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SUS: desigualdade, justiça social e a legitimidade da política

Date post: 28-Feb-2023
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1 SUS: desigualdade, justiça social e a legitimidade da política 1 . Camila Gonçalves De Mario Escola de Artes Ciências e Humanidades USP Núcleo de Estudos de Políticas Públicas UNESP (Franca) e-mail: [email protected] GT9: Cidadania e Sistemas de Saúde. O desafio da participação cidadã nos Países de Língua Portuguesa. Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar a discussão teórica de minha pesquisa de pós- doutoramento, cujo propósito é orientar a reflexão sobre as concepções de justiça e noções de saúde sustentadas pelo cidadão brasileiro e sua importância para a análise do SUS (Sistema Único de Saúde) e de sua legitimidade. Considero que tais concepções são orientadoras das relações que se estabelecem entre os diferentes atores envolvidos com a política pública de saúde (e para as políticas públicas de modo geral) e fundamentais para uma análise empírica da política voltada para a justiça de seus resultados e sua legitimidade. As teorias da justiça de Rainer Forst, John Rawls e Jürgen Habermas constituem o parâmetro normativo adotado para a análise. A reflexão desses autores sobre a justiça distributiva e o papel do direito nas sociedades democráticas, somada à compreensão das políticas públicas enquanto um dever do Estado de direito para a garantia dos direitos fundamentais, alinha-se neste artigo a uma análise das políticas públicas focada no papel das ideias e valores sustentados pelos atores sociais, e principalmente, que nos permite reconhecer as concepções de justiça presentes na política pública de saúde, como essas se manifestam, e como são articuladas na esfera pública para a justificação da política. O ponto de partida é a reflexão acerca do ethos neoliberal como balizador das relações na sociedade brasileira, buscando pistas que nos permitam 1 Este artigo é fruto de minha pesquisa de pós-doutoramento realizada no âmbito do programa de pós-graduação de Gestão em Políticas Públicas na EACH USP (SP), com auxílio pesquisa PNPD CAPES.
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SUS: desigualdade, justiça social e a legitimidade da política1.

Camila Gonçalves De Mario

Escola de Artes Ciências e Humanidades – USP

Núcleo de Estudos de Políticas Públicas – UNESP (Franca)

e-mail: [email protected]

GT9: Cidadania e Sistemas de Saúde. O desafio da participação cidadã nos Países de

Língua Portuguesa.

Resumo:

O objetivo deste artigo é apresentar a discussão teórica de minha pesquisa de pós-

doutoramento, cujo propósito é orientar a reflexão sobre as concepções de justiça e noções

de saúde sustentadas pelo cidadão brasileiro e sua importância para a análise do SUS

(Sistema Único de Saúde) e de sua legitimidade. Considero que tais concepções são

orientadoras das relações que se estabelecem entre os diferentes atores envolvidos com a

política pública de saúde (e para as políticas públicas de modo geral) e fundamentais para

uma análise empírica da política voltada para a justiça de seus resultados e sua

legitimidade. As teorias da justiça de Rainer Forst, John Rawls e Jürgen Habermas

constituem o parâmetro normativo adotado para a análise. A reflexão desses autores sobre

a justiça distributiva e o papel do direito nas sociedades democráticas, somada à

compreensão das políticas públicas enquanto um dever do Estado de direito para a

garantia dos direitos fundamentais, alinha-se neste artigo a uma análise das políticas

públicas focada no papel das ideias e valores sustentados pelos atores sociais, e

principalmente, que nos permite reconhecer as concepções de justiça presentes na política

pública de saúde, como essas se manifestam, e como são articuladas na esfera pública

para a justificação da política. O ponto de partida é a reflexão acerca do ethos neoliberal

como balizador das relações na sociedade brasileira, buscando pistas que nos permitam

1 Este artigo é fruto de minha pesquisa de pós-doutoramento realizada no âmbito do programa de

pós-graduação de Gestão em Políticas Públicas na EACH – USP (SP), com auxílio pesquisa PNPD –

CAPES.

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refletir sobre seu impacto na ação estatal e sobre as concepções de justiça sustentadas

pelas pessoas. As concepções de justiça são aqui entendidas como elemento fundamental

para a análise da legitimidade das políticas públicas em uma sociedade democrática,

plural e cujos princípios constitucionais definem a igualdade e o direito à participação

política como parâmetros fundamentais das relações entre Estado e os cidadãos.

Palavras-chave: teorias da justiça; políticas públicas; concepções de saúde;

políticas saúde.

1 - Introdução

Esta pesquisa tem sua origem na constatação de um problema corriqueiro no

cotidiano da administração pública brasileira: a falta de efetividade dos direitos sociais e a

maneira como os cidadãos lidam com a questão, no que se refere a percepção da injustiça

a qual estão expostos.

Muito já foi dito pela sociologia política sobre um ethos do brasileiro que perceberia

o Estado como “pai dos pobres”, entendendo os direitos sociais como benesses,

assistência àqueles que não podem pagar por tais bens no mercado. Tal postura seria fruto

de uma cultura política coronelista, dos favores, de uma perversa confluência entre os

mundos público e privado e, resquício de uma cidadania ainda marcada pela lógica da

“cidadania regulada”2, gramática essa que pautaria as relações em sociedade3.

Trabalho com a hipótese de que mais forte do que esse ethos, que a partir dos

2 Refiro-me ao conceito de Wanderley Guilherme Santos.

3 Essa colonização do público por interesses privados é denunciada pela sociologia política, que

percebe nesse movimento uma perversa confluência de valores colocando o público a serviço dos interesses

dos mais poderosos e as políticas públicas sociais como apaziguadoras das classes oprimidas. No âmbito do

direito administrativo essa confluência entre público e privado também é tida como negativa, por um viés

diferente porém com consequências semelhantes, pois um Estado pautado exclusiva ou essencialmente pela

orientação do direito público seria antiliberal e autoritário. São discussões distintas mas que se somam no

entendimento dos sentidos do agir estatal.

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códigos orientadores do privado esvazia o espaço público de sentido, seria o ethos

neoliberal, fenômeno mais recente para a sociedade brasileira e consonante com a

concepção de justiça sustentada pela teoria “libertariana”4. Ethos fortemente marcado pela

crença no mérito, tomando o indivíduo como lócus central, e quase exclusivo, do direito

positivo e avesso a uma noção comunitária que se fundamenta na ideia de redistribuição

de bens, recursos e riquezas, mais do que benesses os direitos seriam serviços aos quais

teriam acesso àqueles que se esforçarem para tal. Porém, trata-se de uma visão de mundo

que encontra ecos na anterior, que pensa o público colonizado pelos interesses do privado,

mas principalmente na noção de cidadania regulada.

