não serão
17
os mesmos. Neste cenário, as crianças da classe média, que têm contato com outras
pessoas de seu mesmo universo perceberão suas conquistas na vida adulta como fruto,
resultado de seu mérito e esforço próprio. «A renda econômica que advém desse sucesso
é, portanto, efeito, e não causa das diferenças entre as classes.» (Souza, 2009: 46)
Chegamos a um ponto fundamental do argumento de Jessé Souza (2009: 47), para o
autor é essa confusão entre causa e efeito que fazem as determinações oriundas das
classes sociais tornarem-se invisíveis, e só por isso o senso comum pode ver o indivíduo e
o mérito individual como justificativa dos privilégios. As precondições familiares e
sociais do mérito são cuidadosamente deixadas para fora do debate público e a
justificação da desigualdade pelo esquecimento do pertencimento de classe é
potencializada por uma aliança invisível com o mito da brasilidade que colaborou tanto
para construir a noção de homogeneidade entre brasileiros tão desiguais, bem como a
ideia de horror ao conflito, que acaba se desenrolando quase sempre se forma
escamoteada, ou em explosões de ódio que precisam ser rapidamente controladas.
4 - Justiça: Direito à Justificação
Rainer Forst, formular sua teoria crítica da justiça a partir do debate travado pelo autor
com as teorias de Jürgen Habermas e John Rawls acerca dos limites da moralidade e da lei
para a aplicabilidade e efetividade dos direitos dos homens e do papel das instituições. O
autor propõe uma terceira via e aponta que: «a theory of justice must pay attention to the
function and relative autonomy of democratically legislated modern law, and according to
Habermas, Rawls neglects this» (Forst, 2012: 101)
Inicio com uma breve apresentação das ideias centrais da teoria de Rainer Forst, seu
ponto de partida é o entendimento dos homens enquanto seres justificatórios, que têm a
habilidade de justificar-se e esperam o mesmo dos outros, o lugar da justificação, para ele
é por excelência o contexto político.
A justiça política e social pode ser entendida a partir do direito de justificação, bem
como os princípios para a estrutura básica da sociedade devem ser construídos de acordo
18
com esse direito. Segundo o autor somente considerando a justificação de relações sociais
e da distribuição do poder de justificação em contexto político que é possível se
aproximar da justiça, esse é o caminho que leva às raízes da injustiça social.
Para o filósofo a justiça deve se voltar para as relações intersubjetivas e para a estrutura
básica da sociedade considerando que a vítima da injustiça é aquela que não conta na
distribuição de bens em sociedade, e que a demanda por justiça é uma demanda
emancipatória.
Sua teoria discursiva da justiça não é puramente procedimental, seu fundamento
encontra-se essencialmente em um princípio moral de justificação que requer
generalidade e reciprocidade. A noção de reciprocidade contém a ideia de que ninguém
recusaria a outrem demandas que faria a si mesmo; a de generalidade que as razões para
as normas gerais precisam ser compartilhadas por todos que por elas são afetadas. Soma-
se a isso a exigência de que o princípio da justificação precisa estar de acordo com os
contextos sociais concretos, com a pluralidade de valores éticos e com as várias esferas
sociais e comunidades.
Trata-se de uma teoria monista e deontológica, o primeiro permite que ela esteja aberta
para o pluralismo de certos aspectos da justiça e as particularidades das diferentes esferas
de distribuição nas quais os bens são distribuídos de acordo com critérios particulares.
Quanto ao segundo,
This deontological character becomes clear not only from
reflecting on the ethical pluralism of “comprehensive doctrines”,
as Rawls would put it, but also from the validity claim made by
justice itself to consist in principles and norms that cannot be
reciprocally and generally rejected and so can even justify the
force of law. (Forst, 2012: 08)
A justiça para ele não encobre todo o mundo normativo, mas que se aplica somente a
alguns contextos normativos particulares. A base de sustentação da justificação precisa ser
construída através de regras, cuja tarefa de conceitualização cabe a teoria da razão, pela
qual se analisa quais falas e reclamos precisam ser justificados, em quais contextos e a
19
partir de quais critérios. Isso porque uma razão que se distingue por uma ação racional
pode ser compreendida por outros mas isso não significa que ela requer a aceitação dos
outros para sua validação. Ou seja, fornecer uma razão significa explicar uma ação, mas
não justificá-la intersubjetivamente, o que só é possível através de uma justificação ética
ou moral.
