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INTRODUÇÃO
Pedagogical experience demonstrates that direct instruction in
concepts is impossible. It is pedagogically fruitless. The teacher who attempts
to use this approach achieves nothing but mindless learning of words, an
empty verbalism that stimulates or imitates the presence of concepts in the
child. Under these conditions, the child learns not the concept but the word,
and this word is taken over by the child through memory rather than thought.
--- Lev S. Vygotski
A presente investigação traz como objeto de estudo o brincar de crianças com
transtornos do desenvolvimento, mais especificamente os que se enquadram no espectro
do autismo1. A principal intenção é verificar como evoluem as relações com o lúdico e
se é possível o jogo simbólico, considerando as experiências desenvolvidas na educação
infantil.
Objetivos específicos da pesquisa
- Estabelecer relações entre concepção de criança e transtornos do desenvolvimento;
- Argumentar sobre a psicologia Histórico-cultural em suas possíveis articulações com
os quadros de transtornos do desenvolvimento;
- Conceituar jogo para fins deste estudo;
- Dar visibilidade à brincadeira de uma criança com transtorno do desenvolvimento;
1 Revisado em maio de 2013, o novo DSM-5 (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – 5ª
edição) especifica que nos Transtornos do Espectro do Autismo (TEA) há déficit social e de comunicação
que comprometem a capacidade funcional. Os sintomas necessitam começar na infância, precocemente, e
o diagnóstico continua clínico, sem marcadores biológicos. No Brasil, o diagnóstico oficial baseia-se no
CID-10 (Código Internacional de Doenças), documento que ainda está de acordo com a versão anterior do
DSM-IV (4ª edição). O CID-10 (1993) usa a denominação Transtornos Globais do Desenvolvimento
(TGDs), os quais incluem, além das síndromes do espectro do autismo, as síndromes de Rett e de
Asperger, o transtorno invasivo do desenvolvimento sem especificação e o transtorno desintegrativo da
infância. Diante de um contexto acadêmico que traz muitos questionamentos a respeito do autismo e suas
questões sociais (a ideia de medicalização da infância e seus efeitos, dentre outros, são exemplos disso na
sociedade contemporânea), optou-se por adequar a terminologia utilizada nessa investigação à Política de
Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), que adota a expressão
“transtornos do desenvolvimento” para referir-se a esses quadros. Necessário o reconhecimento de que
essa expressão abrange outras especificidades, discussão que não será explorada devidamente, por que
não é o foco desse estudo.
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- Verificar como evoluem as relações com o lúdico sob a ótica da abordagem Histórico-
cultural;
- Considerar as ações de natureza simbólica na brincadeira dessa criança e concluir
sobre suas possibilidades de jogo simbólico.
Partindo da definição de Mendes (2010a) – a inclusão “como a participação
plena da criança com necessidades educacionais especiais em programas e atividades
para crianças com desenvolvimento típico” (p. 50) –, o principal objetivo da educação
com princípios inclusivos concentra-se na participação qualitativa dessa criança nas
propostas de escolas regulares. Por isso, na educação infantil, a qual, segundo as
Diretrizes Curriculares Nacionais (2010), “deve ter como eixos norteadores as
interações e a brincadeira” (p. 25), o grande desafio é tornar acessível à criança tanto a
construção de interações proveitosas quanto o avanço de suas relações com o universo
lúdico. Esses dois eixos constituem os objetivos escolares na educação dessas crianças.
Quanto às interações, apesar das dificuldades nas relações sociais, a insistência
de um parceiro, inicialmente o educador, tem como consequência quase que inevitável a
construção de um vínculo, ainda que com suas limitações. Já o brincar possui outra
complexidade: há o indicativo de que essas crianças não brincam ou de que são
incapazes de engajar-se no jogo simbólico2.
Essa concepção advém das referências teóricas existentes acerca do quadro
sintomatológico dos transtornos do desenvolvimento e é sustentada por diversas
abordagens etiológicas, variando desde acepções que consideram uma falha cognitiva
neurológica no processo desenvolvimento da meta representação (ASSUMPÇÃO JR.,
1997; FERNANDES, 2003b) até a uma condição psíquica assim estruturada
(JERUSALINSKY, 1984).
O documento oficial do Ministério da Saúde intitulado Linha de Cuidado para a
Atenção Integral às pessoas com Transtorno do Espectro do Autismo e suas famílias no
Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, refere-se à brincadeira na definição dos
parâmetros diagnósticos. Em versão de consulta pública, consta entre as “características
2 Na educação infantil, “interações” e “brincadeira” são eixos articulados em praticamente todas as
situações, sendo uma proposta abrangente, que contempla além do jogo simbólico, os jogos de
construção, regras etc. Não se trata de “conteúdos” de determinada “etapa da escolarização”, mas eixos
norteadores, pensados como o contexto de significações da educação infantil, e que devem ser acessíveis
para todas as crianças.
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clínicas de crianças com risco para transtorno” (2013, p. 51), para a criança por volta de
18 meses, que esta “Não se interessa por jogos de faz de conta” (Id.).
No mesmo documento, outras questões são pontuadas, seguidas das respostas
indicativas, no intuito de nortear os profissionais da área médica nas consultas de rotina,
entre elas: “O seu filho brinca de faz de conta, por exemplo, finge falar ao telefone ou
cuida de uma boneca? (não)” (Ibid., p. 53). Para a referida fonte,
os jogos de faz-de-conta e as brincadeiras de imitação estão comumente
ausentes, e o foco de interesse da criança pode estar exageradamente ligado a
um objeto ou atividade específica. Pode haver apego e manipulação do objeto
selecionado, que nem sempre é um brinquedo e não parece ser usado
simbolicamente (Ibid., p. 56).
