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The Public Dimension of Language (Portuguese revised version)

Date post: 22-Apr-2023
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153 A DIMENSÃO PÚBLICA DA LINGUAGEM [THE PUBLIC DIMENSION OF LANGUAGE] Theresa Calvet de Magalhães Versão corrigida de três capítulos (capitulo 6, capítulo 7 e capítulo 8) do livro Filosofia Analitica e Filosofia Política: A dimensão pública da linguagem (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011), pp. 153-258. [Revised version of three chapters (chapters 6-8) of my book Filosofia Analitica e Filosofia Política: A dimensão pública da linguagem (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011), pp. 153- 258]. CAPÍTULO 6 A TEORIA GERAL DOS ATOS DE LINGUAGEM A obra de John Rogers Searle, Speech Acts (1969) 1 , é um ensaio de filosofia da linguagem e não de filosofia linguística. Para Searle, o termo “filosofia linguística” designa fundamentalmente um método: a tarefa da filosofia linguística consiste, dizia ele, em “solucionar problemas filosóficos particulares ao tratar do uso ordinário de palavras particulares ou de outros elementos em uma língua particular” (Speech Acts, p. 4). A filosofia da linguagem”, segundo ele, designa mais propriamente um ramo da filosofia 2 , e tenta dar descrições filosoficamente 1. J. R. Searle, Speech Acts: An Essay in the Philosophy of Language [Speech Acts]. Cambridge: Cambridge University Press, 1969. Tradução francesa de Hélène Pauchard: Les actes de langage. Essai de philosophie du langage. Paris: Hermann, 1972 [com uma Introdução de Oswald Ducrot: “De Saussure à la philosophie du langage”, pp. 7-34]. Ver a resenha de L. J. Cohen, “Searle’s Theory of Speech Acts”, The Philosophical Review, Vol. 79, No. 4 (1970), pp. 545-577; ver também B. Smith (ed.), John Searle. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 1-11. 2. Em 1983, logo no início da Introdução à sua obra Intentionality: An essay in the philosophy of mind (Cambridge: Cambridge University Press) e, em 1992, na sua Introdução a The Rediscovery of the Mind (Cambridge (Mass.): The MIT Press), Searle dizia que uma assunção básica de toda a sua abordagem de problemas da linguagem é a de que a filosofia da linguagem é um ramo da filosofia da mente (the philosophy of language is a branch of the philosophy of mind ). Segundo Searle, nenhuma teoria da linguagem seria completa sem uma análise das relações entre a mente e a linguagem e sem uma análise da maneira como a significação (meaning) “a intencionalidade derivada dos
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A DIMENSÃO PÚBLICA DA LINGUAGEM

[THE PUBLIC DIMENSION OF LANGUAGE]

Theresa Calvet de Magalhães

Versão corrigida de três capítulos (capitulo 6, capítulo 7 e capítulo 8) do livro Filosofia Analitica e Filosofia Política: A dimensão pública da linguagem (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011), pp. 153-258. [Revised version of three chapters (chapters 6-8) of my book Filosofia Analitica e Filosofia Política: A dimensão pública da linguagem (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2011), pp. 153-258].

CAPÍTULO 6

A TEORIA GERAL DOS ATOS DE LINGUAGEM

A obra de John Rogers Searle, Speech Acts (1969)1, é um ensaio de filosofia

da linguagem e não de filosofia linguística. Para Searle, o termo “filosofia

linguística” designa fundamentalmente um método: a tarefa da filosofia linguística

consiste, dizia ele, em “solucionar problemas filosóficos particulares ao tratar do

uso ordinário de palavras particulares ou de outros elementos em uma língua

particular” (Speech Acts, p. 4). “A filosofia da linguagem”, segundo ele, designa

mais propriamente um ramo da filosofia2, e tenta “dar descrições filosoficamente

1. J. R. Searle, Speech Acts: An Essay in the Philosophy of Language [Speech Acts]. Cambridge: Cambridge University Press, 1969. Tradução francesa de Hélène Pauchard: Les actes de langage. Essai de philosophie du langage. Paris: Hermann, 1972 [com uma Introdução de Oswald Ducrot: “De Saussure à la philosophie du langage”, pp. 7-34]. Ver a resenha de L. J. Cohen, “Searle’s Theory of Speech Acts”, The Philosophical Review, Vol. 79, No. 4 (1970), pp. 545-577; ver também B. Smith (ed.), John Searle. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 1-11.

2. Em 1983, logo no início da Introdução à sua obra Intentionality: An essay in the philosophy of mind (Cambridge: Cambridge University Press) e, em 1992, na sua Introdução a The Rediscovery of the Mind (Cambridge (Mass.): The MIT Press), Searle dizia que uma assunção básica de toda a sua abordagem de problemas da linguagem é a de que a filosofia da linguagem é um ramo da filosofia da mente (the philosophy of language is a branch of the philosophy of mind). Segundo Searle, nenhuma teoria da linguagem seria completa sem uma análise das relações entre a mente e a linguagem e sem uma análise da maneira como a significação (meaning) – “a intencionalidade derivada dos

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esclarecedoras de certos traços gerais da linguagem, tais como a referência, a

verdade, a significação e a necessidade” (Speech Acts, p. 4).3 Cabe, assim, à filosofia

da linguagem o estudo das seguintes questões:

“De que modo as palavras se relacionam com o mundo? Como é possível que, quando um locutor está diante de um ouvinte e emite uma rajada acústica [an acoustic blast], ocorrem coisas tão notáveis como as seguintes: o locutor quer significar [means] alguma coisa; os sons que ele emite significam [mean] alguma coisa; o ouvinte entende o que o locutor quis significar [the hearer understands what is meant]; o locutor faz uma asserção, pergunta, ou dá uma ordem? Como é possível, por exemplo, que quando eu digo “Jones foi para casa” – o que, afinal, é, de certo modo, apenas uma série de ruídos –, o que eu quero significar [what I mean] é: Jones foi para casa. Qual a diferença entre dizer alguma coisa e querer significar isso mesmo [saying something and meaning it] e dizer alguma coisa sem querer significar isso? E o que está envolvido em querer significar [in meaning] apenas uma coisa particular e não alguma outra coisa? Por exemplo, como acontece que, quando as pessoas dizem, “Jones foi para casa”, elas querem sempre, ou quase sempre, significar [mean] que Jones foi para casa e não, claro, que Brown foi a uma festa ou que Green ficou bêbado. E qual é a relação entre o que eu quero significar [what I mean] quando digo alguma coisa e o que isso significa independentemente de ser dito ou não por qualquer outra pessoa? Como as palavras estão em lugar de [estão por ou “representam”]4

elementos linguísticos” – fundamenta-se na intencionalidade intrínseca, biologicamente mais fundamental, da mente/cérebro. Em 2010, no Capitulo 4 [Language as Biological and Social] de sua obra Making the Social World: The Structure of Human Civilization (Oxford: Oxford University Press), Searle mais uma vez trata a linguagem como uma extensão de formas prelinguísticas, biologicamente mais fundamentais, de intencionalidade (pp. 61-89).

3. Ao responder a Bryan Magee, em 1978, Searle explicita essa distinção entre “filosofia da linguagem” e “filosofia linguística”: “The distinction can be made very simply. ‘Linguistic philosophy’ and ‘linguistic analysis’ are names of techniques, or methods, for solving philosophical problems. ‘The philosophy of language’ is not the name of a technique but of a subject-matter, a branch of philosophy. The linguistic philosopher believes that you can solve certain traditional philosophical problems, such as for example the problems of scepticism, by examining the logic of the ordinary expressions that we use for discussing (in the case of scepticism) doubt, certainty, knowledge, et cetera. He would analyse the ordinary use of words such as ‘know’, ‘doubt’, ‘believe’, ‘suppose’, ‘certain’, et cetera, as a way of trying to get clear what knowledge and certainty really are. But the ‘philosophy of language’ is the name of a subject-matter within philosophy. It concerns problems such as ‘How do words relate to reality ?’ ‘What is the nature of meaning ?’ ‘What is truth, reference, logical necessity ?’ ‘What is a speech act ?’ Those are typical problems in the subject-matter of the philosophy of language” (B. Magee (ed.), Talking Philosophy. Dialogues with fifteen leading philosophers. Oxford: Oxford University Press, 1982 [BBC, 1978], Capítulo 10 [The Philosophy of Language. Dialogue with Searle], pp. 154-155.

4. O que é, para alguma coisa, estar em lugar de ou estar por? No verbete “Represent” do Dictionary of Philosophy and Psychology [1902], Peirce escrevia: “Estar em lugar de [ou estar por],

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coisas [stand for things]? (...) O que é para uma coisa ser verdadeira? ou

falsa? [What is it for something to be true? or false?].” (Speech Acts, p. 3).

A questão fundamental da filosofia da linguagem sempre foi: “Como a

linguagem se relaciona com a realidade?”. A resposta que Searle propôs para essa

questão, em Speech Acts, era a de que os locutores relacionam a linguagem com a

realidade ao realizarem atos linguísticos. Mas a obra Speech Acts não é e nem pode

ser considerada como um ensaio de linguística. A linguística trata dos fatos das

línguas naturais5, e a filosofia da linguagem de “verdades conceituais subjacentes

a qualquer possível linguagem ou sistema de comunicação”6; ou seja, o objeto da

linguística consiste em “descrever as atuais estruturas – fonológicas, sintáticas e

semânticas – das línguas naturais humanas” (Speech Acts, p. 4). Assim, se os

“dados” (data) da filosofia da linguagem provêm usualmente das línguas naturais,

muitas das conclusões sobre questões como, por exemplo, o que é ser

verdadeiro, ou ser uma asserção ou uma promessa, dizia Searle, poderiam

aplicar-se, caso sejam válidas, a qualquer possível sistema de comunicação capaz de

produzir verdades, ou asserções, ou promessas. O livro Speech Acts não é um

ensaio sobre línguas, mas sim um ensaio sobre a linguagem.

Uma teoria geral dos atos de linguagem

O estudo de algumas questões ou de alguns problemas postos pela

filosofia da linguagem é abordado, nessa obra, através do estudo do que Searle

isto é, estar numa tal relação para uma outra coisa [To stand for, that is, to be in such a relation to another] que, por certas razões, ela é considerada por alguma mente como se fosse essa outra coisa”. Assim, explicitava Peirce, “um porta-voz, um representante [deputy], um procurador [attorney], um agente, um vicário [vicar], um diagrama, um sintoma, um tento [counter], uma descrição, um conceito, uma premissa, um testemunho [testimony], todos representam alguma outra coisa, de suas diversas maneiras, para mentes que as consideram segundo essas maneiras” (Dictionary of Philosophy and Psychology. James Mark Baldwin (ed.). Vol. II. New York: Macmillan, 1902, p. 464; reimpresso no volume 2 dos Collected Papers of Charles Sanders Peirce [CP 2. 273]).

5. A linguística limita-se, assim, a uma descrição dos fatos linguísticos e, nesse sentido, ela é normativamente neutra.

6. J. R. Searle, “Speech acts and recent linguistics” [1975], in Expression and Meaning (1979), p. 162. Era nessa obra que Searle esperava mostrar de que modo a filosofia da linguagem se fundamenta na filosofia da mente. O problema de fundamentar toda a sua teoria dos atos de linguagem na filosofia da mente só será abordado, em 1983, com a sua análise da intencionalidade em Intentionality: An essay in the philosophy of mind.

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chama “atos de discurso ou atos linguísticos ou ainda atos de linguagem [speech

acts or linguistic acts or language acts]” (Speech Acts, p. 4). Insistimos mais uma vez em

traduzir speech act por ato de linguagem e não por “ato de fala”, seguindo aqui as

indicações de Searle. Ao referir-se à distinção langue-parole (língua-fala) de Saussure,

ele afirmava o seguinte:

“Poderia ainda parecer que, em termos saussurianos, a minha abordagem é simplesmente um estudo da “parole” e não da “langue”. Sustento, no entanto, que um estudo adequado dos atos de linguagem [speech acts] é um estudo da langue. E isto é verdadeiro, por uma razão importante que vai além da tese segundo a qual a comunicação necessariamente envolve atos de linguagem [speech acts]. Considero como uma verdade analítica sobre a linguagem que tudo o que se pode significar, pode ser dito [that whatever can be meant can be said]. (...). Não existem, portanto, dois estudos semânticos irredutivelmente distintos, um que seria o estudo das significações dos enunciados [a study of the meanings of sentences] e o outro, que seria um estudo das produções de atos de linguagem [a study of the performances of speech acts]. Pois, tal como pertence à nossa noção da significação de um enunciado que um proferimento literal desse enunciado, com essa significação num certo contexto, seria a produção de um ato de linguagem particular, também pertence à nossa noção de um ato de linguagem que existe um enunciado possível (ou enunciados) cujo proferimento, num certo contexto, constituiria, em virtude da sua significação, uma realização [a performance] desse ato de linguagem. O ato de linguagem [speech act] ou os atos de linguagem realizados no proferimento de um enunciado são, de modo geral, uma função da significação do enunciado. A significação de um enunciado não determina unicamente, em todos os casos [does not in all cases uniquely determine], que ato de linguagem é realizado num dado proferimento desse enunciado, pois um locutor pode querer significar mais do que disse efetivamente, mas para o locutor é sempre possível, em princípio, dizer exatamente o que ele quer significar. Portanto, é em princípio possível, para todo ato de linguagem que realizamos ou que poderíamos realizar, que ele seja unicamente determinado [uniquely determined] por um dado enunciado (ou conjunto de enunciados), dadas as assunções que o locutor está falando literalmente e que o contexto é apropriado. E, por isso mesmo, um estudo da significação dos enunciados não se distingue, em princípio, de um estudo dos atos de linguagem. Trata-se, se analisarmos bem, de um único e mesmo estudo [Properly construed, they are the same study]. Visto que todo enunciado dotado de sentido pode, em virtude da sua própria significação, ser usado para realizar um ato de linguagem particular (ou uma série de atos de linguagem), e visto que todo possível ato de

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linguagem pode, em princípio, receber uma formulação exata num enunciado ou em vários enunciados (assumindo um contexto de proferimento apropriado), o estudo das significações dos enunciados e o estudo dos atos de linguagem não são dois estudos independentes mas um estudo considerado de dois pontos de vista diferentes [are not two independent studies but one study from two different points of view].” (Speech Acts, pp. 17-18).7

O livro Speech Acts pode ser interpretado, no seu conjunto, como um

ensaio que explora e testa a hipótese de que falar uma linguagem é engajar-se numa

forma de comportamento governada por regras: “Não há nada de circular neste

procedimento”, dizia Searle, “pois estou usando a hipótese da linguagem como

comportamento intencional governado por regras para explicar a possibilidade

das caracterizações linguísticas, e não para fornecer uma prova para essas

caracterizações” (Speech Acts, p. 16). Para Searle, “falar é realizar atos segundo as

regras [talking is performing acts according to rules]” (Speech Acts, p. 22), atos tais como

fazer asserções, dar ordens, fazer perguntas, fazer promessas e, de modo mais abstrato,

atos tais como referir e predicar. Todos esses atos não apenas são “realizados em

conformidade com certas regras”, mas só são, em geral, possíveis através dessas

regras (Speech Acts, p. 16).8 Falar uma linguagem implica, portanto, o domínio de

um sistema de regras que torna cada uso particular dos elementos dessa linguagem

regular e sistemático.

7. Ver O. Ducrot, “De Saussure à la philosophie du langage”, in J. R. Searle, Les actes de langage. Essai de philosophie du langage (1972), pp. 7-34; F. Belo, A Conversa, Linguagem do Cotidiano. Ensaio de Filosofia e Pragmática. Lisboa: Editorial Presença, 1991; e C. Kerbrat-Orecchioni, Les actes de langage dans le discours. Théorie et fonctionnement. Paris: Nathan Université, 2001 (Armand Colin, 2008).

8. No que diz respeito à linguística, Searle considerava, em 1972, a obra de Chomsky como uma revolução no estudo da sintaxe. Mas Chomsky não consegue ver, dizia ele, que a competência (o conhecimento tácito que um locutor tem de sua língua = sistema de regras) é, fundamentalmente, a competência para produzir atos de linguagem e, portanto, que um estudo dos aspectos linguísticos da “capacidade” de realizar atos de linguagem é um estudo da competência linguística (ver J. Searle, “Chomsky's Revolution in Linguistics” [1972], in On Noam Chomsky: Critical Essays. Gilbert Harman (ed.). New York: Anchor/Doubleday, 1974, pp. 2-33). Em 1975, em Reflections on Language (New York: Pantheon), Chomsky respondeu às críticas de Searle (ver pp. 55-77) e ele reapresentou sua argumentação, em 1980, em Rules and Representations (New York: Columbia University Press, pp. 128-129, 131-134). Ver também J. R. Searle, “End of the Revolution” [Resenha do livro de Noam Chomsky, New Horizons in the Study of Language and Mind. Cambridge: Cambridge University Press, 2000], The New York Review of Books, Vol. 49, No. 3 (28 de fevereiro, 2002), pp. 33-36; e N. Chomsky, “Chomsky’s Revolution: An Exchange” [com a resposta de Searle], The New York Review of Books, Vol. 49, No. 12 (18 de julho, 2002), pp. 64-65.

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A teoria da linguagem proposta por Searle – uma teoria geral dos speech acts –

pode ser considerada como uma teoria da ação e é, nesse sentido, que ela interessa

a Habermas: “uma teoria da linguagem é parte de uma teoria da ação,

simplesmente porque falar é uma forma de comportamento governada por

regras” (Speech Acts, p. 17), mas ela não é uma teoria da conversa.9 A exposição

das regras constitutivas subjacentes aos atos de linguagem, e diferentes das regras

da língua, seria, então, o objeto central de Speech Acts.10 Se esse livro se concentra

no estudo de atos de linguagem é simplesmente porque, para Searle (e era o que

Austin de certo modo já tinha afirmado), “toda comunicação linguística envolve

atos linguísticos [all linguistic communication involves linguistic acts]” (Speech Acts, p. 16).

A unidade de comunicação linguística não é, portanto, nem o símbolo, a palavra

ou o enunciado, e nem mesmo a ocorrência (the token) do símbolo, da palavra ou

do enunciado, mas é, dizia Searle, “a produção ou emissão do símbolo, da

palavra, ou do enunciado na realização do ato de linguagem [the production or

issuance of the symbol or word or sentence in the performance of the speech act]”. Ou seja, “a

produção de uma ocorrência de enunciado [the production of a sentence token] sob

certas condições é um ato de linguagem”, e os atos de linguagem (e, mais

especificamente, os atos ilocucionários) são, para Searle, “as unidades básicas ou

mínimas [grifos nossos] da comunicação linguística” (Speech Acts, p. 16).11

9. A resposta de Searle, em 1992 (reproduzida em 2002), à questão “Could we get an account of conversations parallel to our account of speech acts? Could we, for example, get an account that gave us constitutive rules for conversations in a way that we have constitutive rules of speech acts ?”, é mais uma vez “Não”: “My answer to that question is going to be “No”.” (J. R. Searle, Consciousness and Language. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, Capitulo 11 [Conversation], p. 180). Ver J. R. Searle, “Notes on Conversation”, in Contemporary Issues in Language and Discourse Processes. Donald G. Ellis e William A. Donahue (eds.). Hillsdale (New Jersey): Lawrence Erlbaum Associates, 1986, pp. 7-19; J. R. Searle et al. (On) Searle on Conversation. Herman Parret e Jeff Verschueren (eds). Amsterdam: John Benjamins Publishing Co., 1992, pp. 7-30; e D. Vanderveken, “Illocutionary Logic and Discourse Typology”, Revue internationale de philosophie, No. 216 (2001/2), pp. 243-255.

10. Searle já tinha apresentado um esboço de sua teoria geral dos atos de linguagem no seu ensaio “What is a Speech Act?”, publicado em 1965, na coletânea editada por Max Black, Philosophy in America (London: George Allen & Unwin), pp. 221-239. Para as relações entre a teoria da linguagem e a teoria da ação, ver L. Apostel, “Symbole et Parole” [1972], Cahiers internationaux de symbolisme, Nos. 22-23 (1973), pp. 5-23.

11. Logo no início do primeiro capítulo [Introduction to the theory of speech acts], de seu livro Foundations of illocutionary logic (Cambridge: Cambridge University Press, 1985), Searle e Vanderveken diziam: “The minimal units of human communication are speech acts of a type called illocutionary acts” (p. 1); ver também, J. R. Searle, Mind, Language and Society: Philosophy in

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Associada ao “princípio de expressibilidade” (“principle of expressibility”)12, a

hipótese de que o ato de linguagem propriamente dito (isto é, o ato ilocucionário) é

a unidade básica ou mínima da comunicação sugere, segundo Searle, que existe

uma série de conexões analíticas entre a noção de atos de linguagem, o que o

locutor quer significar, o que o enunciado (ou qualquer outro elemento

linguístico) proferido significa, as intenções do locutor, o que o ouvinte entende

e o que são as regras que governam os elementos linguísticos (Speech Acts, p. 21).

Searle tenta, assim, desenvolver, em Speech Acts, a teoria geral dos atos de

linguagem proposta e esboçada por Austin. O empirismo classificatório de

Austin é substituído por um construtivismo mais nítido: “Sem abstração e

generalização, não há sistematização” (Speech Acts, p. 56); estas duas operações

são necessárias à construção de modelos ideais que combinam de modo eficiente o

apriorismo e o empirismo. Daí a originalidade de sua obra: Searle tenta

reconciliar duas direções de pesquisa nos trabalhos contemporâneos em filosofia

da linguagem que são geralmente consideradas como opostas, uma que

concentra seus esforços na significação dos enunciados e a outra que se interessa

mais especificamente pelos usos das expressões linguísticas em situações de

discurso.13

the Real World. New York: Basic Books, 1998, Capitulo 6 [How Language Works: Speech as a Kind of Human Action], p. 136; Making the Social World (2010), Capitulo 4 [Language as Biological and Social], p. 76.

12. Segundo Searle, “poderíamos expressar esse princípio dizendo que para toda significação X, e para todo locutor L, sempre que L quer significar (tem a intenção de transmitir, deseja comunicar num proferimento etc.) X, então é possível que exista alguma expressão E tal que E seja uma expressão exata, ou formulação, de X. Simbolicamente: (L) (X) (L quer significar

X → P ( E) (E é uma expressão exata de X)” (Speech Acts, p. 20). Ver T. Binkley, “The Principle of Expressibility”, Philosophy and Phenomenological Research, Vol. 39, No. 3 (1979), pp. 307-325; F. Kannetzky, “The Principle of Expressibility and Private Language”, Acta Philosophica Fennica, Vol. 69 (2001), pp. 191-212; e “Expressibility, Explicability, and Taxonomy. Some Remarks on the Principle of Expressibility”, in Speech Acts, Mind and Social Reality. Discussions with John R. Searle (2002), pp. 65-82.

13. Ver J. R. Searle, Speech Acts, Capítulo 1 [Methods and scope], §4 [Why study speech acts?], pp. 18-19; ver também J. Bouveresse, La Parole Malheureuse (1971), pp. 349-350. No seu ensaio “Meaning, Mind and Reality” (Revue internationale de philosophie, No. 216 (2001/2), pp. 173-179), Searle explicita que um dos traços que diferencia a sua obra da tradição analítica que ele herdou é o seu esforço decidido para elaborar teorias gerais: “As minhas explicações dos atos de linguagem, da mente e da realidade social são planejadas, em vários graus, como teorias gerais [My accounts of speech acts, of the mind, and of social reality are intended as, in various degress, general theories]” (p. 174).

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Ao proferir, em circunstâncias apropriadas, um dos quatro enunciados

seguintes:

1. João fuma muito. 2. João fuma muito? 3. Fume muito, João! 4. Espero que João fume muito,

um locutor realiza ou produz, ao mesmo tempo, quatro tipos de atos distintos.

O locutor realiza um ato de enunciação (utterance act) ao proferir um enunciado

formado de palavras que pertencem à língua portuguesa; ele realiza um ato

proposicional (propositional act) ao referir e predicar (o locutor se refere a um certo

objeto (João), menciona ou designa esse objeto, e ele predica a expressão “fuma

muito” ao objeto ao qual se refere); ele realiza um ato ilocucionário (illocutionary act)

ao fazer uma asserção (1), ao perguntar (2), ao dar uma ordem (3) e ao expressar

um desejo (4); e o locutor realiza um ato perlocucionário (perlocutionary act), ao

produzir consequências ou efeitos sobre as ações, pensamentos ou crenças dos

ouvintes.14

Ao realizar um ato ilocucionário (um ato de linguagem completo), o locutor

realiza ao mesmo tempo atos proposicionais e atos de enunciação, mas – e Searle

concorda aqui com Austin – é óbvio que um locutor pode realizar um ato de

enunciação sem realizar um ato proposicional ou um ato ilocucionário (por

exemplo, ele pode apenas proferir palavras sem dizer nada). Os atos

14. Ver J. R. Searle, Speech Acts, Capítulo 2 [Expressions, meaning and speech acts], §1 [Expressions and kinds of speech acts], pp. 22-25. Searle critica, e não retoma, a distinção feita por Austin entre os atos locucionários e os atos ilocucionários. Para Searle, a noção de significação locucionária em Austin recobre não apenas a significação linguística do enunciado mas também o conteúdo proposicional do enunciado, que é neutro quanto à força (ilocucionária). E, se a distinção locucionário/ilocucionário não se reduz a uma distinção trivial, dizia Searle, ela se confunde então com a distinção entre o conteúdo proposicional e a força ilocucionária. Ele abandona, assim, a noção de ato locucionário e prefere introduzir uma distinção entre o ato de linguagem completo e o ato proposicional (ver J. R. Searle, “Austin on Locutionary and Illocutionary Acts”, The Philosophical Review, Vol. 77, No. 4 (1968), pp. 405-424). Não é, portanto, sem apreensão que Searle usa, em Speech Acts, a expressão “ato ilocucionário”. Os diferentes atos ilocucionários de Austin constituem, para Searle, o ato de linguagem completo ou concreto, e ele apresenta uma justificação para separar as noções de referência e de predicação das noções que dizem respeito a atos de linguagem completos tais como a asserção, a ordem etc.: “a mesma referência e a mesma predicação podem ocorrer na produção de diferentes atos de linguagem completos. Austin batizou estes atos de linguagem completos com o nome “atos ilocucionários” e pretendo, doravante, usar essa terminologia” (J. R. Searle, Speech Acts, p. 23).

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proposicionais (os atos de referir e de predicar) não são atos justapostos ao ato

ilocucionário (ao speech act propriamente dito), mas são apenas uma certa

“abstração” que pode ser isolada: “não podemos apenas referir e predicar sem

fazer uma asserção, ou fazer uma pergunta, ou realizar qualquer outro ato

ilocucionário” (Speech Acts, p. 25). Isso significa, no plano linguístico, que usamos

enunciados – e não palavras – para dizer coisas (to say things). Era justamente o

que Frege queria significar, lembrava Searle, ao afirmar que é unicamente no

contexto de uma proposição que as palavras têm referência ou denotam alguma

coisa – “Nur im Zusammenhange eines Satzes bedeuten die Wörter etwas”.15 E ele

comentava essa citação: “A mesma coisa na minha terminologia: só fazemos

referência como parte da realização de um ato ilocucionário, e a roupagem

gramatical de um ato ilocucionário é o enunciado completo” (Speech Acts, p. 25).16

Os atos ilocucionários e proposicionais consistem, portanto, no proferimento de

palavras em enunciados, em certos contextos (sob certas condições e com certas

intenções). Temos assim: o ato de enunciação, o ato proposicional (“referir” e

“predicar”) – um ato que está sempre inscrito num ato ilocucionário –, o ato

ilocucionário, que é o ato de linguagem propriamente dito, e o ato perlocucionário.

Para Searle, a referência é um ato de linguagem: o proferimento de uma

expressão referencial serve para identificar um particular. O ato proposicional de

referência pode ser complexo, como no seguinte exemplo: “a mulher que casou

com o homem que é um alcoólatra”. Searle limita, em princípio, o termo

“expressão referencial” às expressões referenciais definidas singulares (singular

definite referring expressions), que permitem identificar uma coisa, um processo, um

acontecimento, uma ação, ou qualquer tipo de “particular”. Essas expressões,

que são usadas por um locutor para referir, “respondem às questões “Quem?”,

15. G. Frege, Die Grundlagen der Arithmetik (1884), §62, p. 73. 16. Quando dois atos ilocucionários contêm a mesma referência e a mesma predicação, e se a

significação da expressão referencial é a mesma nos dois casos, então a mesma proposição é expressa. Assim, nos proferimentos de todos os quatro enunciados acima mencionados, a mesma proposição é expressa. Para Searle, expressar uma proposição é um ato proposicional, e não um ato ilocucionário. Ou seja, não podemos apenas através da expressão de uma proposição realizar um ato de linguagem completo: “Quando uma proposição é expressa, ela é sempre expressa na realização de um ato ilocucionário” (Speech Acts, Capítulo 2 [Expressions, meaning and speech acts], §4 [Propositions], p. 29).

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“O que?”, “Qual?” [answer the questions “Who?” “What?” “Which?”]” (Speech Acts,

pp. 26-27). Searle tenta explicar a referência como ato de linguagem ao

apresentar exemplos característicos de expressões referenciais, e ao explicitar a

função que o proferimento dessas expressões desempenha em um ato de

linguagem completo (o ato ilocucionário) e comparar o uso dessas expressões

com outras expressões. Ele integra, assim, na sua teoria geral dos atos de

linguagem, toda a análise do ato proposicional de referência proveniente da

tradição Frege-Strawson.17 A referência a um particular é o primeiro componente

de dizer alguma coisa e querer significar isso mesmo. Para Searle, essa correlação entre a

intenção e a sua expressão verbal apoia-se no “princípio de expressibilidade”,

segundo o qual tudo aquilo que um locutor quer significar pode ser dito.

Aplicado à referência, considerada como ato de linguagem, esse princípio consiste

em dizer que, “em todos os casos em que é verdadeiro que um locutor significa

[means] um objeto particular” – e, aqui, “significa” = “tem a intenção de referir a

[intends to refer to]” –, “é também verdadeiro que ele pode dizer exatamente qual é

o objeto que ele quer significar” (Speech Acts, p. 88).

Se a referência é um ato de linguagem e pode ser considerada como um

ato neutro no que diz respeito à força ilocucionária, o ato predicativo é diretamente

afetado pela modalidade da força ilocucionária (asserção, ordem, promessa etc.).

É, portanto, mais difícil abstrair esse ato do ato completo da linguagem: essa

abstração é, no entanto, necessária para mostrar como a predicação é uma

operação comum a todos os atos ilocucionários (e não apenas às asserções). São

expressões, e não universais, que o locutor predica a respeito de objetos; Searle

adota essa convenção não apenas porque a introdução dos universais não lhe

parece necessária para explicar o uso dessas expressões (e é também, segundo

ele, fonte de erro), mas porque ele quer, assim, realçar a conexão entre a noção

de predicação e a noção de verdade: “expressões, e não [os] universais, podem

ser ditas verdadeiras ou falsas a propósito de objetos” (Speech Acts, p. 26). O

predicado não identifica um universal –não identifica algo –, ou seja, não haveria

um “engajamento ontológico” na predicação. À pergunta “o que corresponde ao

17. Ver J. R. Searle, Speech Acts, Capítulo 4 [Reference as a speech act], pp. 72-96.

163

predicado é bom?”, no sentido em que Pedro corresponde ao nome próprio

“Pedro”, a resposta de Searle é: nada. O ato de predicação não relaciona a

linguagem com a realidade: é a referência (o ato de referir) que relaciona a

linguagem com a realidade.18

O conteúdo proposicional determina as condições sem as quais não

poderia haver um ato ilocucionário bem sucedido e é nesse sentido, dizia Searle,

que os atos ilocucionários representam estados de coisas.19 Essa distinção entre o

ato ilocucionário e o conteúdo proposicional do ato ilocucionário permite caracterizar os

dois indicadores inscritos na estrutura sintática do enunciado: o indicador

proposicional e o indicador de força ilocucionária. O indicador ou marcador de

força ilocucionária mostra como devemos entender a proposição, ou mostra a

força ilocucionária atribuída ao proferimento (asserção, ordem, promessa etc.); ou

seja, este indicador fixa o modo como o conteúdo proposicional tem de ser

interpretado. Assim, a forma geral dos atos ilocucionários, ou pelo menos de

muitos atos ilocucionários, é:

F (p) onde “F” representa uma variável que muda de acordo com cada ato

ilocucionário e “p” indica o conteúdo proposicional. Searle pode, então,

simbolizar os diferentes tipos de atos ilocucionários do modo seguinte:

⊢ (p) para as asserções Pr (p) para as promessas ! (p) para os pedidos ou solicitações (requests) A (p) para os avisos ou advertências (warnings) ? (p) para as questões de tipo sim-não (yes-no questions).20

18. Ver J. R. Searle, Speech Acts, Capítulo 5 [Predication], pp. 97-127. Em 1979, na sua Introdução a Expression and Meaning, Searle afirma que foi um erro ter considerado a referência como o problema central na filosofia da linguagem: para formular uma teoria adequada da referência linguística, temos de mostrar, primeiro, diz ele, “como uma tal teoria é parte de uma teoria geral da Intencionalidade [grifos nossos], uma teoria de como a mente se relaciona com objetos no mundo em geral” (p. xi). Em Mind, Language and Society (1998), Searle explicita novamente: “A linguagem se relaciona com a realidade em virtude da significação, mas a significação é a propriedade que torna meros proferimentos em atos ilocucionários” (p. 139).

19. No que diz respeito ao seu conteúdo proposicional, os atos ilocucionários não se confundem com jogos: “os jogos não representam em geral estados de coisas [games do not in general represent states of affairs]” (Speech Acts, p. 64). Na Introdução a Expression and Meaning, Searle afirma novamente que “todo ato de linguagem com um conteúdo proposicional é em certo sentido uma representação” (p. viii, nota 1).