4.1. Lei e Moralidade
Forst (a partir de Habermas) afirma que junto da autonomia moral tem-se a autonomia
legal de pessoas legalmente reconhecidas como o objeto da lei e a autonomia política de
cidadãos que são autores de tais leis. Este é o duplo papel que surge no centro da conexão
entre o Estado Constitucional e a democracia, ou entre, os direitos humanos e a soberania
popular. (Forst, 2012: 102)
De acordo com Habermas, normas legais precisam ser distinguidas de normas morais.
As primeiras são legitimadas no discurso político, são legalmente institucionalizadas, não
articulam apenas razões morais e possuem um efeito coercivo sobre as pessoas. Lei e
moralidade convivem em uma relação complementar e compensatória, «It is this dual
status of law, as both a factually binding system of norms (which also can described in a
sociological-functional way) and claiming normative validity, that immanently connects
the constitutional state and democracy.» (Forst, 2012: 102)
Dessa forma para Habermas uma teoria da justiça que se baseia no princípio da
autonomia, precisa considerar a conexão entre facticidade e validade, constitutiva da
ordem legal moderna e perguntar quais direitos os cidadãos precisam acordar se desejam
regular suas vidas legitimamente pela Lei. Coloca Forst:
To the initial question of how to justify a 'system of rights',
Habermas attempts to provide an answer that goes beyond legal
positivism and natural law. On the one hand, normative criteria
apply to legitimate law; on the other hand, these criteria are not
established by moral principles, but by means of a combination of
20
the discourse principle and the 'legal form'. (Forst, 2012: 102)
O princípio de justificação de Rainer Forst conecta-se com o princípio discursivo de
Habermas, a diferença é que Forst busca responder essa mesma pergunta colocada por
Habermas – quais direitos os cidadãos precisam para regular sua vida comum através das
leis – atribuindo à moral importante papel.
O princípio da justificação situa-se em ambos os terrenos, o da moral e o da política.
Assim a questão colocada deve ser vista como moral e política-legal e deve ser respondida
com base no princípio discursivo, no seu caso, o da justificação. «Then we get a different
co-originality thesis according to which morality can neither be subsumed under law and
democracy nor be rigidly opposed to them.» (Forst, 2012:111)
Nesse ponto, chegamos a dois traços importantes da teoria de Forst o construtivismo e
a crítica. O construtivismo diferentemente do de John Rawls, é entendido como um
construtivismo discursivo, uma prática social, que coloca às pessoas a tarefa de erigir um
edifício normativo sobre uma base moralmente imparcial e agir de acordo com os planos
que elas podem aceitar e justificar, enquanto designers e produtores dessa base.
Construção que se erige sobre a base de uma determinada concepção de pessoa e de um
critério particular de uma prática de justificação razoável.
Sobre a base do construtivismo moral é possível chegar a uma concepção de direitos
humanos que nem estados e nem indivíduos podem negar a uma outra pessoa por razões
que são recíprocas e defendidas por todos. Os direitos humanos têm uma natureza moral e
uma lista de direitos deve ser pensada e justificada para cada situação social, com suas
particularidades que colocam diferentes questões. Por isso, eles não são direitos “naturais”
ou antropologicamente justificáveis.
E se as normas para uma vida moralmente legítima e justa precisam ser justificadas de
acordo com os contextos de cada sociedade, essa necessidade representa para a Forst o
ponto central para toda prática de justificação para uma estrutura básica política e
socialmente justa: o construtivismo político.
E eis o ponto que nos importa:
21
So neither is morality completely taken up into institutionalized
legal-political procedures, since these cannot fully absorb the
entire content of that which is morally required, nor does it remain
external, since procedures of political justification must be
organized such that the highest possible degree of participation
and justificatory equality is guaranteed. Moral and political
autonomy stand in an immanent relation, without blurring the
distinction between moral and legal norms. Morally and politically
responsible citizens, who recognize one another as such, owe one
another a just regulation of their common life within the medium
of law, which they can also confront as strategic actors. (Forst,
2012: 112)
Essa formulação de Forst nos permite pensar o nexo entre moral e política e fazer a
necessária conexão com a validade dos direitos sociais e o papel das políticas públicas
para sua efetividade. Estou entendendo o direito à saúde tanto a partir de sua validade e
obrigatoriedade legal, como a partir das construções morais válidas sobre a definição de
pessoa e o entendimento da cidadania no Brasil. O que a prática parece revelar é um
deslocamento que esvazia de sentido a percepção de pessoa e subsequentemente de direito
daquele legalmente expresso, descolando a justificação moral da prática política que
parece operar com outra concepção de pessoa e de cidadania, retirando assim da
legalidade a sua validade moral.
