A Desmistificação da Escola: Por Uma Educação Inclusiva
The Demystification of School: for an Inclusive Education
Viviane Lemos de Jesus Moreiras
Ana Mercês Bahia Bock
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/ PUC-SP, Brasil
Resumo:
Refletir sobre questões que permeiam a educação, necessariamente nos remete a procurar
compreender qual o real papel desempenhado pela escola. Quais são os movimentos e interesses
que circundam seu desenvolvimento? A escola que aí está atende às necessidades da
coletividade ou detém-se a um público reduzido? É possível escapar ou estamos condenados a
viver de forma massificadora e sem perspectivas? O presente trabalho objetiva compreender a
mistificação da escola com vistas à implementação de uma educação que se faça inclusiva e de
qualidade. Baseando-se nos trabalhos do Prof. Dr. Bernard Charlot, da França, tem-se por meta,
compreender a ideologia presente na teoria pedagógica sobre a escola e as conseqüentes
concepções naturalizantes no campo da educação. Nesse sentido, torna-se também necessário
fazer a crítica à concepção de natureza humana e suas decorrências na conceituação de
educando, escola e educação. Compreender o verdadeiro papel concebido à escola é ter a
clareza de sua responsabilidade, quanto formadora da personalidade humana e da própria
identidade escolar. A partir destes pressupostos e do exercício da crítica ideológica, deve-se
superar as concepções naturalizantes que são impeditivas de uma real educação inclusiva, na
medida em que lidam com a diferença como anormalidade ou algo incomum. A reflexão
construtiva deve possibilitar uma nova visão de educação, oposta à educação atual, que exclui,
massifica e é mera reprodutora das desigualdades sociais.
Palavras-Chave: Desmistificação Escolar; Educação Inclusiva; Ideologia Pedagógica;
Massificação; Desigualdade Social.
Abstract
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Reflecting on issues that permeate education necessarily brings us to seek the understanding of
the true role played by school. What are the movements and concerns that surround its
development? Does the school meet the needs of our society or is it holding itself for a smaller
audience? Is it possible to escape from them or are we condemned to be massificated and to live
without prospects? This research aims at understanding the mystification of school, with the
goal of implementing an inclusive and high quality education. Based on Prof. Bernard Charlot´s
work, PhD, from France, this work wants to understand the ideology included at the
pedagogical theory about the school, and the consequent natural acceptance of the society the
way it is, without thinking or questioning. In this sense, it is also necessary to make a criticism
on the conception of human nature and its conceptual effects on the understanding of student,
school and education. Understanding school´s true role is the same as to know its responsibility
as a maker of human personality and of its own identity as school. From these assumptions, and
exercising an ideological criticism, we must overcome the conceptions that bring us the natural
acceptance of the society; these conceptions are an obstacle to a true inclusive education,
because they deal with the differences as something abnormal or unusual. A constructive
reflection must provide a new vision to the education, which is opposed to today´s education,
that massificates, excludes, and acts as a mere reproduction of social inequalities.
Key words: School’s desmistification; Inclusive education; Ideological pedagogy;
Massification; Social inequality.
Introdução
Refletir sobre questões que permeiam a educação, necessariamente nos remete a
procurar compreender qual o real papel desempenhado pela escola. Quais são os
movimentos e interesses que circundam seu desenvolvimento? A escola que aí está
atende às necessidades da coletividade ou detém-se a um público reduzido? Quais as
políticas públicas para a educação? É possível escapar ou estamos condenados a viver
de forma massificadora e sem perspectivas?
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Tantas questões emergem na tentativa de desnaturalizar as questões educativas que,
muitas vezes, estão ocultadas sob a construção ideológica presente neste campo.
Inúmeras perguntas podem ser feitas em relação ao universo chamado escola, porém
deve-se ter claro, em primeira instância, quais são as finalidades do trabalho escolar.
Sua existência limita-se apenas a preparar para o mercado de trabalho e atribuir
informações de melhor qualidade ou possui uma tarefa muito maior do que essa?
Entende-se por objetivo primordial que o espaço escolar é aquele onde se deve garantir
os objetivos educacionais; é o lugar capaz de propiciar uma melhor qualidade de vida do
educando, por meio do qual se consiga mostrar a ele que a felicidade é um processo
permanente, com momentos de erros e acertos (Neto, 2002); que na escola acontecem
os processos de individualização, de socialização e de humanização, como nos ensina
Charlot (2005). A escola é uma das principais ferramentas sociais de educação.