20. Ver J. R. Searle, Speech Acts, Capítulo 2 [Expressions, meaning and speech acts], §4 [Propositions], p. 31.

164

Estas distinções também permitem a Searle fazer uma distinção entre a

negação ilocucionária [~ F (p)] e a negação proposicional [F (~ p)], ou seja, por exemplo,

entre “não prometo vir amanhã” [~ Pr (p)] e “prometo não vir amanhã” [Pr (~

p)]: a negação proposicional não muda o caráter do ato ilocucionário (neste

exemplo, uma promessa); as negações ilocucionárias modificam geralmente o

caráter do ato ilocucionário (Speech Acts, pp. 32-33).

A estrutura dos atos de linguagem

Os atos de linguagem são governados por regras e, em Speech Acts, Searle

esclarece a distinção entre dois tipos diferentes de regras, as regras regulativas e as

regras constitutivas. As primeiras são aquelas que regem uma atividade ou uma

forma de comportamento já existente ou cuja existência é logicamente

independente das regras como, por exemplo, as regras de polidez (as relações

interpessoais existem e estabelecem-se de modo autônomo em relação às regras

de polidez). As regras regulativas dão uma configuração social às atividades que

regem, mas não podemos dizer que elas são indispensáveis à constituição e

existência dessas atividades; a sanção relativa ao não cumprimento do sistema

regulativo existe, é claro, mas ela é de caráter social e a atividade pode ser

realizada. Ao contrário, as regras constitutivas “criam ou definem novas formas de

comportamento”, isto é, elas não apenas regem, mas constituem uma atividade cuja

existência depende logicamente das regras (Speech Acts, pp. 33-34).21

A forma das regras constitutivas nem sempre é a mesma das regras

regulativas. Geralmente, as regras regulativas são formuladas na forma

imperativa “Faça X” ou “Se Y, então faça X”. A forma das regras constitutivas é

frequentemente a seguinte: “X conta como Y” (“X counts as Y”), ou “X conta

como Y no contexto C” (“X counts as Y in context C”) (Speech Acts, p. 35). O

comportamento linguístico é definido, assim, como uma atividade regida por um

sistema de regras constitutivas e trata-se, então, de determinar as regras, ou o sistema

21. Ver J. Ransdell, “Constitutive Rules and Speech-Act Analysis”, The Journal of Philosophy, Vol. 68, No. 13 (1971), pp. 385-400; S. E. Böer, “Speech Acts and Constitutive Rules”, The Journal of Philosophy, Vol. 71, No. 6 (1974), pp. 169-174.

165

de regras, subjacentes à produção dos atos de linguagem. A hipótese de Speech

Acts recebe agora a forma seguinte:

“(...) a estrutura semântica de uma linguagem pode ser considerada como uma realização convencional [a conventional realization] de uma série de conjuntos de regras constitutivas subjacentes, e os atos de linguagem são atos que são caracteristicamente executados ao proferir expressões de acordo com esses conjuntos de regras constitutivas.” (Speech Acts, p. 37).

Searle não deixa de acentuar o caráter convencional das regras constitutivas

dos atos de linguagem, mas é necessário fazer uma distinção entre essas

convenções (que podem ser traduzidas de uma língua para outra) e as convenções

constitutivas de uma língua natural (inglês, francês, português). A convenção

segundo a qual prometer é comprometer-se a fazer algo é distinta da convenção

linguística segundo a qual em inglês dizemos “I promise”, em francês “je

promets”, ou em português “eu prometo” (Speech Acts, pp. 39-40).22

Para Searle, o problema (ou pelo menos um problema importante) da

teoria da linguagem é o de descrever como efetivamente passamos dos sons aos

atos ilocucionários. O que tem de ser acrescentado à produção de uma simples

sequência sonora para que ela seja uma realização do ato de dar uma ordem, ou

fazer uma asserção, ou fazer uma promessa? As regras, dizia Searle, é que nos

permitem passar dos fatos brutos da produção de sons aos fatos institucionais da

performance de atos ilocucionários; ou seja, a existência dessas regras

constitutivas é justamente o que caracteriza os atos de linguagem como fatos

institucionais.23 A hipótese segundo a qual falar uma linguagem é realizar atos de acordo

22. Em “Individual Intentionality and Social Phenomena in the Theory of Speech Acts” (1989), Searle mais uma vez explicita essa distinção: “Línguas diferentes têm diferentes convenções para conseguir o mesmo ato de linguagem. Por exemplo, o que eu posso conseguir em inglês ao dizer “I promise...”, eu consigo em francês ao dizer “Je promets...”, ou em alemão ao dizer “Ich verspreche...”. Mas estas essas três diferentes realizações convencionais são todas realizações da mesma regra constitutiva subjacente, a saber, a regra que diz que fazer uma promessa conta como assumir uma obrigação de fazer alguma coisa, normalmente em benefício do ouvinte. E essa regra não é propriamente dita uma convenção do inglês ou francês ou alemão, mas uma regra constitutiva da instituição de prometer [institution of promising]” (J. R. Searle, Consciousness and Language. Cambridge: Cambridge University Press, 2002 [Capítulo 9], p. 151).

23. Para a distinção entre fatos brutos e fatos institucionais, ver J. R. Searle, Speech Acts, Capítulo 2 [Expressions, meaning and speech acts], §7 [The distinction between brute and institutional facts], pp. 50-53; e Capítulo 8 [Deriving “ought” from “is”], pp. 185, 186, 190; ver também J. R. Searle, The

166

com regras constitutivas, dizia Searle, “nos envolve na hipótese de que o fato que um

homem realizou um certo ato de linguagem, por exemplo, fez uma promessa, é

um fato institucional” (Speech Acts, p. 52).

A diferença entre o fato de proferir certos sons e o fato de realizar um ato

ilocucionário consiste, portanto, em que os sons que proferimos ao realizar um

ato ilocucionário têm uma significação (have meaning) e que queremos significar alguma

coisa (mean something) através do proferimento desses sons. Searle propõe retomar

aqui, de modo crítico, algumas ideias de Paul Grice e, mais especificamente, a sua

definição da significação não-natural (non-natural meaning).24

Ao estabelecer, em 1957, uma distinção entre o sentido, ou sentidos, em

que as expressões “significa”, “significa alguma coisa”, “significa que” (“means”,

“means something”, “means that”) são usadas – o sentido natural e o sentido não-

natural –, Grice apresentava a seguinte análise da noção de “significação não-

natural” (non-natural meaning) ou significaçãoNN (meaningNN): dizer que um locutor

L quis significar (meantNN) alguma coisa através de x é dizer que L teve a

intenção, ao proferir x, de produzir algum efeito sobre um ouvinte O por meio

do reconhecimento dessa intenção.25 Grice estabelece não apenas uma conexão

entre significação e intenção, mas também acentua um traço essencial da

comunicação linguística, a saber, que se trata de uma tentativa de comunicar

determinadas coisas a um ouvinte ao fazer esse ouvinte reconhecer a intenção do

Construction of Social Reality. New York: The Free Press, 1995, pp. 27-29; Mind, Language and Society (1998), pp. 121, 123, 129-134; Making the Social World (2010), Capítulo 1 [The Purpose of this Book], pp. 10-11, 23-24; “Social Ontology and the Philosophy of Society”, Analyse & Kritik, Vol. 20 (1998), p. 151.

24. Ver H. P. Grice, “Meaning”, The Philosophical Review, Vol. 66, No. 3 (1957), pp. 377-388; reimpresso in Semantics. An Interdisciplinary Reader in Philosophy, Linguistics and Psychology. Danny D. Steinberg e Leon A. Jakobovits (eds.). Cambridge: Cambridge University Press, 1971, pp. 53-59; e in P. Grice, Studies in the Way of Words. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1989, Parte II [Explorations in Semantics and Metaphysics], Capítulo 14 [Meaning (1948, 1957)], pp. 213-223. Podemos ilustrar o sentido natural da expressão “significa” com os seguintes exemplos: “Aquelas pequenas manchas significam (significavam) sarampo”, “Aquelas pequenas manchas não significavam nada para mim, mas elas significavam o sarampo para o médico”, “O recente orçamento significa que vamos ter um ano difícil”; nestes exemplos x significava que p e x significa que p tem como consequência ou implica p (H. P. Grice, “Meaning” (1957), p. 377). Grice opõe a significação natural (as pequenas manchas significam sarampo) à significação não-natural através da qual o locutor tem a intenção de produzir algum efeito no ouvinte por meio do reconhecimento dessa intenção.

25. Ver H. P. Grice, “Meaning”, The Philosophical Review, Vol. 66, No. 3 (1957), p. 385.

167

locutor de comunicar exatamente essas coisas. Mas Searle dizia que esta

definição de Grice não esclarece em que medida a significação pode depender de

regras ou de convenções, ou seja, ela não mostra a relação entre o que se quer

significar ao dizer alguma coisa e a própria significação daquilo que dizemos na

língua que usamos. Grice também confunde aqui, segundo ele, o ato

ilocucionário e o ato perlocucionário, ao definir a significação como intenção de

produzir efeitos no ouvinte.26

Assim, se é importante esclarecer a relação que existe entre o que um

locutor quer significar ao proferir um enunciado e o que esse enunciado significa

na língua que ele usa, é necessário reformular a definição de Grice. A análise dos

atos ilocucionários tem de considerar não apenas o aspecto intencional, mas

também o aspecto convencional e, mais especificamente, a relação que existe

entre esses dois aspectos:

“Ao realizar um ato ilocucionário com o proferimento literal de um enunciado, o locutor tem a intenção de produzir [intends to produce] um certo efeito ao levar o ouvinte a reconhecer a sua intenção de produzir esse efeito; e, além disso, se ele usa palavras literalmente, ele tem a intenção de que esse reconhecimento seja obtido em virtude do fato de que as regras para usar as expressões que profere associam a expressão com a produção desse efeito. É esta combinação de elementos que teremos de expressar em nossa análise do ato ilocucionário.” (Speech Acts, p. 45).

Searle critica a relação estabelecida por Grice entre a intenção e o efeito

perlocucionário. Dizer alguma coisa e querer significar essa coisa é, Searle insiste,

“ter a intenção de realizar um ato ilocucionário [intending to perform an illocutionary

act]” (Speech Acts, p. 46). A diferença entre a análise original da “significação não-

natural” (significaçãoNN), que foi dada por Grice, e a análise de Searle do conceito

(que é, segundo ele, diferente) de dizer alguma coisa e querer significar essa coisa pode,

então, ser resumida da seguinte maneira:

26. J. R. Searle, Speech Acts, Capítulo 2 [Expressions, meaning and speech acts], §6 [Meaning], p. 43. Ver também J. R. Searle, “Meaning, Communication and Representation”, in R. E. Grandy e R. Warner (eds.), Grounds of Rationality: Intentions, Categories, Ends. Oxford: Oxford University Press, 1986, pp. 209-226; Making the Social World (2010), Capítulo 4 [Language as Biological and Social], p. 75 (nota 8).

168

“1. Análise original de Grice O locutor L significa nn alguma coisa através de X = (a) L, com o proferimento P de X, tem a intenção (i-I) de produzir um certo efeito perlocucionário EP no ouvinte O.

(b) L tem a intenção, com P, de produzir EP por meio do reconhecimento de i-I.

2. Análise corrigida

L profere um enunciado T e quer significar T (isto é, significa literalmente o que diz) =

L profere T e (a) L, com o proferimento P de T, tem a intenção (i-I) de produzir no ouvinte O o conhecimento (reconhecimento, conhecimento imediato [awareness]) que os estados de coisas especificados pelas regras de T (ou por alguma dessas regras) se realizam. (Chamamos esse efeito o efeito ilocucionário, EI)

(b) L tem a intenção, com P, de produzir EI por meio do reconhecimento de i-I.

(c) A intenção de L é que i-I seja reconhecida em virtude (ou por meio) do conhecimento por parte de O das regras (alguma das regras) que governam (os elementos de) T” (Speech Acts, pp. 49-50).27

Esta análise só considera os casos mais simples, ou seja, aqueles casos em

que o locutor profere um enunciado e quer significar esse enunciado (ou

significa exatamente e literalmente o que diz). Nesses casos mais simples, o

locutor não apenas tem a intenção de produzir um certo efeito ilocucionário no ouvinte,

mas ele tem a intenção de produzir esse efeito ao levar o ouvinte a reconhecer a

sua intenção de produzir tal efeito, e ele tem a intenção de levar o ouvinte a

reconhecer essa intenção em virtude do conhecimento por parte do ouvinte das regras

que governam o proferimento do enunciado.28 Ora, nem todos os casos são

assim tão simples: por exemplo, nas metáforas, nas insinuações, nos casos de

ironia, a significação do proferimento e a significação do enunciado não

coincidem.29

A estrutura dos atos ilocucionários é complexa. Para explicitar todo um

conjunto de regras semânticas que governam o uso do indicador ou marcador de

27. Ver H. P. Grice, “Utterer’s Meaning and Intentions”, The Philosophical Review, Vol. 78, No. 2 (1969), pp. 160-165; reimpresso in P. Grice, Studies in the Way of Words (1989), Parte I [Logic and Conversation (1967, 1987)], Capítulo 5, pp. 100-105.

28. Mas ver também J. R. Searle, Mind, Language and Society (1998), Capitulo 6 [How Language Works: Speech as a Kind of Human Action], pp. 144-146.

29. Ver J. R. Searle, “Indirect speech acts” (1975), “Metaphor” (1977), e “Literal meaning” (1978), in Expression and Meaning (1979), pp. 30-57, 76-116, e 117-136.

169

força ilocucionária, Searle analisa primeiro as condições de sucesso (as

“condições de satisfação”) do ato ilocucionário de prometer, isto é, as condições

necessárias e suficientes para que o ato de prometer seja realizado com sucesso

no proferimento de um enunciado dado. A promessa era considerada aqui no

seu sentido literal, ou seja, Searle analisa apenas as promessas que são claramente

explícitas e não se interessa pelos usos marginais ou abusivos da promessa; e a

sua análise diz respeito unicamente às promessas categóricas e não às promessas

condicionais ou hipotéticas. Searle propõe, assim, o modelo paradigmático de

um caso simples e idealizado de promessa, mas também toda a estrutura dos atos

ilocucionários.30

Ao proferir um enunciado T na presença de um ouvinte O, um locutor L

promete sinceramente que p a O, com o proferimento literal de T, se e somente

se as seguintes condições 1-9 são preenchidas:

“1. As condições normais de input e de output são preenchidas” (Speech Acts, p. 57):

Searle usa aqui o termo “input” para as condições que norteiam a compreensão

(conditions of understanding) e o termo “output” para as condições que têm de ser

preenchidas para falar de modo inteligível (conditions for intelligible speaking). Esta

primeira condição (condição de comunicabilidade), uma condição geral que diz

respeito a toda espécie de comunicação linguística “séria” e “literal”31, exclui ao

mesmo tempo os obstáculos físicos e culturais à comunicação (como a surdez e

não falar a mesma língua) e também as formas parasitárias de comunicação

como contar piadas ou representar um papel no teatro.

As condições 2 e 3 são chamadas por Searle condições de conteúdo

proposicional:

“2. L expressa a proposição que p, com o proferimento de T” (Speech Acts, p. 57).

Esta segunda condição, ao isolar a proposição do resto do ato de linguagem,

permite acentuar as características da promessa enquanto ato de linguagem

específico.

30. Ver J. R. Searle, Speech Acts, Capítulo 3 [The structure of illocutionary acts], pp. 54-71. 31. Searle opõe os proferimentos “sérios” (“serious” utterances) a representar um papel no teatro,

ensinar uma língua, recitar poemas etc., e também opõe “literal” a metafórico, sarcástico etc. (Speech Acts, p. 57, nota 1).

170

“3. Ao expressar que p, L predica um ato futuro A a L” (Speech Acts, p. 57). A

esfera do dispositivo que indica a força ilocucionária inclui, no caso da promessa,

alguns aspectos da proposição. Isto é, ao expressar que p, o locutor se designa ele

próprio como o objeto ao qual p se refere e atribui a si mesmo um ato futuro (não

pode ser, portanto, um ato situado no passado).32

As duas condições seguintes (a condição 4 e a condição 5) são apenas

condições preparatórias (preparatory conditions), ou seja, elas representam as condições

sem as quais não poderia haver um ato de prometer bem-sucedido (“they are sine

quibus non of happy promising”33):

“4. O preferiria que L faça A a que não faça A, e L acredita que O preferiria que ele

faça A a que não faça A” (Speech Acts, p. 58). Esta quarta condição permite não

confundir uma promessa com uma ameaça: prometer consiste, para o locutor,

em assumir a obrigação de fazer alguma coisa para [for] alguém e não a [to] alguém

(ou em se comprometer a fazer alguma coisa para alguém e não a alguém). No caso

da promessa, portanto, e diferentemente da ameaça, o ato futuro A é valorizado

positivamente por O.

“5. Não é óbvio, nem para L, nem para O, que L fará mesmo A no curso normal

dos acontecimentos” (Speech Acts, p. 59). Trata-se, agora, da pertinência do ato

ilocucionário: no caso da promessa, seria um despropósito prometer, por

exemplo, fazer alguma coisa que é óbvio que iria mesmo, de todo modo, fazer. A

quinta condição, que determina o ponto ou o propósito do ato na situação total do

discurso, é uma condição geral que diz respeito a muitas outras espécies de atos

ilocucionários.

A condição 6 especifica o estado psicológico expresso pela promessa, ou

seja, diz o que o locutor expressa através da realização do ato de prometer:

“6. L tem a intenção de fazer A” (Speech Acts, p. 60). Esta condição – a

condição de sinceridade – permite distinguir as promessas sinceras das promessas

32. Segundo Searle, são sempre expressões, e não atos, que o locutor predica (“predicate”) aos objetos, e é necessário, então, reformular esta terceira condição de modo mais rigoroso: “Ao expressar que P, L predica uma expressão a L cuja significação é tal que, se essa expressão é verdadeira do objeto, é verdade que o objeto realizará um ato futuro A” (Speech Acts, pp. 57-58). Mas essa nova formulação é muito longa, dizia Searle, e por isso mesmo ele recorreu à metonímia acima dada.

33. J. R. Searle, Speech Acts, p. 60.

171

insinceras: nas promessas insinceras, L não tem a intenção de fazer o ato futuro A

(essas promessas não são analisadas aqui por Searle). Quando a promessa é

sincera, não apenas o locutor tem a intenção de fazer A, mas ele acredita que é

possível para ele fazer A, e não se trata aqui de uma condição suplementar, ou

seja, a proposição “L tem a intenção de fazer A” implica a proposição “L pensa que é

possível fazer A”.34

Para a promessa, a condição 7 é a condição essencial:

“7. L tem a intenção de que [intends that] o proferimento de T colocará L na

obrigação de fazer A” (Speech Acts, p. 60). Esta condição especifica o que caracteriza

a promessa em relação aos outros tipos de atos ilocucionários: a característica

essencial de uma promessa é que esse ato ilocucionário consiste, para o locutor,

em “assumir uma obrigação”, a obrigação de realizar um certo ato. Ao prometer,

o locutor se compromete a realizar o ato prometido. Esta condição especifica apenas

a intenção do locutor.

Ao esclarecer um novo sentido de “ter a intenção de”, a condição 8

retoma a revisão da análise de Grice da noção de significação, proposta por

Searle:

“8. L tem a intenção (i-I) de produzir no ouvinte O o conhecimento (K) que o

proferimento de T tem de contar como [is to count as] colocando L na obrigação de fazer A.

L tem a intenção de produzir K por meio do reconhecimento de i-I, e ele tem a intenção que i-I

seja reconhecida em virtude (ou por meio) do conhecimento por parte de O da significação de T”

(Speech Acts, p. 60). Esta condição esclarece o que é para o locutor a visada

semântica de seu proferimento como promessa. Ao corrigir a análise de Grice,

Searle já tinha dito que o locutor tem a intenção de produzir um certo efeito

ilocucionário (K), ao levar o ouvinte a reconhecer a sua intenção de produzir esse efeito, e

que essa intenção é ao mesmo tempo a intenção de que esse reconhecimento seja

obtido em virtude do fato de que a significação da expressão que ele profere associa, por

34. As promessas insinceras não deixam de ser promessas: ao fazer uma promessa insincera, o locutor professa ter a intenção de realizar o ato prometido, e é justamente porque ele professa ter intenções que ele não tem que podemos descrever o seu ato como insincero. No caso das promessas insinceras, dizia Searle, temos apenas de exigir que o locutor assuma a responsabilidade por ter a intenção, mas não afirmar que ele tem realmente a intenção de fazer A. A condição 6 (a condição de sinceridade) tem de ser, então, reformulada: “6a. L tem a intenção de que o proferimento de T o torne responsável por sua intenção de fazer A” (Speech Acts, p. 62).

172

convenção, essa expressão com a produção desse efeito. No caso da promessa, diz agora

Searle, “o locutor pressupõe que as regras semânticas (que determinam a

significação) das expressões proferidas são tais que o proferimento conta como

[counts as] assumir uma obrigação” (Speech Acts, p. 61).

Essas regras semânticas, é o que diz a condição 9, permitem a realização

da intenção, tal como ela é definida na condição essencial 7, ao fazer o

proferimento:

“9. As regras semânticas do dialeto [dialect] falado por L e O são tais que T é

proferido corretamente e sinceramente se e apenas se as condições 1-8 são preenchidas” (Speech

Acts, p. 61). O enunciado proferido pode, então, ser considerado, diz claramente

esta última condição, como um enunciado que, por meio das regras semânticas

da linguagem que L e O falam, é usado para fazer uma promessa. Ou seja, esta

condição permite esclarecer que as regras semânticas da linguagem usada por L e

O fazem de T uma promessa.

Searle pode agora extrair deste conjunto de condições, e mais

especificamente das condições 2-7, um conjunto de regras semânticas que

governam o uso de todo indicador ou marcador Pr de força ilocucionária para o

ato de prometer. As regras 1-4 têm a forma de quase-imperativos, isto é, têm a

seguinte forma: “profira Pr somente se x”; a regra 5 tem a seguinte forma: “o

proferimento de Pr conta como [counts as]Y”, ou seja, essa regra é considerada por

Searle como uma regra constitutiva35:

Regra 1 (ou regra do conteúdo proposicional, derivada das condições 2-3):

“Proferir Pr somente no contexto de um enunciado (ou de um segmento de discurso mais vasto) T, cujo proferimento predica um ato futuro A ao locutor L”.

Regra 2 (uma regra preparatória que deriva da condição 4): “Proferir Pr somente se o ouvinte O preferiria que L faça A a que não faça A, e L acredita que O preferiria que ele faça A a que não faça A”.

35. Essa regra constitutiva diz respeito à significação da promessa e não é, portanto, uma regra moral. A regra constitutiva da promessa, dizia Ricoeur, limita-se a definir o que “conta como” promessa (ver P. Ricoeur, Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990, pp. 183-184); ver também J. R. Searle, Speech Acts, p. 188; Rationality in Action. Cambridge (Mass.): The MIT Press, 2001, pp. 193-200.

173

Regra 3 (esta regra preparatória deriva da condição 5): “Proferir Pr somente se não é óbvio tanto para L como para O que L fará mesmo A no curso normal dos acontecimentos”.

Regra 4 (ou regra da sinceridade, derivada da condição 6): “Proferir Pr somente se L tem a intenção de fazer [intends to do] A”.

Regra 5 (esta regra constitutiva, que deriva da condição 7, é a regra essencial da promessa): “O proferimento de Pr conta como assumir a obrigação de fazer A” (Speech Acts, p. 63).

Ao generalizar a sua análise da promessa, Searle formulava em Speech Acts

todo um conjunto de regras semânticas para a realização bem-sucedida de outros

atos ilocucionários tais como pedir (Request), fazer uma asserção, enunciar ou

dizer que, afirmar (Assert, state (that), affirm), fazer uma pergunta (Question = ask a

question), agradecer (Thank (for)), aconselhar (Advise), avisar (Warn), cumprimentar

(Greet), congratular (Congratulate).36 Falar uma linguagem consiste, portanto, em

realizar atos de linguagem de acordo com regras, e não podemos separar os atos

de linguagem dos compromissos (commitments) que formam partes essenciais desses

atos.37 Ou seja, todos os tipos de atos de linguagem – e um ato de linguagem é

antes de tudo para Searle uma performance pública – contêm um elemento de

compromisso.38 É essa deontologia na forma de compromisso, interna à própria

performance do ato de linguagem, que torna possível, segundo Searle, formas

especificamente humanas de sociedade e a civilização humana.39

36. Ver J. R. Searle, Speech Acts, Capítulo 3 [The structure of illocutionary acts], pp. 66-67. Ver também no modelo idealizado do ato proposicional de referência, apresentado por Searle, o conjunto das regras semânticas para o uso de qualquer expressão referencial para fazer uma referência definida singular (Speech Acts, pp. 94-95), e o conjunto das regras semânticas para a predicação (Speech Acts, pp. 126-127).

37. Ver J. R. Searle, Speech Acts, Capítulo 3 [The Structure of Illocutionary Acts], pp. 66-67; e Capítulo 8 [Deriving “ought” from “is”], §3 [Objections and replies], p. 198; ver também J. R. Searle, Rationality in Action (2001), Capítulo 6 [How We Create Desire-independent Reasons for Action], pp. 167-190; Making the Social World (2010), Capítulo 4 [Language as Biological and Social], §X [The Next Step: Deontology], pp. 80-84.

38. Ver J. R. Searle, Rationality in Action (2001), Capítulo 6 [How We Create Desire-independent Reasons for Action], §I [The Basic Structure of Commitment], pp. 172-180; “Language and social ontology”, Theory and Society, Vol. 37, No. 5 (2008), pp. 449-450.

39. Ver J. R. Searle, “What is language: some preliminary remarks” (2005), in John Searle’s Philosophy of Language: Force, Meaning, and Mind. Savas L. Tsohatzidis (ed.). Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 17; “Language and social ontology”, Theory and Society, Vol. 37, No. 5 (2008), p. 449.

174

A classificação dos atos ilocucionários

Há pelo menos, dizia Searle, “doze dimensões significativas de variação

segundo as quais os atos ilocucionários podem diferir uns dos outros”, mas

apenas as três primeiras dimensões – o ponto ou propósito ilocucionário

(illocutionary point ou illocutionary purpose), a direção de ajustamento (direction of fit) e

a condição de sinceridade (sincerity condition) – são realmente importantes para a

sua taxonomia dos atos ilocucionários.40 As diferenças no que diz respeito ao

ponto (ou propósito) do ato (do tipo de ato) correspondem às condições essenciais dos

atos ilocucionários e consistem essencialmente no seguinte:

“O ponto ou o propósito de uma ordem pode ser especificado ao dizer que [esse ato] é uma tentativa de levar o ouvinte a fazer alguma coisa. O ponto ou o propósito de uma descrição é que ela é uma representação (verdadeira ou falsa, precisa ou imprecisa) de como alguma coisa é. O ponto ou o propósito de uma promessa é que esse ato consiste para o locutor em assumir a obrigação de fazer alguma coisa. (...) Em última análise, a meu ver, as condições essenciais formam a melhor base para uma taxonomia”.41

O ponto ou o propósito de um tipo de ilocução é chamado por Searle de

ponto ilocucionário (illocutionary point) desse tipo de ato e é considerado como parte

da força ilocucionária, mas não como o mesmo que essa força; no que diz

respeito aos pedidos ou solicitações (requests) e às ordens (commands), por

exemplo, o ponto ilocucionário é o mesmo – os dois atos consistem na tentativa

de levar os ouvintes a fazer alguma coisa –, mas as forças ilocucionárias destes

dois atos são claramente diferentes (pedido, ordem).42

A direção de ajustamento entre as palavras e o mundo é sempre uma

consequência do ponto ilocucionário:

40. J. R. Searle, Expression and Meaning, Capítulo 1 [A taxonomy of illocutionary acts], p. 5. 41. Ibidem, p. 2. Em Mind, Language and Society: Philosophy in the Real World (1998), Searle

explicita: “A noção de ponto ilocucionário é a noção daquilo que um proferimento conta como, tal como determinado pelas regras constitutivas dos atos de linguagem [The notion of illocutionary point is the notion of what an utterance counts as, as determined by the constitutive rules of speech acts]” (p. 147). Ver J. R. Searle, “Meaning, Mind and Reality”, Revue internationale de philosophie, No. 216 (2001/2), pp. 174-175.

42. Ver J. R. Searle, Expression and Meaning, Capítulo 1 [A taxonomy of illocutionary acts], p. 3; ver também J. R. Searle, Mind, Language and Society: Philosophy in the Real World (1998), Capitulo 6 [How Language Works: Speech as a Kind of Human Action], pp. 147-148.

175

“Algumas ilocuções têm como parte do seu ponto ilocucionário o propósito de ajustar as palavras (mais exatamente, o seu conteúdo proposicional) ao mundo, outras ilocuções têm o propósito de ajustar o mundo às palavras. As asserções pertencem à primeira categoria, as promessas e os pedidos à segunda”.43

Intuitivamente, era o que Searle afirmava em Intentionality, poderíamos

dizer que a ideia de direção de ajustamento é a ideia de responsabilidade pelo

ajustamento: “Se a asserção é falsa, a falta é da asserção (direção de ajustamento

palavra-ao-mundo). Se a promessa não é mantida, a falta é do locutor (direção de

ajustamento mundo-à-palavra)” (Intentionality, p. 7). Searle representa a direção de

ajustamento da palavra ao mundo (word-to-world) com uma seta orientada para baixo

↓ e a direção de ajustamento do mundo à palavra (world-to-word) com uma seta

orientada para cima ↑.44

As diferenças dos estados psicológicos expressos são diferenças que dizem

respeito à condição de sinceridade dos atos ilocucionários:

“Aquele que afirma, explica, assevera ou assegura que p expressa a crença que p; aquele que promete, faz voto de, ameaça ou obriga-se a fazer A expressa uma intenção de fazer A; aquele que ordena, comanda, ou pede a O fazer A expressa um desejo (uma vontade, um mero querer) que O faça A; aquele que pede desculpas por ter feito A expressa arrependimento por ter feito A etc. De modo geral, ao realizar qualquer ato ilocucionário com um conteúdo proposicional, o locutor expressa alguma atitude, algum estado etc., no que diz respeito a esse conteúdo proposicional”.45

43. J. R. Searle, Expression and Meaning, Capítulo 1 [A taxonomy of illocutionary acts], p. 3. Para a noção de direção de ajustamento, ver J. Austin, “How to Talk – some simple ways” (1953-1954), in Philosophical Papers (1970), [Capítulo 6] pp. 140-153; E. Anscombe, Intention (Oxford: Blackwell, 1957; 1963), §32, pp. 56-57.

44. Ver J. R. Searle, Expression and Meaning, Capítulo 1 [A taxonomy of illocutionary acts], p. 4; ver também J. R. Searle, Making the Social World (2010), Capítulo 1 [The Purpose of this Book], p. 11-12.

45. J. R. Searle, Expression and Meaning, p. 4. Ou seja, a realização do ato ilocucionário é eo ipso uma expressão do estado psicológico (mental) correspondente (ver J. R. Searle, Intentionality, p. 9). Em Speech Acts, Searle usa noções como crença, desejo e intenção, e ele sabia, é o que afirma em 2001, que um dia ele teria de oferecer uma análise dessas noções, “porque uma teoria dos atos de linguagem que se apoia num tal conjunto problemático e controvertido de conceitos tem de permanecer sempre incompleta até os conceitos serem analisados”. Foi o que levou Searle, ao longo de vários anos (de 1969 a 1983) a escrever Intentionality: An essay in the philosophy of mind, uma obra que ele considera como tendo sido para ele “o livro mais difícil de escrever” (what was for me the hardest book to write): “Com efeito, o que eu descobri era que uma teoria da intencionalidade estava já implícita na teoria dos atos de linguagem . (...) Intentionality, Expression and Meaning, e Speech Acts acabaram por formar um conjunto coerente, de tal modo que a minha teoria dos atos de linguagem foi ao mesmo tempo aprofundada e enriquecida

176

A escolha desses critérios condiciona a classificação de Searle dos atos

ilocucionários em cinco categorias gerais:

1. Assertivos (Assertives): o ponto ilocucionário dos membros desta classe de

ilocuções é o de “comprometer o locutor (em variados graus) quanto a alguma coisa

sendo o caso, no que diz respeito à verdade da proposição expressa [grifos

nossos]”. Todos os membros da classe assertiva de atos ilocucionários podem,

então, ser avaliados na dimensão de assentimento que inclui “verdadeiro” e

“falso”. A direção de ajustamento é aqui das palavras ao mundo (↓) e o estado

psicológico (mental) expresso é uma crença (C), a crença (que p). Ao usar, como

em Speech Acts, o símbolo ⊢, mas agora para representar mais especificamente o

ponto ilocucionário comum a todos os membros da classe assertiva, Searle

simboliza esta classe de atos ilocucionários do modo seguinte:

⊢↓C (p).

2. Diretivos (Directives): o ponto ou propósito ilocucionário dos membros desta

classe de ilocuções, representada pelo sinal de pontuação (!), consiste no fato de

tratar-se sempre, por parte do locutor, de tentativas (de diversos graus) “de levar

o ouvinte a fazer alguma coisa”. Para esta classe de atos ilocucionários, a direção

de ajustamento é do mundo às palavras (↑), o estado mental expresso é um desejo,

uma vontade ou um mero querer (Q), e o conteúdo proposicional “é sempre que

o ouvinte O faz alguma ação futura A”. Este tipo de atos ilocucionários é

simbolizado por Searle:

! ↑ Q (O faz A)

3. Compromissivos (Commissives): o ponto ou propósito ilocucionário da classe de

atos compromissivos (Cpr) consiste em “comprometer o locutor (mais uma vez

em graus variados) no que diz respeito a algum futuro curso de ação”. Ou seja, o

ponto ilocucionário desta classe de atos ilocucionários é de obrigar o locutor a fazer

com a explicação da intencionalidade que eu fui capaz de desenvolver” (“Meaning, Mind and Reality”, Revue internationale de philosophie, No. 216 (2001/2), p. 175). Mas ver também J. R. Searle, Making the Social World (2010), Capítulo 4 [Language as Biological and Social], 81-84.