Essas questões remetem diretamente ao problema ao qual estou aqui me referindo:

concepções de justiça social. Mais do que perguntar sobre o que é justo, a proposta deste

artigo é trazer elementos da filosofia e da sociologia política que nos auxiliem a pensar a

formação das concepções intuitivas de justiça e seu impacto sobre as políticas públicas.

Mais do que uma empreitada normativa, o fim da linha é fornecer elementos para

pensar nos impactos dessa percepção (intuitiva de justiça) nas políticas públicas, na

prática da administração e no direito públicos. Se as políticas públicas encerram valores

socialmente sustentados; esses valores são articulados como justificadores não somente da

elaboração das leis que a demandam e do desenho da política (o que em uma sociedade

democrática requer deliberação e acordo entre as partes), como também para a prática

administrativa e legal que confronta dever (do Estado) – direito (de cidadania) – demanda

(da sociedade civil) para tomada de decisão, julgamento e justificativas dos atos públicos.

Adoto como ponto de partida a seguinte ideia: a justiça de uma política pública não

está dada apenas por sua conformidade com as leis, normas e regulamentos institucionais.

Uma política pública pode ser legal e ao mesmo tempo profundamente injusta.

O SUS é um exemplo de política com a qual normativamente poucos divergem,

entretanto ela contém em si sérias incongruências, dadas já em seu desenho e que

impactam em sua implementação e nos resultados alcançados.5 Em um primeiro momento

4 Concepção de justiça sustentada por autores como Robert Nozik e Friedrich Hayek.

5 Apontei tais incongruências e divergências em minha tese de doutorado, “Saúde como questão de

Justiça” (2013).

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podemos aventar que o SUS é injusto, (1) por não garantir a plenitude de um direito, qual

seja, o acesso universal à saúde (atenho-me aqui a ideia estreita de não cumprimento da

norma); ou (2) sua justiça pode ser definida pela coerência do sistema com as concepções

de justiça sustentadas pela sociedade.

É este segundo ponto que pretendo explorar. A pergunta de fundo é: como ações do

sistema que percebidas como injustas, e por vezes ilegais de acordo com o primeiro viés

de justiça, se reproduzem?

Em minha pesquisa de doutoramento busquei demonstrar que o desenho da política

e os objetivos do sistema brasileiro de saúde se baseiam em concepções de justiça que não

só são distintas como divergentes entre si, divergência que transparece durante o processo

de implementação da política. Trata-se de um paradoxo no qual está imerso o SUS e

demais instituições, mais, diria que nossa sociedade como um todo.

Os princípios que norteiam o direito à saúde – universalidade, integralidade,

gratuidade e igualdade - no Brasil se justificam perante concepções de justiça próximas ao

que é defendido pelas teorias liberais-igualitárias, ao mesmo tempo, também estão em

conformidade com os princípios constitucionais norteadores dos deveres e direitos do

cidadão, e dos direitos humanos internacionais ratificados pelo Brasil. O mesmo acontece

com a noção de saúde, ou seja, com o que se entende por saúde, esse entendimento está

orientado por uma concepção específica de direitos de cidadania e de pessoa humana. Tais

princípios requerem uma determinada configuração da política e da administração pública

para que o direito à saúde se realize, torne-se facto. Entretanto, há em sociedade outros

valores, concepções de justiça social, de saúde, e projetos políticos em disputa que

interferem nessa organização e em como tais princípios serão sustentados no cotidiano da

política.

O que o Estado pode fazer é resultado de uma confluência de diversos fatores

determinantes das decisões políticas tomadas pelos governantes e das decisões técnicas a

encargo do gestor público, e da burocracia de um modo geral. Tais fatores são dados pelos

projetos políticos em disputa na sociedade civil, no Estado e também pela relação que se

estabelece entre os usuários e a cidadania, de modo geral, com a política.

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Nesse artigo refletirei sobre o papel das ideias, dos valores morais e as concepções

de justiça a que esses se referem, fundamentais para a análise da legitimidade da política.

Não tenho conhecimento de pesquisa que tenha proposto tarefa semelhante, ao

menos não quanto a concepções de justiça voltadas para pensar especificamente a justiça

de políticas de saúde. Recentemente, enquanto eu desenvolvia esta pesquisa, Lena

Lavinas e Barbara Cobo publicaram livro com resultado de um survey nacional que

trabalhou com as percepções e concepções de justiça dos brasileiros com foco na

desigualdade e nas políticas redistributivas.

Elas também destacam a ausência de trabalhos nesse sentido, chamam atenção para

os esforços que vêm sendo empreendidos por pesquisas que buscam explicar o apoio das

pessoas às políticas redistributivistas na área da economia normativa e da filosofia

política.

Nas ciências políticas e nas pesquisas na área de políticas públicas desconheço

pesquisas com esse intuito, o que temos são avaliações de percepção de qualidade dos

serviços e dos procedimentos democráticos e suas instituições. A justiça ainda é tema

secundário e visto como tarefa da teoria política.

Cobo (2014) ressaltam que conhecer as preferências normativas dos cidadãos é útil

para que possamos desenhar políticas mais propensas a terem seu apoio, e acrescento,

mais propensas a serem consideradas legítimas, pois muito provavelmente o cidadão

típico deve ter concepções de justiça distintas daquelas que nós cientistas sociais

tendemos a valorizar, em suas palavras:

Compreender tal hiato entre concepções teóricas de justiça (e de

políticas públicas que dela decorrem) e concepções intuitivas seria

importante, portanto, não apenas como uma forma de “diagnóstico de

preferências”, mas também possivelmente como precondição para

qualquer estratégia de reforma progressista (ou de outra natureza).

(COBO et al. 2014: 37)

É o que proponho. Conhecer as concepções de justiça e de saúde das pessoas nos

permite entender os problemas enfrentados pela política que identifiquei como injustiças

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perante a dois parâmetros normativos de justiça, um advindo das concepções teóricas e

outro retirado do próprio desenho da política e da legislação constitucional e

infraconstitucional balizadora da política e dos princípios norteadores da ação do Estado.

O cidadão brasileiro pode ter concepções intuitivas distintas a partir das quais essas

situações não sejam consideradas injustas; podem haver desacordos quanto ao

entendimento do que é saúde, e consequentemente do que deve ser uma política de saúde;

ou, talvez as concepções de justiça – a minha, liberal-igualitária; a sustentada pelo SUS e

pela nossa Carta Constitucional – até sejam semelhantes com as concepções intuitivas das

pessoas e o problema esteja na distribuição de poder político e no direito à justificação,

assim uma distribuição justa do direito à justificação, em sentido forstiano, permitiria as

pessoas a reivindicarem uma política de saúde mais justa, de acordo com uma concepção

comum de justiça.