De acordo com Cortella (2008) pensar a finalidade da educação implica posicionar-
se sobre o papel desempenhado pela escola e a relação que a mesma estabelece com a
sociedade. São várias as posições construídas ao longo da história, mas podem ser
aglutinadas em três grandes blocos. A seguir apontaremos cada um deles sob a visão
desse autor.
Concepções acerca do universo chamado escola
A primeira concepção que teve forte influência no Brasil, principalmente na segunda
metade do século XX, tornando-se dominante a partir de então e que ainda aparece
como forte referência no dia-a-dia pedagógico e nos debates sobre educação em nossa
sociedade é chamada de “otimismo ingênuo”.
A idéia contida nessa concepção é a de que a Escola tem o poder de salvar toda uma
sociedade, atribuindo a ela um caráter de poder muito maior ao que possui. Carrega a
certeza de que a escola tem poder de transformação sobre a sociedade, produzindo uma
melhora substancial em seus modos de vida. A escola é vista como salvadora. Se de um
lado tal posição se mostra otimista por valorizar a Escola, por outro se apresenta
extremamente ingênua, por atribuir a ela uma “autonomia absoluta” em relação às
questões e problemas da sociedade, capaz de pôr fim as mazelas existentes na sociedade
como a desigualdade, a pobreza, a fome, entre outras.
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Ainda sob o olhar do “otimismo ingênuo” a profissionalidade docente passa por um
campo missionário, é como se fosse uma vocação e sob tal pretexto há um
distanciamento dos educadores de movimentos sindicais, atribuindo à atuação
educacional um caráter de neutralidade, livre de acepções sociais, e a atividade do
educador é desvinculada de qualquer posicionamento político.
Por volta dos anos 70, do século XX, outra configuração se instalava no campo da
educação no Brasil, proveniente principalmente do campo crítico francês (Bourdieu e
Passeron). Esta ao contrário da que predominava até então, vinha para atribuir a Escola
um papel de reprodutora: da ideologia dominante e da força de trabalho necessário à
reprodução do capital. Vista como um instrumento incontestável de dominação, onde a
escola não possuía qualquer possibilidade de se libertar das forças dominantes ligadas
ao capital. Tal concepção fora chamada de “pessimismo ingênuo”. Sob esse aspecto a
Escola passa a ter a função de reprodutora da desigualdade social e o educador ocupa a
posição de “um agente reprodutor da ideologia dominante, ou seja, mero funcionário
das elites” (Cortella, 2008, p. 134).
Através do “pessimismo ingênuo” a Escola perde qualquer autonomia e é,
enfaticamente, controlada pela classe dominante. O autor atribui o pessimismo ao
caráter da impossibilidade da Escola encontrar um caminho de ruptura das injustiças
sociais, porém considera ingênua na medida em que não analisa a questão escolar
considerando as contradições vividas em seu acontecer cotidiano. Cortella considera
positivo o surgimento de tal concepção, na medida que questionou a pretensa
neutralidade da atividade educacional, característica das visões otimistas ingênuas. A
educação passava agora a ser vista como estando vinculada a um conjunto de atividades
políticas de uma estrutura social. Dessa forma pontua:
No entanto, essa concepção é também ingênua, pois
ela não radicaliza a análise e sim a sectariza, ao
obscurecer a existência de contradições no interior
das instituições sociais, atribuindo-lhes um perfil
exclusivamente conservador; as instituições sociais,
por não serem monolíticas, são permeáveis aos
conflitos sociais e às mudanças contínuas do tecido
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político em confronto nas sociedades de classes
(Cortella, 2008, p. 135).
Por volta dos anos 80, outra concepção toma corpo, chamada pelo autor de
“otimismo crítico”; o ideário presente em tal concepção busca romper com as questões
de neutralidade e aborta a questão da escola mediante a análise das contradições que
permitem que se possa considerar a possibilidade de a escola contribuir para a
transformação social.
Michels (2006), assim como o autor apresentado acima, discute o papel que a escola
desempenha na sociedade e o seu poder de transformá-la. Em sua análise aponta que a
escola é reprodutora da ideologia dominante, uma vez que legitima a injustiça social e
privilegia determinados saberes em detrimento de outros tendo, basicamente, uma visão
que atende aos interesses da classe dominante, dessa forma, acaba por expressar a
desigualdade “organizada” pela escola para atender crianças, jovens e adultos. Para ela,
deixar de considerar tais questões é fazer uma análise ingênua sobre o papel social da
escola, principalmente, quando a palavra de ordem é uma escola inclusiva para todos.