177

alguma coisa. Para esta classe de atos ilocucionários, a direção de ajustamento é,

como para a classe dos diretivos, do mundo às palavras (↑) e o estado mental

expresso é uma intenção (I). O conteúdo proposicional é sempre, dizia aqui

Searle, “que o locutor L faz alguma ação futura A”. Esta classe de atos

ilocucionários é, então, simbolizada:

Cpr ↑ I (L faz A)

4. Expressivos (Expressives) o ponto ou propósito ilocucionário dos

membros desta classe (E) de atos ilocucionários é de “expressar o estado

psicológico [S] especificado na condição de sinceridade diante de um estado de

coisas especificado pelo conteúdo proposicional”. Para esta classe de atos

ilocucionários, não há direção de ajustamento, ou seja, ao realizar esse tipo de ato

(um ato de linguagem não representacional), o locutor não está tentando ajustar o

mundo às palavras nem está tentando ajustar as palavras ao mundo (a direção de

ajustamento é, portanto, Ø). Segundo Searle, o que é pressuposto aqui é

justamente a verdade da proposição expressa.46 No que diz respeito aos atos

ilocucionários que pertencem a esta classe, “o conteúdo proposicional atribui

alguma propriedade (não necessariamente uma ação) a L ou então a O”. E Searle

simboliza esta classe de atos ilocucionários do modo seguinte:

E Ø (S) (L/O + propriedade)

5. Declarações (Declarations): a característica que permite definir esta classe

de atos ilocucionários (D) consiste no fato de que “a realização bem-sucedida de

um dos seus membros provoca a correspondência entre o conteúdo

proposicional e a realidade”, ou seja, “a realização bem-sucedida garante que o

conteúdo proposicional corresponde ao mundo”. O que diferencia, então, as

declarações das outras categorias gerais de atos ilocucionários é o seguinte: as

declarações “provocam alguma alteração no status ou na condição do referido ao

objeto ou aos objetos unicamente em virtude do fato de a declaração ter sido

46. Ver J. R. Searle, Making the Social World (2010), Capitulo 4 [Language as Biological and Social], p. 69.

178

realizada com sucesso”.47 A relação entre o indicador de força ilocucionária e a

direção de ajustamento é aqui muito peculiar: “A realização de uma declaração

provoca um ajustamento por meio de sua própria realização bem-sucedida”. A

direção de ajustamento é, assim, ao mesmo tempo das palavras-ao-mundo e do

mundo-às-palavras (↓↑) ou (↕). Para esta classe de atos, não há uma condição de

sinceridade, ou seja, a declaração não expressa, segundo Searle, um estado mental

(a condição de sinceridade é, portanto, Ø). A realização bem-sucedida de uma

declaração pressupõe sempre, pelo menos em princípio, uma instituição

extralinguística no interior da qual tanto o locutor como o ouvinte ocupam,

necessariamente, um lugar especial: só podemos “excomungar, nomear, dar e

legar o nosso patrimônio, ou declarar guerra” porque temos “instituições tais

como a igreja, o direito, a propriedade privada, o Estado e uma posição especial

do locutor e do ouvinte dentro dessas instituições”. Esta última classe geral de

atos é simbolizada por Searle:

D ↓↑ Ø (p) ou D ↕ Ø (p).48

Para Searle, e é essa a tese que ele ainda defende em Making the Social

World, com a importante exceção da própria linguagem, toda realidade

institucional é criada por atos de linguagem que têm a mesma forma lógica que

as Declarações:

“Assim, a existência de uma Declaração é ela mesma um fato institucional e, portanto, uma função-status [status function].49 Mas ela própria requer mais outra Declaração para existir? Não. (...) Usamos a semântica para criar uma realidade que vai além da semântica, e [usamos] a semântica para criar poderes que vão além dos poderes semânticos. Mas os fatos linguísticos, o fato de que este ou aquele proferimento conta como uma asserção ou uma promessa, não são fatos onde a semântica vai além da semântica. (...) No caso de um enunciado, fórmulas do tipo “X conta como Y em C” descrevem a constituição da significação, e não uma operação linguística

47. J. R. Searle, “A taxonomy of illocutionary acts” [1971], in Expression and Meaning (1979), p. 17.

48. Ver J. R. Searle, Expression and Meaning (1979), Capítulo 1 [A taxonomy of illocutionary acts], pp. 12-20; Mind, Language and Society: Philosophy in the Real World (1998), Capitulo 6 [How Language Works: Speech as a Kind of Human Action], pp. 146-152; Making the Social World (2010), pp. 11-16, 69.

49. Ou seja, uma função que depende de um reconhecimento coletivo (ver J. R. Searle, Making the Social World, p. 7).

179

separada que nós realizamos. Mas no caso de fatos institucionais não-linguísticos [nonlinguistic institutional facts], regras constitutivas da forma “X conta como Y em C” descrevem uma operação linguística que realizamos pela qual criamos novos fatos institucionais, fatos cuja existência envolve mais do que simplesmente a significação dos enunciados e proferimentos usados para criá-los.” (Making the Social World, pp. 14-15).

Três falácias na filosofia contemporânea

Ao aplicar a sua teoria dos atos de linguagem a problemas filosóficos

correntes, Searle criticava primeiro, logo no início da segunda parte de Speech

Acts, a filosofia analítica “praticada durante o que poderíamos agora chamar o

período clássico da análise linguística, período transcorrido aproximativamente

entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o início dos anos sessenta [1960]”

(Speech Acts, p. 131).50 Ele considera o slogan “A Significação é o Uso” (“Meaning

is Use”) como a origem de três falácias conexas na filosofia contemporânea: “a

falácia da falácia naturalista [the naturalistic fallacy fallacy]”, “a falácia do ato de

linguagem [the speech act fallacy]” e “a falácia da asserção [the assertion fallacy]”

(Speech Acts, pp. 146-149).

A primeira falácia – a falácia da falácia naturalista – é para Searle a falácia de

supor que é logicamente impossível derivar uma afirmação avaliativa (evaluative

statement) de qualquer conjunto de afirmações descritivas. A origem desta falácia

seria a própria incapacidade de distinguir o uso de certos enunciados, ou seja, a

força ilocucionária do proferimento de certos enunciados, e a significação desses

enunciados. A palavra “uso” é tão vaga que permitiu que se confundissem aqui

as condições de verdade de uma proposição expressa no proferimento de um

enunciado com a força de proferir o enunciado correspondente. A força

ilocucionária que caracteriza o proferimento de um enunciado avaliativo é, sem

dúvida, muito diferente da força ilocucionária que caracteriza o proferimento de

um enunciado descritivo, mas o fato de os dois proferimentos serem

50. Searle acha oportuno, no entanto, dizer que ele considera a contribuição desse tipo de filosofia como verdadeiramente notável: “Não seria exagerado dizer que ela provocou uma revolução na filosofia, e este livro é apenas uma pequena consequência dessa revolução. Todo o meu esforço em corrigir aqui alguns erros não deve ser visto como uma condenação [a rejection] da análise linguística” (Speech Acts, p. 131).

180

caracterizados por forças ilocucionárias diferentes, dizia Searle, não é suficiente

para provar que a proposição expressa no primeiro proferimento não possa ser

derivada da proposição expressa no segundo proferimento.51 E é justamente

porque enunciados da forma “x deve fazer y” – e trata-se aqui de “deve” no

sentido geral de “tem obrigação de” e não de “deve moralmente” – expressam

razões para realizar uma ação, que é possível, segundo ele, derivar esses enunciados

de enunciados de fato sobre a produção (do locutor) do ato de prometer ou

outros tais fatos. Em “Speech Acts, Mind and Social Reality”, Searle esclarece

que a obrigação de cumprir uma promessa não deriva da instituição, mas deriva

do fato de que, ao fazer uma promessa, um locutor criou uma razão para realizar

uma ação:

“A instituição de prometer [The institution of promising] fornece o veículo por meio do qual o locutor pode assumir uma obrigação ao fazer uma promessa. Mas a instituição de prometer não é a fonte da obrigação. Mais precisamente, a instituição de prometer, e outras tais instituições, fazem com que seja possível para agentes racionais que agem livremente de publicamente se comprometer no futuro por atos realizados no presente [to publicly bind their will in the future by acts performed in the present]. Repetindo, a instituição é o dispositivo que o agente usa, mas não é a fonte da obrigação”.52

A segunda falácia – a falácia do ato de linguagem – é a falácia da tese de que a

significação de certas palavras como, por exemplo, “bom” ou “verdadeiro”,

pode ser dada através da explicação de certos atos de linguagem como expressar

aprovação (to commend) e endossar ou subscrever a uma afirmação, atos que elas

51. Ver J. R. Searle, Speech Acts, Capítulo 6 [Three fallacies in contemporary philosophy], §1 [The naturalistic fallacy fallacy], pp. 132-136. Ver também J. R. Searle, “How to Derive ‘Ought’ from ‘Is’”, The Philosophical Review, Vol. 73, No. 1 (1964), pp. 43-58 (reimpresso em Speech Acts, Capítulo 8 [Deriving “ought” from “is” ], pp. 175-198); B. T. Wilkins “The “Is”-“Ought” Controversy”, Ethics, Vol. 89, No. 2 (1970), pp. 160-164; T. D. Perry, “A Refutation of Searle's Amended ‘Is-Ought’ Argument”, Analysis, Vol. 34, No. 4 (1974), pp. 133-139; S. L. Tsohatzidis, “Searle’s Derivation of Promissory Obligation”, in Intentional Acts and Institutional Facts. Essays on John Searle’s Social Ontology. Savas L. Tsohatzidis (ed.). Dordrecht: Springer, 2007, pp. 203-217.

52. J. R. Searle, “Speech Acts, Mind and Social Reality”, in G. Grewendorf e G. Meggle (eds.), Speech Acts, Mind and Social Reality. Discussions with John R. Searle (2002), p. 5. Ver também J. R. Searle, Rationality in Action (2001), Capítulo 6 [How we Create Desire-independent Reasons for Action], §IV [Promising as a Special Case], pp. 193-200; “Réponses de John Searle”, Revue internationale de philosophie, No. 216 (2001/2), [Ethics and Speech Acts: Reply to Francis Jacques] p. 291.

181

(essas palavras) realizam quando são usadas. “A palavra X é usada para realizar o

ato de linguagem A” seria aqui uma explicação (pelo menos uma explicação

parcial) da significação dessa palavra. Mas a significação da palavra X não pode

ser dada dessa forma. Para Searle, toda análise da significação de uma palavra

“tem de ser compatível com o fato de que a mesma palavra pode significar a

mesma coisa em todos os tipos de enunciados gramaticalmente diferentes nos

quais pode ocorrer” (Speech Acts, p. 137). Ou seja, segundo Searle, “a palavra

“verdadeiro” significa ou pode significar a mesma coisa em enunciados

interrogativos, assertivos, condicionais, negações, disjunções, optativos etc.”, e se

essa palavra não significasse a mesma coisa, “a conversa [conversation] seria

impossível” (Speech Acts, p. 137). A análise que oferece explicações, ou pelo

menos uma explicação parcial, das significações de palavras tais como

“verdadeiro”, “bom” etc., com afirmações da forma “A palavra X é usada para

realizar o ato A”, não satisfaz a essa óbvia condição de adequação e não pode ser

considerada, portanto, como uma análise adequada (Speech Acts, pp. 139-141).

A terceira falácia – a falácia da asserção – consiste, para Searle, em confundir

as condições de sucesso da asserção, ou seja, as condições necessárias e

suficientes para que esse ato de linguagem seja realizado com sucesso no

proferimento de um enunciado dado, com a análise da significação de palavras

particulares que ocorrem em certas asserções.53 Uma asserção como, por

exemplo, “eu sei que tenho dor”, ou “eu me lembro do meu nome”, só teria uma

razão de ser ou propósito se fosse justificada, de certo modo, pelo contexto. Que

a asserção “eu me lembro do meu nome” não tenha um propósito ou razão de ser,

isso não tem nada a ver com o conceito de “lembrar-se” ou “recordar”, segundo

Searle, mas apenas com o conceito de ato de asserção (the concept of what it is to

make an assertion). Ou seja, esta terceira falácia tem como característica geral

“confundir as condições para fazer asserções bem-sucedidas com as condições

de aplicabilidade de certos conceitos” (Speech Acts, p. 144).

53. Ver J. R. Searle, Speech Acts, Capítulo 6 [Three fallacies in contemporary philosophy], §3 [The assertion fallacy], pp. 141-146.

182

Os filósofos ligados à corrente da filosofia linguística praticada nesse

período não tinham, dizia Searle, uma teoria geral da linguagem para

fundamentar todas essas análises; eles tinham apenas alguns slogans, entre os

quais o mais importante era o slogan: “A Significação é o Uso”. Mas, como

instrumento de análise, a noção de uso é de tal modo vaga, segundo ele, que ela

“gerou ou ajudou a gerar” essas três falácias (Speech Acts, p. 146).

A reinterpretação pragmática da problemática da validade

Nas Conferências Christian Gauss, que Habermas apresentou, em 1971, na

Universidade de Princeton – “Preleções para uma Fundação Linguística da

Sociologia [Vorlesungen zu einer sprachtheoretischen Grundlegung der Soziologie]”54 –,

encontramos a primeira formulação de sua “pragmática formal”55 e também o

início de sua apropriação da teoria dos atos de linguagem.56 Se considerarmos a

gramática gerativa como um modelo para desenvolver uma pragmática universal,

dizia Habermas no final da terceira conferência, deveríamos ser capazes “de

descobrir e reconstruir os sistemas de regras segundo as quais geramos contextos

de interações, ou seja, a realidade simbólica da sociedade” (p. 65). Habermas

caracteriza, então, o nível em que uma pragmática universal tem de ser

54. J. Habermas, “Reflections on the Linguistic Foundation of Sociology”, in On the Pragmatics of Social Interaction. Preliminary Studies in the Theory of Communicative Action. Tradução inglesa de Barbara Fultner. Cambridge (Mass.): The MIT Press, 2001, pp. 1-103.

55. Ver a quarta conferência: “Universal Pragmatics: Reflections on a Theory of Communicative Competence” (pp. 67-84). Numa nota de rodapé da tradução inglesa, publicada em 1979, de seu ensaio “Was heisst Universalpragmatik?” (1976), Habermas expressa sua insatisfação com o rótulo “universal” e sua preferência pelo termo “pragmática formal”: “Até agora o termo “pragmática” foi empregado para se referir à análise dos contextos particulares de uso da linguagem e não para a reconstrução das características universais de usar a linguagem (ou de empregar enunciados em proferimentos). Para marcar este contraste, eu introduzi uma distinção entre a pragmática “empírica” e “universal”. Esta terminologia já não me satisfaz; o termo “pragmática formal” – como uma extensão de “semântica formal” – seria mais adequado. “Formalpragmatik” é o termo preferido por F. Schütze, Sprache soziologisch gesehen, 2 vols. [München: Wilhem Fink, 1975]” (J. Habermas, “What is Universal Pragmatics”, in Communication and the Evolution of Society. Tradução inglesa, com uma “Introdução”, de Thomas McCarthy. Boston: Beacon Press, 1979, p. 208, nota 1).

56. Ver Th. Calvet de Magalhães, “Realism after the Linguistic-Pragmatic Turn” (2002), Cognitio-Revista de Filosofia, Vol. 4, No. 2 (2003), pp. 211-220 (online no site: http://www.cspeirce.com/menu/library/aboutcsp/calvet/realism.htm); tradução de Theresa Calvet de Magalhães: “O realismo depois da virada linguístico-pragmática”, in Pragmatismos, Pragmáticas e Produção de Subjetividades. Arthur A. L. Ferreira, Benilton Bezerra Jr. e Sílvia Tedesco (orgs.). Rio de Janeiro: Garamond, 2008, pp. 408-420.

183

desenvolvida ao comparar, na quarta conferência, essa pragmática com a teoria

da gramática criada por Noam Chomsky (pp. 68-76), e isso de certo modo

facilita a sua abordagem dos dois componentes teóricos mais importantes de sua

pragmática universal: o primeiro, que diz respeito ao uso cognitivo da linguagem (pp.

78-82), e o segundo que diz respeito ao uso comunicativo da linguagem (pp. 82-84).

Habermas esclarece que estes dois usos da linguagem são interdependentes. A tarefa

do que ele chama, primeiro, de pragmática universal e, posteriormente, de pragmática

formal consiste em identificar e reconstruir as condições universais do

entendimento mútuo (Verständigung) possível. Alcançar o entendimento mútuo

exige que um falante e um ouvinte operem não apenas no nível da

intersubjetividade em que falam um com o outro, mas também no nível dos

objetos ou dos estados de coisas sobre os quais eles comunicam um com o

outro.

O fenômeno chave que uma pragmática universal tem de explicar é a

capacidade autoexplicadora da linguagem: uma língua natural, para Habermas,

“possui uma metalinguagem que é, por sua vez, dependente de uma

interpretação naquela (ou numa outra) língua natural” (p. 73). Os atos ilocucionários

analisados por Searle depois de Austin – e o ato ilocucionário é considerado

agora por Habermas como a unidade elementar do discurso (elementare Einheit der

Rede) – seriam paradigmáticos para essa peculiar reflexividade das línguas

naturais. A estrutura dupla dos atos ilocucionários – e Habermas, seguindo

Searle (ver Speech Acts, pp. 31-33), representa a estrutura dos atos ilocucionários

como “Mp”, em que M representa o modo da comunicação (Modus der

Kommunikation) ou os diferentes modos do uso da linguagem (a cláusula principal

usada em um proferimento para estabelecer uma relação intersubjetiva entre

falantes e ouvintes) e p representa o conteúdo proposicional (a cláusula

dependente com conteúdo proposicional usada em um proferimento para

comunicar sobre objetos ou estados de coisas) – é considerada aqui como a

fundação da reflexividade inerente das línguas naturais. Para Habermas, a

conexão elementar entre o componente ilocucionário e o componente

184

proposicional dos atos de linguagem manifesta a dupla estrutura da comunicação

por meio da linguagem ordinária:

“A comunicação sobre objetos (ou estados de coisas) só ocorre sob a condição da metacomunicação simultânea sobre a significação do uso da cláusula dependente. Uma situação onde é possível chegar a um entendimento mútuo exige que pelo menos dois falantes-ouvintes estabeleçam simultaneamente uma comunicação nos dois níveis: no nível da intersubjetividade, em que os sujeitos falam um com o outro, e no nível dos objetos (ou estados de coisas) sobre os quais eles comunicam. A pragmática universal visa a reconstrução do sistema de regras que um falante competente deve conhecer se ele tem de ser capaz de preencher este postulado da simultaneidade da comunicação e da metacomunicação. Eu gostaria de reservar o termo competência comunicativa para esta qualificação.” (p. 74).57

Uma teoria comunicativa da sociedade – uma teoria da sociedade que aceita

sistemas de regras abstratos para gerar relações intersubjetivas nas quais os próprios

sujeitos são formados – não pode ignorar, dizia Habermas no final da terceira

conferência, “a dupla estrutura cognitivo-comunicativa do discurso” (p. 64). A

competência comunicativa é crucial para a teoria social de Habermas. A virada

57. Para delinear mais nitidamente o seu conceito de competência comunicativa, e para delimitar a pragmática universal, Habermas propõe aqui uma sucessão didaticamente plausível de abstrações: “As abstrações começam com proferimentos concretos [konkreten Äusserungen]. Denomino “concreto” um proferimento se ele é efetuado em um contexto que o determina completamente. O primeiro passo é a abstração sociolinguística. Ela prescinde de todas aquelas condições limitativas dos sistemas de regras linguísticas que variam de modo contingente e que só são específicas aos falantes-ouvintes individuais, e retém os “proferimentos em contextos generalizados”. O segundo passo é a abstração pragmático-universal [própria à pragmática universal]. Ela prescinde de todos os contextos espaço-temporalmente e socialmente circunscritos, e retém apenas os “proferimentos situados em geral”. É desta maneira que chegamos às unidades elementares do discurso [elementaren Einheiten der Rede]. A terceira abstração é a abstração linguística, que prescinde dos atos de linguagem efetivos e retém apenas as “expressões linguísticas” ou frases [Sätze]. Chegamos, assim, às unidades elementares da língua. O quarto passo é a abstração lógica, que desconsidera todas as expressões linguísticas performativamente relevantes e retém as “proposições asseverativas” [Aussagen]. Chegamos, dessa maneira, às unidades elementares para representar estados de coisas. Os proferimentos em contextos sociais generalizados são o objeto da sociolinguística: esta [a sociolinguística] se apresenta sob a forma de uma teoria das competências pragmáticas. (…) Os proferimentos situados em geral, que não são específicos a um dado contexto, são o objeto da pragmática universal: esta [a pragmática universal] se apresenta sob a forma de uma teoria da competência comunicativa. A sua tarefa consiste em reconstruir o sistema de regras segundo as quais falantes competentes transformam expressões linguísticas em proferimentos. As expressões linguísticas (ou séries de símbolos) são o objeto da linguística: esta [a linguística] se apresenta sob a forma de uma teoria da competência sintática. (…) Finalmente, as proposições asseverativas [Aussagen] são o objeto da lógica.” (“Universal Pragmatics: Reflections on a Theory of Communicative Competence”, pp. 74-75).

185

linguística de Habermas, escreve Barbara Fultner na sua “Introdução” a estes

Preliminary Studies in the Theory of Communicative Action, “foi inicialmente motivada

pela convicção que uma teoria social crítica exigia uma sólida fundação

metodológica e epistemológica: daí o projeto de prover uma base linguística para

a sociologia” (p. xxii).

A distinção entre o uso cognitivo e o uso comunicativo (ou interativo) da

linguagem capta o que Austin tinha em mente com a sua (posteriormente

abandonada) distinção entre os proferimentos constatativos e performativos58:

“Denomino o uso de atos de linguagem constatativos (...) de cognitivo, porque a relação interpessoal entre falante e ouvinte, estabelecida de maneira performativa, tem como propósito chegar a um entendimento sobre objetos (ou estados de coisas). Por contraste, denomino comunicativo o uso da linguagem em que chegar a um entendimento sobre objetos (e estados de coisas) ocorre para o propósito de estabelecer uma relação interpessoal. O nível da comunicação que, em um dos casos, é o fim, torna-se um meio no outro caso. No uso cognitivo da linguagem, os conteúdos proposicionais são o tópico; eles [esses conteúdos] são o que a comunicação é sobre. Mas o uso comunicativo menciona conteúdos proposicionais apenas para estabelecer, de maneira performativa, uma relação intersubjetiva entre falantes-ouvintes.” (p. 76).

Sem um conteúdo proposicional “– que p”, expresso no uso cognitivo da

linguagem na forma de uma frase declarativa p, o uso comunicativo da linguagem

seria impossível (p. 62). No uso cognitivo da linguagem, “iniciamos a comunicação

tendo como propósito comunicar algo sobre uma realidade objetivada”. No uso

comunicativo da linguagem, “nós nos referimos a algo no mundo para produzir

relações interpessoais específicas” (p. 64). Todos os atos de linguagem têm uma

dimensão cognitiva e comunicativa. A significação de um ato de linguagem

consiste, assim, em seu conteúdo proposicional e no sentido do modo de

entendimento mútuo que é buscado. Para Habermas, este elemento ilocucionário

determina a significação da pretensão de validade que erguemos para um

proferimento:

58. Ver J. L. Austin, “Performative Utterances” [1956], in Philosophical Papers (1970), pp. 233-252; “Performative-Constative” [1958] (tradução inglesa de Geoffrey J. Warnock), in C. E. Caton (ed.), Philosophy and Ordinary Language (1963), pp. 22-54; How To Do Things With Words (1962), pp. 94-164.

186

“A significação de uma asserção enquanto asserção é que o estado de coisas asseverado é o caso. (…) a significação de uma promessa enquanto promessa é que o falante de fato realizará uma obrigação que ele próprio assumiu. De modo semelhante, a significação de uma ordem enquanto ordem é que o falante quer que sua determinação seja preenchida. Estas pretensões de validade que o falante ergue ao realizar atos de linguagem fundam relações intersubjetivas, isto é, a facticidade dos fatos sociais.” (p. 63).

Essas pretensões convergem numa única pretensão: a pretensão de

racionalidade (Vernunftigkeit). As pretensões de verdade (Wahrheit) têm um status

paradigmático como pretensões de validade:

“O paradigma de todas as pretensões de validade é a verdade proposicional. O próprio uso comunicativo da linguagem tem de pressupor o uso cognitivo da linguagem com suas pretensões de verdade, já que os atos de linguagem padrão [standard] sempre contêm conteúdos proposicionais.” (p. 86).

Quando erguemos uma pretensão de verdade, usamos a linguagem

cognitivamente. As poucas e breves observações de Habermas, na quarta

conferência, sobre a pragmática do uso cognitivo da linguagem (pp. 78-82) focalizam

questões relativas à referência e à percepção:

“Fazemos duas suposições (…). Presumimos a existência do objeto sobre o qual fazemos uma afirmação; e presumimos a verdade da própria proposição, ou seja, daquilo que afirmamos sobre o objeto. A existência e a verdade representam as condições que têm de ser preenchidas para que a afirmação possa representar um fato. A primeira suposição é justificada quando ambos, falantes e ouvintes, são capazes de identificar, de modo inequívoco, o objeto denotado pela expressão sujeito de uma proposição. A segunda suposição é justificada quando ambos, falantes e ouvintes, verificam se o que é atribuído pelo predicado ao objeto na proposição asserida é de fato verdadeiro dele [desse objeto]. A expressão referencial, seja ela um termo singular ou uma descrição definida, pode ser entendida como uma especificação do modo como um objeto pode ser identificado. Juntamente com a expressão predicado, ela constitui uma proposição que é suposta corresponder a um estado de coisas existente. (…) A pragmática do uso cognitivo da linguagem mostra que todo e qualquer dado domínio de objeto é estruturado por determinadas interconexões entre linguagem, cognição e ação. (…) A experiência sensorial conduz à percepção de coisas, de eventos ou de estados que atribuímos a coisas (vemos que alguma coisa está em um estado determinado). A experiência comunicativa, que se funda na experiência sensorial, conduz por meio das percepções à compreensão de pessoas, proferimentos, ou estados de coisas que atribuímos a pessoas

187

(nós “vemos”, isto é, compreendemos, que alguém está em um estado determinado). As experiências só podem ter um conteúdo informativo porque e na medida em que elas são surpreendentes – isto é, na medida em que elas decepcionam e modificam expectativas sobre objetos. Este pano de fundo, que age como um contraste e sobre o qual as experiências se destacam, consiste em crenças (ou juízos prematuros) sobre objetos que nós já tivemos a experiência. No uso cognitivo da linguagem, damos às nossas crenças uma forma proposicional. (…) (...) Uma conexão semelhante entre linguagem, cognição e ação se manifesta na predicação.” (pp. 78-81).

Nas suas subsequentes articulações da pragmática formal, Habermas já

não enfatiza a percepção e a referência. Mas, considerando as críticas de Cristina

Lafont quanto a ele precisar de uma teoria da referência para evitar alguma

forma de idealismo linguístico59 e a objeção de Herbert Schnädelbach ao fato de

ele ter privilegiado a racionalidade discursiva encarnada nas práticas

argumentativas60, a discussão de Habermas do uso cognitivo da linguagem, nas

59. C. Lafont, The Linguistic Turn in Hermeneutic Philosophy [1994]. Tradução inglesa de José Medina. Cambridge (Mass.): The MIT Press, 1999, Capítulo 4 [Language as Medium of Understanding: The Communicative Use of Language], pp. 125-225, e Capítulo5 [Language as Medium of Learning: The Cognitive Use of Language], pp. 227-273.

60. H. Schänelbach, Zur Rehabilitierung des animal rationale. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1992. Em “Some Further Clarifications of the Concept of Communicative Rationality (1996)” [tradução inglesa de Maeve Cooke], Habermas aceita a objeção crítica de Schänelbach e ele assume que “usamos o predicado “racional” em primeiro lugar para nos referir a crenças, a ações e a proferimentos linguísticos porque, na estrutura proposicional do conhecimento, na estrutura teleológica da ação, e na estrutura comunicativa da linguagem, nos deparamos com várias raízes da racionalidade. Estas, por sua vez, não parecem ter fundamentos comuns, pelo menos não na estrutura discursiva das práticas de justificação, e também não na estrutura reflexiva da autorrelação de um sujeito participando dos discursos. O mais provável é que a estrutura do discurso estabelece uma interrelação entre as estruturas entrelaçadas da racionalidade (as estruturas do conhecimento, da ação, e da linguagem) ao juntar, num certo sentido, as raízes proposicionais, teleológicas e comunicativas. Segundo um tal modelo de estruturas fundamentais interligadas, a racionalidade discursiva deve a sua posição especial não ao seu papel fundacional, mas sim ao seu papel integrativo.” (J. Habermas, On the Pragmatics of Communication. Maeve Cooke (ed.). Cambridge (Mass.): The MIT Press, 1998, [Capitulo 7] pp. 308-309). Habermas faz agora uma distinção entre dois tipos de ação comunicativa: “Falarei de ação comunicativa em um sentido fraco sempre que alcançar o entendimento se aplica a fatos e a razões relativas ao ator para expressões unilaterais da vontade; falarei de ação comunicativa em um sentido forte quando alcançar o entendimento se estende às razões normativas para a seleção dos próprios fins. Neste último caso, os participantes se referem a orientações, intersubjetivamente partilhadas, quanto a valores, que – indo além de suas preferências pessoais – obrigam suas vontades. Na ação comunicativa fraca, os atores são orientados apenas para pretensões de verdade e de veracidade; na ação comunicativa forte, eles são orientados também para pretensões de justeza intersubjetivamente reconhecidas; (…). Subjacente à ação comunicativa no seu sentido fraco, temos a pressuposição de um mundo objetivo que é o mesmo para todos; na ação comunicativa no seu sentido forte, os participantes, além e acima

188

suas Conferências de 1971 em Princeton, é importante. E também é importante

porque contém uma primeira elaboração da assim chamada teoria consensual (ou

discursiva) da verdade, que emerge do modo como ele concebe a significação da

verdade. A significação da verdade implícita na pragmática das asserções pode ser

explicada se especificarmos o que a “redenção discursiva” das pretensões de

validade quer dizer. Essa é, para Habermas, a tarefa da teoria consensual da verdade:

“(...) a verdade, que reivindicamos para as proposições quando as afirmamos, depende de duas condições. Primeiro, tem de ser fundada na experiência; ou seja, a afirmação não pode conflitar com experiências dissonantes. Segundo, tem de ser discursivamente redimível; ou seja, a afirmação tem de ser capaz de resistir a todos os contra-argumentos e comandar o assentimento de todos os participantes potenciais de uma discussão [Diskurs]. É necessário que a primeira condição seja preenchida [ou satisfeita] para tornar crível que a segunda condição poderia ser preenchida [ou satisfeita]. (…) A condição da verdade das proposições consiste no assentimento potencial de todos os outros. Qualquer outra pessoa deveria ser capaz de se convencer que é a justo título que eu atribuo o predicado p ao objeto x, e deveria, então, ser capaz de concordar comigo. A significação pragmático-universal da verdade é determinada, portanto, como a exigência de chegar a um consenso racional. O conceito de redenção discursiva das pretensões de validade conduz ao conceito de consenso racional.” (p. 89).

Podemos, é claro, dizer que o interesse de uma tal teoria da verdade

estaria mais no que ela diz sobre como chegamos a um acordo sobre pretensões,

e que ela não é a rigor uma teoria da verdade, mas sim uma teoria da justificação.

Mas, se considerarmos a crítica de Habermas, em 1996, à virada pragmática de

Richard Rorty61, a sua primeira elaboração de uma teoria pragmática da verdade

é, sem dúvida, importante.

Habermas considera a teoria dos atos de linguagem como um esforço

para preencher a lacuna entre a pragmática formal e as teorias da significação-

como-uso. As explicações de Austin e de Searle da significação reconhecem

tanto a dimensão de dizer alguma coisa – enfatizada desde Frege, passando pelo

disso, contam com um mundo social que é partilhado por eles intersubjetivamente.” (“Some Further Clarifications of the Concept of Communicative Rationality (1996)”, in On the Pragmatics of Communication, pp. 326-328).

61. J. Habermas, “Rorty's pragmatische Wende”, Deutsche Zeitschrift für Philosophie, Vol. 44 (1996) pp. 715-741. Tradução inglesa de Maeve Cooke, in J. Habermas, On the Pragmatics of Communication (1998), Capítulo 8 [Richard Rorty’s Pragmatic Turn], pp. 343-382.

189

primeiro Wittgenstein, até Dummett – como a dimensão de fazer alguma coisa –

na qual se concentram as teorias da significação-como-uso que derivam do segundo

Wittgenstein.

Uma reinterpretação pragmática do problema da validade exige uma

reavaliação da significação originária da força ilocucionária de um ato de

linguagem. O que um falante faz ao realizar um ato de linguagem é entrar numa

relação de obrigação com o ouvinte: “Com a força ilocucionária de um

proferimento, um falante pode motivar um ouvinte a aceitar a oferta contida no

seu ato de linguagem e, assim, a entrar numa relação de obrigação motivada

racionalmente”.62 Esta concepção da força ilocucionária como uma força que obriga

pressupõe não apenas que sujeitos, agentes e falantes podem referir-se a mais do

que só um mundo, mas também que, quando chegam a um entendimento um

com o outro sobre alguma coisa em um mundo, eles fundam a sua comunicação

num sistema de mundos partilhado em comum. Para Habermas, os insights da

teoria dos atos de linguagem têm de ser associados à teoria da comunicação

proposta por Karl Bühler, em Sprachtheorie (1934). Essa teoria sugere uma fértil

linha de pesquisa para as investigações da linguagem como um mecanismo de

coordenação social. O esquema das funções da linguagem de Bühler – que

coloca a expressão linguística em relação com o falante ou locutor (o emissor),

com o mundo (com os objetos e estados de coisas sobre os quais falamos) e com

o ouvinte (o receptor) – pode ser descrito como uma radicalização da mudança

de paradigma, na filosofia da linguagem, introduzida pela teoria dos atos de

linguagem.63

62. J. Habermas, “Soziales Handeln, Zwecktätigkeit und Kommunikation”, in Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1 [Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung] (1981), Capitulo III [Erste Zwischenbetrachtung], p. 376. Tradução inglesa de Thomas McCarthy: The Theory of Communicative Action. Vol. 1 [Reason and the Rationalization of Society] (1984), Capítulo III [Intermediate Reflections: Social Action, Purposive Activity, and Communication] p. 274 (reimpresso in J. Habermas, On the Pragmatics of Communication (1998), Capítulo 2 [Social Action, Purposive Activity and Communication (1981)], p. 110).