Em qualquer dos casos são necessárias ações que levando em consideração essa

percepção sobre a justiça social e política de saúde sustentadas pelos cidadãos, visem uma

reforma no sistema orientada pelos requisitos da justiça.

2 - Justiça e Legitimidade das políticas públicas: o papel das ideias

Por que as pessoas confiam e apoiam as políticas públicas? O que faz uma política

legítima e garante sua manutenção ao longo do tempo?

A recente história brasileira é marcada pela luta da sociedade civil pela efetividade de

direitos sociais e democratização das relações políticas em sociedade. Um de seus

objetivos era a realização da justiça social, através da construção de um Estado

democrático com políticas voltadas para mitigar o fosso social marcado pela desigualdade

através da implementação de políticas redistributivas e, que reconhecessem a

universalidade dos direitos da cidadania.

A democracia que por aqui se construiu tem traços únicos, e foi forjada na luta, na

prática política de atores que através de um amplo debate travado pelos movimentos

sociais e pelos partidos de esquerda buscou também a mudança no padrão de relações

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entre Estado e Sociedade, construindo-se uma “nova gramática social” e dando uma nova

configuração ao Estado.

Esses atores construíram um espaço para a justificação pública de suas demandas em

um exercício político orientado por valores morais por eles considerados fundamentais

para uma sociedade democrática. Tais valores são, hoje, base de nossas leis e instituições

e funcionam como orientadores de nossas ações.

Ideia fundamental que perpassa esse trabalho é a de que esses valores são sustentados

por nossas instituições e pelos atores que delas fazem parte. Esses valores são o cerne das

políticas públicas.

Dentre as muitas definições que podemos levantar de políticas públicas, certamente a

noção de que essas encerram valores sustentados pela sociedade não será objeto de

controvérsias acirradas. Trata-se de uma ação do Estado que leva esses valores em

consideração e a questão central passa então a ser o que o Estado é ou não capaz de fazer,

e como faz uso desses valores para justificar seus atos. Acrescento, nas políticas públicas,

(...) se a autoridade desempenha um papel central, estamos longe

de afirmar que o Estado age só. As políticas recebem intervenções

de vários agentes, que com sua lógica e prioridades agem com

autonomia, e suas intervenções se refletem no curso das coisas e

das escolhas. (Cruz, 2012: 74)

Meu objetivo é jogar luz sobre os usuários, diretos e indiretos da política, que enquanto

cidadãos formulam suas concepções morais, agem e julgam as instituições e os demais

atores a partir delas.

O debate sobre a relação entre as ideias e as instituições precisa certamente ser mais

explorado, mas, a hipótese central é a de que se queremos entender as instituições e seus

resultados é preciso uma abordagem normativa que discuta as ideias, valores e motivações

que definem as instituições e também serão base para sua avaliação e legitimidade social.

Defendo uma abordagem que conflita com a tradição institucionalista mais dura, para a

qual o escrutínio das ideias não permite o desenvolvimento de uma abordagem teórica

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adequada para a análise das instituições políticas, já que essas são muito mais do que

ideias. Alinho-me à abordagem defendida por Rogers Smith. O autor ao expor suas

opções teóricas assim formula sua perspectiva:

I have stressed, like others, that the purposes, rules, roles, and

patterns of behavior found in institutions all represent incarnations

of the ideas of those who participate in them and that the creation

and maintenance of institutions cannot be understood apart from

the ideas of the members of the political coalitions that do the

creating and maintaining. (Smith, 2006: 93)

A tarefa a que me proponho nesse trabalho é pensar como articular as concepções de

justiça sustentadas pelas instituições e pelas pessoas para a análise dos resultados e

legitimidade das políticas públicas. Se as políticas públicas são fruto de valores morais

definidores de nossas concepções e princípios de justiça socialmente validados e

reconhecidos publicamente, o que as justifica perante a sociedade, então a legitimidade da

política e a aceitação de seus resultados por parte dos cidadãos é profundamente

perpassada por tais valores.

Não se trata de afirmar que as ideias são mais importantes que as instituições mas sim

que há uma relação dialética entre instituições e ideias que não pode ser ignorada, por

mais que as instituições sejam definidoras de valores, e influenciem comportamentos, o

outro lado também é verdadeiro, ou seja, os valores sustentados pela sociedade também

influenciam na organização e no cotidiano das instituições que precisam se organizar e

reorganizar em torno desses valores para se manterem estáveis.

O terreno da legitimidade, de Estados, governos e instituições é demasiadamente

movediço. Como identificar tais ideias e sua influência sobre a legitimidade das

instituições é outra questão em aberto e difícil de ser enfrentada. Semanticamente, o termo

legitimidade remete à noção de legalidade, bastaria estar de acordo com a lei para uma

instituição ser considerada legítima. Mas o que faz de uma lei legítima? Em última

instância essa é a pergunta que nos importa.

A resposta a essa questão nos leva a um terreno normativo e substantivo que nos

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convida a indagar sobre as ideias e sua justificação. É em seu sentido substantivo que a

legitimidade se liga à justificação (Morris, 2005:156). De início para a construção do

argumento trago a definição de justificação proposta por Morris (2005:158), o autor

afirma que «justificar algo é mostrar que é justo ou certo, razoável, ou, ainda, autorizado;

é validar ou provar. [...] Justificar um Estado, então, seria mostrar que seus poderes são

justos (ou certos) ou razoáveis». Neste ponto Morris adentra a argumentação rawlsiana

acerca da justificação, retendo a argumentação de John Rawls sobre a justificação de sua

própria teoria.

Nessa passagem, em “Uma Teoria da Justiça”, Rawls ressalta que a discordância é

central para a justificação. É no conflito de pontos de vista que buscamos argumentos

razoáveis a partir dos quais convencer os outros, buscando reconciliar através da razão.

As políticas públicas enquanto instituições que criam regras para o jogo político,

intervêm e moldam as vidas dos cidadãos (Pierson, 2006: 114). Precisam, portanto,

justificar-se perante esses, para que sejam vistas como legítimas, e para que os cidadãos

possam confiar em suas ações, mais, são regras que para serem seguidas é preciso que

confiem que os demais também as aceitam e seguem.

As instituições influenciam o comportamento das pessoas e limitam as escolhas dos

atores; é comum pensá-las a partir desse ponto de vista, da instituição para os atores, já

que essas, dado seu caráter, também são organizações difíceis de se modificar. Entretanto,

há momentos históricos, especiais, no qual elas são criadas, e então nos movemos dos

atores para as instituições, como coloca Rothstein (1998: 138) «This means that what is

rational, socially acceptable, or politically possible is not given once and for all by some

true, unchanging human nature, but can be influenced through conscious, rational political

choice.»