Embora a definição de pessoa e de direito expressa na letra constitucional não seja
publicamente contestada parece haver um acordo mútuo tácito que justifica o seu
descumprimento, ou se preferirmos, a ausência de coerção para sua efetividade, coerção a
ser exercida tanto sobre o Estado como sobre cidadãos, alvos e sustentáculos e razão desse
direito, que deveriam reclamar, representar e sustentar politicamente. Não estou com essa
afirmação negando toda a tradição política autoritária presente nas relações sociais e
políticas na sociedade brasileira e o processo que forjou nossa subcidadania, ligada à
invisibilidade da desigualdade que naturaliza a desigualdade e ao desenvolvimento de um
habitus (no sentido bourdieusiano) de cidadania precário, nos termos de Jessé Souza, mas
sim, tentando olhar para o que permite e ratifica essa ordem moral e politicamente.
A percepção de justiça ou injustiça do sistema de saúde também nos remete a
22
legitimidade da política pública e aceitação por parte dos cidadãos. Neste ponto já é
possível introduzir os três aspectos da legitimidade que serão norteadores de minha
análise:
Three aspects of state legitimacy may be distinguished. These
concern the extent to which citizens: (a) tolerate the intervention
of the state; (b) accept state decisions aimed at influencing the
behavior of individuals or of groups; (c) cooperate with the state
to achieve the goals it has set. (Rothstein, 1998:104)
Estes aspectos só são possíveis se as pessoas concordam com os princípios e normas do
sistema. Entretanto, a aceitação por falta de parâmetros para avaliação da instituição ou
por medo, apesar de garantir aparente legitimidade ao sistema, não pode ser considerada
como um aspecto de legitimidade da política, mas talvez uma manipulação de crenças e
valores que permitem a manutenção da política institucional sem que essa seja
verdadeiramente questionada, e aqui entramos no terreno da ideologia.
Por essa razão, a teoria da justiça de Rainer Forst joga luz sobre importante aspecto
para a análise das políticas públicas e da prática política: as relações de justificação em
sociedade e o poder político, esse último o mais importante bem primário. Para o autor as
pessoas são agentes da justiça, não são alvos, recipientes da justiça, são agentes
autônomos que co-determinam as estruturas de produção e distribuição que determina
suas vidas, dados, claro, os limites que os sistemas sociais desenvolveram nas sociedades
modernas. A política é a mais importante dimensão da justiça.
Nos termos de Forst (2014:114),
Justice, according to this view, is not primarily about what you
have (or do not have); rather, it is about how you are treated.
Justice is not a teleological notion, for first, it rests on a
deontological duties of what persons owe to one another in a
context of justice. Second, its critical part is not about persons
lacking something that it would be good for them to have; rather,
it is about persons being deprived of something they have
reciprocally and generally non rejectable reason to claim. Justice
23
is above all about ending domination and unjustifiable, arbitrary
rule, whether political or social life, that is, as persons with what I
call a basic right to justification. (grifos do autor)
A justiça está na capacidade de fala, no poder de elaborar e demandar reclamos que se
justificam aos olhos dos outros. Por isso a questão central não é o que se tem, mas sim
como se é visto, pois a justiça requer que todos sejam vistos como pessoas racionais
capazes de elaborar suas concepções morais, reconhecer que os outros também o são e
requer que todos tenham o poder político de justificação.
A demanda por justificação não se deve pelo bem da democracia, mas sim pelo bem
dos fins relevantes das relações sociais e instituições em questão. É em função da
realização desses fins que uma teoria do reconhecimento é fundamental, pois provê as
perspectivas para uma definição concreta desses bens e sua distribuição.