63. Ver J. Habermas, “Social Action, Purposive Activity and Communication (1981)”, in On the Pragmatics of Communication (1998), pp. 107-111; “Zur Kritik der Bedeutungstheorie” (1988) – tradução inglesa de William Mark Hohengarten: “Toward a Critique of the Theory of Meaning”, in Postmetaphysical Thinking. Philosophical Essays. Cambridge (Mass.): The MIT Press, 1992, [Capítulo 4] pp. 57-60, 73-78 (reimpresso in On the Pragmatics of Communication, [Capítulo 6] pp. 277-280, 293-298).

190

Se, para a sua taxonomia dos atos de linguagem, Searle adota o ponto de

vista teórico da dimensão de validade (Geltungsdimension), ele se limita, segundo

Habermas, à perspectiva do locutor e perde de vista, assim, toda a dinâmica da

negociação e do reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validade (Geltungsansprüchen),

ou seja, a própria formação de consenso (die Konsensbildung).64 Ao retomar o modelo

do ato de comunicação de Bühler, Habermas interpreta as funções complexas da

linguagem –apresentar os estados de coisas, exprimir as experiências subjetivas do

locutor e instaurar relações interpessoais – através das pretensões de validade

correspondentes: pretensões de verdade (Wahrheit), de veracidade (Wahrhaftigkeit) e

de correção ou justeza (Richtigkeit). Ele esclarece, assim, ao descrever os

proferimentos linguísticos como atos através dos quais um locutor se entende com

um outro sobre alguma coisa, não apenas o aspecto global da significação de um

proferimento mas o nexo interno existente entre significação e validade. O

conceito de agir comunicativo ou agir orientado para o entendimento pressupõe

toda esta análise pragmático-formal dos atos de linguagem.

As pretensões de validade, através das quais o locutor se refere às

condições de validade dos seus proferimentos, não podem ser definidas

exclusivamente na perspectiva do locutor. Elas formam, para Habermas, o ponto

de convergência do reconhecimento intersubjetivo por parte de todos os

participantes e desempenham, assim, um papel pragmático na dinâmica que

perpassa a oferta de um ato de linguagem e a tomada de posição do ouvinte em

termos de “sim/não”. O locutor realiza um ato de linguagem bem-sucedido

quando o ouvinte aceita a oferta nele contida, ao tomar posição afirmativamente

no que diz respeito a uma pretensão de validade que, em princípio, pode ser

criticada. É, portanto, pela tomada de posição em termos de “sim” ou de “não”,

com a qual um ouvinte aceita ou rejeita as pretensões de validade erguidas pelo

locutor, que se avalia o entendimento (Verständigung), ou seja, o que é visado pelos

participantes da interação. Quando a sua atitude visa o entendimento, o locutor

64. Ver J. Habermas, Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 1 [Handlungsrationalität und gesellschaftliche Rationalisierung], Capitulo III [Erste Zwischenbetrachtung: Soziales Handeln, Zwecktätigkeit und Kommunication], §5 [Zur Klassifikation von Sprechakten], pp. 433-437 (tradução inglesa, pp. 323-327).

191

exige para todo proferimento compreensível não apenas a verdade do enunciado

proferido, mas também a conformidade da significação das palavras que ele

exprime com a da intenção que ele manifesta e a correção do ato de linguagem

relativamente a um contexto normativo existente. Se um ouvinte rejeita uma

oferta compreensível de ato de linguagem, ele contesta a validade do

proferimento sob pelo menos um desses três aspectos (verdade, veracidade e correção

normativa). O ouvinte faz saber, com o seu “não”, que o proferimento não

preenche pelo menos uma de suas funções, e isto porque ele não se ajusta ao

mundo objetivo (o mundo dos estados de coisas existentes), ou ao mundo subjetivo (o

mundo próprio das experiências subjetivas), ou ainda ao mundo social (o nosso mundo

de relações interpessoais legitimamente estabelecidas). Sem o conhecimento das condições

para essa tomada de posição em termos de “sim/não”, o ouvinte não conseguirá

compreender o ato de linguagem. Com seus atos de linguagem, os participantes

da interação referem-se simultaneamente a algo no mundo objetivo, a algo no

mundo subjetivo e a algo no mundo social, comum a todos. Assim, ao se

entenderem uns com os outros sobre algo, os participantes erguem pretensões

de verdade, de veracidade e de correção normativa, conforme se refiram a algo

no mundo objetivo, a algo no mundo subjetivo próprio ou a algo no mundo

social comum.

Ao realizar um ato de linguagem, o locutor não se limita a oferecer ao

ouvinte a ocasião de conhecer sua própria intenção, mas pretende ter razões

suficientes para levar o ouvinte a aceitar o seu proferimento como válido. Que

um locutor possa motivar racionalmente um ouvinte a aceitar a oferta de seu ato

de linguagem não se explica pela validade do que é dito, mas pelo fato de o

locutor assumir a garantia de aduzir eventualmente razões em prol da validade de

seu proferimento. No caso das pretensões de verdade e de correção normativa, o

locutor pode honrar (einlösen) sua garantia discursivamente, ou seja, aduzindo

razões; no caso de pretensões de veracidade, ele pode honrar sua garantia pela

consistência de seu comportamento (assim, se acreditamos que alguém pensa o que diz,

é em função da coerência de sua maneira de agir, e não em função das razões

192

enunciadas).65 A força racionalmente motivadora das ofertas contidas nos atos

de linguagem resulta, assim, do nexo estrutural que existe entre a significação de

um proferimento, suas condições de validade, a pretensão de validade erguida

em relação ao que é dito e as razões mobilizadas para o resgate discursivo dessa

pretensão. O entendimento preenche aqui a função de um mecanismo de

coordenação da ação: os participantes da interação coordenam suas ações ao

reconhecerem intersubjetivamente pretensões criticáveis de validade.

Se a análise das condições de satisfação ou de realização dos atos de

linguagem apresentada por Searle for considerada como um todo, dizia

Habermas em 1988, podemos descobrir no seu sistema, sob uma diferente

descrição, essas três pretensões de validade:

“Numa discussão, Searle sugeriu que se analisasse a pretensão de correção normativa [ou justeza] nos termos de suas preparatory conditions (condições preparatórias); a pretensão de veracidade nos termos de suas sincerity conditions (condições de sinceridade); e a pretensão de verdade nos termos de suas essential conditions (condições essenciais). O fato de que uma tal tradução é possível fala a favor da acuidade e da complexidade das análises de Searle. John Searle foi o primeiro a apreender claramente a estrutura dos atos de linguagem”.66

Mas, e é essa a crítica de Habermas, para uma teoria do agir comunicativo

que coloca como ponto central de seu interesse o entendimento como mecanismo

de coordenação da ação, a tentativa mais recente de Searle de fundar tanto a

noção de significação como a de atos de linguagem numa teoria mais geral da

mente e da ação não representa qualquer avanço.

Em 1991, ao responder às críticas de Habermas, Searle resume a sua

posição:

65. Ver J. Habermas, “Erläuterungen zum Begriff des kommunikativen Handelns” (1982), in Vorstudien und Ergänzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1984, pp. 571-606. Tradução francesa de Rainer Rochlitz: “Explicitations du concept d’activité communicationnelle (1982)”, in J. Habermas, Logique des sciences sociales et autres essais. Paris: PUF, 1987, pp. 413-446.

66. J. Habermas, “Bemerkungen zu J. Searles ‘Meaning, Communication, and Representation’”, in Nachtmetaphysiches Denken. Philosophische Aufsätze. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1988, p. 149. Tradução inglesa in John Searle and his critics. Ernest Lepore e Robert Van Gulick (eds.). Oxford: Basil Blackwell, 1991, Captítulo 2 [Comments on John Searle: “Meaning, Communication and Representation”], p. 26 (reimpresso in J. Habermas, On the Pragmatics of Communication (1998), [Capítulo 5] p. 271).

193

“A estrutura básica da significação e comunicação é como eu a descrevi em Intentionality. Agora em cima dessa fundação básica, as sociedades erigem estruturas elaboradas e complexas de tipos particulares de atos de linguagem, envolvendo regras constitutivas e fatos institucionais dos tipos que eu descrevi em Speech Acts. A visão “intencionalista” de Intentionality não está em conflito com a visão “intersubjetivista” de Speech Acts, mais exatamente, a primeira é a condição de possibilidade da última. Por exemplo, a estrutura básica possibilita atos de linguagem compromissivos nos quais o locutor simplesmente “dá a sua palavra” de que ele vai fazer alguma coisa. Dentro dessa estrutura, instituições sociais permitem tais distinções como aquelas entre promessas, votos [vows], engajamentos [pledges], ameaças, contratos, garantias [warranties] e apostas. (...) A minha tentativa de dar uma exposição Intencionalística da significação [to give an Intentionalistic account of meaning] não tem como propósito uma rejeição do projeto que eu originalmente afirmei em Speech Acts. É antes uma tentativa de ir mais fundo, de dar ao projeto uma fundação mais profunda na Intencionalidade básica da mente. Não estou rejeitando a ideia de que estruturas institucionais atuais, tais como as estruturas sociais de fazer promessas, ou fazer asserções, requerem sistemas de regras constitutivas. Mais precisamente, o que eu estou tentando fazer é localizar as formas mais fundamentais da Intencionalidade que são expressas em diferentes estruturas institucionais em diferentes sociedades. (...) estou tentando mostrar o esqueleto que está sob a pele e roupagem do organismo ilocucionário. Não digo que o esqueleto é tudo que há, mas, eu digo, sim, que há um esqueleto”.67

67. J. R. Searle, “Response: Meaning, Intentionality, and Speech Acts”, in E. Lepore e R. Van Gulick (eds.), John Searle and his critics (1991), pp. 90-91.

194

195

CAPÍTULO 7

A MENTE COMO UM FENÔMENO BIOLÓGICO

Em 1983, ao desenvolver a sua análise dos estados e eventos intencionais,

em Intentionality: An essay in the philosophy of mind, Searle tenta ao mesmo tempo

fundar e completar a sua teoria geral dos atos de linguagem. A questão: “Como a

linguagem se relaciona com a realidade?” é considerada agora como sendo

apenas um caso particular da questão mais fundamental: “Como a mente se

relaciona com a realidade?”. E, se a primeira questão dizia respeito aos diversos

tipos de atos de linguagem, a questão “como a mente se relaciona com a

realidade?” se refere às várias formas de intencionalidade.68

Podemos aceitar, dizia Searle, os fatos evidentes da física – “que o mundo

é inteiramente constituído de partículas físicas em campos de força” – sem negar

a existência, no seio das características físicas do mundo, de fenômenos biológicos tais

como estados de consciência qualitativos internos e uma intencionalidade

intrínseca. O problema das relações entre o corpo e a mente teria, então, uma

solução filosófica muito simples69, que evita tanto o dualismo quanto o

68. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. vii-x, e p. 197. 69. “A forma mais simples do problema mente-corpo é esta: Qual é, exatamente, a relação da

consciência com o cérebro? Há duas partes, uma parte filosófica e uma parte científica, no que diz respeito a esse problema. Eu tenho defendido uma solução simples para a parte filosófica. A solução, eu creio, é consistente com tudo aquilo que sabemos sobre a biologia e sobre como o mundo funciona. É esta: a consciência e outras espécies de fenômenos mentais são causadas por processos neurobiológicos no cérebro, e são realizadas na estrutura do cérebro. Em uma palavra, a mente consciente é causada por processos no cérebro [brain processes] e ela é, ela mesma, uma característica, de nível superior, do cérebro. A parte filosófica

196

materialismo, tais como são tradicionalmente concebidos. O corpo e a mente

interagem, mas não são duas coisas (não são duas substâncias) diferentes. Para

Searle, os fenômenos mentais são biologicamente fundados, ou seja, eles não

apenas são causados por processos neurofisiológicos no cérebro mas são

características ou propriedades do cérebro: “Todos os nossos estados e processos

mentais são causados pela operação de um órgão biológico, o cérebro, e todos [os

nossos estados e processos mentais] são realizados na estrutura do cérebro”.70

Essa visão da mente e das relações entre o corpo e a mente pode ser chamada de

“naturalismo biológico”: naturalismo, explicita mais tarde Searle, em Mind,

Language and Society, “porque, segundo esta visão, a mente faz parte da natureza

[is part of nature]”, e biológico “porque o modo de explicação da existência dos

fenômenos mentais é biológico – por oposição, por exemplo, a computacional,

comportamental, social ou linguístico”.71

Naturalismo Biológico

Searle recusa um modelo, que ele considera grosseiro, das relações causais

entre o cérebro e a mente, que nos inclinaria a aceitar uma espécie de dualismo,

ou seja, a pensar que eventos em um âmbito material – o “físico” – causam

é relativamente fácil, mas a parte científica é muito mais difícil.” (J. R. Searle, “Consciousness”, Annual Review of Neuroscience, Vol. 23 (2000), p. 566; reimpresso in Consciousness and Language. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, [Capítulo 3], p. 46). Ver J. R. Searle, “Le temps”, in Quelle philosophie pour le XXIesiècle? L’Organon du nouveau siècle. Paris: Gallimard/Centre Pompidou, 2001, pp. 205-206, 214-215; Freedom and Neurobiology. Reflections on Free Will, Language and Political Power. New York: Columbia University Press, 2007, [Chapter One: Free Will as a Problem in Neurobiology] p. 40.

70. J. R. Searle, “Langage ou esprit?”, in Un siècle de philosophie 1900-2000. Paris: Gallimard/Centre Pompidou, 2000, p. 368 (grifos nossos). Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), p. ix, e pp. 264-265; Minds, Brains and Science. The 1984 Reith Lectures. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1984, Capítulo 1 [The Mind-Body Problem], pp. 14-15; The Rediscovery of the Mind (1992), p. 1; “The Problem of Consciousness”, Social Research, Vol. 60, No. 1(1993), pp. 5-8; “Why I Am Not a Property Dualist”, Journal of Consciousness Studies, Vol. 9, No. 12 (2002), p. 57.

71. J. R. Searle, Mind, Language and Society (1998), p. 54. Ver J. R. Searle, “Analytic Philosophy and Mental Phenomema”, Midwest Studies in Philosophy, Vol. 6, No. 1 (1981), pp. 405-424 (reimpresso in Consciousness and Language (2002), [Capítulo 12] pp. 203-225); Intentionality (1983), Capítulo 6 [Meaning], p. 160, e Capitulo 12 [Epilogue: Intentionality and the Brain], p. 264; Minds, Brains and Science (1984), Capítulo I [The Mind-Body Problem] e Capítulo II [Can Computers Think?], pp. 13-41; The Rediscovery of the Mind (1992), Capítulo I [What’s Wrong with the Philosophy of Mind], pp. 1-26, e Capítulo IV [Consciouness and Its Place in Nature], pp. 83-109.

197

eventos em um outro âmbito não material – o “mental”. Ao rejeitar não só o

dualismo, mas também o materialismo, ele afirma que, no sentido estrito de

“causado por” e “realizado em”, os fenômenos mentais são causados por

processos neuronais de nível-inferior no cérebro (lower-level neuronal processes in the

brain) e realizados na estrutura do cérebro, ou seja, são características (de nível

superior) do cérebro.72 A distinção tradicional entre a mente e o corpo é

abandonada por Searle:

“Fomos (...) amaldiçoados com esse dualismo, com a ideia de que há uma distinção fundamental entre a mente e o corpo, entre o mental e o físico. E (...) a situação se torna ainda pior com aqueles filósofos que dizem que, além dos dois mundos, também vivemos em um terceiro mundo. Filósofos tais como Frege e Popper, e mais recentemente Jürgen Habermas, têm dito que teríamos de pensar a realidade como dividida em três mundos diferentes. A minha posição é que nunca deveríamos ter começado a contar. Descartes começou a contar e chegou a dois, Frege chegou a três. Eu estou dizendo “não comecem a contar”. Vivemos (...) em [exatamente] um mundo (...). Isso é suficiente para nós. E a estrutura básica desse mundo é em grande parte tal como é descrita pela física e a química. A realidade última consiste em entidades que achamos conveniente chamar de “partículas”. São organizadas em sistemas. Esses sistemas são definidos por suas relações causais, alguns desses sistemas são sistemas orgânicos, alguns dos sistemas orgânicos têm consciência. Com a consciência vem a

intencionalidade (...)”.73

Para desmistificar um pouco todo o problema da mente-corpo, Searle

considera primeiro alguns exemplos muito triviais e familiares como o da

liquidez da água e o da solidez da mesa:

“Considerem a relação das propriedades líquidas da água com o comportamento das moléculas individuais. Ora, não podemos dizer de nenhuma molécula individual que ela é molhada [wet], mas podemos dizer que as propriedades líquidas da água são causadas pelo comportamento molecular, e que elas são realizadas na coleção de moléculas. Vamos considerar cada uma destas relações. Causada por: a relação entre o

72. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. ix, 265; Minds, Brains and Science (1984), pp. 20-22; The Rediscovery of the Mind (1992), p. 2; Mind, Language and Society (1998), p. 54.

73. J. R. Searle, “Social Ontology and the Philosophy of Society”, Analyse & Kritik, Vol. 20 (1998), pp. 143-144. Em 2004, no último parágrafo de Mind: A Brief Introduction (Oxford: Oxford University Press), Searle mais uma vez afirma: “We do not live in several different, or even two different, worlds, (...). Rather, there is just one world; it is the world we all live in, and we need to account for how we exist as a part of it.” (p. 304); ver também J. R. Searle, Freedom and Neurobiology (2007), [Introduction: Philosophy and the Basic Facts] pp. 21-23.

198

comportamento molecular e as propriedades físicas, de superfície, da água é claramente causal. Se alteramos o comportamento molecular, causamos uma alteração nas propriedades de superfície; e teremos, então, gelo ou vapor (...). Além disso, as próprias características de superfície da água funcionam causalmente. No seu estado líquido, a água é molhada [wet], ela jorra, podemos bebê-la, podemos nos lavar nela etc. Realizada em: a liquidez de um balde de água não é algum suco extra secretado pelas moléculas H2O. Quando descrevemos a “coisa” [the stuff] como líquida, estamos apenas descrevendo aquelas mesmas moléculas em um nível de descrição mais alto do que o da molécula individual. A liquidez (...) é realizada na estrutura molecular da substância em questão. Portanto, se alguém perguntasse: “Como pode haver uma relação causal entre o comportamento molecular e a liquidez se a mesma “coisa” [stuff] é ao mesmo tempo líquida e uma coleção de moléculas?”, a resposta é que podem existir relações causais entre fenômenos, em níveis diferentes, na mesmíssima “coisa” [stuff] subjacente. De fato, uma tal combinação de relações é muito comum na natureza (...). Para generalizar aqui, poderíamos dizer que dois fenômenos podem estar relacionados tanto por causação como por realização, contanto que estejam assim relacionados em diferentes níveis de descrição” (Intentionality, pp. 265-266).

Para Searle, esses exemplos fornecem os modelos adequados para explicar

as relações entre a mente e o cérebro. Se, para qualquer sistema físico,

precisamos da distinção micro/macro, então também precisamos, pelas mesmas

razões, dessa distinção (micro/macro) para o cérebro. Como propriedades ou

características do cérebro, os estados mentais têm dois níveis de descrição – um nível

mais alto, em termos mentais, e um nível mais baixo, em termos fisiológicos.

Embora Searle reconheça que os problemas empíricos e conceituais de descrever

as relações entre os estados mentais e o cérebro são muito complexos, não

existem, segundo ele, obstáculos lógicos, filosóficos ou metafísicos para explicar

as relações entre a mente e cérebro em termos que nos são muito familiares a

partir do resto da natureza.74 Se há uma tese que Searle gostaria de transmitir,

essa tese é a seguinte: “(...) que uma propriedade seja mental não implica que ela

não seja física; (...) que uma propriedade seja física não implica que ela não seja

mental”.75

74. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. 266-268; Mind, Language and Society (1998), pp. 53-57, 95-96; “Neuroscience, Intentionality and Free Will. Reply to Habermas”, Philosophical Explorations, Vol. 10, No. 1 (2007), pp. 71-72.

75. J. R. Searle, The Rediscovery of the Mind (1992), pp. 14-15.

199

Mas esse modelo de “causado por” e “realizado em” apenas levanta a

próxima questão:

“[C]omo pode a Intencionalidade funcionar causalmente? (...), como pode a própria Intencionalidade ter qualquer eficácia causal? Quando levanto o meu braço minha intenção-em-ação [intention in action] causa o braço a se erguer. Este é um caso de um evento mental causando um evento físico. Mas (...) como poderia uma tal coisa ocorrer?” (Intentionality, p. 268). “Como pode um estado de consciência humana causar um movimento corporal? [How can a state of human consciousness cause a bodily movement?]”.76

Searle responde invocando diferentes níveis de descrição: “No

micronível, a intenção-em-ação [intention in action] é causada por processos

neuronais e realizada nesses processos, e o movimento corporal é causado por e

realizado nos processos fisiológicos resultantes” (Intentionality, p. 270).77 Ou seja:

“Os processos neurobiológicos que causam a intenção-em-ação causam por sua

vez uma série de mudanças fisiológicas que causam e realizam os movimentos do

meu braço”78, e Searle apresenta, no último capítulo de Intentionality, o seguinte

diagrama (que ele retoma, em 2001, no último capítulo de sua obra Rationality in

Action e, em 2004, em Mind: A Brief Introduction):

t1 causa t2 intenção-em-ação ────────────────────► movimento corporal ▲ ▲ causam e causam e realizam realizam causam descargas neuronais ───────────────────► mudanças fisiológicas

(Intentionality, p. 270; Rationality in Action, p. 282; Mind: A Brief Introduction, p. 210.)

Tal como é representada nesse diagrama, a estrutura inteira é

determinística em cada estágio; os fenômenos em t1 e t2, dizia Searle, “são os

76. J. R. Searle, Freedom and Neurobiology (2007), [Chapter One: Free Will as a Problem in Neurobiology] p. 48.

77. Ver também J. R. Searle, Rationality in Action (2001), pp. 44-45, 65, 98. 78. J. R. Searle, Rationality in Action, Capítulo 9 [Consciousness, Free Action, and the Brain], p. 282.

Ver também J. R. Searle, Mind: A Brief Introduction (2004), Capítulo 7 [Mental Causation], pp. 208-211.

200

mesmos fenômenos descritos em diferentes níveis de descrição. (...) poderíamos

também traçar setas diagonais que (...) mostrariam que a intenção-em-ação

[intention in action] causa mudanças fisiológicas e que as descargas neuronais

causam movimentos corporais” (Intentionality, pp. 269-270).79

Searle sabia muito bem que as suas analogias eram imperfeitas, mas ele

estava convencido de que, para oferecer uma explicação adequada do cérebro, os

princípios escolhidos teriam de reconhecer a realidade da intencionalidade do

cérebro e explicar as suas capacidades causais:

“É claro que as analogias que usei aqui, como a maior parte das analogias, são imperfeitas. Especificamente, poder-se-ia objetar que as explicações da liquidez, da solidez etc., adéquam-se a uma concepção espaço-temporal bem estabelecida de como o mundo funciona, de uma maneira que nenhuma explicação dos estados e eventos mentais poderia adequar-se; que, ao fazer essa analogia, eu pretendo que estados mentais têm uma característica que, de fato, eles não possuem, a saber, localizações espaciais bem definidas. Mas esta objeção é mesmo tão devastadora? Penso que ela se apoia na nossa atual ignorância de como o cérebro funciona. Suponhamos que tivéssemos uma ciência do cérebro perfeita, de tal modo que soubéssemos em detalhe o modo como funções cerebrais produziam estados e eventos mentais. Se tivéssemos um conhecimento perfeito de como o cérebro produzia, por exemplo, sede ou experiências visuais, não hesitaríamos em atribuir a tais experiências localizações no cérebro, caso as evidências apoiassem tais atribuições. (...). (...) A minha própria especulação, e no estado atual do nosso conhecimento da neurofisiologia só pode ser uma especulação [grifos nossos], é que, se viermos a compreender a operação do cérebro em produzir Intencionalidade, é provável que isso se dê com base em princípios que são muito diferentes daqueles que agora empregamos, tão diferentes quanto os princípios da mecânica quântica são [diferentes] dos princípios da mecânica newtoniana; mas quaisquer que sejam os princípios, para nos dar uma explicação adequada do cérebro, [esses princípios] terão de reconhecer a realidade da Intencionalidade do cérebro e explicar as suas capacidades causais” (Intentionality, pp. 270-272).

Searle não defendeu ou disse que a intencionalidade podia ser “definida”

em termos de “propriedades de descargas neuronais”:

79. Segundo Searle, diagramas tais como este são úteis, mas podem induzir em erro “se sugerem que o mental está no topo [por cima], como o glacê no bolo [if they suggest that the mental level is on top, like the frosting on the cake]” (J. R. Searle, Mind: A Brief Introduction (2004), Capítulo 7 [Mental Causation] p. 211).

201

“Minha posição é que estados tais como sede, fome, percepções visuais e assim por diante são causados por processos neuronais e, ao mesmo tempo, são realizados no sistema do cérebro. O ponto da analogia com a liquidez e a solidez é que estas relações formais – micro mecanismos produzindo características de sistema [system features] apesar de o sistema ser constituído pelos microelementos – são comuns na natureza e não algo peculiar às relações entre o mental e o neurobiológico. A “desanalogia” [disanalogy], como eu argumentei em vários dos meus escritos, é que, no caso da solidez e da liquidez, a redução causal leva a uma redução ontológica. Por exemplo, o fato de que podemos dar uma explicação causal completa dos fenômenos de superfície da solidez de um objeto material em termos de comportamento molecular nos leva a dizer que a solidez é apenas um certo tipo de comportamento molecular. Enquanto que, no caso da consciência e da intencionalidade, a redução causal não leva a uma redução ontológica [grifos nossos].80 O fato, por exemplo, de que podemos dar uma explicação causal de impressões conscientes de sede em termos de descargas neuronais não mostra que a sede é redutível a processos neuronais (...). Eu critiquei muitas vezes a posição reducionista que afirma que ela faz isso. (...) ver

especialmente The Rediscovery of the Mind [1992] e The Mystery of Consciousness [1997]81 para discussões extensas de todas estas questões”.82

80. Ou seja, segundo Searle, a “consciência” é causalmente redutível e ontologicamente irredutível: “Consciousness is causally reducible to brain processes, because all the features of consciousness are accounted for causally by neurobiological processes going on in the brain, and consciousness has no causal powers of its own in addition to the causal powers of the underlying neurobiology. But in the case of consciousness, causal reducibility does not lead to ontological reducibility [grifos nossos]. From the fact that consciousness is entirely accounted for causally by neuron firings, for example, it does not follow that consciousness is nothing but neuron firings. Why not? What is the difference between consciousness and other phenomena that undergo an ontological reduction on the basis of a causal reduction, phenomena such as colour and solidity? The difference is that consciousness has a first-person ontology; that is, it only exists as experienced by some human or animal, and therefore, it cannot be reduced to something that has a third-person ontology, something that exists independently of experiences. It is as simple as that. (...) I insist that from everything we know about the brain, consciousness is causally reducible to brain processes; and for that reason I deny that the ontological irreducibility of consciousness implies that consciousness is something ‘over and above’, something distinct from, its neurobiological base. No, causally speaking, there is nothing there, except the neurobiology, which has a higher level feature of consciousness. (...). ‘Consciousness’ does not name a distinct, separate phenomenon, something over and above its neurobiological base, rather it names a state that the neurobiological system can be in.” (J. R. Searle, “Why I Am Not a Property Dualist”, Journal of Consciousness Studies, Vol. 9, No. 12 (2002), p. 60); ver J. R. Searle, Mind: A Brief Introduction (2004), Capítulo 4 [Consciousness Part I: Consciousness and the Mind-Body Problem], pp. 107-132.

81 J. R. Searle, The Mystery of Consciousness. New York: A New York Review Book, 1997 (London: Granta Books, 1997).

82. “A Letter from John Searle” [On Hilary Putnam’s Farewell Lecture], The Harvard Review of Philosophy, IX (2001), p. 5. No último capítulo [Consciousness, Free Action, and the Brain] do seu livro Rationality in Action (2001), Searle recorda o que tinha dito: “Todos os nossos estados de consciência são causados por processos neuronais de nível-inferior no cérebro, e eles mesmos são características [de nível superior] do cérebro [do sistema do cérebro]” (p. 272).

202

A posição de Searle consiste, assim, em reconhecer que a consciência e a

intencionalidade são uma parte da biologia humana tal como o são a digestão ou a

circulação do sangue:

“É um fato objetivo acerca do mundo que ele contém alguns sistemas, a saber, cérebros, com estados mentais subjetivos, e é um fato físico acerca de tais sistemas que eles têm propriedades mentais. A solução correta para o “problema [da] mente-corpo” não consiste em negar a realidade dos fenômenos mentais, mas em apreciar de modo adequado a sua natureza biológica” (Intentionality, p. ix).83

Mas reparem, observava ainda Searle, como o vocabulário torna difícil, se

não impossível, dizer o que ele quer significar usando a terminologia tradicional:

“Quando eu digo que a consciência [grifo nosso] é uma propriedade física de nível superior do cérebro, a tentação é a de entender isso como significando física-como-oposta-a-mental, como significando que a consciência só deveria ser descrita em termos objetivos, comportamentais ou neurofisiológicos. Mas o que eu realmente quero significar é que a consciência enquanto consciência, enquanto mental, enquanto subjetiva, enquanto qualitativa é física, e física porque mental. Tudo isso mostra, eu creio, a inadequação do vocabulário tradicional” (The Rediscovery of the Mind, p. 15).84

E ele explicitava mais uma vez a sua posição:

“Eu considero o cérebro humano como um órgão igual a qualquer outro, como um sistema biológico. A sua característica específica, no que diz

83. Isso não significa para Searle negar que a nossa cultura forma as nossas mentes individuais: “Mas a cultura não é alguma coisa em oposição à biologia. A cultura é, antes, a forma que a biologia toma em diferentes comunidades. Uma cultura pode diferir de uma outra cultura, mas há limites no que diz respeito às diferenças. Cada cultura tem de ser uma expressão da característica comum biológica subjacente [underlying biological commonality] da espécie humana.” (J. R. Searle, Mind: A Brief Introduction (2004), [Epilogue: Philosophy and the Scientific World-View] p. 302).

84. Em 1997, em The Mystery of Consciousness, Searle explicita que o que ele estava tentando fazer era redefinir o mapa conceitual: “(...) se você tem um mapa no qual existem apenas dois territórios mutuamente exclusivos, o “mental” e o “físico”, você tem um mapa inútil [hopeless] e nunca encontrará o seu caminho. No mundo real, há muitos territórios – econômico, político, meteorológico, atlético, social, matemático, químico, físico, literário, artístico etc. Todos esses territórios são partes de um mundo unificado [one unifified world]. Isso é um ponto óbvio, mas é muito difícil compreender isto devido ao poder de nossa herança cartesiana. Em minha experiência, alunos de graduação podem compreender esse ponto muito facilmente, os de pós-graduacão mal o podem compreender, mas para os filósofos profissionais isso parece muito difícil. Eles pensam que a minha posição tem de ser ou o “materialismo” ou o “dualismo de propriedade”. Como poderia alguém não ser nem materialista nem dualista – uma ideia tão absurda quanto não ser nem um Republicano, nem um Democrata!” (p. 195).

203

respeito à mente, a característica que o diferencia de modo notável de outros órgãos biológicos, é a sua capacidade de produzir e manter toda a enorme variedade da vida de nossa consciência. Por consciência eu não entendo a subjetividade passiva da tradição cartesiana, mas sim todas as formas de nossa vida consciente – de lutar, fugir, se alimentar e fornicar [from the famous “four f’s” of fighting, fleeing, feeding and fornicating] a dirigir carros, escrever livros e se coçar quando sentimos comichão [to driving cars, writing books, and scratching our itches]. (...) O estudo da mente é o estudo da consciência [grifos nossos], no mesmo ou quase no mesmo sentido em que a biologia é o estudo da vida” (The Rediscovery of the Mind, p. 227).85

A noção de objetividade e o contraste entre objetividade e subjetividade são

muito familiares. Buscamos verdades científicas que são “objetivas” por

oposição a “subjetivas”, mas haveria, segundo Searle, uma confusão no que diz

respeito aos diferentes sentidos da distinção entre “objetivo” e “subjetivo”, e ele

tenta, então, elucidar o que esses termos significam e dissolver essa confusão. É

necessário, dizia ele, não apenas distinguir a objetividade ontológica da subjetividade

ontológica, mas também distinguir a objetividade epistêmica da subjetividade epistêmica.86

O sentido ontológico da distinção entre “objetivo” e “subjetivo” refere-se ao status

do modo de existência de tipos de entidades no mundo: montanhas, moléculas,

85. Em 2004, em Mind: A Brief Introduction, Searle expõe a sua visão sobre a consciência – o naturalismo biológico – como um conjunto de quatro teses:

“1. Os estados conscientes, com sua ontologia subjetiva, de primeira pessoa, são fenômenos reais no mundo real. Não podemos fazer uma redução eliminativa [eliminative reduction] da consciência, mostrando que ela é apenas uma ilusão. Nem podemos reduzir a consciência à sua base neurobiológica, porque uma tal redução de terceira pessoa deixaria de fora a ontologia de primeira pessoa da consciência.

2. Os estados conscientes são inteiramente causados por processos neurobiológicos no cérebro. Os estados conscientes são, portanto, causalmente redutíveis a processos neurobiológicos. Não têm absolutamente nenhuma vida própria [no life of their own], independente da neurobiologia. Causalmente falando, esses estados não são algo “por cima e no topo” de processos neurobiológicos [they are not something “over and above” neurobiological processes].