A ideia é a de que no momento da criação das instituições estamos diante de uma

escolha racional, consciente de princípios e de valores que darão origem às instituições.

Entretanto, o foco de Rothstein é outro, e o autor prossegue afirmando que um

importante papel das instituições políticas é o de estabelecer normas. Em suas palavras:

The idea is that institutions not only influence what political actors

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find to be a rational course of action, seen from the standpoint of

their self-interest, but also what they consider to be a morally

defensible behavior. [...] The morality prevailing in a society is, in

other words, a product of the institutions built by that society’s

citizens and their representatives. My hypothesis, then, is that

social norms are not given by any such metaphysical entities as

“the gender system”, “class consciousness”, or “the national

character”. They are instead a product of the institutional

conditions which have been created de facto by political decisions.

(Rothstein, 1998: 139)

Ou seja, as instituições cumprem importante papel na formação e promoção dos

valores em sociedade o que leva o autor a afirmar que instituições justas incentivariam um

comportamento justo. E quando os resultados de uma instituição não são justos, o que a

sustenta ao longo do tempo?

No caso brasileiro as políticas públicas e o Estado que se constituiu com a Constituição

de 1988 são fruto de um momento histórico, tal como o que Rothstein chama de especial,

no qual os atores a partir de escolhas racionais criam as instituições. A premissa aqui é

que tais instituições refletem as ideias sustentadas por esses atores e são frutos de um

amplo debate para sua justificação no espaço público.

É o processo de construção e avaliação das instituições que se dá a partir da moralidade

sustentada pelos atores que delas participam que me interessa.

É na chave de Smith (2006) que vejo um campo aberto à investigação, para a análise

de políticas públicas tanto no que se refere a avaliação de seus resultados como à sua

legitimidade. Estou supondo que mais do que estarem de acordo com a legalidade e com

as normas, para que as instituições sejam legítimas é preciso que sejam coerentes com a

moralidade sustentada pela sociedade. Se é verdade que elas influenciam e orientam

comportamentos, também é verdade que são feitas por pessoas que imprimem nas

instituições seus valores, sua moralidade. Dentre aquilo que se estabeleceu como desenho

institucional, com suas normas, princípios e objetivos, e os resultados alcançados pela

instituição há um jogo de forças político que pode ou não garantir que os resultados sejam

coerentes com as metas propostas.

Políticas Públicas são o tipo de instituição que estão sob forte influência desse jogo e

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dos projetos políticos em disputa em seu âmbito e na sociedade de forma mais ampla. Por

sua estrutura estão abertas à indeterminação e sujeitas a um constante processo de

transformação, seja pelas demandas da sociedade que se alteram em um ritmo mais

acelerado do que aquele que a própria instituição é capaz de incorporar, seja através da

ação dos atores que fazem parte de seu cotidiano que ou aperfeiçoam ou burlam suas

normas para realizar os fins da própria instituição, e os seus em particular.

3 - Brasilidade e o Ethos neoliberal

Em livro recente Jessé Souza (2009) tece uma reflexão que em muito colabora para

pensarmos a perspectiva que proponho. O autor inicia nos lembrando de uma premissa

básica da cidadania moderna, a ideia de comunidade, constitutiva tanto do imaginário e

das identidades nacionais como da cidadania.

A construção da identidade nacional é a construção do mito moderno que como

coloca Souza (2009: 31) dota a realidade de sentido moral e espiritual para os indivíduos.

É o sentido moral que permite ao indivíduo solidificar relações de identificação social e

pertencimento a um grupo, garantindo a criação de laços de solidariedade e, acrescento, a

tolerância.

Para Souza (2009) o Brasil se percebe como mercado, seria esse seu “DNA

simbólico”. Uma identidade nacional precisa sempre se estabelecer em relação/oposição a

um outro, e o outro externo do Brasil é o EUA, superior em quase tudo, principalmente

para um Brasil que em 1822 sofria de complexo de inferioridade. Portanto, para a

construção da identidade nacional primeiro articulou-se o que havia de positivo, que era a

grandeza da natureza e sua força, a amalgama para o próximo passo foi fornecida pela

obra de Gilberto Freyre, “Casa Grande e Senzala”, que possibilitou transformar a

miscigenação, até então motivo de vergonha em orgulho: o povo mestiço se transforma

em virtude de um povo capaz de articular e unir contrários. É a aversão ao conflito

transformada em núcleo da identidade nacional, forjada sobre o mito do homem cordial.

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É na ideia de cordialidade e de que havia entre os brasileiros mestiços um todo

harmônico que o Estado de Getúlio Vargas encontrou «a energia simbólica para o esforço

de integração nacional». (Souza, 2009: 37) Tínhamos de um lado o elogio da unidade e

índole pacífica do povo brasileiro e de outro a demonização da crítica e da explicitação do

conflito e das diferenças.

Está criado nosso DNA simbólico, o DNA simbólico do Brasil moderno,

um conjunto de ideias que legitimam práticas sociais e institucionais de

toda espécie que se destinam, em última instância a tirar toda a

legitimidade do diferente e da diferença, do crítico e da crítica.

(SOUZA, 2009: 38 [grifos do autor])

Através da metáfora do DNA o autor demonstra o perigo contido na ausência de

crítica em uma sociedade como a brasileira que vai naturalizar sua vida social como no

caso do DNA genético individual. Soma-se a isso que a sociedade brasileira é uma

sociedade que só percebe o dinheiro e suas materializações sem sequer perceber a enorme

influência das ideias e dos valores. A realidade assim se apresenta como dada, e não

construída. Quando se transforma cultura em natureza não se percebe o principal:

Que toda a nossa orientação na vida e toda justificação de nossas ações e

comportamentos dependem de “ideias” contingentes e fortuitas,

formuladas por outros, e que comandam nossas decisões e julgamentos

tanto mais quanto menos temos consciência delas. (SOUZA, 2009: 39)

Dessa forma a gênese da identidade nacional é fundamental para a compreensão da

forma como a sociedade e seus membros percebem a si próprios, e ajuda a pensar as

concepções de justiça sustentadas e o grau de justiça de suas instituições.

De acordo com Souza (2009) os indivíduos precisam de uma definição acerca de

quem são, de como devem agir e do que caracteriza uma sociedade justa. A grande

maioria busca tais referencias no senso comum.