Sob essa perspectiva cabe um parênteses sobre a situação educacional na qual nos
encontramos: muitos estudos têm-se dedicado à compreensão das causas do fracasso
escolar das crianças ao longo dos tempos. Dentre as causas apontadas nos estudos em
geral, estão a influência da origem social, da prática pedagógica do professor e da
linguagem sobre o padrão de estimulação intelectual das crianças. Charlot (2005)
admite que há uma correlação entre a origem social da criança e o seu sucesso ou
fracasso escolar, porém afirma-se que isso não é um determinismo causal.
Sob esse olhar discussões emergem referindo-se a crise da educação, porém a crise
assume no cenário um contexto histórico e não mais momentâneo. Sempre estivemos
em crise, ora pelo currículo escolhido ser pouco apropriado para trabalhar com nossas
crianças, ora pela negação de acesso aos educandos, ora pelo fracasso escolar, ora pela
intensificação das desigualdades sociais em função de um conteúdo elitista, entre tantas
outras crises. Concordamos com Cortella (2008) quando diz que a crise é a mesma, que
se trata de um projeto de exclusão e dominação social que se faz presente e “que precisa
ser derrotado, para não ficarmos permanentemente aprisionados no maniqueísmo
mercantil ou na disfarçada delinqüência estatal” (p. 10).
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A educação como processo social e prática política
Postas essas três posições podemos então afirmar que, ao nosso ver, a educação
escolar é um processo social e político carregado de contradições que permitem
considerar a escola/ educação como lugar de transformação e de manutenção; um lugar
de conflitos; de renovação e conservadorismo. A escola é lugar do novo, da criação,
mas é também lugar da cumplicidade com as camadas dominantes.
A educação está intimamente relacionada aos interesses da sociedade; acompanha
seu desenvolvimento e interfere nele. É assim uma atividade social de natureza política.
Ela está a cargo de uma instituição da sociedade: a escola. É na escola que se ensinam
os modelos de conduta e de formação de um cidadão desta sociedade; é na escola que se
ensinam valores e formas de comportamento; se fortalecem idéias e projetos sociais.
Se quisermos indicar relações mais amplas, pode-se citar a relação e o lugar que a
escola tem em projetos ditados por grandes agências financiadoras. Não se pode ignorar,
por exemplo, a influência do Banco Mundial e do FMI (Fundo Monetário Internacional)
nas políticas domésticas dos países do Terceiro Mundo; a intervenção desses
organismos nas políticas públicas, em especial na educação, demonstra a relação clara e
forte entre as questões econômicas de uma sociedade e sua educação. É preciso, porém
que saibamos “falar mais alto” diante dessas políticas e guiarmos nossa prática de forma
consciente, participativa e igualitária, tendo a clareza da condição política da educação.
Nesse aspecto, dizer que a educação é política é entender que a política educacional se
faz em diversas instâncias e que acontece todas as vezes que nós atuamos na vida
coletiva.
Charlot (1979) é um dos autores que caracteriza de forma clara a relação da
educação com os interesses em questão na sociedade, demonstrando o caráter político
da educação. A importância da educação na formação dos sujeitos sociais, por meio do
aprendizado dos modelos de comportamentos sociais, sendo eles: afetivos, de conduta
religiosa, de trabalho, etc.
A escola desempenha, portanto, um papel político na
medida em que propaga uma educação que tem, ela
própria, um sentido político. Assim, os grupos
sociais e as classes sociais procuram fazer da escola
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o instrumento de suas finalidades, de seus interesses
e da difusão de suas idéias (...) (Charlot 1979, p. 19).
Tais modelos, porém, não são iguais, homogêneos, pois a sociedade comporta uma
heterogeneidade tamanha, uma vez que nem todas as crianças são educadas no mesmo
meio social. Dessa forma, é preciso considerar que a sociedade é dividida em classes e,
como aponta Charlot (1979), não são apenas diferentes, mas sim antagônicas. Tal
discussão apontada pelo autor compreende que cada criança assimila e incorpora os
modelos sociais da classe social a que pertence, entretanto, não estão livres de sofrerem
fortes influências dos modelos socialmente dominantes. Dessa forma, modelos sociais
apresentam uma significação política.