3. Os estados conscientes são realizados no cérebro como características do sistema do cérebro, e existem assim em um nível mais alto que o dos neurônios e sinapses. Neurônios individuais não são conscientes, mas porções do sistema do cérebro que se compõem de neurônios são conscientes [but portions of the brain system composed of neurons are conscious].

4. Porque estados conscientes são características reais do mundo real, eles funcionam causalmente” (Mind: A Brief Introduction, pp. 113-114); ver também J. R. Searle, “Biological Naturalism”, in The Blackwell Companion to Consciousness. Max Velmans e Susan Schneider (eds.). Oxford: Blackwell, 2007, [Capítulo 25] pp. 325-329.

86. Ver J. R. Searle, The Construction of Social Reality (1995), Capítulo 1 [The Building Blocks of Social Reality], pp. 7-8; “What is an institution?”, Journal of Institutional Economics, Vol. 1, No. 1 (2005), pp. 3-5.

204

geleiras e vulcões “têm um modo objetivo de existência” – ou uma ontologia objetiva –

“porque o seu modo de existência não depende de ser experienciado [on being

experienced] por um sujeito” (Mind, Language and Society, p. 44); mas “dores,

cócegas, coceiras, bem como pensamentos e sentimentos têm um modo subjetivo de

existência” – ou uma ontologia subjetiva – “porque só existem enquanto

experienciados [as experienced] por sujeitos humanos ou animais” (Making the Social

World, p. 18). Mas esta distinção entre a objetividade ontológica e a subjetividade

ontológica não é idêntica à distinção entre a objetividade epistêmica e a subjetividade

epistêmica. Assim, se eu digo: “Rembrandt nasceu em 1609”, essa afirmação, no

que diz respeito ao conhecimento, é objetiva – ou seja, ela é epistemicamente objetiva –

“porque podemos atestar sua verdade ou falsidade sem qualquer referência às

atitudes e sentimentos do observador” (Rationality in Action, p. 55); mas, se eu

digo: “Rembrandt era um pintor melhor do que Rubens”, trata-se simplesmente

para Searle de uma questão de gosto ou de opinião – ou seja, essa afirmação é

epistemicamente subjetiva – porque sua verdade ou falsidade “depende das atitudes,

preferências e avaliações dos observadores” (Mind, Language and Society, p. 44). A

subjetividade ontológica não implica necessariamente a subjetividade epistêmica:

o fato de a consciência, por exemplo, ter um modo subjetivo de existência não nos

impede, conclui Searle, “de ter uma ciência objetiva da consciência” (Mind,

Language and Society, p. 45).87

A tese básica que Searle defende aqui – “uma tese que difere do que é

correntemente padrão e ortodoxo na ciência cognitiva” – é a seguinte:

“Suponham que tivéssemos uma ciência completa da física, química e biologia. Então, finalmente [at the end of the day], certas características [features] seriam estabelecidas como reais, independentes-do-observador [observer-independent], ou [como] características intrínsecas [intrinsic features] do mundo real. Na física, essas características incluiriam, por exemplo, a gravitação e o eletromagnetismo. Na biologia, elas incluiriam, por exemplo, a mitose, a meiose e a fotossíntese. A minha pretensão é a de que elas também incluiriam a consciência e a intencionalidade. A consciência e a

87. Ver J. R. Searle, “Social ontology: Some basic principles”, Anthropological Theory, Vol. 6, No. 1 (2006), pp. 12-15; “Reality and social construction. Reply to Friedman”, Anthropological Theory, Vol. 6, No. 1 (2006), p. 82; “Reality and relativism. On a which? hunt”, Anthropological Theory, Vol. 6, No. 1 (2006), pp. 116-119; Freedom and Neurobiology (2007), [Chapter Two: Social Ontology and Political Power] pp. 82-84; Making the Social World (2010), pp. 17-18.

205

intencionalidade, embora sejam características da mente, são independentes-do-observador no sentido de que, se estou consciente ou tenho um estado intencional como a sede, essas características não dependem, para sua existência, do que qualquer um fora de mim pensa [on what anyone outside me thinks]. Não são, como as frases de uma língua, apenas as coisas que são porque os de fora [outsiders] pensam que é isso o que elas são [think that is what they are]” (Mind, Language and Society, pp. 94-95).

Intencionalidade e Consciência

É possível – e foi justamente o que Searle fez em Intentionality – descrever

a estrutura dos fenômenos intencionais sem estudar explicitamente a consciência.

No entanto, em “What Is an Intentional State?” (1979), Searle já tinha dito que

“somente seres capazes de estados conscientes são capazes de estados

Intencionais [only beings capable of conscious states are capable of Intentional states]”88

embora não soubesse ainda como demonstrar isso. Em The Rediscovery of the Mind,

Searle não apenas afirma que “não há como estudar os fenômenos da mente sem

estudar implicitamente ou explicitamente a consciência” (p. 18), mas também

que a consciência tem de ser enfatizada, porque em um estudo da mente a

consciência é a noção central.89 Ou seja:

“De uma maneira ou de outra, todas as outras noções mentais – tais como intencionalidade, subjetividade, causalidade mental, inteligência, etc. – só podem ser plenamente compreendidas como mentais por meio de suas relações com a consciência” (The Rediscovery of the Mind, p. 84).

Qual é, então, a relação entre a consciência e a intencionalidade? Tanto

em Intentionality, como posteriormente, em The Rediscovery of the Mind, The

Construction of Social Reality, Mind, Language and Society e Making the Social World,

Searle afirma que nem todos os estados intencionais são conscientes (por

exemplo, temos crenças mesmo quando estamos dormindo profundamente), e

88. J. R. Searle, “What Is an Intentional State?”, Mind, Vol. 88, No. 349 (1979), p. 92; reproduzido in Husserl, Intentionality and Cognitive Science. Hubert L. Dreyfus (ed.). Cambridge (Mass.): The MIT Press, 1982, [Capítulo 14] p. 276; ver J. R. Searle, Freedom and Neurobiology (2007), [Introduction: Philosophy and the Basic Facts] p. 15.

89. Ver J. R. Searle, Mind, Language and Society (1998), Capítulo 2 [How We Fit into the Universe: The Mind as a Biological Phenomenon], pp. 40-41; N. C. Manson, “Consciousness”, in B. Smith (ed.), John Searle (Cambridge: Cambridge University Press, 2003), [Capitulo 6] pp. 128-131, 140-151.

206

que nem todos os estados conscientes são intencionais (existem sentimentos de

ansiedade ou de euforia para os quais não há nenhuma resposta à questão: “Sobre

o que seriam esses estados mentais conscientes?”). Porém, se, em Intentionality,

Searle afirmava que a classe dos estados mentais conscientes e a classe dos

estados mentais intencionais podem coincidir, mas não são idênticas e uma não

está incluída na outra90, em The Rediscovery of the Mind, ele já acentua que há uma

ligação conceitual entre a consciência e a intencionalidade91 e, em Mind, Language and

Society, ele volta a afirmar que essa ligação é essencial: “(...) só compreendemos a

intencionalidade em termos de consciência. Existem muitos estados intencionais

que não são conscientes, mas eles são a espécie de coisa que potencialmente

poderia ser consciente” (p. 65). A relação entre a consciência e a

intencionalidade, dizia Searle, é a seguinte:

“[E]stados cerebrais que são não-conscientes [that are nonconscious] podem ser compreendidos como estados mentais apenas na medida em que os compreendemos como capazes, em princípio, de gerar [ou ocasionar] estados conscientes. (...) Tenho de dizer “em princípio” porque temos de reconhecer que existe toda uma variedade de estados que a pessoa não pode trazer à consciência devido ao recalque, às lesões cerebrais e assim por diante. Mas, se um estado é um genuíno estado mental inconsciente, então tem de ser pelo menos a espécie de estado que poderia ser consciente. É necessário, portanto, distinguir os estados não-conscientes do cérebro, tais como a secreção do neurotransmissor norepinefrina na fenda sináptica, dos estados mentais inconscientes que são realizados no cérebro – tais como a minha crença, quando estou dormindo, de que Clinton é presidente. Mas, então, já que quando estou totalmente inconsciente a única realidade do cérebro que ocorre [the only occurrent reality of the brain] é não-consciente, que fato sobre esses estados não-conscientes torna alguns deles estados mentais? A única resposta é que certos estados não-conscientes do cérebro são capazes de causar fenômenos mentais conscientes. (...) Esta concepção do inconsciente se opõe às posições prevalecentes na ciência cognitiva. Chomsky, por exemplo, acredita que, quando crianças aprendem uma língua humana natural [o inglês, o francês, o português...], elas o fazem porque estão seguindo um conjunto de regras inconscientes da Gramática Universal, mas estas regras não são as espécies de coisas que uma criança poderia trazer à consciência. (...) O linguista poderia formular a regra em um vocabulário técnico. O linguista poderia dizer que a criança segue a regra “Mover alfa” [“Move alpha”], mas não é presumido com isso que a criança esteja silenciosamente pensando consigo mesma “Mover alfa”. (...) a formulação “Mover alfa” é a maneira como o linguista

90. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. 1-2. 91. J. R. Searle, The Rediscovery of the Mind (1992), p. 132.

207

representa processos no cérebro que nem a criança nem mais ninguém poderia trazer à consciência. (...) Penso que a visão de que temos estados mentais inconscientes que explicam causalmente nosso comportamento, estados que são mentais e, no entanto, não a espécie de estado que poderia funcionar conscientemente, é incoerente. A visão é incoerente porque não pode responder à pergunta: que fato sobre esses processos cerebrais os torna mentais ou os faz ter as características de estados mentais intencionais? Qual a diferença entre esses processos cerebrais não-conscientes que não são de forma alguma mentais e genuínos estados mentais inconscientes que, quando inconscientes, são estados do cérebro? Resumindo, um estado mental inconsciente tem de ser conscientemente pensável para ser um estado mental mesmo como oposto a um processo cerebral não-consciente” (Mind, Language and Society, pp. 86-88).92

Parte do prazer de escrever a respeito dos atos de linguagem, confessava

Searle, é de não haver quanto a esse objeto de investigação – era o que ele

pensava – qualquer peso da tradição filosófica. Mas, quando se trata da

intencionalidade, a situação é completamente diferente. O que fazer, então, em

relação a todo esse passado e, mais especificamente, em relação a uma das

principais correntes filosóficas do século passado, a fenomenologia de Edmund

Husserl? A resposta de Searle não chega a surpreender:

“A minha própria abordagem tem sido a de simplesmente ignorar esse ilustre passado, em parte porque não conheço a maioria dos textos tradicionais sobre Intencionalidade e em parte devido à convicção de que a minha única esperança de solucionar os problemas que primeiro me conduziram a este estudo é a de continuar, sem hesitar, minhas próprias investigações” (Intentionality, p. ix).93

92. Ver N. Chomsky, “Language and Mind: Current Thoughts on Ancient Problems” (Universidade de Brasilia, novembro de 1996). Tradução de Lúcia Lobato: Linguagem e mente. Pensamentos atuais sobre antigos problemas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

93. Ver R. McIntyre, “Searle on Intentionality”, Inquiry, Vol. 27, No. 1 (1984), pp. 468-483. Em 2001, em “Meaning, Mind and Reality”, Searle dizia que sempre fica espantado ao ler que as suas posições foram em grande parte influenciadas por autores que pertencem à tradição fenomenológica, especialmente Husserl: “Nada poderia estar mais longe da verdade. Nunca li Husserl, a não ser uma peça, a sua primeira “Investigação Lógica” e não achei que ela pudesse me ajudar. A minha teoria da intencionalidade veio diretamente da minha teoria dos atos de linguagem, ela mesma influenciada, é claro, por Frege, Wittgenstein e especialmente Austin” (J. R. Searle, “Meaning, Mind and Reality”, Revue internationale de philosophie, No. 216 (2001/2), p. 175). Para a noção de intencionalidade em Husserl, ver Th. Calvet de Magalhães, “Phénoménologie Transcendantale et Herméneutique”, Kriterion, No. 77 (1986), pp. 45-75.

208

Assim, com exceção de suas respostas explícitas a Wittgenstein94 e a

Frege95, não se trata para Searle de responder, em Intentionality, a toda essa

tradição filosófica.

Ao considerar a filosofia da linguagem como um ramo da filosofia da mente,

Searle passa a analisar noções semânticas fundamentais como a significação em

termos de noções ainda mais fundamentais, tais como crenças, desejos e

intenções.96 Uma teoria da linguagem nunca será completa, segundo ele, sem

uma análise das relações entre a mente e a linguagem, e, mais especificamente,

sem uma análise do modo como a significação – o que os locutores querem

significar com seus proferimentos – assenta na intencionalidade intrínseca

(biologicamente mais fundamental) da mente (cérebro). O objetivo de Searle era,

portanto, o de elaborar uma teoria filosófica da intencionalidade para completar,

e ao mesmo tempo fundar, a sua teoria geral dos atos de linguagem.

Mas, antes mesmo de apresentar a estrutura da intencionalidade, é

necessário ainda mencionar uma distinção, que é importante para Searle, entre

intencionalidade intrínseca, intencionalidade derivada e intencionalidade como-se. Em

The Rediscovery of the Mind, Searle insiste que é necessário não apenas fazer uma

distinção entre a intencionalidade que os humanos (e alguns outros animais) têm

em virtude de sua natureza biológica – a intencionalidade intrínseca – e toda

espécie de intencionalidade derivada – a intencionalidade derivada das palavras e

enunciados, das figuras ou dos quadros (pictures), dos diagramas, dos gráficos –

mas também fazer uma distinção entre esses dois tipos de intencionalidade

genuína e as atribuições metafóricas de intencionalidade – a intencionalidade

“como-se” (as-if intentionality). As atribuições metafóricas de intencionalidade –

como, por exemplo, nas seguintes afirmações: “A grama no meu jardim tem

sede, muita sede”; “As plantas de meu jardim têm fome de nutrientes” – não têm

nada de nocivo, enganador ou de filosoficamente errado. O único erro, dizia

Searle, é o de entender literalmente essas afirmações.

94. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), Capítulo 5 [The Background], pp. 141-159; “Wittgenstein and the Background”, American Philosophical Quarterly, Vol. 48, No. 2 (2011), pp. 119-128.

95. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), Capítulo 8 [Are meanings in the head?], pp. 197-230. 96. Ver J. R. Searle, “Intentionality and Method”, The Journal of Philosophy, Vol. 78, No. 11

(1981), p. 720; Intentionality (1983), pp. vii, 160-161; The Rediscovery of the Mind (1992), p. xi.

209

Considerem, então, as pretensões que foram feitas nestas três afirmações: 1. Estou com sede agora, muita sede. 2. Em francês, “J’ai grand soif en ce moment” quer dizer eu estou com muita

sede agora. 3. A grama no meu jardim tem sede, muita sede.

Todas estas três afirmações fazem referência ao fenômeno intencional da sede,

segundo Searle, mas o status das três atribuições é muito diferente. O primeiro

enunciado “atribui intencionalidade intrínseca a mim mesmo” ou, como Searle

também dizia, é usado literalmente para atribuir a si mesmo um estado mental

intencional real: “Se eu tenho o estado que me é atribuído, eu o tenho

independentemente do que qualquer outro pense sobre isso” (Mind, Language and

Society, p. 93). O segundo enunciado “também atribui literalmente

intencionalidade”, mas a intencionalidade da frase em francês (“J’ai grand soif en

ce moment”), esclarecia Searle, “não é intrínseca a essa frase particular que é

construída apenas como um objeto sintático”97; ela é derivada da intencionalidade

intrínseca dos falantes do francês ou dos usuários da língua francesa, ou seja,

essa frase poderia ter sido usada para significar algo bem diferente ou não

significar nada mesmo, e nesse sentido, dizia Searle, a sua significação não é

intrínseca, mas é derivada de usuários ou agentes que têm intencionalidade

intrínseca: “Toda significação linguística é intencionalidade derivada [All linguistic

meaning is derived intentionality]” (Mind, Language and Society, p. 93). O terceiro

enunciado é completamente diferente: esse enunciado é usado apenas

metaforicamente, ou de maneira figurativa, para atribuir a sede à grama no meu

jardim: “Posso, por analogia, de modo completamente inofensivo, dizer que a

grama tem sede, mesmo se não suponho em momento algum que ela está

literalmente com sede” (The Rediscovery of the Mind, p. 78). A “sede” que a grama

manifesta é puramente como-se, ou seja, o terceiro enunciado não atribui

literalmente nenhuma intencionalidade, intrínseca ou derivada, mas é apenas

usado para falar de maneira figurativa ou metaforicamente. Para evitar qualquer

97. J. R. Searle, The Rediscovery of the Mind (1992), [Capítulo 3] p. 79.

210

confusão, é importante acentuar que a intencionalidade “como-se” não é um

tipo de intencionalidade:

“Assim, há dois tipos de intencionalidade genuína, [a intencionalidade] intrínseca e [a intencionalidade] derivada, mas a intencionalidade como-se não é um terceiro tipo. Atribuições de intencionalidade como-se são metafóricas. Dizer que uma entidade tem intencionalidade como-se é apenas uma maneira de dizer que ela se comporta como se tivesse intencionalidade, quando [literalmente falando] não tem [when it does not]” (Mind, Language and Society, p. 93).98

A distinção entre intencionalidade intrínseca e intencionalidade derivada é,

para Searle, um caso especial de uma distinção que ele considera muito mais

fundamental, a distinção entre características do mundo que são independentes-do-

observador como, por exemplo, “força”, “massa”, “atração gravitacional”, e

características que são dependentes-do-observador como, por exemplo, ser uma

cadeira, ou ser um dia lindo para um piquenique, ou ser uma frase do português:

“A intencionalidade intrínseca é independente-do-observador [observer-independent] – eu tenho meu estado de fome independentemente [regardless] do que qualquer observador pensa. A intencionalidade derivada é dependente-do-observador [observer-dependent] – é apenas em relação a observadores, usuários (...), que, por exemplo, uma frase do francês tem a significação que ela tem” (Mind, Language and Society, p. 94).99

Se começarmos com a intencionalidade derivada ou, pior ainda, com a

intencionalidade “como-se”, então, insistia Searle, “a referência ou a propriedade

de ‘ser acerca de’ [aboutness] parecerá misteriosa”; e, se pensarmos que a

intencionalidade não tem nenhuma conexão essencial com a consciência, então,

dizia ele, “nos parecerá que há vários tipos de intencionalidade no mundo, e

tentaremos analisá-la [analisar a intencionalidade] em termos de relações causais

ou algo assim”. A conclusão de Searle, em Mind, Language and Society: “A saída é

começar com a intencionalidade intrínseca em suas formas conscientes” (p. 98).

98. Ver J. R. Searle, Rationality in Action (2001), Capítulo 2 [The Basic Structure of Intentionality, Action, and Meaning], pp. 53-54.

99. Ver J. R. Searle, The Rediscovery of the Mind (1992), [Capitulo 9], p. 211; The Construction of Social Reality (1995), Capítulo 1 [The Building Blocks of Social Reality], pp. 9-13; Mind: A Brief Introduction (2004), pp. 6-7; Making the Social World (2010), p. 17.

211

Não se trata, portanto, de analisar ou tentar analisar o conceito de

intencionalidade100, mas de descrever a estrutura dos estados mentais intencionais.

“Intencionalidade”, dizia Searle, é o nome ou um termo que os filósofos usam

para aquela capacidade da mente em virtude da qual ou pela qual ela se dirige a,

ou é acerca de, ou se refere a, ou é de, objetos e estados de coisas no mundo.101

Em Intentionality, Searle usa sempre a maiúscula em Intencionalidade,

estados e eventos Intencionais, conteúdo Intencional para distinguir o sentido técnico

deste termo do sentido ordinário de palavras da língua inglesa como “intend”,

“intention” etc. Nem todos os estados mentais têm essa característica ou

propriedade: algumas formas de nervosismo e de ansiedade não são estados

intencionais, não são “acerca de” alguma coisa, não são “representações”.

“Intencionalidade”, dizia ainda Searle, é “aquela propriedade da mente (cérebro)

pela qual ela [a mente (cérebro)] é capaz de representar outras coisas”

(Intentionality, p. 24). Se um estado mental S é intencional, tem de haver uma

resposta a perguntas tais como: “Acerca de” que é S? (What is S about?), “De que

é S?” (What is S of?), “O que é um S que?” (What is it an S that?]) e, segundo

Searle, essa resposta não pode ser: “Tenho apenas uma crença e um desejo sem

acreditar em alguma coisa ou desejar alguma coisa” (Intentionality, p. 1).

No seu sentido estrito, tanto as intenções (intentions) como “ter a intenção

de” (intending) são apenas uma forma de intencionalidade entre muitas outras, e

não têm nenhum status especial. Ao dizer que as crenças são intencionais, ou são

estados mentais intencionais, Searle não está sugerindo que elas contêm a noção

de intenção, ou que têm a intenção de..., ou que quem tem uma crença deveria

ter a intenção de fazer alguma coisa. “Intencionalidade” é, portanto, para Searle,

um nome para “a propriedade de muitos estados e eventos mentais pela qual eles

são dirigidos a ou acerca de ou de objetos e estados de coisas no mundo [they are

directed at or about or of objects and states of affairs in the world]” (Intentionality, p. 1;

grifos nossos).102 Os estados e eventos intencionais são exatamente isso – estados

100. Ver J. R. Searle, “What Is an Intentional State?”, Mind, Vol. 88, No. 349 (1979), p. 90. 101. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), p. 1; “Intentionality and Its Place in Nature”, Synthese,

Vol. 61, No. 1 (1984), p. 3; Mind, Language and Society (1998), p. 85. 102. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), p. 3; Rationality in Action (2001), pp. 34-35; Making the

212

e eventos – e não atos mentais. Assim, crenças, desejos, temores, esperanças não

são atos e também não são atos mentais: atos, dizia Searle, “são coisas que fazemos

[Acts are things one does]” (Intentionality, p. 3).

E dizer que toda consciência é consciência de, insistia Searle, é simplesmente

confundir uma distinção importante: se tenho uma experiência consciente de

ansiedade, é claro que há algo que corresponde a essa experiência (a minha

experiência consciente é uma experiência de ansiedade), “mas este sentido de

“de” é muito diferente do “de” de Intencionalidade, que ocorre, por exemplo, na

afirmação de que tenho um medo consciente de cobras” (Intentionality, p. 2). No

primeiro caso, dizia Searle, há uma identidade entre a experiência de ansiedade e

a ansiedade (“the experience of anxiety and the anxiety are identical”), mas não

podemos dizer que o medo das cobras é idêntico a cobras. Há assim, no que diz

respeito aos estados intencionais, uma distinção entre o estado mental e o que

esse estado se dirige a, ou é acerca de (o que esse estado é sobre), ou é de.103

A estrutura dos estados mentais intencionais

Os estados mentais intencionais, dizia Searle, tipicamente têm uma

estrutura análoga à estrutura dos atos de linguagem. Ele considerava essa

analogia, em Intentionality, como um mero procedimento expositivo, ou uma

heurística, para explicar a intencionalidade, e ele não queria dizer, ao explorar as

conexões entre estados intencionais e atos de linguagem, “que a Intencionalidade

é essencialmente e necessariamente linguística” (Intentionality, p. 5). A relação de

dependência lógica é exatamente inversa, segundo ele: “A linguagem é derivada

da Intencionalidade e não inversamente. A direção da pedagogia é de explicar a

Intencionalidade em termos de linguagem; a direção da analise lógica é de

explicar a linguagem em termos de Intencionalidade” (Intentionality, p. 5).104

Social World (2010), pp. 25-26. 103. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. 2-3. 104. Muitas das conclusões a que Searle chega sobre a natureza da mente se devem aos

paralelos com os atos de linguagem. Ver J. R. Searle, “What is an Intentional State?”, Mind, Vol. 88, No. 349 (1979), pp. 74-80; 88-89; Intentionality (1983), Capítulo 6 [Meaning], pp. 160-

213

a) A distinção entre o tipo e o conteúdo dos estados intencionais:

Para Searle, os estados intencionais consistem em um conteúdo intencional e

um modo psicológico, e muitas vezes o conteúdo dos estados intencionais é uma

proposição completa. Podemos distinguir para cada estado mental intencional,

por um lado, o tipo de estado que ele é (crença, esperança, receio, desejo...) ou o

seu modo psicológico e, por outro lado, o seu conteúdo representativo. Um mesmo

conteúdo representativo ou intencional pode ser apresentado em diferentes

modos psicológicos: por exemplo, você pode acreditar que chova logo, esperar

que chova logo, recear que chova logo, desejar que chova logo. O conteúdo, em

cada um destes casos, é o mesmo – “que chova logo” – mas esse conteúdo é

apresentado em diferentes modos intencionais ou tipos. Em Intentionality, essa

distinção era simbolizada por Searle como “S (r)”.105 Nesta fórmula, “S” indica

ou marca o modo psicológico ou o tipo de estado intencional (crença, esperança, receio,

desejo...) e “r” o seu conteúdo representativo (ou o que faz que ele seja acerca de ou sobre

algum estado de coisas). Searle também usa o termo “conteúdo proposicional”

para estados intencionais como crenças e desejos, por exemplo, cujo conteúdo

representativo é uma proposição completa106, e os termos “conteúdo

representativo” ou “conteúdo intencional” para estados intencionais que não

têm necessariamente proposições inteiras como conteúdos representativos,

como, por exemplo, o amor, o ódio, a admiração (Intentionality, p. 6). Assim, se

um homem ama Maria e acredita que está chovendo, os seus dois estados

intencionais podem ser representados da seguinte forma:

Ama (Maria)

Acredita (Está chovendo).107

179; Rationality in Action (2001), Capíulo 2 [The Basic Structure of Intentionality, Action, and Meaning], p. 39; Mind: A Brief Introduction (2004), Capítulo 6 [Intentionality], pp. 166-174.

105. J. R. Searle, Intentionality (1983), p. 6. 106. A proposição é o conteúdo, e não o objeto, de minha crença ou de meu desejo. Searle não

considera, portanto, esses estados intencionais com um conteúdo proposicional inteiro como “atitudes proposicionais”, e ele evita usar a terminologia de “atitudes proposicionais” (ver J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. 18-19; Rationality in Action (2001), p. 36; Making the Social World, (2010) p. 27).

107. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), p. 6.

214

Todos os estados intencionais têm, por definição, pelo menos algum conteúdo

representativo, mas esse conteúdo não é necessariamente uma proposição

completa. Em Rationality in Action, Searle prefere representar a estrutura geral da

intencionalidade como “S (p)”: “S” marca, nessa fórmula, o tipo de estado

psicológico, dizia ele, e “p” marca o conteúdo proposicional do estado. Mas ele

mantém a distinção entre os estados intencionais que têm uma proposição inteira

como seu conteúdo intencional e os que não têm necessariamente proposições

inteiras como seus conteúdos.108

A distinção entre o tipo e o conteúdo de estados intencionais também se

aplica às percepções e às intenções: “Você pode ver que está chovendo, assim

como pode acreditar que está chovendo, e pode ter a intenção de ir ao cinema,

assim como pode desejar ir ao cinema. Em todos estes exemplos, os conteúdos

são proposições inteiras”.109

b) A direção de ajustamento (direction of fit):

Os diferentes tipos de estados intencionais relacionam o conteúdo

representativo ou proposicional ao mundo real, segundo Searle, com diferentes

obrigações de ajustamento. As crenças podem ser verdadeiras ou falsas; poderíamos,

então, dizer que elas têm a direção de ajustamento mente ao mundo (↓). Se as

minhas crenças são “falsas”, a falta é das crenças (direção mente-ao-mundo de

ajustamento↓ ou responsabilidade mente-ao-mundo pelo ajustamento) e não do

mundo, e posso corrigir essa situação ao mudar simplesmente minhas crenças. A

direção de ajustamento dos desejos e das intenções é mundo à mente (↑). Os desejos e

as intenções não podem ser verdadeiros ou falsos, mas podem ser preenchidos

ou realizados. Assim, se não realizo as minhas intenções e se os meus desejos

não são preenchidos, a falta é do mundo (direção mundo-à-mente de ajustamento ↑)

e não de minhas intenções ou de meus desejos; e não posso corrigir essa situação

mudando simplesmente minhas intenções ou os meus desejos. Há ainda toda

108. Ver J. R. Searle, Rationality in Action (2001), pp. 35-36; Mind: A Brief Introduction (2004), Capítulo 6 [Intentionality], pp. 166-167.

109. J. R. Searle, Mind, Language and Society (1998), p. 99.

215

uma série de estados intencionais que têm a direção de ajustamento nula (Ø), porque

o ajustamento é simplesmente pressuposto. Por exemplo, se eu lamento ter

insultado você ou se me alegra você ter ganhado um prêmio, então, embora o

meu arrependimento contenha uma crença que eu insultei você e o eu estar feliz

ou contente contenha uma crença que você ganhou o prêmio, o meu

arrependimento e o meu contentamento podem apenas ser apropriados ou não

ser apropriados dependendo das condições de satisfação da crença (se a direção de

ajustamento “mente-ao-mundo” da crença é realmente satisfeita, então o meu

arrependimento pode ser considerado apropriado e o meu contentamento

também pode ser considerado apropriado), e dessa maneira não têm uma direção

de ajustamento.110 Mas dizer que esses estados intencionais têm a direção de

ajustamento nula pode gerar um mal-entendido se essa terminologia sugere que

não há nenhum ajustamento. Ao contrário, nesses casos, a existência do

ajustamento é pressuposta, e Searle propõe, então, mudar a notação de “nula”,

ou Ø, para “Ajustamento Presup” (“Presup Fit”), ou simplesmente “Presup”.

Assim, em vez de dizer, como disse em Intentionality, que alguns estados

intencionais têm a direção de ajustamento Ø, Searle prefere agora dizer que eles

têm ajustamento Presup: “É uma expressão feia, mas pelo menos não é

enganadora [It is an ugly expression, but at least it is not misleading]”.111

Se é claro, Searle insiste, que uma crença é um compromisso com a

verdade, um desejo é um compromisso com a satisfação e uma intenção é um

compromisso com a ação, não se trata ainda de comprometimentos públicos:

“Não há nenhuma deontologia social envolvida, nenhuma obrigação

publicamente reconhecida” (Making the Social World, pp. 87-88).

c) As condições de satisfação (conditions of satisfaction)

As condições de satisfação são a chave para compreender a intencionalidade:

as crenças podem ser verdadeiras ou falsas, os desejos podem ser preenchidos ou

frustrados, as intenções podem ser realizadas ou não. Tendo caracterizado todo

110. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. 8-9, 173-176; Mind, Language and Society (1998), pp. 100-103; Rationality in Action (2001), pp. 38-39; Mind: a Brief Introduction, (2004), p. 169.

111. J. R. Searle, Making the Social World (2010), p. 29.

216

estado intencional através de seu conteúdo representativo ou intencional e de seu modo

psicológico, Searle explicita que, quando esse conteúdo é uma proposição completa

e quando há uma direção de ajustamento, ele (o conteúdo intencional) determina

as condições de satisfação do estado intencional, isto é, as condições no mundo que

têm de ser preenchidas para esse estado intencional ser bem sucedido.112

Podemos, então, dizer que estados intencionais com um conteúdo proposicional

e uma direção de ajustamento representam suas várias condições de satisfação, ou

podem ser considerados como representações de suas condições de satisfação.

Para Searle, dizer que uma crença é uma “representação” não é dizer que

uma crença é uma espécie de imagem ou de figuração e também não é dizer que

uma crença re-presenta alguma coisa, ou que uma crença tem uma significação:

“Dizer que uma crença é uma representação é simplesmente dizer que ela tem um conteúdo proposicional e um modo psicológico, que o seu conteúdo proposicional determina um conjunto de condições de satisfação sob certos aspectos, que o seu modo psicológico determina a direção de ajustamento de seu conteúdo proposicional (...)” (Intentionality, p. 12).113

Mas, como toda representação é sempre representação sob certos aspectos, “as

condições de satisfação são sempre representadas sob certos aspectos”.114 E se,

para Searle, estados mentais intencionais têm sempre “formas aspectuais”

(aspectual shapes), é justamente porque toda representação é sob aspectos, e ele usa

a expressão técnica “forma aspectual” (aspectual shape) para indicar uma

característica geral da intencionalidade.115

A expressão “condições de satisfação” tem uma ambiguidade, a

ambiguidade usual, dizia Searle, do processo e do produto (the usual process-product

ambiguity). Ela significa tanto o requisito (the requirement) como a coisa requerida (the

112. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. 12-13; Mind, Language and Society (1998), pp. 103-104.

113. A noção de representação, tal como Searle a usa, é simplesmente uma noção funcional e não uma noção ontológica: “Qualquer coisa que tenha condições de satisfação, que possa ser bem sucedida ou falhar de uma maneira que é característica da intencionalidade, é por definição uma representação de suas condições de satisfação.” (J. R. Searle, Making the Social World , p. 30).

114. J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. 13, 16; ver J. R. Searle, The Rediscovery of the Mind (1992) p. 131.

115. Ver J. R. Searle, Mind: A Brief Introducion (2004), p. 167; ver também J. R. Searle, The Construction of Social Reality (1995), [Capítulo 6], p. 133.

217

thing required):

“Assim, por exemplo, se eu acredito que está chovendo, então as condições de satisfação de minha crença são que deveria ser o caso que está chovendo (requisito). É isso o que a minha crença exige para ser uma crença verdadeira. E, se a minha crença é realmente uma crença verdadeira, então haverá uma certa condição no mundo, a saber, a condição que está chovendo (coisa requerida), que é a condição de satisfação de minha crença (…)” (Intentionality, p. 13).

d) A causação intencional (intentional causation)116

As nossas mentes não apenas se dirigem a ou são sobre objetos e estados de

coisas no mundo, segundo Searle, mas estão também em constante contato causal

com o mundo:

“Quando vemos coisas, os objetos que vemos causam as nossas experiências visuais deles. Quando nos lembramos de eventos em nosso passado, esses eventos passados causam nossas lembranças presentes. Quando temos a intenção de mover nossos corpos, essas intenções causam os movimentos corporais. Em cada caso, encontramos tanto um componente causal como um componente intencional. É essencial para o funcionamento da intencionalidade, e na verdade essencial para a nossa sobrevivência no mundo, que a capacidade representativa da mente e as relações causais com o mundo tenham de se combinar de alguma maneira sistemática. A forma como o fazem é a causação intencional” (Mind, Language and Society, pp. 104-105).