No que se refere a questões de justiça é ainda mais importante que os indivíduos

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sejam autônomos e capazes de formular e exercitar seus julgamentos morais, incluindo a

capacidade de desenvolver um senso de justiça e a de decidir e de revisar sua concepção

de bem. Tal importância é afirmada tanto por John Rawls como por Rainer Forst. Souza

(2009) coloca que a existência de indivíduos autônomos e pensantes é importante para a

existência de uma esfera pública verdadeiramente democrática, neste ponto as concepções

dos três autores se complementam.

Jessé Souza nos remete a uma das questões centrais da teoria da justiça de Rawls, o

autor afirma que no mundo moderno o poder não se manifesta abertamente, que as

relações e o como a estrutura social determinam as expectativas dos indivíduos não são

visíveis: «existiria no mundo moderno uma igualdade de oportunidades falaciosa que

justifica a noção de mérito e assim as desigualdades seriam fortuitas e justas» (Souza,

2009: 43)

Para Rawls, uma sociedade justa precisa de uma estrutura básica que garanta a

efetividade e o exercício das liberdades fundamentais básicas, que garanta a Igualdade

Equitativa de Oportunidades e que as desigualdades existentes funcionem a favor de

todos. A noção central desses princípios 6 é a de que a injustiça se constitui de

desigualdades que não são vantajosas para todos. Nos termos de Rawls:

Todos os valores sociais – liberdade e oportunidade, renda e

riqueza, e as bases sociais do autorrespeito – devem ser

distribuídos de formal igual, a não ser que uma distribuição

desigual de um ou de todos esses valores seja vantajosa para

todos. (Rawls, 2008: 75)

Os princípios na teoria de Rawls se aplicam às instituições da estrutura básica da

sociedade responsáveis pela distribuição dos direitos e deveres fundamentais o que

determina a divisão das vantagens decorrentes da cooperação social. Dessa maneira as

instituições ao definirem os direitos e deveres das pessoas repercutem em seus projetos de

6 Os princípios que descrevi são seus dois princípios da Justiça, o primeiro garantidor das liberdades

fundamentais básicas e o segundo voltado para a distribuição de renda e riqueza. Ver “Uma Teoria da

Justiça” (2008).

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vida, nas suas expectativas e no grau de bem-estar que podem almejar.

O que Souza (2009) está apontando é que a meritocracia que se sustenta no

imaginário e na nossa identidade nacional cria uma falsa ideia de justiça social. Uma

justiça social que na prática funciona aos moldes das concepções “libertarianas” de justiça

mas que se legitima sobre a capa de um pretenso discurso “liberal-igualitário” destorcido

em seus conteúdos, perversamente esvaziado de sentido, mas que dificilmente seria

diretamente negado na esfera pública.

Dessa forma o ataque à noção de igualdade fundamental dos cidadãos e aos direitos

humanos e sociais dela derivados se dá pela manipulação, uma maquinação de seus

sentidos que estabelece um campo de luta político entre “esforçados que fizeram por

merecer” e “preguiçosos que acharam mais fácil viver das benesses do Estado”.

Preguiçosos porque afinal as oportunidades estão aí, a disposição de todos.

Esse discurso tem graves consequências não somente no que se refere ao

reconhecimento e legitimidade de políticas de cunho mais assistenciais e de políticas

compensatórias como o “bolsa família”, mas também daquelas que têm como objeto a

implementação de serviços que garantam a efetividade dos direitos dos trabalhadores, do

direito à saúde, à educação, à habitação, para citar alguns.

Soma-se a isso que o status social do brasileiro está fortemente ligado ao consumo.

Voltado para o mercado, o cidadão define-se mais enquanto consumidor que tem o direito

à propriedade privada e a consumir ao seu bel prazer do que pela igualdade fundante da

noção de cidadania.

Dentro dessa perspectiva a noção de mercado e o consumo enquanto marcador

central do status social e da brasilidade têm forte impacto sobre as Instituições estatais e

sobre a Gestão Pública. No centro de tudo está a Economia e o Mercado, motor do

crescimento e do desenvolvimento, às margens o Social, o Cidadão e seus Direitos.

Consequentemente o Estado é atacado em seu cerne.

Estamos adentrando o terreno do papel das ideias e seu impacto sobre as

instituições. E do como essas agem e reagem, como são organizadas, avaliadas,

percebidas e legitimadas. Paradoxalmente, ou não, o ideário neoliberal entra no Brasil

com força e evidência no mesmo tempo histórico em que a luta por uma Constituição

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Cidadã também ganhava força e visibilidade política. O Estado a partir de 1989 se forja

neoliberal contraditoriamente (ou não) perante a um arcabouço jurídico de pretensões

igualitárias. Essa história já conhecemos. A legitimidade desse processo foi garantida

pelas ideias, e concepções de justiça já incorporadas pela sociedade.

Cada perspectiva normativa de justiça pensará a distribuição de direitos e deveres,

bens e recursos de maneira distinta. O libertarianismo de Robert Nozick, que mencionei

anteriormente, entende o Estado como um tirano cujo poder de dominação deve ser

minimizado pelo mercado. Para a lógica deontológica fundante do pensamento de Nozick,

e também de Hayek, a injustiça não está em uma desigual distribuição de bens e recursos

em sociedade, mas sim, em uma ação que infrinja o direito de outrem ou que venha a

causar sofrimento a outra pessoa. Para os libertarianos é o indivíduo e não a comunidade

que está no centro de tudo. O direito à propriedade funciona como uma maneira de

estabilizar a democracia, e não podem de maneira alguma serem restringidos. (DeMario,

2013, p.263)

Nessa esteira o princípio da equidade seria temível e condenável porque deturpa o

princípio da auto-propriedade, já que as teorias igualitárias permitem direitos de

propriedade parciais sobre outras pessoas.

A redistribuição de renda ou a definição de direitos sociais

caracterizam uma violação dos direitos fundamentais da pessoa,

cujos bens são frutos diretos de seu trabalho ou das trocas justas

no mercado livre. Dessa forma, o Estado, ao buscar igualdade,

estaria perpetrando uma violação desses direitos. (DeMario, 2013:

266)

A perspectiva libertariana alinha-se com o ideário neoliberal que deu a tônica das

reformas do Estado Brasileiro nos anos 1990 e 2000 e também tem reverberações na

maneira como a sociedade brasileira compreende a distribuição de bens e riquezas e o

papel dos direitos sociais.

Para Jessé Souza o que colabora para a força que o ideário neoliberal assumiu entre

os brasileiros, juntamente a celebração do mérito individual versus a discriminação do

16

fracasso é o esquecimento do social no individual. Para o autor há um silenciamento do

processo social que constrói indivíduos fadados ao sucesso ou ao fracasso. Para Souza a

família cumpre importante papel na transmissão dos valores que ratificam essa ordem e

colaboram para reprodução da desigualdade, injustiças e privilégios.