A presente discussão apresenta caráter ideológico na medida em que a educação,
transmitindo valores e idéias políticas sobre a sociedade assim como, oculta esta
tarefa/influência sob o manto da tarefa de transmissão de cultura, tomando esses
conteúdos como universais e não permitindo que se desvele o jogo de interesses
existente. O discurso da educação oculta as diferentes realidades existentes, em especial
em países caracterizados pela desigualdade social. Nesse sentido não é falso falar em
liberdade o que se faz falso é dizer que temos liberdade em um país desigual, através do
qual só quem está do outro lado da moeda que são aqueles que fazem parte da classe
dominante, que detêm o poder econômico e conseqüentemente o político podem gozar
de uma certa liberdade.
As teorias sobre a educação são segundo Charlot (1979) ideológicas porque
apresentam um conjunto de idéias que são ocultadoras da realidade social que está na
base da educação e da escola. É fundamental enfatizarmos que as teorias sobre a
educação têm tido a função de ocultamento da realidade, de justificar muitas vezes a
desigualdade social, a dominação de classes e se apresentam falsas na pretensão de
serem verdadeiras. Assim:
A idéia de liberdade não é falsa, mas sua teorização
burguesa, que impregna a idéia tal como é difundida
na sociedade, deu-lhe uma significação que permite
fazer dela um uso ideológico.
O homem é efetivamente mais ou menos livre no seu
trabalho, em suas relações com o próximo, na sua
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vida cotidiana, etc. Mas essa liberdade apresenta
sempre uma forma determinada, em condições
sociais determinadas (Charlot, 1979, p. 18).
Quando as teorias pedagógicas ocultam a significação política da educação
Charlot (1979) aponta o ocultamento da significação política da educação por meio
de uma elevação de seu sentido cultural. A discussão que aqui se estabelece é a de que
se a cultura individual é quem determina a posição do indivíduo na sociedade ou se a
mesma é determinada pelo social.
De acordo com o autor “afirmar que a educação é política é considerar que é a
cultura individual que é determinada pela situação social, e não o inverso” (p. 26). Para
tanto:
A criança é, antes de tudo, formada para ter certos
comportamentos sociais e ocupar certo lugar na
sociedade. Numa sociedade dividida em classes, a
situação social do indivíduo resulta essencialmente
de seu papel na divisão social do trabalho. É preciso,
portanto, para compreender a significação política da
educação em nossas sociedades, não isolar sua
função cultural de sua função social e não esquecer,
sobre tudo, que a educação prepara o indivíduo para
ocupar um lugar na divisão social do trabalho. Tal é,
por trás dos fins ideais enunciados pela pedagogia, o
resultado real mais importante da educação (Charlot,
1979, p. 27).
A educação, portanto, é política porque tem a ver com interesses coletivos e a
pedagogia acaba muitas vezes elevando o sentido cultural da educação e mascarando
ideologicamente sua significação que é também política e social.
A sociedade cultua as diferenças determinando a cultura do indivíduo conforme já
apontamos, pelas suas realidades econômicas, sociais e políticas. Charlot (1979) aponta
que o considerado é justamente o contrário, a teoria da educação considera que “a
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situação social do indivíduo é uma conseqüência de sua formação cultural, e que se
pode conceber a cultura do indivíduo sem referência direta às realidades sociais” (p.
28).
Dentre as inúmeras instituições – políticas, sociais, religiosas, entre outras, há uma
disputa de projetos que melhor atendem suas necessidades, dessa forma, a educação
prepara sujeitos para essa vida coletiva, complexa que tem, implicitamente, a disputa
desses projetos que hoje caracterizam-se pelas diretrizes do Banco Mundial (que
interfere e determina tais projetos) com suas concepções neoliberais.
Como já apontado, Charlot (1979) defende a idéia de que a pedagogia apresenta
incansavelmente a educação como um processo cultural, ocultando dessa forma sua
significação que também é social e política. Não se pode perder de vista que a educação
apresenta conseqüências políticas, mais que isso, ela é social e politicamente
determinada (idem). Nesse sentido:
Mascarando a significação política interna da
educação, a pedagogia não é vítima de um erro, de
um esquecimento ou de uma negligência; de fato, ela
funciona como uma ideologia. A pedagogia camufla
ideologicamente a realidade econômica, social e
política da educação por trás de considerações
culturais, espirituais, morais, filosóficas, etc. O que
ela mascara, antes de tudo, é a significação política
da educação numa sociedade onde sevicia a
dominação de classe, é a influência exercida sobre a
educação pela divisão social do trabalho e pela luta
de classes (Charlot, 1979, p. 30).