Ou seja, os estados intencionais muitas vezes funcionam causalmente por

uma forma de causação, que Searle chamou de causação intencional – que é

inteiramente diferente do exemplo clássico da bola de bilhar ou da causação

humeana – e alguns estados intencionais (por exemplo, os estados intencionais

causalmente autorreferenciais como as intenções, as experiências perceptivas e as

lembranças), têm essa forma de causação embutida em suas condições de

satisfação.117

A causação intencional, dizia Searle, “é qualquer relação causal entre um

estado intencional e suas condições de satisfação, em que o estado intencional

116. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), Capítulo 4 [Intentional causation], pp. 112-140; Mind, Language and Society (1998), Capítulo 4 [How the Mind Works: Intentionality], pp. 104-107; Rationality in Action (2001), pp. 40-45; Mind: A Brief Introduction (2004), Capítulo 7 [Mental Causation], pp. 193-214.

117. Ver J. R. Searle, Mind: A Brief Introduction (2004), Capitulo 6 [Intentionality], pp. 170-172.

218

causa suas condições de satisfação, ou suas condições de satisfação o causam

[causam esse estado intencional]”.118 Assim, no caso da causação intencional, um

estado intencional causa o próprio estado de coisas que ele representa (um

estado intencional causa as suas condições de satisfação), ou o estado de coisas

que um estado intencional representa causa esse estado intencional (as condições

de satisfação de um estado intencional causam esse estado intencional). E Searle

explicitava:

“Se eu quero beber água, o meu desejo de beber água pode causar-me beber água [may cause me to drink water], e tenho assim um caso de causalidade intencional.119 O desejo tem o conteúdo que eu beba água, e esse desejo [esse meu estado mental] causa, pois, que seja o caso que eu beba água [ou seja, neste exemplo, o desejo tanto representa como causa sua condição de satisfação] (mas temos de lembrar, claro, que há geralmente uma brecha [gap] em tais casos de ação voluntária).120 Se eu vejo que o gato está sobre o tapete, então o fato de que o gato está sobre o tapete causa a própria experiência visual, parte de cujas condições de satisfação são de que o gato está sobre o tapete” (Rationality in Action, p. 41).

Se, para Searle, a noção de direção de ajustamento é essencial para

compreender as maneiras como a intencionalidade e o mundo real se relacionam,

a noção de direção de causação (direction of causation) também parece necessária:

“No caso da percepção visual, por exemplo, a direção de ajustamento e a direção de causação são diferentes. Se a experiência visual é, como dizem, verídica, então a experiência visual se harmonizará com o mundo [will match the world], e teremos uma direção de ajustamento mente-ao-mundo [↓] bem sucedida. Mas, se a experiência visual é verdadeiramente satisfeita [no mundo], tem de ser o caso que o estado de coisas que eu estou percebendo no mundo [that I am perceiving in the world] causa a própria experiência visual através da qual eu percebo esse estado de coisas. Assim, neste caso, a

118. J. R. Searle, Rationality in Action (2001), p. 41. Ver também J. R. Searle, “Intentionalistic Explanations in the Social Sciences”, Philosophy of the Social Sciences, Vol. 21, No. 3 (1991), pp. 334-337 (reimpresso in Consciousness and Language (2002), [Capítulo 8] pp. 132-135).

119. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), p. 122. 120. Em 1998, em Mind, Language and Society, Searle dizia que o nome usualmente dado a essa

brecha causal, ou abertura, é “a liberdade da vontade” (“the freedom of the will”) e que “permanece um problema não solucionado em filosofia como pode existir liberdade da vontade, dado que não há brechas correspondentes no cérebro” (J. R. Searle, Mind, Language and Society, Capítulo 4 [How the Mind Works: Intentionality], p. 107). Ver J. R. Searle, Minds, Brains and Science (1984), Capítulo 6 [The Freedom of the Will], pp. 86-99; Rationality in Action (2001), Capítulo 9 [Consciousness, Free Action, and the Brain], pp. 269-298; Freedom and Neurobiology (2007), [Introduction: Philosophy and the Basic Facts] pp. 10-11; Making the Social World (2010), p. 133.

219

direção de ajustamento mente-ao-mundo [↓] é paralela à direção de causação mundo-à-mente [↑]” (Rationality in Action, p. 42).121

Nesses casos de causação intencional, podemos dizer que as condições de

satisfação do estado intencional são causalmente autorreferenciais. Assim, todo estado

mental causalmente autorreferencial com uma direção de ajustamento tem

também uma direção de causação:

“No caso dos estados cognitivos com autorreferencialidade causal [causal self-referentiality], tais como a percepção e a lembrança, temos uma direção de ajustamento mente-ao-mundo [↓] e uma direção de causação mundo-à-mente [↑]. O meu estado mental de lembrança ou percepção só “se ajusta” [“fits”] ao mundo se o mundo causa o estado [mental] que tem o ajustamento. Nos estados volitivos, tais como as intenções, as direções são revertidas. A minha intenção de levantar meu braço só “se ajusta” ao mundo se o próprio estado [intencional] causa o evento no mundo ao qual se ajusta, ou seja, só “se ajusta” ao mundo se a própria intenção causa o evento de eu levantar meu braço” (Mind, Language and Soc ie ty , p .106).

É necessário, portanto, para os estados mentais que têm a direção de

ajustamento mente-ao-mundo (↓), fazer uma distinção entre os estados que são

causalmente autorreferenciais, tais como as percepções e as lembranças, e os

estados que não são causalmente autorreferenciais, como as crenças. E, para os

estados mentais que têm a direção de ajustamento mundo-à-mente (↑), também é

necessário fazer uma distinção entre aqueles estados que são causalmente

autorreferenciais, tais como as intenções – a “intenção prévia” (prior intention) ou

a intenção que eu tenho antes de fazer alguma coisa, e a “intenção-em-ação”

(intention-in-action) ou a intenção que eu tenho quando de fato faço alguma coisa–,

e os estados que não são causalmente autorreferenciais, como os desejos.122 A

direção de ajustamento e direção de causação das percepções e lembranças são a

imagem em espelho das intenções prévias e intenções-em-ação. O resultado,

segundo Searle, é um conjunto muito elegante de relações formais entre os

121. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. 47-49; Mind: A Brief Introduction (2004), Capítulo 6 [Intentionality], pp. 171-172.

122. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), Capítulo3 [Intention and action], pp. 83-91; Rationality in Action (2001), Capíulo 2 [The Basic Structure of Intentionality, Action, and Meaning], pp. 44-45; Mind: A Brief Introduction (2004), Capítulo 6 [Intentionality], p. 171; Making the Social World (2010), Capítulo 2 [Intentionality], §III [Intentions and Actions], pp. 33-35.

220

vários tipos de intencionalidade descritos que pode ser apresentado no seguinte

quadro:

Intencionalidade Cognição Volição

Intenção- Percepção Lembrança Crença em-ação Intenção prévia Desejo

__________________________________________________________________________ Causalmente

Autorreferencial ? sim sim não sim sim não Direção

de Ajustamento ↓ ↓ ↓ ↑ ↑ ↑ Direção

de Causação ↑ ↑ N/A* ↓ ↓ N/A __________________________________________________________________________

(* A expressão “N/A” significa não se aplica)123

Há, no entanto, uma assimetria entre a cognição e a volição que não é

representada neste quadro:

“No caso de nossas ações voluntárias, caracteristicamente experimentamos uma brecha causal [causal gap] entre nossa reflexão sobre as nossas crenças e nossos desejos e a formação de uma intenção prévia, a formação de uma decisão. Há uma brecha causal no sentido em que tipicamente essas crenças e esses desejos, embora sejam as razões para a decisão e, portanto, para a formação da intenção prévia, não são por si próprios causalmente suficientes para forçar a decisão. Além disso, tipicamente temos a experiência de uma brecha causal entre a intenção prévia e a iniciação efetiva da ação na forma da intenção-em-ação. Depois de ter tomado a decisão de fazer alguma coisa, tenho ainda de esforçar-me e fazê-la. E, tipicamente, a intenção prévia não é causalmente suficiente para forçar o começo da ação. Tenho de fazer um esforço. (...) Há, assim, pelo menos três brechas, ou antes, três partes de uma brecha contínua na ação intencional entre os fenômenos intencionais em qualquer estágio e a continuação até o estágio seguinte: a brecha entre razões e decisão (a formação de uma intenção prévia), a brecha entre a decisão e o começo da ação (a intenção-em-ação), e, para ações complexas, a brecha entre o começo da ação e a continuação até seu completamento. Na filosofia, há um nome tradicional para essa brecha: ela é chamada a “liberdade da vontade”. (...) somos obrigados a pressupor a liberdade da vontade [grifos nossos].

123. Ver J. R. Searle, Rationality in Action (2001), Capíulo 2 [The Basic Structure of Intentionality, Action, and Meaning], p. 48; Mind: A Brief Introduction (2004), Capítulo 6 [Intentionality], p. 172; Making the Social World (2010), Capítulo 2 [Intentionality], §V [The General Structure of Intentionality], p. 38.

221

O quadro abaixo ilustra as posições das manifestações da brecha. A brecha da ação voluntária é contínua, mas ela tem três lugares onde se manifesta, como é mostrado no quadro.

Razões para a Ação (Crenças, desejos, obrigações, necessidades, etc.) → (Brecha) Decisão → (Brecha) Começo da Ação → (Brecha) Continuação até Completamento”.124

As experiências conscientes dessa brecha causal, Searle resumia, “nos dão a

convicção da liberdade humana [gives us the conviction of human freedom]”.125

e) A Rede (Network) e o Background da Intencionalidade:

Se todos os estados intencionais com uma direção de ajustamento têm

conteúdos que determinam suas condições de satisfação, eles não funcionam de

maneira autônoma, ou seja, eles não podem determinar suas condições de

satisfação de maneira independente. Em 1983, Searle dizia que cada estado

intencional tem seu conteúdo e determina suas condições de satisfação apenas

em relação a muitos outros estados intencionais:

“Um estado Intencional só determina suas condições de satisfação – e, portanto, só é o estado que ele é – dada a sua posição em uma Rede [Network] de outros estados Intencionais e contra um Background de práticas e de assunções pré-intencionais que não são elas mesmas estados Intencionais nem são partes das condições de satisfação dos estados Intencionais.” (Intentionality, p. 19).

Por exemplo, se desejo jantar num restaurante do bairro onde moro,

tenho de ter toda uma série de outras crenças e desejos, tais como crenças que há

124. J. R. Searle, Making the Social World (2010), pp. 40-41; ver também Mind, Language and Society (1998), Capítulo 4 [How the Mind Works: Intentionality], p. 107; Rationality in Action (2001), Capítulo 2 [The Basic Structure of Intentionality, Action, and Meaning], pp. 49-52; Mind: A Brief Introduction (2004), Capítulo 8 [Free Will], pp. 216-218.

125. J. R. Searle, Freedom and Neurobiology (2007), [Chapter One: Free Will as a Problem in Neurobiology] p. 43. Searle não acredita que o arbítrio livre é uma ilusão sistemática: “(...) a neuroscientist investigating freedom of the will might presuppose his own free will while conducing the investigation and nonetheless conclude that free will is a systematic illusion. There is no inconsistency in this whatsoever. I hasten to add that I do not believe (grifos nossos) that free will is a systematic illusion. I do not know whether it is or not. But the objection that we have to presuppose our own free will when investigating the possibility of determinism does not settle the issue one way or another” (J. R. Searle, “Neuroscience, Intentionality and Free Will. Reply to Habermas”, Philosophical Explorations, Vol. 10, No. 1 (2007), p. 73).

222

restaurantes nesse bairro, que um determinado restaurante é o melhor no bairro,

que os restaurantes são lugares onde se pode jantar, que jantar é uma das

refeições do dia, na parte da noite, que se pode pagar e comer em um

restaurante... . Mas todos esses estados intencionais só têm suas condições de

satisfação, ou toda a Rede de estados intencionais só funciona contra um

Background de capacidades, habilidades, posturas, assunções e pressuposições pré-

intencionais, maneiras de fazer coisas, práticas e hábitos. Em Intentionality, Searle

chamava esse conjunto de capacidades mentais não representacionais, que nos permite

aplicar nossos estados intencionais em geral, o Background da intencionalidade.126

Em The Rediscovery of the Mind, Searle considerava a Rede de estados

mentais intencionais como parte do Background, aquela parte do Background

que ele descreve em termos de sua capacidade para causar intencionalidade

consciente. Em vez de dizer que, “para ter uma crença, temos de ter muitas

outras crenças”, Searle agora afirma que, “para ter um pensamento consciente,

temos de ter a capacidade de gerar muitos outros pensamentos conscientes”, e

que “todos esses pensamentos conscientes requerem ainda outras capacidades

para sua aplicação”.127 Ele resume, então, as correções que introduziu:

“1. Os estados intencionais não funcionam de modo autônomo. Eles não

determinam suas condições de satisfação de maneira independente. 2. Cada estado intencional requer para seu funcionamento um conjunto de

capacidades de Background. As condições de satisfação só são determinadas relativamente a essas capacidades.

3. Entre essas capacidades haverá algumas que são capazes de gerar outros estados conscientes. A esses outros [estados conscientes], as condições 1 e 2 se aplicam.

4. O mesmo tipo de conteúdo intencional pode determinar diferentes condições de satisfação quando é manifesto em diferentes ocorrências conscientes [conscious tokens], relativamente a diferentes capacidades de Background, e, relativamente a alguns Backgrounds, não determina absolutamente nenhuma” (The Rediscovery of the Mind, pp. 190-191).

126. J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. 20, 143, 156-159; essas capacidades não representacionais, realizadas nas estruturas do cérebro, insistia Searle, não são estados intencionais. Ver J. R. Searle, The Rediscovery of the Mind (1992), Capítulo 8 [Consciousness, Intentionality and the Background], pp. 188-191.

127. J. R. Searle, The Rediscovery of the Mind (1992), Capítulo 8 [Consciousness, Intentionality and the Background], p. 190; ver também Mind: A Brief Introduction (2004), pp. 172-174, 249; Making the Social World (2010), p. 32.

223

Foi no início dos anos 1970 que Searle começou a analisar os fenômenos

que ele chamou posteriormente “o Background” e a desenvolver uma tese que

ele chama “a hipótese do Background”. Essa tese dizia respeito, quando foi

apresentada pela primeira vez, à significação literal dos enunciados. Para Searle, a

noção da significação literal de um enunciado não é uma noção independente do

contexto (is not a context-free notion), e em geral essa noção só tem “aplicação”

relativamente a um Background de assunções e de práticas pré-intencionais.128 A

tese do Background que Searle defendia pode ser aplicada a todas as formas de

intencionalidade:

“(...) todos os nossos estados intencionais, todas as nossas crenças, esperanças, medos (...) particulares, só funcionam da maneira como o fazem – isto é, só determinam suas condições de satisfação – contra um Background de know-how que me permite lidar com o mundo” (Mind, Language and Society, p.108).129

Poderíamos talvez dizer que esse conjunto de capacidades mentais não

representacionais é, na verdade, social ou é “um produto da interação social”, ou que

é “basicamente biológico”, ou até mesmo que esse Background “consiste de

objetos que existem de fato no mundo, tais como cadeiras e mesas, martelos e

pregos”. Mas se há pelo menos um elemento de verdade em todas essas

concepções do Background, afirmava Searle, ele insiste que isso não diminui a

importância do sentido crucial em que o Background consiste de fenômenos mentais:

“Cada um de nós é um ser biológico e social num mundo de outros seres biológicos e sociais, cercado por artefatos e por objetos naturais. Ora, o que denomino aqui de Background deriva na verdade do inteiro amontoado de relações que cada ser biológico-social tem como o mundo que o cerca. Sem a minha constituição biológica e sem o conjunto de relações sociais no qual estou inserido, eu não poderia ter o Background que tenho. Mas todas estas relações, biológicas, sociais e físicas, toda essa inserção, só é relevante para a produção do Background por causa dos

128. Ver J. R. Searle, “Literal Meaning”, Erkenntnis, 13 (1978), pp. 207-224 (reproduzido em Expression and Meaning (1979), Capítulo 5 [Literal meaning], pp. 117-136); “Individual Intentionality and Social Phenomena in the Theory of Speech Acts” (1989), Consciousness and Language (2002), [Capítulo 9] pp. 153-154.

129. Ver J. R. Searle, The Rediscovery of the Mind (1992), Capítulo 8 [Consciousness, Intentionality and the Background], pp. 175-177, 184, 189; The Construction of Social Reality (1995), Capítulo 6 [Background Abilities and the Explanation of Social Phenomena], pp. 129-132.

224

efeitos que isso tem em mim, mais especificamente os efeitos que isso tem na minha mente-cérebro [mind-brain]. (...) O Background, portanto, não é um conjunto de coisas nem um conjunto de relações misteriosas entre nós e as coisas, mas é simplesmente um conjunto de habilidades, posturas, assunções e pressuposições pré-intencionais, práticas e hábitos. E todas estas capacidades (...) são realizadas nos cérebros e corpos humanos. Não há nada mesmo de “transcendental” ou “metafísico” no que se refere ao Background, tal como uso aqui esse termo” (Intentionality, p. 154).

Tanto em Intentionality como em The Rediscovery of the Mind, Searle

apresenta uma espécie de geografia do Background. Temos de fazer uma distinção

entre as capacidades do Background que são comuns a todos os seres humanos,

em virtude de sua constituição biológica – “capacidades tais como andar, comer,

agarrar um objeto, perceber, reconhecer, e a postura pré-intencional que

considera a solidez das coisas e a existência independente de objetos e de outras

pessoas” –, que Searle chamava de “Background profundo” (“deep Background”), e

as práticas culturais locais ou o que ele chamava de “Background local” (“local

Background”), que incluiriam coisas tais como “abrir portas, beber cerveja das

garrafas e a nossa postura pré-intencional em relação a coisas tais como carros,

geladeiras, dinheiro e reuniões sociais como um coquetel” (Intentionality, pp. 143-

144).130 São justamente as diferenças no que diz respeito a essas práticas culturais

locais ou “Background local” que dificultam as traduções de uma língua para

outra, e são, assim, as capacidades comuns do Background que tornam possível

essas traduções. É claro, dizia Searle, que não há uma linha divisória nítida entre

o Background profundo e o Background local; e se temos de distinguir entre o

fato de saber como fazer coisas (knowing how to do things) e o fato de saber como são as

coisas (knowing how things are), ele insiste que não há uma linha divisória nítida entre

estas duas espécies de “know-how” – não podemos saber como fazer diversas

coisas sem saber como as coisas são.131

Em Intentionality, Searle mencionava uma das fontes dos muitos problemas

filosóficos que surgem devido ao fracasso em compreender a natureza e o modo

130. Ver J. R. Searle, The Rediscovery of the Mind (1992), Capítulo 8 [Consciousness, Intentionality and the Background], pp. 175-196.

131. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), p. 144.

225

como funciona o Background, e apresentava, como um bom exemplo disso, a

então atual e recorrente disputa filosófica relativa ao “realismo”:

“(...) é sempre possível tomar um elemento do Background e tratá-lo como uma representação, mas do fato de que é possível tratar um elemento do Background como uma representação não decorre que, quando funciona, ele funciona como uma representação. Um bom exemplo disso é a atual e recorrente disputa filosófica concernente a algo chamado de “realismo”. O realismo, eu quero dizer, não é uma hipótese, uma crença ou uma tese filosófica. O realismo é parte do Background no seguinte sentido. O meu compromisso com o “realismo” é exibido pelo fato de que eu vivo da maneira como o faço, eu dirijo meu carro, bebo minha cerveja, escrevo meus artigos, apresento minhas conferências e esquio minhas montanhas. Mas, além destas atividades, cada uma delas uma manifestação de minha Intencionalidade, não há uma “hipótese” adicional de que o mundo real existe. O meu compromisso com a existência do mundo real manifesta-se sempre que faço praticamente qualquer coisa. É um erro tratar esse compromisso como se fosse uma hipótese, como se, além de esquiar, beber, comer etc., eu tivesse uma crença – existe um mundo real independente das minhas representações acerca dele. A partir do momento (...) em que tratamos aquilo que é pré-intencional como se fosse uma espécie de Intencionalidade, isso imediatamente torna-se problemático. Parece que eu nunca poderia mostrar ou demonstrar que existiria um mundo real independente das representações que tenho dele. Mas é claro que eu nunca poderia mostrar ou demonstrar isso, uma vez que qualquer mostrar ou demonstrar pressupõe o Background, e o Background é a corporificação do meu compromisso com o realismo. As discussões contemporâneas do realismo são, em sua maior parte, estritamente desprovidas de sentido [strictly senseless], porque o fato mesmo de levantar a questão, ou na verdade levantar qualquer questão, pressupõe o realismo pré-intencional do Background. (...) Isso não é dizer que o realismo é uma hipótese verdadeira, antes é dizer que o realismo não é de modo algum uma hipótese, mas sim a precondição de ter hipóteses” (Intentionality, pp. 158-159).132

132. Ver J. R. Searle, The Construction of Social Reality (1995), [Capítulos 7-8], pp. 149-197; “Reality and social construction. Reply to Friedman”, Anthropological Theory, Vol. 6, No. 1 (2006), pp. 81-82; “Reality and relativism. On a which? hunt”, Anthropological Theory, Vol. 6, No. 1 (2006), pp. 112-113. Ver também Th. Calvet de Magalhães, “Realism after the Linguistic-Pragmatic Turn” (2002), Cognitio-Revista de Filosofia, Vol. 4, No. 2 (2003), pp. 221-226 (online no site: http://members.door.net/arisbe/menu/library/aboutcsp/calvet/realism.htm); tradução de Theresa Calvet de Magalhães: “O realismo depois da virada linguístico-pragmática”, in A. A. L. Ferreira, B. Bezerra Jr. e S. Tedesco (orgs.), Pragmatismos, Pragmáticas e Produção de Subjetividades (2008), pp. 420-431.

226

A representação é anterior à comunicação

Como a mente impõe intencionalidade a entidades que não são

intrinsecamente intencionais, tais como sons ou marcas, como pessoas fazem

meros objetos representar? Em suas linhas gerais, a resposta de Searle em

Intentionality era:

“A mente impõe Intencionalidade a entidades que não são intrinsecamente Intencionais [a sons ou marcas] ao conferir intencionalmente [ao impor] as condições de satisfação do estado psicológico expresso [do estado mental expresso] à entidade física externa” (Intentionality, p. 27).133

Tratava-se, então, de elucidar como a mente impõe intencionalidade a

meros sons ou marcas, conferindo, desse modo, uma significação a essas

entidades e, ao fazer isso, relacionando-as com a realidade. A função principal

que a linguagem deriva da intencionalidade é, sem dúvida, dizia Searle, a sua

capacidade de representar: “Entidades que não são intrinsecamente Intencionais

podem ser feitas Intencionais ao decretar, por assim dizer, intencionalmente que

elas assim o sejam” (Intentionality, p. 175). Ao impor intencionalmente condições

de satisfação a sons que saem de sua boca (ou seja, a algo que produziu

intencionalmente), um locutor cria uma forma de intencionalidade. Não há nada

de intrinsecamente intencional nos sons que saem de sua boa. O problema da

significação, na sua forma mais geral, é o problema de como passar da física à

semântica, ou como passar, por exemplo, dos sons que saem da boca de um

locutor ao ato ilocucionário. Como um proferimento deriva sua

intencionalidade? A resposta de Searle nos oferece uma análise do conceito de

significação que podemos usar para explicar como a linguagem se relaciona com

a realidade.

Na própria performance do ato de linguagem, há um duplo nível de

intencionalidade: o nível do estado intencional expresso na performance do ato –

a condição de sinceridade – e o nível da intenção de realizar o ato ou o nível da

intenção com a qual o ato é realizado – a intenção de significar – que faz desse ato o

ato que ele é. A tarefa de Searle consistia, em sua forma mais geral, em

133. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. viii, 164.

227

caracterizar a estrutura dessa intenção.

Searle retoma a sua crítica a Grice, ao analisar a significação em termos de

intenções dos locutores – “rejeito a ideia de que as intenções que são importantes

para a significação são as intenções de produzir efeitos nos ouvintes” (Intentionality,

p. 161) –, e insiste que é necessário não confundir a representação com a

comunicação, ou a intenção de representar com a intenção de comunicar. Ao fazer uma

asserção, um locutor tem ao mesmo tempo a intenção de representar algum fato

ou estado de coisas e a intenção de comunicar essa representação a seus

ouvintes. Mas a sua intenção de representar e a sua intenção de comunicar não

são a mesma coisa. Para Searle, comunicar consiste “em produzir certos efeitos

nos nossos ouvintes”, mas podemos perfeitamente, dizia ele, “ter a intenção de

representar alguma coisa sem ter a intenção de comunicar” (Intentionality, pp. 165-

166). Mas, se podemos ter a intenção de representar sem ter a intenção de

comunicar, segundo Searle, “não podemos ter a intenção de comunicar sem ter a

intenção de representar” (Intentionality, p. 166). A representação é anterior à

comunicação: “Não posso, por exemplo, ter a intenção de informar alguém que

está chovendo sem ter a intenção que o meu proferimento representa,

verdadeiramente ou falsamente, o estado de coisas do tempo” (Intentionality, p.

166).134

Não é possível – e Searle critica o modo como ele próprio abordou

primeiro esses problemas – elucidar a significação em termos de comunicação ou

de intenções de comunicação. A intenção de representar não depende da

intenção de comunicação, mas é independente. Trata-se, para a intenção de

representar, de “impor as condições de satisfação de um estado Intencional a um

ato público, e assim expressar esse estado Intencional” (Intentionality, p. 169). As

condições de satisfação do estado mental expresso na realização do ato de linguagem são

idênticas às condições de satisfação do próprio ato de linguagem: “Uma asserção será

verdadeira se, e apenas se, a crença expressa é verdadeira, uma ordem será

134. Ver J. R. Searle, “Individual Intentionality and Social Phenomena in the Theory of Speech Acts” (1989), Consciousness and Language (2002), [Capítulo 9] pp. 143-145; “Meaning, Communication and Representation”, in R. E. Grandy e R. Warner (eds.), Grounds of Rationality: Intentions, Categories, Ends (1986), pp. 209-226; “Meaning, Mind and Reality”, Revue internationale de philosophie, No. 216 (2001/2), p. 176.

228

obedecida se, e apenas se, o desejo expresso é preenchido (...)” (Intentionality, p.

164).135 Uma teoria da significação teria de explicar todas essas conexões.136

A significação é uma forma de intencionalidade derivada. Segundo Searle, isso

seria a chave para compreender a significação:

“A intencionalidade original ou intrínseca do pensamento de um locutor é transferida a palavras, frases, marcas, símbolos e assim por diante. Se proferidas com intenção de significar, essas palavras, frases, marcas e símbolos têm agora uma intencionalidade derivada dos pensamentos dos locutores. Elas têm não apenas uma significação linguística convencional mas também a significação do locutor. A significação linguística convencional das palavras e frases de uma língua pode ser usada por um locutor para realizar um ato de linguagem. Quando um locutor realiza um ato de linguagem, ele impõe a sua intencionalidade a esses símbolos. Como ele exatamente faz isso? Já vimos (...) que as condições de satisfação (...) são a chave para compreender a intencionalidade. Fenômenos intencionais, tais como medos, esperanças, desejos, crenças e intenções, têm condições de satisfação. Portanto, quando um locutor diz alguma coisa e quer significar alguma coisa, ele está realizando um ato intencional, e a sua produção dos sons é parte das condições de satisfação de sua intenção de fazer o proferimento. Mas, quando ele faz um proferimento com significação, ele impõe condições de satisfação a esses sons e marcas. Ao fazer um proferimento com significação, ele impõe, assim, condições de satisfação a condições de satisfação” (Mind, Language, and Society, p. 141).137

Poderíamos, portanto, dizer que, para Searle, a característica essencial da

significação do locutor, quando um locutor diz alguma coisa e quer significar

alguma coisa ao fazer isso, é que o locutor intencionalmente impõe condições de

satisfação a condições de satisfação. Ele explicita essa característica da

significação mais detalhadamente com um exemplo:

135. Mas ver J. R. Searle, The Rediscovery of the Mind (1992), Capítulo VIII [Consciousness, Intentionality, and the Background], p. 185.

136. Para Habermas, o modo como Searle concebe agora a significação teria permitido a ele manter o modelo de Grice, modificando-lhe apenas a forma (J. Habermas, “Bemerkungen zu J. Searles ‘Meaning, Communication, and Representation’”, in Nachtmetaphysiches Denken. Philosophische Aufsätze (1988), p 138; tradução inglesa: Comments on John Searle: “Meaning, Communication and Representation”, in E. Lapore e R. Van Gulick (eds.), John Searle and His Critics (1991), p. 18); ver, no entanto, J. R. Searle, “Individual Intentionality and Social Phenomena in the Theory of Speech Acts” (1989), in Consciousness and Language (2002), Capítulo 9, §2 [Meaning as a Social Phenomenon] pp. 150-155.

137. Ver J. R. Searle, Making the Social World (2010), Capítulo 4 [Language as Biological and Social], §VII [Speaker Meaning as the Imposition of Conditions of Satisfaction on Conditions of Satisfaction], pp. 73-75.

229

“Suponham, por exemplo, que um falante do alemão, Friedrich, intencionalmente diga, “Es regnet”, e queira significar isso. Ele terá realizado um ato complexo com diversas condições de satisfação. Primeiro, ele tinha a intenção de proferir a frase, e esse proferimento era a condição de satisfação desta parte de sua intenção complexa. Mas, em segundo lugar, porque ele não apenas tinha a intenção de proferir a frase mas queria significar isso mesmo, ou seja, ele queria significar que está chovendo, o proferimento adquiriu condições de satisfação próprias. O proferimento será bem sucedido se, e apenas se, está chovendo. As condições de satisfação do proferimento são condições de verdade [truth conditions]. O proferimento será verdadeiro ou falso dependendo de o mundo ser como Friedrich intencionalmente o representa como sendo quando ele faz o proferimento. Assim, para a sua intenção, Friedrich tinha pelo menos duas partes: a intenção de fazer o proferimento e a intenção que o proferimento tivesse certas condições de satisfação. Mas, como o proferimento é a condição de satisfação da primeira parte de sua intenção, toda a sua intenção de significação era a intenção de impor condições de satisfação a condições de satisfação [isto é, de impor condições de verdade ao proferimento]. Além disso, se ele tivesse a intenção de comunicar [o que intencionalmente disse e queria significar] a um ouvinte, ele teria tido uma terceira parte para a sua intenção na performance do ato de linguagem, a intenção de que o ouvinte o devesse entender como asseverando que está chovendo. Mas essa terceira intenção, a intenção comunicativa, era justamente a intenção de que suas duas primeiras intenções deviam ser reconhecidas pelo ouvinte. As condições de satisfação da intenção de comunicação são que o ouvinte deva reconhecer que ele proferiu a frase intencionalmente e que ela tem as condições de satisfação que o falante lhe impôs intencionalmente” (Mind, Language, and Society, pp. 141-142).138

Para haver comunicação, tem de haver uma significação que é

comunicada: se o locutor faz um proferimento e tem a intenção, por exemplo, de

representar o estado de coisas que está chovendo, e se ele tem a intenção de

comunicar essa informação ao ouvinte, dizia Searle, então ele tem de ter a

intenção de que o ouvinte reconheça sua intenção de significação e reconheça que

ele é intentado a reconhecer assim essa intenção.139 A comunicação bem

sucedida consiste, portanto, no reconhecimento das intenções de significação do

locutor. Searle insiste que a sua análise independe da questão do locutor estar

dizendo a verdade ou mentindo, ou de ser sincero ou insincero:

138. Ver J. R. Searle, “Meaning, Mind and Reality”, Revue internationale de philosophie, No. 216 (2001/2), p. 176; Rationality in Action (2001), Capitulo 2 [The Basic Structure of Intentionality, Action, and Meaning], p. 53.

139. Ver J. R. Searle, “Language and social ontology”, Theory and Society, Vol. 37, No. 5 (2008), p. 448.

230

“Esse é um ponto-chave: mesmo que eu esteja mentindo, ao dizer alguma coisa e querer significar aquilo que digo, eu estou comprometido com a verdade daquilo que eu digo. Assim, eu posso ter um compromisso com a verdade mesmo se, de fato, acredito que aquilo que eu digo é falso [a diferença entre aquele que mente e aquele que fala a verdade é que o mentiroso não respeita o seu compromisso]” (Mind, Language, and Society, p. 146).140

A significação é uma forma de intencionalidade derivada e tanto as suas

possibilidades como os seus limites são estabelecidos pela intencionalidade da

mente: “A Intencionalidade da mente não apenas cria a possibilidade da

significação, mas limita as suas formas” (Intentionality, p. 166).141 A taxonomia dos

atos de linguagem, apresentada por Searle em 1971 – a sua classificação dos atos

ilocucionários em cinco tipos fundamentais –, é fundamentalmente “um reflexo

[a reflection] dos vários modos segundo os quais as representações podem ter

direções de ajustamento” (Intentionality, p. 175):

“Os primeiros quatro tipos de atos de linguagem [os atos de linguagem Assertivos, Diretivos, Compromissivos, e Expressivos] têm análogos exatos em estados intencionais: aos Assertivos correspondem as crenças↓, aos Diretivos correspondem os desejos↑, aos Compromissivos correspondem as intenções↑, e aos Expressivos correspondem toda a gama das emoções e outros estados intencionais nos quais o ajustamento Presup é admitido. Mas não há nenhum análogo prelinguístico para as Declarações. Os estados intencionais prelinguísticos não podem criar fatos no mundo representando esses fatos como já existindo. Essa característica notável exige uma linguagem” (Making the Social World, p. 69).142

A descrição da estrutura lógica dos fenômenos intencionais, apresentada em

Intentionality, é consistente, dizia Searle, “com o fato de que a linguagem é

essencialmente um fenômeno social e que as formas de Intencionalidade,

subjacentes à linguagem, são formas sociais” (Intentionality, p. viii). Temos de

redescobrir, era assim que Searle terminava o seu livro The Rediscovery of the Mind,

o caráter social da mente.