The first question of justice is the question of power. For it is not
just a matter of wich goods are to be legitimately distributed for
what reasons, in what amount, and to whom; it is also a matter of
how these goods come into the world in the first place, who
decides on the distribution, and how it is carried out. This is the
original, political meaning of social justice. Theories of a
primarily allocative-distributive nature are accordingly “forgetful
of power”, insofar as they think only from the “side of the
recipient” and only require “re-distribution”, without posing the
political question about the determination of the structures of
production and distribution. (Forst, 2012: 195[grifos do autor])
É preciso questionar sobre a determinação das estruturas de produção. Razão pela
qual é tarefa da justiça (1) Produzir uma estrutura básica de justificação; (2) Produzir uma
estrutura básica plenamente justificada. Os princípios decididos pela primeira – a minimal
justice - balizam as relações na segunda – a maximal justice. Esses princípios são mais do
que princípios específicos para a distribuição de bens, «but a higher-order principle for
justifying potential distributions». (Forst, 2012: 197[grifos do autor])
Para Forst a justiça fundamental se expressa então de forma aparentemente
paradoxal, de uma implicação substantiva da justiça procedimental. A partir de um
24
“direito moral de justificação”, a estrutura básica é questionada sobre se de fato os
indivíduos tem possibilidades, recíprocas e gerais, de determinar quais instituições são
relevantes para eles no que se refere a produção e distribuição de bens, a violação da
justiça fundamental se dá quando o poder básico de justificação é distribuído igualmente
dentre as mais importantes instituições.
Bens como a saúde devem então ser distribuídos considerando primeiro os
requerimentos da justiça fundamental, e depois de acordo com os bens que são
considerados mais pertinentes e que favorecem um ou outro esquema de distribuição, e
esse segundo fator pode sempre mudar conforme o contexto.
5 - Considerações Finais
As teorias da justiça nos fornecem os parâmetros através dos quais pensar a justiça
das políticas públicas, como as concepções intuitivas de justiças são elaboradas em
sociedade e sua relação com a legitimidade da política.
O fio condutor central dessa pesquisa é a ideia de que as concepções de justiça têm
especial importância para a elaboração e análise das políticas públicas. Tais concepções
são orientadoras da instituição, política pública, e da ação do cidadão quando em relação
com essas. Considerando que as políticas públicas são marcadas pela indeterminação, e
que estão permanentemente expostas às mudanças sociais e às “novas” necessidades e
demandas trazidas pela sociedade civil, é preciso considerar que as ideias que a movem
estão sempre sendo reatualizadas e submetidas à opinião pública e, em particular, dos
25
atores que participam diretamente de seu cotidiano, seja enquanto produtores da política,
ou enquanto seus usuários.
Atores esses que ao mesmo tempo que são influenciados pela instituição também
exercem influência sobre ela, nesse sentido a legitimidade das políticas públicas depende
mais da correspondência da política com os valores sustentados pelas pessoas do que da
validade jurídica de seus atos.
De acordo com Jessé de Souza os valores morais do brasileiro estão fortemente
relacionados com a crença no mercado, no indivíduo e na meritocracia. Combinação que
cria uma falsa ideia de igualdade de oportunidades e se sustenta no esquecimento do
social no individual.
A moralidade é relevante justamente porque “deveres morais” referem-se
fundamentalmente ao outro e são eles mais do que a ética das ações no plano do político
que dão sentido aos direitos do homem, aos direitos sociais, e portanto, aos deveres do
Estado e, ao final da linha, para as políticas públicas.
A concepção de justiça de Forst dialoga diretamente com sociedades democráticas
cujos princípios centrais baseiam-se na liberdade e na igualdade de seus cidadãos, e mais
ainda em democracias propensas à participação direta. O caso brasileiro congrega tais
características, atualmente nossa questão central não recai mais sobre a necessidade de
abertura e criação de espaços de participação, mas sim, sobre a efetividade da participação
já institucionalizada nas políticas públicas e sobre a distribuição do poder político e do
direito à justificação dentre os participantes desses espaços, nos quais se cruzam
burocracia e sua tecnocracia, e as opiniões subjetivas pautadas pelas necessidades reais
dos cidadãos.
A política pública é a partir disso pensada como resultante dos valores sustentados
em sociedade e que, ao mesmo tempo, precisa ser responsiva aos valores e projetos
políticos em disputa que influenciam em sua implementação ao longo do tempo, e são
fundamentais para a compreensão de sua legitimidade.
Ou seja, no caso da justiça, é em sua prática diária que a política pública será
responsiva as concepções intuitivas de justiça sustentadas pelas pessoas, fundamento de
suas demandas e de seus julgamentos.
26
O pano de fundo dessa discussão é pautado por concepções normativas de justiça
que influenciam diretamente nas decisões do gestor sobre a implementação ou não de
serviços ou programas específicos, nos diferentes contextos da política de saúde, pois é
nesse campo de disputa que se coloca em pauta os limites de atuação do Estado via
política pública.
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