A questão central é a de que o quê as famílias ensinam não é forjado pela própria

família, é aprendido diariamente fora dela, em “outro” lugar, como coloca o autor. A

classe social a qual as famílias pertencem e sua economia moral é o que dá o tom dos

valores que elas reproduzem. É a presença da classe e da economia moral que determina

os comportamentos individuais, mesmo que essa determinação seja sistematicamente

escondida ou esquecida, esse esquecimento da classe social é para Souza (2009) o mais

bem guardado segredo do senso comum.

Nessa esteira os lares de classe média ensinam como valores a autodisciplina, o

autocontrole, o pensamento prospectivo, o respeito ao espaço alheio, através da

transmissão de regras que impõe horários para comer, ao valorizar o estudo, ao orientar a

evitar confrontos direitos com os amigos, chegar em casa nos horários certos. Mas

também ensinam algo mais importante ainda para uma sociedade meritocrática e

individualizada, suas crianças aprendem desde cedo que são “um fim em si mesmas”

(princípio que como vimos é ponto de partida das teorias da justiça e do direito) e a ser

autoconfiantes, através da autoconfiança sustentada pela certeza de um amor

incondicional que vem dos pais desenvolve-se a certeza do próprio valor, o que permite

encarar as derrotas como transitórias e alimentar a esperança. Esse aprendizado só não é

tematizado porque é afetivo, emocional.

Dentre as classes mais pobres que Souza (2009: 46) denomina ralé esses valores não se

sustentam. No que se refere a autodisciplina e a importância do estudo, é difícil para os

pais das classes mais pobres sustentarem isso emotivamente, já que sua experiência que

vida não se alinha à crença de que o estudo e a vida escolar traz benefícios. Quanto a

sustentar seu valor e a autoconfiança, é extremamente difícil fazê-lo entre seres humanos

que estão habituados a serem usados, dentro e fora de seus lares. As mulheres são

normalmente expostas a uma sexualização precoce, e sexualmente instrumentalizadas

dentro de suas casas e por familiares, como seus pais, padrastos, tios, irmãos.

Em universos tão distintos os valores e crenças transmitidos provavelmente não serão

17

os mesmos. Neste cenário, as crianças da classe média, que têm contato com outras

pessoas de seu mesmo universo perceberão suas conquistas na vida adulta como fruto,

resultado de seu mérito e esforço próprio. «A renda econômica que advém desse sucesso

é, portanto, efeito, e não causa das diferenças entre as classes.» (Souza, 2009: 46)

Chegamos a um ponto fundamental do argumento de Jessé Souza (2009: 47), para o

autor é essa confusão entre causa e efeito que fazem as determinações oriundas das

classes sociais tornarem-se invisíveis, e só por isso o senso comum pode ver o indivíduo e

o mérito individual como justificativa dos privilégios. As precondições familiares e

sociais do mérito são cuidadosamente deixadas para fora do debate público e a

justificação da desigualdade pelo esquecimento do pertencimento de classe é

potencializada por uma aliança invisível com o mito da brasilidade que colaborou tanto

para construir a noção de homogeneidade entre brasileiros tão desiguais, bem como a

ideia de horror ao conflito, que acaba se desenrolando quase sempre se forma

escamoteada, ou em explosões de ódio que precisam ser rapidamente controladas.

4 - Justiça: Direito à Justificação

Rainer Forst, formular sua teoria crítica da justiça a partir do debate travado pelo autor

com as teorias de Jürgen Habermas e John Rawls acerca dos limites da moralidade e da lei

para a aplicabilidade e efetividade dos direitos dos homens e do papel das instituições. O

autor propõe uma terceira via e aponta que: «a theory of justice must pay attention to the

function and relative autonomy of democratically legislated modern law, and according to

Habermas, Rawls neglects this» (Forst, 2012: 101)

Inicio com uma breve apresentação das ideias centrais da teoria de Rainer Forst, seu

ponto de partida é o entendimento dos homens enquanto seres justificatórios, que têm a

habilidade de justificar-se e esperam o mesmo dos outros, o lugar da justificação, para ele

é por excelência o contexto político.

A justiça política e social pode ser entendida a partir do direito de justificação, bem

como os princípios para a estrutura básica da sociedade devem ser construídos de acordo

18

com esse direito. Segundo o autor somente considerando a justificação de relações sociais

e da distribuição do poder de justificação em contexto político que é possível se

aproximar da justiça, esse é o caminho que leva às raízes da injustiça social.

Para o filósofo a justiça deve se voltar para as relações intersubjetivas e para a estrutura

básica da sociedade considerando que a vítima da injustiça é aquela que não conta na

distribuição de bens em sociedade, e que a demanda por justiça é uma demanda

emancipatória.

Sua teoria discursiva da justiça não é puramente procedimental, seu fundamento

encontra-se essencialmente em um princípio moral de justificação que requer

generalidade e reciprocidade. A noção de reciprocidade contém a ideia de que ninguém

recusaria a outrem demandas que faria a si mesmo; a de generalidade que as razões para

as normas gerais precisam ser compartilhadas por todos que por elas são afetadas. Soma-

se a isso a exigência de que o princípio da justificação precisa estar de acordo com os

contextos sociais concretos, com a pluralidade de valores éticos e com as várias esferas

sociais e comunidades.

Trata-se de uma teoria monista e deontológica, o primeiro permite que ela esteja aberta

para o pluralismo de certos aspectos da justiça e as particularidades das diferentes esferas

de distribuição nas quais os bens são distribuídos de acordo com critérios particulares.

Quanto ao segundo,

This deontological character becomes clear not only from

reflecting on the ethical pluralism of “comprehensive doctrines”,

as Rawls would put it, but also from the validity claim made by

justice itself to consist in principles and norms that cannot be

reciprocally and generally rejected and so can even justify the

force of law. (Forst, 2012: 08)

A justiça para ele não encobre todo o mundo normativo, mas que se aplica somente a

alguns contextos normativos particulares. A base de sustentação da justificação precisa ser

construída através de regras, cuja tarefa de conceitualização cabe a teoria da razão, pela

qual se analisa quais falas e reclamos precisam ser justificados, em quais contextos e a

19

partir de quais critérios. Isso porque uma razão que se distingue por uma ação racional

pode ser compreendida por outros mas isso não significa que ela requer a aceitação dos

outros para sua validação. Ou seja, fornecer uma razão significa explicar uma ação, mas

não justificá-la intersubjetivamente, o que só é possível através de uma justificação ética

ou moral.