140. Ver J. R. Searle, “Individual Intentionality and Social Phenomena in the Theory of Speech Acts” (1989), Consciousness and Language (2002), [Capítulo 9] pp. 146-147; Rationality in Action (2001), [Capitulo 6] pp. 184-186; “Language and social ontology”, Theory and Society, Vol. 37, No. 5 (2008), pp. 449-450.

141. Ver J. R. Searle, Making the Social World (2010), p. 16. 142. Ver J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. 175-176; e Searle explicita que a sua abordagem

geral da intencionalidade, em Intentionality, também pode ser considerada como uma revisão e extensão da concepção fregeana de Sinn à intencionalidade em geral (ver Intentionality, pp. 197-230).

231

A intencionalidade coletiva143

Para Searle, toda intencionalidade humana, coletiva ou individual, só

existe em cérebros humanos individuais ou em mentes individuais. Mas o fato de

que toda intencionalidade tem de existir nos cérebros ou nas mentes individuais é

perfeitamente compatível, dizia ele, com formas de intencionalidade coletiva ou

“nós-intencionalidade” (we-intentionality) como as que envolvem cooperação,

irredutíveis à intencionalidade individual ou “eu-intencionalidade” (I-

intentionality); ou seja, esse fato não requer que a intencionalidade coletiva seja

redutível à intencionalidade individual.144

O objetivo de Searle era, então, o de assimilar a realidade social à sua

ontologia básica da física, química e biologia, e, para fazer isso, ele mostra a linha

contínua que vai da física à sociedade: “A parte central na ponte que liga a física

à sociedade é a intencionalidade coletiva” (The Construction of Social Reality, p. 41).

Mas o que Searle entende por intencionalidade coletiva? Para explicitar o que

entende por intencionalidade coletiva, Searle oferece estes exemplos:

“Exemplos óbvios são os casos em que eu estou fazendo alguma coisa unicamente como parte de nosso fazer alguma coisa. Assim, se sou um jogador de linha ofensiva [an offensive lineman] num jogo de futebol [americano], eu posso estar bloqueando o ponta defensivo [the defensive end], mas só estou bloqueando como parte de nossa execução de um jogo-de-passes. Se sou um violonista numa orquestra, eu toco a minha parte em nossa performance da sinfonia. Até mesmo a maioria das formas de conflito humano requer a intencionalidade coletiva. Para que dois homens possam se engajar numa luta de boxe, por exemplo, tem de haver intencionalidade coletiva em um nível mais alto. Eles têm de cooperar no seio de uma luta para cada um

143. Para uma apresentação do conjunto do debate que a filosofia analítica nos oferece, desde o final dos anos 1980, sobre a questão da intencionalidade coletiva, ver Kollektive Intentionalität. Eine Debatte über die Grundlagen des Sozialen. Hans Bernard Schmid e David P. Schweikard (eds.). Frankfurt/Main: Suhrkamp, 2009.

144. Ver J. R. Searle, “Collective Intentions and Actions”, in Intentions in Communication. Philip R. Cohen, Jerry Morgan, e Martha E. Pollack (eds.). Cambridge (Mass.): MIT Press, 1990, [Capítulo 19] pp. 401-415; The Construction of Social Reality (1995), Capítulo 1 [The Building Blocks of Social Reality], pp. 23-26; “Social Ontology and the Philosophy of Society”, Analyse & Kritik, Vol. 20 (1998), pp. 149-151; Rationality in Action (2001), pp. 56-57; Freedom and Neurobiology (2007), [Introduction: Philosophy and the Basic Facts] p. 7; “Language and social ontology”, Theory and Society, Vol. 37, No. 5 (2008), pp. 446-449; Making the Social World (2010), Capítulo 3 [Collective Intentionality and the Assignment of Function], pp. 42-60. Ver também L. A. Zaibert, “Collective Intentions and Collective Intentionality”, American Journal of Economics and Sociology, Vol. 62, No. 1 (2003), pp. 209-232.

232

deles tentar derrubar o outro. Nesse aspecto, jogar uma luta de boxe difere de agredir alguém numa viela. O homem que lentamente se aproxima de outro homem numa viela e o assalta não está se engajando num comportamento coletivo. Mas dois lutadores de boxe, tal como dois litigantes num caso em que se opõem num tribunal, e até mesmo dois membros da Faculdade que trocam insultos num coquetel, estão todos engajados, em um nível mais alto, num comportamento coletivo cooperativo, no interior do qual o comportamento hostil antagonístico pode ocorrer.” (The Construction of Social Reality, pp. 23-24). “(...) na vida real, a intencionalidade coletiva é comum, prática e na verdade essencial para a nossa própria existência. Olhe para qualquer jogo de futebol, comício político, concerto [concert performance], sala de aula de universidade, missa ou conversa, e verá a intencionalidade coletiva em ação. Compare uma orquestra apresentando uma sinfonia com os membros individuais da orquestra tocando suas partes isoladamente. Mesmo que, por acaso, os membros individuais estivessem todos ensaiando suas partes de uma maneira sincronizada, de tal modo que soasse como a sinfonia, ainda há uma diferença crucial entre a intencionalidade do comportamento cooperativo coletivo e a intencionalidade do comportamento individual. O que vale para a orquestra vale para um time de futebol, a multidão em um comício político, duas pessoas dançando e uma equipe de operários construindo uma casa. Sempre que temos pessoas cooperando, temos intencionalidade coletiva. Sempre que temos pessoas compartilhando seus pensamentos, sentimentos, e assim por diante, temos intencionalidade coletiva; e na verdade, eu quero dizer que isso é a fundação de todas as atividades sociais. Até mesmo o conflito humano, na maioria de suas formas, requer cooperação. Pense em um luta de boxe, um jogo de futebol, um julgamento [a legal trial], ou mesmo dois filósofos envolvidos em uma discussão. Para que esses tipos de conflitos ocorram, tem de haver um nível mais alto de cooperação. Se um homem chega por trás de outro num beco escuro e bate na sua cabeça, nenhuma intencionalidade coletiva é exigida. Mas, para uma luta de boxe, uma luta livre, um duelo ou mesmo uma troca de insultos num coquetel, um nível de cooperação é exigido. Para estar lutando em um nível, temos de estar cooperando em realizar uma luta em outro nível.” (Mind, Language and Society, p. 120).

A noção de intencionalidade coletiva implica sempre, para Searle, a noção

de cooperação. Os seres humanos (e outras espécies de animais ou outros animais

sociais) têm a capacidade própria de cooperar e de agir coletivamente. Essa

capacidade, dizia Searle, é “um fenômeno biologicamente primitivo” e não pode

ser analisada como a simples soma de comportamentos individuais ou de

233

intencionalidades individuais.145 A intencionalidade coletiva é irredutível a uma

soma de intencionalidades individuais:

“A forma irredutível da intencionalidade em minha cabeça [in my head], quando estamos fazendo algo coletivamente, é ‘nós intencionamos’ [‘we intend’]. E eu não tenho de reduzir isso a um ‘eu intenciono’ [‘I intend’] e um conjunto de crenças mútuas. Pelo contrário, eu tenho os ‘eu-intenciono’ [‘I-intends’] que tenho justamente porque tenho um irredutível nós-intencionamos [we-intend].”146

Searle acreditava, então, que a intencionalidade coletiva é um fenômeno

biológico genuíno, e ele usa esse conceito, e não a noção de “intersubjetividade”,

para descrever os elementos constitutivos da realidade social e institucional:

“É comum na filosofia social, e talvez também nas ciências sociais, usar a noção de “intersubjetividade”. Eu nunca vi uma explicação clara do conceito de intersubjetividade, e não terei nenhum uso para a noção. Mas vou usar “intencionalidade coletiva” para tentar descrever o componente intencionalístico da sociedade; (...). Acredito que a intencionalidade coletiva é um fenômeno biológico genuíno [I am confident that collective intentionality is a genuine biological phenomenon], e embora [essa intencionalidade] seja complexa, não é misteriosa nem inexplicável. (...) A intencionalidade coletiva é a pressuposição psicológica de toda a realidade social (...)”.147

A intencionalidade coletiva, Searle insiste, “é justamente o fenômeno de

formas compartilhadas de intencionalidade na cooperação humana ou animal”148,

e ele define um fato social como “qualquer fato que envolva a intencionalidade

coletiva de dois ou mais agentes humanos ou animais”.149 Assim, tanto animais

145. Ver J. R. Searle, “Collective Intentions and Actions”, in P. Cohen, J. Morgan, e M. E. Pollack (eds.), Intentions in Communication (1990), pp. 401-403 (tradução francesa de Carmela Spagnoletti: “L’intentionnalité collective”, in La communauté en paroles. Communication, consensus, rupture. Herman Parret (ed.). Liège: Mardaga, 1991, pp. 227-229); The Construction of Social Reality (1995), Capítulo 1 [The Building Blocks of Social Reality], pp. 23-26; Freedom and Neurobiology (2007), [Chapter Two: Social Ontology and Political Power] pp. 84-85.

146. J. R. Searle, “Social Ontology and the Philosophy of Society”, Analyse & Kritik, Vol. 20 (1998), p. 150.

147. J. R. Searle, “Social ontology: Some basic principles”, Anthropological Theory, Vol. 6, No. 1 (2006), pp. 16-17. Mas ver H. B. Schmid, “Rationality-in-Relations”, American Journal of Economics and Sociology, Vol. 62, No. 1 (2003), pp. 67-101.

148. J. R. Searle, Freedom and Neurobiology (2007), [Chapter Two: Social Ontology and Political Power] p. 84.

149. J. R. Searle, “Social ontology: Some basic principles”, Anthropological Theory, Vol. 6, No. 1 (2006), p. 17; Freedom and Neurobiology (2007), p. 85. Durkheim, Simmel e Weber também consideraram, de diferentes maneiras, dizia Searle, que a intencionalidade coletiva é a fundação da

234

caçando juntos ou pássaros cooperando na construção de um ninho e uma

suprema corte tomando uma decisão são casos de intencionalidade coletiva e,

por conseguinte, casos de fatos sociais.150 Mas o caminho que vai da simples

intencionalidade coletiva ao dinheiro, casamento, governo ou à propriedade

privada é bem longo.

Searle queria explicar como fenômenos sociais institucionais tais como, por

exemplo, a Suprema Corte tomando uma decisão, vão além de meros fatos

sociais: “O problema interessante surge não com fatos sociais, mas com fatos

institucionais tais como aqueles que envolvem dinheiro, governos, partidos

políticos e transações econômicas”.151 Os fatos institucionais são uma

subcategoria especial de fatos sociais, dizia Searle, e “envolvem a imposição

coletiva de funções-status [status functions]”.152 Todo fato que tem a estrutura

lógica X conta como Y no contexto C, em que o termo Y atribui uma função-status e

essa função carrega consigo uma deontologia, é um fato institucional; assim,

conclui Searle, uma instituição é “qualquer sistema de regras constitutivas que

têm a forma X conta como Y em C”.153 A realidade social é sempre uma questão de

intencionalidade coletiva, e a mais importante subclasse dos fatos sociais, a dos

fatos institucionais, explicitava Searle, “requer não apenas a intencionalidade

coletiva mas também a imposição de funções-status de acordo com regras e

princípios constitutivos (como também o que eu chamo “o Background”)” .154

Todos os fatos institucionais, e, portanto, todas as “funções-status”, dizia Searle,

são criados por atos de linguagem de um tipo muito peculiar, que ele batizou, no

sociedade: “Eles não tinham o jargão que eu estou usando, e não tinham uma teoria da intencionalidade, mas eu penso que era isso que eles defendiam, usando o vocabulário do século XIX de que dispunham.” (J. R. Searle, Freedom and Neurobiology, [Chapter Two: Social Ontology and Political Power] p. 85).

150. Ver J. R. Searle, Mind, Language and Society (1998), Capítulo 5 [The Structure of the Social Universe: How the Mind Creates an Objective Social Reality], p. 121.

151. J. R. Searle, “Social ontology: Some basic principles”, Anthropological Theory, Vol. 6, No. 1 (2006), p. 17.

152. J. R. Searle, “Responses to Critics of The Construction of Social Reality”, Philosophy and Phenomenological Research , Vol. 67, No. 2 (1997), p. 452.

153. Ver J. R. Searle, “What is an institution?”, Journal of Institutional Economics, Vol. 1, No. 1 (2005), p. 10.

154. J. R. Searle, “Realism Reconstructed: A Reply”, The Philosophical Forum, Vol. 35, No. 3 (2004), p. 276.

235

início dos anos 1970, como Declarações155; todos os fatos institucionais, por

definição, comportam uma deontologia.156 Essa seria a inovação teórica principal

de seu novo livro, Making the Social World, e uma das razões, embora não a única,

de sua escrita.157 A ponte entre a mente e a sociedade é, assim, a linguagem.

155. Ver J. R. Searle, “A taxonomy of illocutionary acts” [1971], in Expression and Meaning (1979), [Capítulo 1] pp. 16-20; “Language and social ontology”, Theory and Society, Vol. 37, No. 5 (2008), pp. 453-455; Making the Social World (2010), pp. 12-16.

156. Ver J. R. Searle, “Social ontology: Some basic principles”, Anthropological Theory, Vol. 6, No. 1 (2006), pp. 19-28; Making the Social World (2010), Capítulo 4 [Language as Biological and Social], §X [The Next Step: Deontology] e §XI [The Extension of Deontology to Social Reality: How Language Enbles Us to Create Social Institutions], pp. 80-86 e Capítulo 5 [The General Theory of Institutions and Institutional Facts: Language and Social Reality], §III [ Speech Acts and Deontic Powers], pp. 100-102.

157. Ver J. R. Searle, Making the Social World (2010), Capítulo 1 [The Purpose of this Book], p. 11.

236

237

CAPÍTULO 8

A DIMENSÃO PÚBLICA DA LINGUAGEM

Em 1991, respondendo a um de seus críticos, Searle nos oferece um

esboço de um argumento “transcendental” para o que ele chama de realismo

metafísico e, posteriormente, de realismo externo – a visão de que o mundo (ou,

alternativamente, a realidade ou o universo) existe independentemente das

nossas representações a seu respeito:

“(...) o realismo metafísico é a condição de possibilidade de haver qualquer discurso público [grifos nossos]. Para que eu possa me dirigir a você e dizer, por exemplo, “o gato está sobre o tapete”, tenho de pressupor um mundo independentemente existente de objetos publicamente acessíveis para o qual expressões como “o gato” e “o tapete” são usadas para referir. Uma linguagem pública pressupõe um mundo público [grifos nossos]. E, quando eu me dirijo a você naquilo que, eu pressuponho, é uma linguagem pública, uma linguagem que você pode entender da mesma maneira que eu a entendo, eu também pressuponho que existem objetos de referência públicos. No discurso normal, nenhuma destas “pressuposições” tem a forma de crenças ou mesmo, rigorosamente falando, de “pressuposições”. Elas são parte do que eu chamo o Background; no funcionamento normal do Background, tais elementos formam as condições da representação inteligível, mas não são eles mesmos representações”.158

158. J. Searle, “Response: Perception and the Satisfactions of Intentionality”, in E. Lepore e R. Van Gulick (eds.), John Searle and his critics (1991), p. 190; ver também J. R. Searle, Intentionality (1983), pp. 158-159; The Construction of Social Reality (1995), pp. 149-197; “Realism Reconstructed: A Reply”, The Philosophical Forum, Vol. 35, No. 3 (2004), pp. 275-280.

238

A pressuposição do realismo não é simplesmente uma pretensão entre

outras, mas é, dizia Searle, “uma condição de possibilidade de eu ser de todo

capaz de erguer pretensões publicamente acessíveis”.159 O realismo metafísico (ou

realismo externo) e o relativismo conceitual são, então, perfeitamente consistentes. O

relativismo conceitual tal como é formulado por Searle – a nossa concepção da

realidade, nossa concepção de como ela é, é sempre feita relativamente a nossa constituição – é

apenas, ele insiste, uma verdade trivial e significa que “só podemos formar os

conceitos que somos capazes de formar”.160 Searle considerava o argumento, que

foi usado por Hilary Putnam contra o “realismo metafísico” e para defender uma

posição que ele chama de “realismo interno”, em The Many Faces of Realism161,

simplesmente um mau argumento:

“Putnam pensa que, porque só podemos afirmar o fato de que o ferro oxida relativamente a um vocabulário e a um sistema conceitual, que por conseguinte o fato só existe relativamente a um vocabulário e a um sistema conceitual. Assim, segundo a sua visão, se o relativismo conceitual é verdadeiro, então o realismo metafísico é falso. Mas a premissa de seu argumento não implica a conclusão. É, de fato, trivialmente verdadeiro que todas as afirmações são feitas dentro de um dispositivo conceitual para fazer afirmações. Sem uma linguagem, não podemos falar. De fato, disto segue-se que, havendo dispositivos conceituais alternativos, também haverá descrições alternativas da realidade. (…) Mas não podemos simplesmente concluir que o fato de que o ferro oxida é de alguma maneira dependente-da-linguagem ou relativo a um sistema de conceitos, ou a alguma coisa desse tipo. Muito tempo depois de morrermos todos e de não haver afirmações de qualquer espécie, o ferro ainda irá oxidar; e isso é justamente uma outra maneira de dizer que o fato de que o ferro oxida não depende de modo algum do fato de que podemos afirmar que o ferro oxida. (Alguém realmente, seriamente, duvida disso?)”.162

Searle defendia, assim, que “existe uma realidade que é totalmente

independente de nossas representações”163 ou que “o mundo existe

159. E. Lepore e R. Van Gulick (eds.), John Searle and his critics (1991), p. 190. 160. Ibidem. 161. H. Putnam, The Many Faces of Realism. La Salle (Illinois): Open Court, 1987. 162. J. R. Searle, “Response: Perception and the Satisfactions of Intentionality”, in E. Lepore e

R. Van Gulick (eds.), John Searle and his critics (1991), p. 191. 163. J. R. Searle, “Realism Reconstructed: A Reply”, The Philosophical Forum, Vol. 35, No. 3

(2004), p. 275.

239

independentemente não apenas da linguagem mas também do pensamento, da

percepção, da crença etc.”164 – o “realismo externo” – e, ao mesmo tempo, que

todas as representações da realidade são feitas relativamente a algum conjunto de

conceitos, mais ou menos arbitrariamente selecionado – o “relativismo

conceitual”. Enunciado de uma maneira cuidadosa, o realismo externo não é

para Searle uma teoria, mas é, antes, “uma precondição para haver teorias [a

precondition of having theories]”, ou seja, “uma condição necessária da inteligibilidade

de partes muito grandes do discurso [a necessary condition of the intelligibility of very

large chunks of discourse]”.165 O realismo externo, dizia Searle, “identifica não como as

coisas são de fato, mas identifica, mais exatamente, um espaço de possibilidades”.166 As

nossas práticas linguísticas ordinárias pressupõem o realismo externo: ao fazer

certos tipos de proferimentos numa linguagem pública, tentamos de fato nos

comunicar com os outros, e, se não admitirmos o realismo externo, não

podemos entender os proferimentos da maneira como o fazemos normalmente.

Searle pressupõe, então, que, para a maioria dos atos de linguagem, há um

entendimento normal e que, “quando realizam atos de linguagem numa

linguagem pública, os locutores tipicamente tentam chegar a um entendimento

normal”.167 Em The Construction of Social Reality (1995), Searle tentava mostrar que

o realismo externo é pressuposto pelo uso de secções muito grandes de uma

linguagem pública:

“(...) se você considera que está se comunicando com os outros da maneira normal através do tipo de atos de linguagem que dei como exemplos, você está comprometido com o realismo externo [you are committed to external realism]. Eu não mostrei que existe um mundo real, mas apenas que você tem um compromisso com a sua existência quando fala comigo ou com qualquer outra pessoa” (The Construction of Social Reality, p. 194).

Para um grande número de proferimentos, dizia Searle, cada proferimento

individual exige para sua inteligibilidade uma realidade publicamente acessível, que

ele caracterizou como independente-da-representação. Não há nada de

164. J. R. Searle, The Construction of Social Reality (1995), p. 153. 165. J. R. Searle, “Realism Reconstructed: A Reply”, The Philosophical Forum, Vol. 35, No. 3

(2004), p. 275. 166. J. R. Searle, The Construction of Social Reality (1995), pp. 182. 167. Ibidem, p. 184.

240

epistêmico no realismo assim interpretado. O realismo externo não é epistêmico:

o realismo, para Searle, é a pretensão de que a realidade é radicalmente não

epistêmica. Searle não disse que “para conhecer a verdade de nossas pretensões,

temos de pressupor o realismo”. O seu argumento, ele insiste, é “completamente

independente de questões do conhecimento ou até mesmo da verdade. A

pretensão, repito mais uma vez, é sobre condições de inteligibilidade, [e] não sobre

condições de conhecimento” (The Construction of Social Reality, p. 195).

Como, perguntava Habermas, em 1999, na sua “Introdução” a Wahrheit

und Rechtfertigung168, podemos reconciliar o postulado de um mundo independente

de nossas descrições e idêntico para todos os observadores, com o insight da

filosofia da linguagem de que não temos um acesso direto, não mediatizado pela

linguagem, à realidade “bruta”?169 Habermas quer ao mesmo tempo salvaguardar

o momento de incondicionalidade, que pertence à ideia de verdade como

correspondência, e manter uma relação interna entre verdade e justificação. É

nesse contexto que ele critica Rorty por ter tirado conclusões erradas de sua

crítica à filosofia da linguagem. Segundo Habermas, Rorty tem razão ao acentuar,

em Philosophy and the Mirror of Language, “que nada conta como justificação a não

ser por referência ao que já aceitamos”, mas a conclusão que ele tira disto – “que

não há uma maneira de sair fora das nossas crenças e da nossa linguagem de

modo a encontrar outro teste que não a coerência”170 – consiste num erro. No

quadro do paradigma linguístico, dizia Habermas, é claro que a verdade de uma

proposição não pode mais ser concebida como a “correspondência com alguma

coisa no mundo”, pois de outro modo teríamos de ser capazes de “sair da

linguagem” embora usando a linguagem.171 No entanto, ele insiste, “a ideia da

verdade como correspondência era capaz de explicar um aspecto fundamental da

168. J. Habermas, Wahrheit und Rechtfertigung. Philosophische Aufsätze. Frankfurt/Main: Suhrkamp, 1999; tradução francesa de Rainer Rochlitz: Vérité et Justification. Paris: Gallimard, 2001; tradução inglesa de Barbara Fultner: Truth and Justification. Cambridge (Mass.): The MIT Press, 2003.

169. J. Habermas, Truth and Justification (2003), [Introduction: Realism after the Linguistic Turn] p. 2. 170 . R. Rorty, Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton (New Jersey): Princeton University

Press, 1979, p. 178. 171. Ver J. Habermas, Truth and Justification (2003), Capítulo 6 [Rightness versus Truth: On the Sense

of Normative Validity in Moral Judgments and Norms], p. 250.

241

significação do predicado de verdade [the meaning of the truth predicate]”. Esse

aspecto – a noção de validade incondicional – é por assim dizer “varrido para

debaixo do tapete” quando a verdade de uma proposição é concebida como

“coerência com outras proposições” ou como “asseverabilidade justificada no

interior de um sistema interligado de asserções”.172 Mas tem de haver, Habermas

insiste, uma relação interna entre verdade e justificabilidade:

“Nas práticas cotidianas, não podemos usar a linguagem sem agir. A própria fala é executada através de atos de linguagem que estão, por seu lado, enraizados em contextos de interação e entrelaçados com ações instrumentais. Enquanto atores, isto é, como sujeitos de interações e de intervenções [as interacting and intervening subjects], estamos sempre já em contato com coisas sobre as quais podemos fazer afirmações. (…) Assim, a questão da conexão interna entre justificação e verdade – uma conexão que explica porque podemos, considerando a evidência que nos é dada, erguer uma pretensão de verdade incondicional que vai além daquilo que é justificado – não é uma questão epistemológica. Não se trata aqui do ser ou da aparência. O que está em jogo não é a representação correta da realidade mas sim práticas cotidianas que não devem desmoronar-se. (…) Só é possível chegar ao entendimento [mútuo] quando os participantes se referem a um único mundo objetivo [grifo nosso], estabilizando, assim, o espaço público intersubjetivamente partilhado, contra o qual tudo o que é meramente subjetivo pode ser contrastado. Essa suposição [grifo nosso] de um mundo objetivo, que é independente de nossas descrições, preenche uma exigência funcional dos nossos processos de cooperação e comunicação. Sem essa suposição, as práticas cotidianas, que se apoiam na distinção (em um certo sentido) platônica entre crer e conhecer irrestritamente, se desmanchariam nas dobras”.173

Segundo Habermas, para a questão da relação interna entre justificação e

verdade, é unicamente a interação entre ações e discursos que permite uma

resposta:

“No mundo da vida, os atores dependem de certezas comportamentais. Eles têm de lidar com um mundo que é presumido ser objetivo e, por essa razão, operar com a distinção entre crer e conhecer. Há uma necessidade prática de confiar intuitivamente no que é incondicionalmente tido-por-verdadeiro. Esse modo do incondicionalmente “ter-por-verdadeiro” é refletido, no nível discursivo, nas conotações das pretensões de verdade que apontam para além dos contextos de justificação dados e exigem a

172. J. Habermas, “Richard Rorty’s Pragmatic Turn” [1996], in On the Pragmatics of Communication (1998, ) pp. 357-358 (tradução francesa de Rainer Rochlitz: “Le tournant pragmatique de Richard Rorty”, in Vérité et Justification (2001), [Capítulo 5] p. 182).

173. Ibidem, p. 359 (trad. fr., pp. 183-184).

242

suposição de condições de justificação ideais – com um resultante descentrar da comunidade de justificação. Assim, o processo de justificação pode ser orientado por uma noção de verdade que transcende a justificação embora seja sempre já operativamente efetiva na esfera da ação. A função da validade das afirmações nas práticas cotidianas explica porque a redenção discursiva das pretensões de validade pode ao mesmo tempo ser interpretada como a satisfação de uma necessidade pragmática de justificação. Essa necessidade de justificação, que provoca a transformação de certezas comportamentais abaladas em pretensões de validade problematizadas, só pode ser satisfeita por uma tradução das crenças discursivamente justificadas de volta para verdades comportamentais”.174

Para Habermas, a questão crítica para os debates atuais sobre a

racionalidade é a de saber se sujeitos que se comunicam (communicating subjects)

estão do princípio ao fim aprisionados em interpretações “epocais” (epochal

interpretations) do mundo, dos discursos e dos jogos de linguagem. A sua

conclusão é a de que a estratégia de Rorty – a sua naturalização da razão

corporificada na linguagem (linguistified reason) – “conduz a um nivelamento

categorial de distinções de um tal tipo que as nossas descrições tornam-se

insensíveis a certas diferenças que, nas práticas cotidianas, fazem a diferença”.175

“A filosofia no mundo real”, o subtítulo do livro Mind, Language, and

Society (1998), capta dois aspectos importantes da obra de Searle. Em primeiro

lugar, Searle acredita que uma boa investigação filosófica começa prestando

atenção sustentada às experiências cotidianas. Em segundo lugar, Searle acredita

que existe uma realidade totalmente independente das nossas representações, que

o mundo não é uma construção de textos e de jogos de palavras, e que podemos

compreender esse mundo real. A sua refutação dos argumentos contra o

realismo externo e a sua defesa do realismo externo como uma pressuposição de

grandes áreas do discurso são, dizia ele, o primeiro passo para combater o

irracionalismo, ou seja, para combater os “ataques à objetividade epistêmica, à

racionalidade e à inteligência na vida intelectual contemporânea” (The Construction

of Social Reality, p. 197). Que diferença realmente faz dizer que somos um

174. Ibidem, pp. 371-372 (trad. fr., p. 196). 175. Ibidem, p. 377 (trad. fr., p. 201).

243

“realista” ou um “antirealista”? Searle de fato pensa que as teorias filosóficas

fazem uma diferença no que diz respeito a cada aspecto de nossas vidas.176

O realismo externo não se confunde com a teoria da verdade como

correspondência. Para Searle, o realismo não é uma teoria da verdade e não implica

uma teoria da verdade:

“Rigorosamente falando, o realismo é consistente com qualquer teoria da verdade porque é uma teoria da ontologia [grifos nossos] e não [uma teoria] da significação de “verdadeiro”. Não é de modo algum uma teoria semântica. É possível, assim, admitir o RE [Realismo Externo] e negar a teoria da correspondência. Numa interpretação normal, a teoria da correspondência implica o realismo já que ela implica que existe uma realidade à qual correspondem afirmações se elas são verdadeiras; mas o realismo não implica por si mesmo a teoria da correspondência, já que não implica que a “verdade” é o nome de uma relação de correspondência entre afirmações e a realidade” (The Construction of Social Reality, p. 154).

Mas ele nos oferece, em The Construction of Social Reality (pp. 199-226), uma

versão modesta da teoria da verdade como correspondência. Precisamos, dizia

Searle, de palavras ou termos de avaliação para descrever o sucesso177 ou fracasso

de afirmações (e de crenças) em alcançar o que ele chama a direção de

ajustamento palavra-(ou mente)-ao-mundo, e essas palavras são “verdadeiro” e

“falso”.178 Segundo Vanderveken, a noção geral de satisfação apoia-se na noção de

correspondência:

“Atos ilocucionários elementares com um conteúdo proposicional, como todas as ações intencionais, dirigem-se a objetos e estados de coisas no mundo. Eles são satisfeitos [ou bem-sucedidos] apenas se o seu conteúdo proposicional representa corretamente como as coisas são (…) no mundo. (…) a existência de uma correspondência entre o conteúdo proposicional de um proferimento e o mundo é uma condição necessária, mas nem sempre uma condição suficiente, para a satisfação desse proferimento. De

176. Ver J. R. Searle, The Construction of Social Reality (1995), p. 197. 177. Para os conceitos semânticos de sucesso e de satisfação, ver D. Vanderveken, Meaning and

Speech Acts. Volume I: Principles of Language Use. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, pp. 129-136.

178. J. R. Searle, The Construction of Social Reality (1995), Capítulo 9 [Truth and Correspondence], p. 208. Nas Conferências William James, que Austin apresentou na Universidade de Harvard em 1955, ele já tinha dito que a verdade e a falsidade “não são (exceto por uma abstração artificial que é sempre possível e legítima para certos propósitos) nomes para relações, qualidades, (...) mas [nomes] para uma dimensão de avaliação – como as palavras, no que diz respeito às suas condições de satisfação, “representam” os fatos, os eventos, as situações etc., a que se referem” (J. L. Austin, How To Do Things With Words (1962), p. 149).

244

fato, para que um ato de linguagem seja bem-sucedido, a correspondência entre o seu conteúdo proposicional e o mundo tem de ser estabelecida segundo a direção de ajustamento adequada de sua força ilocucionária. Assim, as condições de satisfação de um ato ilocucionário elementar da forma F(p) são uma função ao mesmo tempo das condições de verdade de seu conteúdo proposicional e da direção de ajustamento de sua força ilocucionária. Primeiro, quando um ato ilocucionário tem apenas a direção de ajustamento palavras-ao-mundo, ele é bem-sucedido, num contexto de proferimento sob uma interpretação, se e somente se o seu conteúdo proposicional é verdadeiro nesse contexto de acordo com essa interpretação. De fato, em um tal caso, o sucesso do ajustamento entre a linguagem e o mundo é alcançado pelo fato de que o conteúdo proposicional corresponde a um estado de coisas que existe (em geral), independentemente, no mundo. Assim, as condições de satisfação dos atos ilocucionários assertivos são idênticas às condições de verdade de seu conteúdo proposicional. (…). Em segundo lugar, quando um ato ilocucionário tem a direção de ajustamento mundo-às-palavras, ele é bem-sucedido, num contexto de proferimento sob uma interpretação, se e somente se o falante ou ouvinte torna o seu conteúdo proposicional verdadeiro nesse contexto de modo a satisfazer esse ato ilocucionário. Diferentemente dos proferimentos assertivos, os proferimentos compromissivos [commissive] e diretivos [directive] têm condições de satisfação autorreferenciais que não são independentes desses proferimentos. Uma asserção é verdadeira se e somente se o seu conteúdo proposicional corresponde a um estado de coisas que existe no mundo, não importa como esse estado de coisas tornou-se existente. Mas, estritamente falando, uma promessa só é mantida ou um pedido só é atendido se o falante ou ouvinte realiza no mundo um futuro curso de ação por causa da promessa ou do pedido. (…) Assim, falamos de pedidos que foram atendidos ou recusados e de promessas que foram mantidas ou quebradas, e não de pedidos verdadeiros ou falsos e de promessas verdadeiras ou falsas”.179

O ponto ilocucionário dos atos de linguagem assertivos é o de obrigar o

locutor à verdade da proposição. Em Rationality in Action (2001), Searle afirma que

não há como explicar o que uma afirmação é (o que um ato de linguagem

assertivo é) sem explicar que o compromisso com a verdade é interno ao próprio fazer

uma afirmação:

“Sempre que faço uma afirmação, eu tenho uma razão para falar de modo verdadeiro. Por quê? Porque uma afirmação simplesmente é um compromisso com a verdade da proposição expressa. Não há nenhuma brecha [gap] entre fazer uma afirmação e comprometer-se com a sua verdade [ou obrigar-se à sua verdade]. Isto é, não há duas características independentes do ato de linguagem, primeiro o fazer uma afirmação e,

179. D. Vanderveken, Meaning and Speech Acts. Volume I: Principles of Language Use (1990), pp. 132-133.

245

segundo, o comprometer-me com a sua verdade; há apenas o fazer a afirmação, que é eo ipso um compromisso com a verdade. (…). Mas por que o compromisso com a verdade é interno [grifo nosso] a fazer uma afirmação? (...) Qual é a importância do compromisso? Ora bem, num certo sentido podemos realizar atos de linguagem sem os seus compromissos normais. É o que ocorre em obras de ficção. No caso das obras de ficção, ninguém considera o autor responsável pela verdade dos proferimentos que ele faz no texto. Compreendemos esses casos como

casos derivados das formas mais fundamentais – e parasitários em relação a

elas – nas quais os compromissos referem-se às condições de verdade do

atual proferimento. Então, repetindo a questão: por quê? E a resposta deriva da natureza da própria significação [ver Mind, Language and Society, pp. 139-144]. A razão pela qual estou comprometido com a verdade da pretensão que está chovendo quando digo que está chovendo é que, ao fazer o proferimento que está chovendo, eu intencionalmente impus certas condições de satisfação a esse proferimento. (...) quando seriamente assevero que está chovendo, eu tenho um compromisso com a verdade da proposição, porque eu intencionalmente impus o compromisso com essa verdade ao proferimento quando eu intencionalmente impus as condições de satisfação que estaria chovendo às condições de satisfação da minha intenção-em-ação de que essa intenção-em-ação produziria os sons “Está chovendo”. E, repetindo, o que possibilita que eu faça isso, de uma maneira publicamente acessível, é o fato de que sou um participante na instituição humana da linguagem e dos atos de linguagem” (Rationality in Action, pp. 184-186).