Dessa forma, o indivíduo acaba sendo preparado para a desigualdade de classes e,
conseqüentemente, o que se valoriza socialmente é o poder, a virilidade, a perfeição, o
indivíduo que se destaca e que está apto a lutar no mercado competitivo, todos atributos
naturais dos sujeitos. A visão naturalizante se evidencia. Se assim o é, o erro está em ser
diferente do padrão proposto, perpetuando assim o crescimento de uma visão
reducionista de uma sociedade que é efetivamente complexa e tem em sua essência a
diversidade humana. É esse o ponto principal das construções coletivas: somos iguais
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perante a lei de direitos e deveres, porém somos seres individuais, cultuando o respeito
às diferenças em todos os aspectos: físicos, sociais e psicológicos. Mas as diferenças
entre sujeitos, em perspectivas naturalizantes, são vistas a partir das noções de
desigualdade, de patologia, do incomum. Diferença se torna fonte de desigualdades.
Esta leitura apresentada e aqui criticada tem seu respaldo em orientações e diretrizes
do Banco Mundial para a educação, que, na década de 70, deixa de falar em igualdade e
passa a falar em eqüidade, pois com o capitalismo e o avanço do neoliberalismo não há
possibilidades de se viver igualdade plena.
A política para a sociedade se articula com a política para a educação.
Torres (1998) apresenta o ponto mais significativo em relação à abordagem que
queremos trazer para esse trabalho quando falamos em Banco Mundial:
O BM não apresenta idéias isoladas, mas uma
proposta articulada – uma ideologia e um pacote de
medidas – para melhorar o acesso, a eqüidade e a
qualidade dos sistemas escolares, particularmente do
ensino de primeiro grau, nos países em
desenvolvimento. Embora se reconheça que cada
país e cada situação concreta requerem
especificidade, trata-se de fato de um “pacote” de
reforma proposto aos países em desenvolvimento
que abrange um amplo conjunto de aspectos
vinculados à educação, das macropolíticas até a sala
de aula (p. 126).
No setor social, a educação é vista como um instrumento de redução da pobreza. O
Banco Mundial enfatiza esse aspecto essencialmente remetendo a escola ao papel de
formadora de “capital humano” (Soares, 1998). Ou seja, uma mão-de-obra bem educada
é capaz de agregar a um determinado produto um valor muito maior. Nesse contexto,
Corragio (1998) complementa o pensamento quando diz:
A concepção subjacente à insígnia “investir nas
pessoas” é aquela segundo a qual, tendo melhor acesso
aos serviços básicos, os pobres terão maior capital
humano e, portanto, maior probabilidade de realizar
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trabalhos produtivos e de obter renda. Entretanto, em
uma economia de mercado, a efetivação dessa
capacidade depende do acesso a outros recursos (terra,
crédito, tecnologia, informação etc.) e da organização
sócio-técnica dos usos do excedente econômico: da
estrutura dos investimentos de capital, das tecnologias
desenvolvidas, dos bens e serviços que produz etc. (p.
91-92).
A política educacional não tem sido uma representação do espaço da voz coletiva,
Souza (2006) observou que há uma ausência nas políticas públicas da experiência e da
história profissional e política de quem realmente faz a escola e em função disso, as
regras e leis que regem o cotidiano escolar chegam vazias de uma real aplicabilidade e
se perdem no trajeto até o que de fato acontece na sala de aula.
A escola desmistificada para todos
E por fim, acrescenta-se aqui a questão da inclusão. Vimos como as idéias
neoliberais, trazidas ao campo da educação pela influência do Banco Mundial, são
excludentes. É neste cenário que vamos assistir o desenvolvimento da proposta da
educação inclusiva.
Uma educação que se faça inclusiva, tem sido amplamente discutida no campo
educacional. A legislação brasileira caminha para uma visão progressista e avançada no
que diz respeito à garantia dos direitos de pessoas com necessidades especiais na escola.
Porém, a existência da lei não garante o acesso e a legitimidade da inclusão dentro da
escola.
Quando trouxemos para essa discussão as contribuições do professor Bernard
Charlot, mostramos o quanto a ideologia presente no campo educacional e o
ocultamento de seu papel podem estagnar o movimento da escola com vistas a uma
transformação. Não queremos dessa forma, embarcarmos em um “otimismo ingênuo”
como Cortella (2008) tão bem nos abriu os olhos, pois temos a clareza de que a
mudança ocorrerá conjuntamente com outros espaços sociais, mas há de encontrar um
caminho, uma pequena ruptura para a transformação desse espaço coletivo em que
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vivemos. E a escola sendo lócus dessa ação que é social, política, cultural e coletiva se
demonstra o berço para o “aleitamento” da mudança.