4.1. Lei e Moralidade

Forst (a partir de Habermas) afirma que junto da autonomia moral tem-se a autonomia

legal de pessoas legalmente reconhecidas como o objeto da lei e a autonomia política de

cidadãos que são autores de tais leis. Este é o duplo papel que surge no centro da conexão

entre o Estado Constitucional e a democracia, ou entre, os direitos humanos e a soberania

popular. (Forst, 2012: 102)

De acordo com Habermas, normas legais precisam ser distinguidas de normas morais.

As primeiras são legitimadas no discurso político, são legalmente institucionalizadas, não

articulam apenas razões morais e possuem um efeito coercivo sobre as pessoas. Lei e

moralidade convivem em uma relação complementar e compensatória, «It is this dual

status of law, as both a factually binding system of norms (which also can described in a

sociological-functional way) and claiming normative validity, that immanently connects

the constitutional state and democracy.» (Forst, 2012: 102)

Dessa forma para Habermas uma teoria da justiça que se baseia no princípio da

autonomia, precisa considerar a conexão entre facticidade e validade, constitutiva da

ordem legal moderna e perguntar quais direitos os cidadãos precisam acordar se desejam

regular suas vidas legitimamente pela Lei. Coloca Forst:

To the initial question of how to justify a 'system of rights',

Habermas attempts to provide an answer that goes beyond legal

positivism and natural law. On the one hand, normative criteria

apply to legitimate law; on the other hand, these criteria are not

established by moral principles, but by means of a combination of

20

the discourse principle and the 'legal form'. (Forst, 2012: 102)

O princípio de justificação de Rainer Forst conecta-se com o princípio discursivo de

Habermas, a diferença é que Forst busca responder essa mesma pergunta colocada por

Habermas – quais direitos os cidadãos precisam para regular sua vida comum através das

leis – atribuindo à moral importante papel.

O princípio da justificação situa-se em ambos os terrenos, o da moral e o da política.

Assim a questão colocada deve ser vista como moral e política-legal e deve ser respondida

com base no princípio discursivo, no seu caso, o da justificação. «Then we get a different

co-originality thesis according to which morality can neither be subsumed under law and

democracy nor be rigidly opposed to them.» (Forst, 2012:111)

Nesse ponto, chegamos a dois traços importantes da teoria de Forst o construtivismo e

a crítica. O construtivismo diferentemente do de John Rawls, é entendido como um

construtivismo discursivo, uma prática social, que coloca às pessoas a tarefa de erigir um

edifício normativo sobre uma base moralmente imparcial e agir de acordo com os planos

que elas podem aceitar e justificar, enquanto designers e produtores dessa base.

Construção que se erige sobre a base de uma determinada concepção de pessoa e de um

critério particular de uma prática de justificação razoável.

Sobre a base do construtivismo moral é possível chegar a uma concepção de direitos

humanos que nem estados e nem indivíduos podem negar a uma outra pessoa por razões

que são recíprocas e defendidas por todos. Os direitos humanos têm uma natureza moral e

uma lista de direitos deve ser pensada e justificada para cada situação social, com suas

particularidades que colocam diferentes questões. Por isso, eles não são direitos “naturais”

ou antropologicamente justificáveis.

E se as normas para uma vida moralmente legítima e justa precisam ser justificadas de

acordo com os contextos de cada sociedade, essa necessidade representa para a Forst o

ponto central para toda prática de justificação para uma estrutura básica política e

socialmente justa: o construtivismo político.

E eis o ponto que nos importa:

21

So neither is morality completely taken up into institutionalized

legal-political procedures, since these cannot fully absorb the

entire content of that which is morally required, nor does it remain

external, since procedures of political justification must be

organized such that the highest possible degree of participation

and justificatory equality is guaranteed. Moral and political

autonomy stand in an immanent relation, without blurring the

distinction between moral and legal norms. Morally and politically

responsible citizens, who recognize one another as such, owe one

another a just regulation of their common life within the medium

of law, which they can also confront as strategic actors. (Forst,

2012: 112)

Essa formulação de Forst nos permite pensar o nexo entre moral e política e fazer a

necessária conexão com a validade dos direitos sociais e o papel das políticas públicas

para sua efetividade. Estou entendendo o direito à saúde tanto a partir de sua validade e

obrigatoriedade legal, como a partir das construções morais válidas sobre a definição de

pessoa e o entendimento da cidadania no Brasil. O que a prática parece revelar é um

deslocamento que esvazia de sentido a percepção de pessoa e subsequentemente de direito

daquele legalmente expresso, descolando a justificação moral da prática política que

parece operar com outra concepção de pessoa e de cidadania, retirando assim da

legalidade a sua validade moral.

Embora a definição de pessoa e de direito expressa na letra constitucional não seja

publicamente contestada parece haver um acordo mútuo tácito que justifica o seu

descumprimento, ou se preferirmos, a ausência de coerção para sua efetividade, coerção a

ser exercida tanto sobre o Estado como sobre cidadãos, alvos e sustentáculos e razão desse

direito, que deveriam reclamar, representar e sustentar politicamente. Não estou com essa

afirmação negando toda a tradição política autoritária presente nas relações sociais e

políticas na sociedade brasileira e o processo que forjou nossa subcidadania, ligada à

invisibilidade da desigualdade que naturaliza a desigualdade e ao desenvolvimento de um

habitus (no sentido bourdieusiano) de cidadania precário, nos termos de Jessé Souza, mas

sim, tentando olhar para o que permite e ratifica essa ordem moral e politicamente.

A percepção de justiça ou injustiça do sistema de saúde também nos remete a

22

legitimidade da política pública e aceitação por parte dos cidadãos. Neste ponto já é

possível introduzir os três aspectos da legitimidade que serão norteadores de minha

análise:

Three aspects of state legitimacy may be distinguished. These

concern the extent to which citizens: (a) tolerate the intervention

of the state; (b) accept state decisions aimed at influencing the

behavior of individuals or of groups; (c) cooperate with the state

to achieve the goals it has set. (Rothstein, 1998:104)

Estes aspectos só são possíveis se as pessoas concordam com os princípios e normas do

sistema. Entretanto, a aceitação por falta de parâmetros para avaliação da instituição ou

por medo, apesar de garantir aparente legitimidade ao sistema, não pode ser considerada

como um aspecto de legitimidade da política, mas talvez uma manipulação de crenças e

valores que permitem a manutenção da política institucional sem que essa seja

verdadeiramente questionada, e aqui entramos no terreno da ideologia.