Em toda asserção genuína, o assumir a responsabilidade tem de estar

presente. Se, para os proferimentos assertivos, parece mais difícil entender como

isso ocorre, é porque, no caso de uma asserção, dizia Searle, “impomos

condições de satisfação com a direção de ajustamento ↓ [downward direction of fit]

ao proferimento, ou seja, fazemos uma pretensão de verdade” (Rationality in

Action, p. 175). Assim, quando um locutor diz “Está chovendo”, o seu

proferimento tem a direção de ajustamento palavra-ao-mundo (↓) e será

verdadeiro ou falso dependendo de ser ou não satisfeito o conteúdo

proposicional desse proferimento. Mas, ao fazer uma afirmação, o locutor

também assume um compromisso com a verdade de sua afirmação. Ao fazer uma

asserção, Searle insiste, “assumimos responsabilidade pela verdade, sinceridade e

evidência”, ou seja, assumimos um compromisso com a verdade do que

dizemos, com a sinceridade (um compromisso de não mentir) e com ser capaz

de oferecer razões para a nossa pretensão; todos esses compromissos são

246

compromissos públicos.180 Essas responsabilidades, tal como os compromissos em

geral, têm a direção de ajustamento ↑ (upward direction of fit ou uphill direction of fit) e

só são alcançadas, dizia Searle, “se o mundo é tal que o proferimento é

verdadeiro, o locutor é sincero e o locutor tem evidências para a asserção”

(Rationality in Action, p. 176).181

Para Searle, toda intencionalidade tem uma estrutura normativa. Mas o que é

especial não é propriamente a normatividade, mas sim a capacidade que os seres

humanos têm de criar, através do uso da linguagem, um conjunto público de

compromissos:

“Os [seres] humanos tipicamente fazem isso ao produzirem atos de linguagem públicos [grifo nosso] em que o locutor intencionalmente impõe condições de satisfação a condições de satisfação. Esses atos de linguagem tornam-se possíveis pela existência de estruturas institucionais que o locutor usa para realizar atos de linguagem com significação e para comunicá-los a outros locutores/ouvintes. Usando esse dispositivo, o locutor pode assumir compromissos quando ele impõe condições de satisfação a condições de satisfação, De fato, não há como não assumir compromissos. O ato de linguagem assertivo é um compromisso com a verdade, o ato de linguagem de prometer é um compromisso com uma ação futura. Ambos são derivados do fato de que o locutor impõe condições de satisfação a condições de satisfação. Os atos de linguagem obrigam o locutor ao segundo conjunto de condições de satisfação. No caso de uma asserção, ele [o locutor] tem um compromisso com a verdade da asserção, no caso de uma promessa, ele tem o compromisso de executar o ato que prometeu realizar” (Rationality in Action, p. 183).

180. Ver J. R. Searle, Making the Social World (2010), pp. 80-84. 181. Ver J. R. Searle, “Language and social ontology”, Theory and Society, Vol. 37, No. 5 (2008),

p. 449. Segundo Peirce, uma asserção é um ato no qual o falante se dirige a um ouvinte e assume a responsabilidade pela verdade do que afirma: “Em que consiste a natureza da asserção? Não temos nenhuma lupa que pode aumentar as suas características e torná-las mais discerníveis; mas na falta de um tal instrumento [such an instrument], podemos selecionar para exame uma asserção muito formal, cujas características foram, de modo proposital, muito aumentadas, de modo a enfatizar seu aspecto solene. Se um homem deseja fazer uma asserção muito solene, ele seguirá aqueles passos que permitem que esteja diante de um magistrado ou um notário e assuma em relação à asserção feita uma obrigação. Assumir uma obrigação não é principalmente um evento da natureza de uma exibição, Vorstellung, ou representação. Não é simplesmente dizer, mas é fazer. A lei, eu creio, chama isso um “ato”. De qualquer modo, seria seguido de efeitos muito reais, no caso de se provar a falsidade do que foi dito na asserção. Esse ingrediente, o assumir a responsabilidade, que é tão proeminente na asserção solene, tem de estar presente em toda asserção genuína” [Collected Papers of Charles Sanders Peirce [CP]. Vol. 5 [Charles Hartshorne e Paul Weiss, eds.]. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1965] (CP 5.546; 1908 aprox.).

247

O ato de prometer é peculiar entre os atos de linguagem, segundo Searle,

porque a promessa tem quem faz a promessa como o sujeito do conteúdo

proposicional. Prometer tem um componente autorreferencial imposto às

condições de satisfação. Eu não apenas prometo fazer algo, dizia Searle, mas eu

prometo fazer isso porque eu prometi fazê-lo (ou seja, eu dou a minha palavra):

“As condições de satisfação da promessa não são apenas que o locutor faça algo, mas que ele o faça porque fez uma promessa de fazê-lo. Há, portanto, um componente autorreferencial no ato de prometer, e esse componente autorreferencial não existe em certos outros tipos de atos de linguagem. Por exemplo, não existe nas asserções” (Rationality in Action, p. 213).

Em todo ato de linguagem há algum tipo de compromisso. Isso é óbvio,

para Searle, no caso das afirmações e das promessas, mas também está presente

nas ordens, por exemplo, e nos pedidos ou outros atos de linguagem: “Se eu

ordeno que saia da sala, eu estou obrigado a permitir que saia da sala e a querer

que saia da sala, por exemplo” (Rationality in Action, p. 174).182 O que é, então, um

compromisso? A noção de compromisso, responde Searle, tem dois

componentes:

“(...) primeiro, a noção de um engajamento [undertaking] que é difícil de reverter e, segundo, a noção de uma obrigação. Estas [noções] tipicamente se combinam, por exemplo, na noção de prometer. Quando faço uma promessa, eu faço um engajamento que não é facilmente reversível. Mas ao mesmo tempo eu crio uma obrigação. Estas duas características de irreversibilidade e obrigação se combinam nos atos de linguagem realizados de acordo com regras” (Making the Social World, pp. 81-82).183

O uso da linguagem envolve, assim, a criação de compromissos de vários

tipos, no sentido público pleno desse termo que combina irreversibilidade e

obrigação; esses compromissos, para Searle, são razões para a ação, independentes-

do-desejo, ou razões deônticas. Essa capacidade de criar razões para a ação, que são

independentes do desejo, dizia Searle, é a capacidade mais notável da

182. Ver J. R. Searle, Making the Social World (2010), pp. 82-83. 183. Ver J. R. Searle, “Social Ontology: The Problem and Steps Towards a Solution”, in S. L.

Tsohatzidis (ed.), Intentional Acts and Institutional Facts. Essays on John Searle’s Social Ontology. Dordrecht: Springer, 2007, pp. 16-17; “Language and social ontology”, Theory and Society, Vol. 37, No. 5 (2008), pp. 449-450.

248

racionalidade humana. A linguagem é uma fonte das nossas formas de

deontologia: “A linguagem é a forma básica da deontologia pública, e eu

considero que no sentido pleno que envolve a assunção pública de obrigações

irreversíveis, não existe tal deontologia sem a linguagem” (Making the Social World,

p. 82). Atos intencionais de significação – “isto é, a imposição de condições de

satisfação a condições de satisfação, realizada de acordo com convenções

aceitas” –, explicitava Searle, “necessariamente envolvem uma deontologia”, e,

uma vez criada, essa deontologia inevitavelmente se estende a toda a realidade

institucional.184 Há, portanto, uma deontologia envolvida em todo ato de

linguagem sério e literal, realizado de acordo com convenções aceitas, segundo

Searle, e essa deontologia tem uma propriedade lógica crucial, que ele considera

essencial para a criação da realidade social e institucional: “a criação de uma

deontologia de compromissos, como também de direitos, deveres, obrigações

etc., cria razões, independentes-do-desejo, para a ação”.185

Em Speech Acts (1969), Searle já tinha feito uma distinção entre fatos

institucionais e fatos brutos, e tinha dito que os fatos institucionais só existem no

interior de sistemas de regras constitutivas, que têm a forma “X conta como Y”

ou “X conta como Y no contexto C” (Speech Acts, p. 35). Ou seja, os fatos

institucionais só existem no interior de sistemas de regras constitutivas que têm a

forma: X conta como tendo por estatuto ou reconhecimento coletivo a função Y

no contexto C.186 A estrutura lógica da criação dos fatos institucionais, Searle

insiste, em Making the Social World (2010), é exatamente a mesma que a da

Declaração (com sua dupla direção de ajustamento):

“Se eu declaro “Esta é a minha casa”, então eu me represento eu mesmo como tendo um direito à casa (direção de ajustamento [↓] palavra-ao-mundo) e, se levo outros a aceitar a minha representação, então eu crio esse direito porque o direito só existe por aceitação coletiva (direção de ajustamento [↑] mundo-à-palavra). E elas não são independentes: eu crio um direito ao me representar eu mesmo como tendo esse direito” (Making the Social World, pp. 85-86).

184. Ver J. R. Searle, Making the Social World (2010), p. 84. 185. J. R. Searle, “Language and social ontology”, Theory and Society, Vol. 37, No. 5 (2008), p.

450. 186. Ver J. R. Searle, Making the Social World (2010), p. 10.

249

Searle tenta mostrar não apenas como a linguagem introduz a deontologia

nas relações sociais, mas como ela cria uma realidade institucional com uma

estrutura deôntica:

“O mesmo passo linguístico básico que permite aos atos de linguagem carregar [that enables speech acts to carry] uma deontologia de direitos, deveres, compromissos, e assim por diante, pode ser estendido para criar uma realidade social e institucional de dinheiro, governo, casamento, propriedade privada, e assim por diante” (Making the Social World, p. 88).

Em The Construction Of Social Reality, Searle dizia que, para explicar a

realidade social e institucional, eram necessários três elementos ou três noções

primitivas – a intencionalidade coletiva, a imposição de funções ou capacidade

de atribuir funções (the assignment of functions) e as regras constitutivas187 –, e que o

mecanismo subjacente que cria as línguas públicas, o dinheiro, os governos, os

códigos jurídicos, o casamento e a propriedade privada, é o mesmo: um

mecanismo simples, que pode ser constantemente iterado, de imposição

(coletiva) de status e de funções segundo a forma (“X conta como Y no contexto

C”) das regras constitutivas.188 Em Making the Social World, Searle compara a

teoria geral que ele propõe nesse novo livro – uma teoria geral da ontologia social

– com a teoria especial apresentada em sua obra The Construction of Social Reality, e

afirma que a nova versão nos oferece um conjunto, muito simples, de

equivalências e implicações lógicas:

“(...) fatos institucionais = funções-status → poderes deônticos → razões, independentes-do-desejo, para a ação [desire-independent reasons for action]. Em português, sem rodeios: todos e apenas os fatos institucionais são funções-status; funções-status implicam poderes deônticos, e poderes deônticos sempre fornecem razões, independentes-do-desejo, para a ação [In plain English: all and only institutional facts are status functions; status functions imply deontic powers, and deontic powers provide desire-independent reasos for action]” (Making the Social World, p. 23).

187. Ver J. R. Searle, The Construction of Social Reality (1995), pp. 13-29; ver também J. R. Searle, “What is an institution?”, Journal of Institutional Economics, Vol. 1, No. 1 (2005), pp. 5-10; “Social ontology: Some basic principles”, Anthropological Theory, Vol. 6, No. 1 (2006), pp. 15-18.

188. Ver J. R. Searle, The Construction of Social Reality (1995), pp. 41-57, 80-87.

250

Com a importante exceção da própria linguagem, dizia Searle, “toda a

realidade institucional (...) é criada por atos de linguagem que têm a mesma

forma lógica das Declarações”, ou seja, por atos de linguagem de Declaração que

“mudam o mundo ao declarar que um estado de coisas existe e assim levando

esse estado de coisas à existência” (Making the Social World, p. 12). Temos,

segundo esse princípio lógico-linguístico, uma capacidade de criar uma realidade

ao representá-la como existindo:

“A única realidade que podemos assim criar é uma realidade de deontologia. É uma realidade que confere direitos, responsabilidades, e assim por diante. No entanto, isso não é uma realização trivial, porque estes direitos, responsabilidades (...) são o cimento que une a sociedade humana [The only reality that we can create is a reality of deontology. It is a reality that confers rights, responsbilities, and so on. However, this is not a trivial achievement because these rights, responsabilities, and so on are the glue that holds human society together]” (Making the Social World, p. 89).

A linguagem introduz a deontologia nas relações sociais e cria, dessa

forma, uma realidade institucional com uma estrutura deôntica.189 A linguagem

só cria, assim, realidades deônticas, mas estas só existem por atos de linguagem

de Declaração. A linguagem é a instituição social básica:

“Você pode imaginar uma sociedade que tem uma linguagem mas não tem governo, propriedade, casamento ou dinheiro. Mas você não pode imaginar uma sociedade que tem um governo, propriedade, casamento e dinheiro mas nenhuma linguagem” (Making the Social World, p. 109).

Para Searle, o problema era, então, o de dizer exatamente como a

linguagem é constitutiva:

“Qual é exatamente a forma do ato de linguagem por meio da qual a realidade institucional é criada? Qual é exatamente o status ontológico da realidade assim criada e, por qual tipo de ato de linguagem exatamente ela é mantida? Essas são precisamente as questões que eu estou tentando responder neste livro” (Making the Social World, p. 109).

Mas a própria linguagem não é criada por Declaração, e Searle pergunta:

“Por que há essa assimetria entre a linguagem e outras instituições sociais?”

189. Ver J. R. Searle, “Social Ontology: The Problem and Steps Towards a Solution”, in S. L. Tsohatzidis (ed.), Intentional Acts and Institutional Facts (2007), p. 16.

251

(Making the Social World, p. 110). Ele tenta responder de uma maneira que talvez

nos permita compreender porque a linguagem é a fundação de todas as outras

instituições.190 Searle tenta primeiro minimizar as diferenças entre a linguagem e

as outras instituições, ao mostrar as semelhanças aparentes entre fatos linguísticos e

fatos institucionais em geral:

“Primeiro, a regra constitutiva “X conta como Y” parece funcionar da mesma maneira para a linguagem e para fatos institucionais não-linguísticos [nonlinguistic institutional facts]. Assim, [consideramos que] Barack Obama conta como o presidente dos Estados Unidos [we count Barack Obama as the president of the United States], e [que] a frase “A neve é branca” conta como uma frase do inglês [and we count the sentence “Snow is white” as a sentence of English]. Em ambos os casos, parece que alguma espécie de função-status é criada. Além disso, [consideramos que] o proferimento da frase “A neve é branca” conta como uma afirmação que significa que a neve é branca [we count the utterance of the sentence “Snow is white” as a statement to the effect that snow is white]. A segunda semelhança aparente (...) é que os performativos parecem funcionar da mesma maneira para a criação de atos de linguagem por Declaração como funcionam para a criação de fatos institucionais não-linguísticos [nonlinguistic institutional facts]. Assim os proferimentos de “A guerra está assim declarada” [“War is hereby declared”], e “A reunião está assim adiada” [“The meeting is hereby adjourned”] são criações performativas de fatos institucionais, fatos sobre guerra e adiamento, respectivamente. (...) E, de modo semelhante, proferimentos de “Eu prometo vir vê-lo” [“I promise to come and see you”] e “Eu lhe peço que saia da sala” [“I request that you leave the room”] também são performativos; o primeiro cria uma promessa, o segundo cria um pedido. Reparem, no entanto, que nestes exemplos, identificamos dois tipos diferentes de performativos, que eu denominarei “performativos linguísticos” e “performativos extralinguísticos ou não-linguísticos”. O performativo linguístico cria um ato linguístico, um ato de linguagem tal como uma promessa ou um pedido. O performativo não- linguístico [nonlinguistic performative] é, na verdade, linguístico (é, afinal, um ato de linguagem) mas pode criar outras espécies de fatos institucionais tais como divórcios e adiamentos” (Making the Social World, p. 110).

Qual a diferença, então, entre fatos institucionais linguísticos e fatos

institucionais não-linguísticos ou extralinguísticos?

“A primeira diferença (...) é que os fatos institucionais não-linguísticos requerem representação linguística [grifo nosso] para existir. Portanto, Obama só pode ser presidente, e eu só posso ser um professor, e este carro só pode ser minha propriedade se são representados como tais, e essas

190. Ver também J. R. Searle, The Construction of Social Reality (1995), Capítulo 3 [Language and Social Reality], pp. 59-78.

252

representações são coletivamente reconhecidas ou aceitas [grifos nossos]. Mas as frases do inglês não requerem mais outra representação linguística para serem frases do inglês. (...) Para fazer a distinção [entre a linguagem e fatos institucionais extralinguísticos], eu tenho de introduzir a noção de significação, onde significação consiste na imposição de condições de satisfação a signos ou marcas. E, uma vez que introduzimos essa noção, podemos ver que a maneira como a fórmula constitutiva se aplica aos fatos institucionais não-linguísticos é realmente muito diferente da maneira como se aplica a frases. Portanto, se [consideramos que] Obama conta como o presidente dos Estados Unidos, isso especifica uma operação de contar. Temos de fazer alguma coisa para contá-lo como tal. Mas quando dizemos que um proferimento da frase “A neve é branca” conta como uma afirmação significando que a neve é branca, o “conta como” não especifica, neste caso, uma operação; mais exatamente, o fato de que o proferimento conta como uma afirmação particular é constitutivo da significação do proferimento. (...) Mas o proferimento da frase “Obama é presidente” por si mesmo não é constitutivo de fazer Obama presidente ou de ele ser presidente. A noção de significação que estamos usando aqui é a noção de alguma coisa que tem um conteúdo proposicional num modo ilocucionário. Portanto, a frase “A neve á branca” tem uma significação porque representa, de modo assertivo, o estado de coisas que a neve é branca. Mas o presidente ou o item de propriedade privada não tem dessa maneira significação. Não está no lugar de ou representa alguma coisa [It doesn’t stand for or represent anything].191 Mais exatamente, tem de ser representado como tendo a função-status que tem; de outro modo não pode ter essa função-status. A criação performativa de fatos institucionais linguísticos é muito diferente da criação performativa de fatos institucionais não-linguísticos. (...) resumindo, para fazer uma promessa ou um pedido, tudo o que você precisa é ser um locutor competente, usando a linguagem de acordo com as convenções. Mas, para declarar a guerra, adiar a reunião ou divorciar, você precisa de algo mais do que isso: precisa estar numa posição especial em que uma convenção extralinguística lhe dá o poder de criar [grifos nossos] o fato linguístico correspondente. Esse próprio poder especial tem de ser criado pela linguagem [grifos nossos]. Portanto, o paralelo aparente entre os performativos não-linguísticos para guerra, adiamento, e divórcio e os performativos linguísticos para prometer e pedir é ilusório. Os casos não-linguísticos requerem Declarações [que criam] Funcão-Status [Status Function Declarations] para poder executar a sua função. Mas os casos linguísticos não requerem isso. A significação é tudo o que os casos linguísticos requerem. As próprias significações das frases performativas são suficientes para permitir a um locutor competente executar o ato de linguagem com essas frases. Na criação de fatos institucionais não-linguísticos (...), a criação do fato institucional vai além da significação da frase estreitamente construída. Nesses casos, nós usamos a semântica da linguagem para criar um poder que vai além da semântica. (...) Na criação de fatos institucionais não-linguísticos nós usamos a significação, os poderes semânticos da linguagem, para criar um conjunto

191. Ver J. R. Searle, The Construction of Social Reality (1995), pp. 75-76.

253

de poderes deônticos que vão além dos poderes semânticos. Poderes semânticos são simplesmente os poderes de representar em um modo ilocucionário ou outro, e estes [poderes] incluem o poder de criar atos de linguagem por meio de proferimentos performativos. Mas no caso de fatos institucionais não-linguísticos, quando usamos a linguagem, fazemos mais do que representar; criamos aquilo que é representado. Nós criamos poderes deônticos extralinguísticos, tais como os poderes da presidência ou os poderes do dinheiro e casamento” (Making the Social World, pp. 110-113).

Searle resume essas diferenças no seguinte quadro192:

____________________________________________________________________ Fatos Institucionais Fatos Institucionais

Linguísticos Não-linguísticos

Requisitos para Convenções de linguagem. Convenções de linguagem mais Criação convenções extralinguísticas (elas mesmas criadas pela linguagem).

Elementos Constitutivos Proferimento constitui Proferimento em certas circunstâncias criação. especiais, e por vezes com ações acompanhantes, constitui criação.

Agentes Todo locutor competente Locutor tipicamente requer uma pode criar fatos posição especial ou condição institucionais linguísticos. especial para criar fatos institucionais não-linguísticos.

(Making the Social World, p. 113)

Searle não nega a grande variedade e complexidade da sociedade humana,

mas ele acredita que há um único principio lógico-linguistíco que subjaz a todas

as suas estruturas institucionais: “A ideia básica, e simples, é que todos os fatos

institucionais não-linguísticos são criados, e sua existência é mantida, por atos de

linguagem que têm a mesma forma lógica que as Declarações” (Making the Social

World, p. 122).

Não podemos, portanto, explicar a linguagem mostrando como é

semelhante com jogos. Em Speech Acts, Searle usava a semelhança com jogos e

outros fenômenos institucionais para explicar a linguagem, mas, em Making the

Social World – e Searle não deixa de notar uma certa ironia –, ele insiste que a

192. Ver J. R.. Searle, Making the Social World (2010), p. 113.

254

própria existência dos jogos só pode ser explicada pela linguagem: “Você não

pode usar a analogia com jogos para explicar a linguagem porque você só

compreende os jogos se você já compreende a linguagem” (Making the Social

World, p. 115).

Mas, mais fundamentalmente, e esse é um dos temas principais do novo

livro Making the Social World, logo que temos uma linguagem comum, já temos

uma sociedade: para Searle, “o estado de natureza” é tão impossível para seres

humanos que usam a linguagem (language-using human beings) quanto a existência

de fatos institucionais sem linguagem.193 Searle praticamente não disse nada

sobre política em The Construction of Social Reality, mas ele acredita que, se

considerarmos esse livro juntamente com o seu livro posterior, Rationality in

Action, há toda uma teoria política implícita nessas análises. Em Freedom and

Neurobiology (2007), ele tentou, mas apenas de uma forma abreviada, tornar essa

teoria explícita.194 A sua investigação é uma parte de um projeto, muito mais

amplo, na filosofia contemporânea:

“Na filosofia contemporânea, a questão mais importante é: Como, e até que ponto, podemos reconciliar uma certa concepção que temos de nós mesmos, como agentes conscientes, atentos [mindful], livres, sociais e políticos com um mundo que consiste inteiramente de partículas desprovidas de sentido [meaningless], indiferentes [mindless], em campos de forças? Como, e até que ponto, podemos chegar a uma explicação coerente da totalidade do mundo que reconciliaria o que acreditamos sobre nós mesmos com o que conhecemos, como um fato, da física, química e biologia.195 A questão à qual tentei responder em The Construction of Social Reality era uma questão sobre como pode existir uma realidade social e institucional num mundo [que é] constituído por partículas físicas. Este capítulo [o segundo capítulo] estende essa questão à questão: Como pode existir uma realidade política num mundo [que é] constituído por partículas físicas?” (Freedom and Neurobiology, p. 81).

Temos de evitar, ao responder a essa questão, Searle insiste,

193. Ver J. R. Searle, Making the Social World (2010), pp. 62, 122, 134. 194. Ver J. R. Searle, Freedom and Neurobiology (2007), [Chapter Two: Social Ontology and Political

Power] pp. 79-109; ver também J. R. Searle, Making the Social World (2010), Capítulo 7 [Power: Deontic, Background, Political, and Other], pp. 145-173.

195. Ver J. R. Searle, “The Phenomenological Illusion”, in M. E. Reicher e J. C. Marek (eds.), Experience and Analysis / Erfahrung und Analyse. Wien: öbv&hpt, 2005, p. 318; “Social Ontology: The Problem and Steps Towards a Solution”, in S. L. Tsohatzidis (ed.), Intentional Acts and Institutional Facts (2007), p. 11.

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“(...) postular diferentes domínios ontológicos, um mental e um físico, ou pior ainda, um mental, um físico e um social. Estamos simplesmente falando de uma realidade e temos de explicar como a realidade humana se encaixa nessa única realidade [We are just talking about one reality and we have to explain how the human reality fits into that one reality]”.196

Nos três últimos capítulos de seu livro, Making the Social World, Searle

considera que a sua análise da realidade institucional ajuda a elucidar os

problemas filosóficos da liberdade da vontade, da racionalidade humana, do

poder e dos direitos humanos. A questão “Quais são as vantagens de haver

realidade institucional?” é fácil de responder, segundo Searle, e ele responde

logo, de modo abrupto: “we are better off than animals in countless ways by

living a civilized life” (Making the Social World, p. 143). Mas uma questão menos

fácil como, por exemplo, “Quais são as vantagens de haver a forma lógica

particular das estruturas institucionais que temos?” é, para Searle, muito mais

interessante, e a resposta que ele sugere explora as conexões entre consciência,

liberdade e racionalidade. Sem a consciência da liberdade, as estruturas institucionais são

desprovidas de sentido:

“A experiência da liberdade é peculiar a uma certa espécie de consciência, a consciência de decidir e agir na brecha [a brecha causal entre as razões para as nossas decisões e ações e as atuais decisões e ações que fazemos]. O conceito de racionalidade não é o mesmo conceito que o conceito de liberdade, mas sua área de aplicação é coextensiva. O conceito de racionalidade só se aplica a ações livres porque de outro modo a racionalidade não faria nenhuma diferença. As nossas estruturas institucionais – propriedade, universidades, governo, dinheiro, e assim por diante – se desenvolveram precisamente sob a pressuposição da brecha, e os fatos institucionais no interior dessas estruturas fornecem fundamentos racionais [rational grounds] para as ações livres. (...) Sem a brecha [the gap], as nossas estruturas deônticas são desprovidas de sentido. Não há sentido para uma deontologia num universo que é totalmente mecânico” (Making the Social World, p. 143).

O reconhecimento do caráter deôntico das instituições resume-se ao

reconhecimento de razões, independentes-do-desejo, para a ação.197 O conceito

196. J. R. Searle, Making the Social World (2010), [Prefácio] pp. ix-x. 197. Ver J. R. Searle, Making the Social World (2010), pp. 139-141.

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de liberdade é, portanto, essencial para a noção de realidade institucional tal

como Searle a considera.

Logo que vemos que a consciência, a linguagem e a racionalidade são

todas expressões de uma biologia subjacente mais fundamental, então, dizia

Searle, “parece-me que podemos ter uma filosofia política (...) mais naturalística

que aquilo que tem sido tradicional em nossa sociedade” (Freedom and

Neurobiology, p. 12). E, singularmente, concluía Searle,

“(...) parece-me que a própria possibilidade disso foi criada pela teoria da justiça de Rawls198. (...). Quando eu era um aluno da graduação, acreditava- se de modo geral que a filosofia política estava morta [Peter Laslett, em Philosophy, Politics and Society, escreveu “Por enquanto, pelo menos, a filosofia política está morta”199] (...). (...) a ideia de teoria política substantiva era considerada como obsoleta. (...) Mas, tenho de dizer, a refutação mais efetiva da ortodoxia prevalecente foi fornecida pela publicação do livro de Rawls no qual ele simplesmente fez o que era suposto ser impossível fazer, isto é, fornecer justificações racionais para pretensões substantivas sobre a justiça” (Freedom and Neurobiology, pp. 12-14).

Com a sua teoria geral da ontologia social, Searle tentava desenvolver um

novo ramo da filosofia que poderia ser chamado, dizia ele, “A Filosofia da

Sociedade”:

“Estou propondo que “A Filosofia da Sociedade” [“The Philosophy of Society”] deva ser considerada como um ramo legítimo da filosofia juntamente com disciplinas tais como a filosofia da mente e a filosofia da linguagem. Eu acredito que isso já está acontecendo, como é evidenciado pelo interesse recente por questões de “ontologia social” e de “intencionalidade coletiva”. Poder-se-ia objetar que já existe um ramo reconhecido da filosofia denominado “filosofia social”, sobre o qual há muitos cursos universitários. Mas os cursos de filosofia social, tal como tradicionalmente têm sido concebidos, tendem a ser ou a filosofia da ciência social ou uma continuação da filosofia política, por vezes denominada “filosofia social e política”. (...) Eu estou sugerindo que existe uma linha de pesquisa que é mais fundamental que a filosofia da ciência social ou a filosofia social e política, a saber, o estudo da natureza da

198. J. Rawls, A Theory of Justice. Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1971. 199. P. Laslett, Philosophy, Politics and Society. Oxford: Blackwell, 1956, p. vii. Ver C.Taylor,

“Neutrality in Political Science”, in Readings in the Philosophy of Social Science. Michael Martin e Lee C. McIntyre (eds.). Cambridge (Mass.): The MIT Press, 1967, [Capítulo 35] pp. 547-570; I. Berlin, “La Théorie Politique Existe-t-elle?”, in Revue française de science politique, Vol. 11, No. 2 (1961), pp. 309-337.

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própria sociedade humana: qual é o modo de existência de entidades sociais tais como governos, famílias, reuniões sociais como um coquetel [cocktail parties], férias de verão, sindicatos, jogos de beisebol e passaportes? Eu acredito que, se conseguirmos uma compreensão mais clara da natureza e do modo de existência da realidade social, isso aprofundará a nossa compreensão dos fenômenos sociais em geral e ajudará a nossa pesquisa nas ciências sociais. Precisamos não tanto de uma filosofia das ciências sociais do presente e do passado quanto precisamos de uma filosofia para as ciências sociais do futuro e, na verdade, para todos aqueles que querem uma compreensão mais profunda dos fenômenos sociais.200 Esta investigação está historicamente situada. Não é o tipo de coisa que poderia ter sido empreendida cem anos atrás ou até mesmo cinquenta anos atrás. (...) do século XVII até o recente século XX, a maioria dos filósofos que pertencem à tradição ocidental se preocupava com questões epistêmicas. Até mesmo as questões sobre a linguagem e a sociedade eram construídas de modo largamente epistêmico: Como conhecemos o que outras pessoas querem dizer quando elas falam? Como sabemos que as afirmações que fazemos sobre a realidade social são realmente verdadeiras? Como as verificamos? Essas são questões interessantes, mas eu as considero como marginais ou secundárias [peripheral]. Um dos aspectos agradáveis de escrever na era atual é que conseguimos em grande parte superar a nossa obsessão de trezentos anos com a epistemologia e o ceticismo.201 Sem dúvida muitas questões epistêmicas interessantes permanecem, mas, nesta investigação, eu as ignoro em grande parte. É um fato estranho da história intelectual que os grandes filósofos do século passado tiveram pouco ou nada a dizer sobre a ontologia social. Estou pensando em figuras tais como Frege, Russell, e Wittgenstein, e também como Quine, Carnap, Strawson e Austin. Mas, se eles não abordaram os problemas que me interessam neste livro, eles desenvolveram técnicas de análise e abordagens da linguagem que eu intento usar. Colocando-me sobre seus ombros, (...) vou tentar olhar para um terreno que eles não viram” (Making the Social World, pp. 5-6).

O objetivo de Searle, ao analisar a estrutura e as relações entre a mente, a

linguagem e a sociedade, foi sempre, tal como o tinha feito em Speech Acts, o de

tentar avançar para chegar a uma teoria geral adequada. Em Mind, Language and

Society (1998), Searle afirma que aceita “a visão do Esclarecimento” [“the

Enlightenment vision”] – isto é, ele aceita as assunções gêmeas (“que o universo era

completamente inteligível e que nós éramos capazes de uma compreensão

200. Ver J. R. Searle, “The future of philosophy”, Philosophical Transactions of the Royal Society, Vol. 354, No. 1392 (1999), pp. 2077-2078; “Le temps”, in Quelle philosophie pour le XXIe siècle? (2001), pp. 217-219.

201. Ver J. R. Searle, “The future of philosophy”, Philosophical Transactions of the Royal Society, Vol. 354, No. 1392 (1999), pp. 2072-2073; “Le temps”, in Quelle philosophie pour le XXIe siècle? (2001), pp. 204-212.

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sistemática de sua natureza”) que encontraram expressão no Esclarecimento

europeu –, e que pensa, assim, “que o universo existe de modo totalmente

independente de nossas mentes e que, dentro dos limites postos pelos nossos

dotes evolutivos [evolutionary endowments], podemos chegar a compreender sua

natureza”.202 Searle sugere, ainda, logo no início do século XXI, que saímos da

era socrática de Wittgenstein para entrar em uma era aristotélica, “pós-cética” ou

“pós-epistêmica”, de teorização sistemática em filosofia.203

202. J. R. Searle, Mind, Language and Society (1998), pp. 2-4. Ver P. Pettit, “Analytical Philosophy”, in A Companion to Contemporary Political Philosophy. Robert E. Goodin, Philip Pettit e Thomas Pogge (eds.). Oxford: Blackwell, 2007 (2ª ed.), p. 5.

203. Ver J. R. Searle, “Le temps”, in Quelle philosophie pour le XXIe siècle? (2001), pp. 211-212.


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