A preocupação aqui apresentada é a de que quando se apresenta uma visão
naturalizante da educação e do mundo, tem-se a idealização de um comportamento
esperado, de algo perfeito, há um caráter ideológico mediante a idéia de que há uma
natureza humana. Dessa forma, tudo ou todo aquele que se afasta de um padrão
esperado não é apenas o diferente, mas o anormal, o deficiente, o incapaz. A
naturalização presente no pensamento ideológico sobre a educação, em nossas
sociedades atuais, tem sido um dos maiores impedimentos ao desenvolvimento pleno de
uma educação inclusiva. A forte noção de que os sujeitos são dotados de uma natureza
humana, natureza esta que a escola ajuda a desenvolver-se e atualizar-se por meio da
cultura, tem levado os professores e mesmo os estudantes e pais a pensarem e avaliarem
os sujeitos a partir de um padrão, tomado como verdadeiro. A partir daí toda diferença é
tomada como anormalidade. Sendo assim impedem a efetivação da inclusão, pois tal
ocultamento incentiva e fala da inclusão, como acolhimento da deficiência e não da
diferença.
Nesse sentido, ao falar das diferenças e em especial, trazermos para essa discussão a
deficiência, entendemos que concebê-la como “erro” e/ou patologia é fator gerador de
sofrimentos (Moreiras, 2008).
Quando apontamos sofrimentos é em função da redução da pessoa com deficiência
na própria condição de deficiência, descaracterizando assim o sujeito, ele deixa de ser
alguém para ser a ineficiência constituída. A essa transformação da totalidade da pessoa
com deficiência, Amaral (1998) denomina “Generalização indevida”.
Concordamos com a autora quando afirma que utilizamos um protótipo de perfeição
para categorizar ou validar o outro:
A aproximação ou semelhança com essa idealização em
sua totalidade ou particularidades é perseguida,
consciente ou inconscientemente, por todo nós, uma vez
que o afastamento dela caracteriza a diferença
significativa, o desvio, a anormalidade. E o fato é que
muitos e muitos de nós, embora não correspondendo a
esse protótipo ideologicamente construído, o utilizamos
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em nosso cotidiano para a categorização/validação do
outro (Amaral 1998, p. 14).
Sendo assim, pensar em uma educação inclusiva é atribuir a escola o objetivo de
atender a todos os alunos, oferecendo uma educação de qualidade e que inclua a todos
sem distinção. Incluir significa que a educação tem que abranger toda a diversidade
existente na humanidade: diferenças de gênero; étnicas; raciais; sociais; políticas;
religiosas; e diferenças de saúde: física e mental.
Estudando nossa história, é possível que se tenha um panorama de seu desenrolar
que foi marcada por desigualdades e exclusões, tem-se a confirmação de que a escola
produziu através de suas práticas o incentivo à segregação. Por sua vez, a continuidade
dessa prática intensifica as injustiças e acaba “produzindo”, nesse contexto, a
manutenção da sociedade em que vivemos.
É mister que tenhamos uma escola que inclua e incorpore a participação de todos;
uma escola que tenha intencionalidade, que ensine e aprenda; uma escola que transmita
e produza conhecimentos capazes de transformar-se e que transforme a sociedade. Uma
escola mundo onde caibam todos os mundos, todas as formas de ser sujeito que nossa
sociedade tem possibilitado.
A educação escolar baseia-se numa constante busca de um paradigma que defina
seus reais objetivos: em nosso entendimento, tais objetivos são o de garantir uma boa
qualidade de ensino e uma educação que abarque, dentro da diversidade, o respeito à
singularidade do educando.
O que se pretendeu aqui foi articular a política dominante em nossa sociedade com
as formas dominantes de pensar os sujeitos e o mundo. A partir daí ponderar a relação
que estas questões sociais mantêm com a educação e por fim, indicar a impossibilidade
de uma real educação para a inclusão enquanto não superarmos as visões naturalizantes
que têm marcado nosso pensamento em educação.
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Notas sobre as Autoras
1. Viviane Lemos de J. Moreiras é Pedagoga, Especialista em Educação,
Mestranda em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo/ PUC-SP, Bolsista CNPq, sob orientação da Profª Dra. Ana Mercês Bahia Bock.
2. Ana Mercês Bahia Bock é Psicóloga, Doutora em Psicologia Social pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora titular do Departamento de