Por essa razão, a teoria da justiça de Rainer Forst joga luz sobre importante aspecto

para a análise das políticas públicas e da prática política: as relações de justificação em

sociedade e o poder político, esse último o mais importante bem primário. Para o autor as

pessoas são agentes da justiça, não são alvos, recipientes da justiça, são agentes

autônomos que co-determinam as estruturas de produção e distribuição que determina

suas vidas, dados, claro, os limites que os sistemas sociais desenvolveram nas sociedades

modernas. A política é a mais importante dimensão da justiça.

Nos termos de Forst (2014:114),

Justice, according to this view, is not primarily about what you

have (or do not have); rather, it is about how you are treated.

Justice is not a teleological notion, for first, it rests on a

deontological duties of what persons owe to one another in a

context of justice. Second, its critical part is not about persons

lacking something that it would be good for them to have; rather,

it is about persons being deprived of something they have

reciprocally and generally non rejectable reason to claim. Justice

23

is above all about ending domination and unjustifiable, arbitrary

rule, whether political or social life, that is, as persons with what I

call a basic right to justification. (grifos do autor)

A justiça está na capacidade de fala, no poder de elaborar e demandar reclamos que se

justificam aos olhos dos outros. Por isso a questão central não é o que se tem, mas sim

como se é visto, pois a justiça requer que todos sejam vistos como pessoas racionais

capazes de elaborar suas concepções morais, reconhecer que os outros também o são e

requer que todos tenham o poder político de justificação.

A demanda por justificação não se deve pelo bem da democracia, mas sim pelo bem

dos fins relevantes das relações sociais e instituições em questão. É em função da

realização desses fins que uma teoria do reconhecimento é fundamental, pois provê as

perspectivas para uma definição concreta desses bens e sua distribuição.

The first question of justice is the question of power. For it is not

just a matter of wich goods are to be legitimately distributed for

what reasons, in what amount, and to whom; it is also a matter of

how these goods come into the world in the first place, who

decides on the distribution, and how it is carried out. This is the

original, political meaning of social justice. Theories of a

primarily allocative-distributive nature are accordingly “forgetful

of power”, insofar as they think only from the “side of the

recipient” and only require “re-distribution”, without posing the

political question about the determination of the structures of

production and distribution. (Forst, 2012: 195[grifos do autor])

É preciso questionar sobre a determinação das estruturas de produção. Razão pela

qual é tarefa da justiça (1) Produzir uma estrutura básica de justificação; (2) Produzir uma

estrutura básica plenamente justificada. Os princípios decididos pela primeira – a minimal

justice - balizam as relações na segunda – a maximal justice. Esses princípios são mais do

que princípios específicos para a distribuição de bens, «but a higher-order principle for

justifying potential distributions». (Forst, 2012: 197[grifos do autor])

Para Forst a justiça fundamental se expressa então de forma aparentemente

paradoxal, de uma implicação substantiva da justiça procedimental. A partir de um

24

“direito moral de justificação”, a estrutura básica é questionada sobre se de fato os

indivíduos tem possibilidades, recíprocas e gerais, de determinar quais instituições são

relevantes para eles no que se refere a produção e distribuição de bens, a violação da

justiça fundamental se dá quando o poder básico de justificação é distribuído igualmente

dentre as mais importantes instituições.

Bens como a saúde devem então ser distribuídos considerando primeiro os

requerimentos da justiça fundamental, e depois de acordo com os bens que são

considerados mais pertinentes e que favorecem um ou outro esquema de distribuição, e

esse segundo fator pode sempre mudar conforme o contexto.

5 - Considerações Finais

As teorias da justiça nos fornecem os parâmetros através dos quais pensar a justiça

das políticas públicas, como as concepções intuitivas de justiças são elaboradas em

sociedade e sua relação com a legitimidade da política.

O fio condutor central dessa pesquisa é a ideia de que as concepções de justiça têm

especial importância para a elaboração e análise das políticas públicas. Tais concepções

são orientadoras da instituição, política pública, e da ação do cidadão quando em relação

com essas. Considerando que as políticas públicas são marcadas pela indeterminação, e

que estão permanentemente expostas às mudanças sociais e às “novas” necessidades e

demandas trazidas pela sociedade civil, é preciso considerar que as ideias que a movem

estão sempre sendo reatualizadas e submetidas à opinião pública e, em particular, dos

25

atores que participam diretamente de seu cotidiano, seja enquanto produtores da política,

ou enquanto seus usuários.

Atores esses que ao mesmo tempo que são influenciados pela instituição também

exercem influência sobre ela, nesse sentido a legitimidade das políticas públicas depende

mais da correspondência da política com os valores sustentados pelas pessoas do que da

validade jurídica de seus atos.

De acordo com Jessé de Souza os valores morais do brasileiro estão fortemente

relacionados com a crença no mercado, no indivíduo e na meritocracia. Combinação que

cria uma falsa ideia de igualdade de oportunidades e se sustenta no esquecimento do

social no individual.

A moralidade é relevante justamente porque “deveres morais” referem-se

fundamentalmente ao outro e são eles mais do que a ética das ações no plano do político

que dão sentido aos direitos do homem, aos direitos sociais, e portanto, aos deveres do

Estado e, ao final da linha, para as políticas públicas.

A concepção de justiça de Forst dialoga diretamente com sociedades democráticas

cujos princípios centrais baseiam-se na liberdade e na igualdade de seus cidadãos, e mais

ainda em democracias propensas à participação direta. O caso brasileiro congrega tais

características, atualmente nossa questão central não recai mais sobre a necessidade de

abertura e criação de espaços de participação, mas sim, sobre a efetividade da participação

já institucionalizada nas políticas públicas e sobre a distribuição do poder político e do

direito à justificação dentre os participantes desses espaços, nos quais se cruzam

burocracia e sua tecnocracia, e as opiniões subjetivas pautadas pelas necessidades reais

dos cidadãos.

A política pública é a partir disso pensada como resultante dos valores sustentados

em sociedade e que, ao mesmo tempo, precisa ser responsiva aos valores e projetos

políticos em disputa que influenciam em sua implementação ao longo do tempo, e são

fundamentais para a compreensão de sua legitimidade.

Ou seja, no caso da justiça, é em sua prática diária que a política pública será

responsiva as concepções intuitivas de justiça sustentadas pelas pessoas, fundamento de

suas demandas e de seus julgamentos.

26

O pano de fundo dessa discussão é pautado por concepções normativas de justiça

que influenciam diretamente nas decisões do gestor sobre a implementação ou não de

serviços ou programas específicos, nos diferentes contextos da política de saúde, pois é

nesse campo de disputa que se coloca em pauta os limites de atuação do Estado via

política pública.

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