O CID-10 (Classificação Internacional de Doenças), material disponibilizado
pela Organização Mundial da Saúde, também é um documento no qual consta, nas
indicações para o diagnóstico do autismo, o “comprometimento em brincadeiras de faz
de conta e jogos sociais de imitação (...) uma relativa ausência de criatividade e fantasia
nos processos de pensamento” (1993, p. 247-248).
O artigo de Soares (2008) também insere a discussão sobre o brincar como
atividade simbólica que necessita a “operação de separação”, de “representação da
ausência”, partindo do pressuposto de que a posição subjetiva dessas crianças não foi
assim estruturada. A própria autora conclui que é difícil “pensar teoricamente” sobre
esse objeto de estudo e questiona se a atividade lúdica pode ser considerada um brincar,
fazendo alusão ao jogo simbólico:
É comum observarmos crianças que não conseguem, por exemplo, armar cenas
extensas na brincadeira. Restringem o brincar a uma armação de rituais lúdicos
sem desdobramentos da cena. Outras cujo brincar aparece restrito à
manipulação dos objetos, sem configurar traços de uma série significante que
componha uma narrativa. Estamos frente a uma criança cujo brincar reflete
uma aparente ausência do imaginário, um brincar sem fantasias (SOARES,
2008).
Conforme se argumenta no decorrer deste trabalho, as diferentes abordagens a
respeito do quadro sintomatológico compõem discursos socialmente hegemônicos que,
embora não tenham como objetivo respaldar a prática educativa escolar, exercem sua
influência. São propostas condizentes com seu campo de conhecimento e atuação, mas
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quando tomadas indiscriminadamente pela educação escolar, sem o devido respaldo
crítico para tal, pode gerar conflitos teóricos ou mesmo incitar conclusões deterministas.
Um exemplo decorre do recorte de idade – 18 meses3 – na definição das
características clínicas como fator de risco, no que concerne à criança não se interessar
pela brincadeira de “faz de conta”. Ainda que seja possível notar traços
sintomatológicos numa criança de 18 meses, o que se faz imprescindível para o
diagnóstico precoce, ao transpor essa informação, do modo como se expressa no
documento, para o campo escolar, surge um conflito teórico sobre o desenvolvimento
da atividade lúdica na infância.
Em A Formação do Símbolo na Criança (1990), Piaget4 discute a evolução do
jogo, argumentando sobre o aparecimento da brincadeira simbólica, tendo como
parâmetro o comportamento de crianças por volta dos 3 anos de idade, ou seja, 36
meses. A imitação antecede o nascimento do jogo simbólico, não sendo estes dois
termos coincidentes. O autor tece uma análise da gênese da imitação sob os processos
de assimilação e acomodação em seis fases, partindo dos movimentos reflexos no bebê
recém-nascido, até que esquemas de ação sejam incorporados pela criança e sejam
submetidos a sua reflexão.
Fase / idade Des Gênese da Imitação em Piaget
Fase I
0 – 1 mês
Preparação Reflexa
Atos reflexos mediante excitação externa. Não é imitação.
Fase II
1 – 4 meses
Imitação esporádica
A criança só imita movimentos que já fazem parte do seu repertório.
Fase III
4 – 8 meses
Imitação sistemática de sons já pertinentes à fonação da criança e de
movimentos executados anteriormente pelos sujeitos de maneira visível
para ela
A criança imita quando a conduta pode ser identificada no seu próprio
corpo ou na própria voz, quando lhe é reconhecível. Já há reação a
objetos, mas ainda sem intencionalidade.
Fase IV
8 – 12 meses
Imitação de movimentos já executados pelo sujeito, mas de maneira
visível para ele, e início de imitação de modelos sonoros ou visuais novos
A criança já imita ações que não são visíveis no próprio corpo, mas ainda
necessitam ser vistas no corpo do outro. Pode estabelecer relações com
3 Cf. BRASIL. Ministério da Saúde. Linha de Cuidado para a Atenção Integral às pessoas com
Transtorno do Espectro do Autismo e suas famílias no Sistema Único de Saúde (SUS). 4 Embora todo o estudo seja delineado sob a ótica da psicologia Histórico-cultural, necessário o resgate à
Piaget devido à importância do autor ao abordar a temática da brincadeira dessas crianças nos diversos
estudos citados.
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outras partes do corpo ou objetos, mas mantém o esquema de ação.
Aparecimento da intencionalidade.
Fase V
12 – 18 meses
Imitação sistemática de modelos, incluindo os que correspondem a
movimentos invisíveis do próprio corpo
Criança já é capaz de imitar e coordenar vários esquemas de ação para
acomodá-los a um objetivo.
Fase VI
18 – 24 meses
Imitação diferida e imitação representativa
Criança já soluciona problemas mediante reflexão prévia por que já há
representação simbólica dos esquemas de ação e suas combinações
possíveis. Todavia, o nascimento do jogo simbólico em complexidade se
dará na fase seguinte:
“A imitação e o jogo unir-se-ão, bem entendido, mas somente no nível da
representação, e constituirão assim o conjunto do que poderíamos
designar por adaptações inatuais, em contraste com a inteligência em ato
e em trabalho. Durante as fases sensório-motoras puras, pelo contrário, a
imitação e o jogo ainda se encontram separados e mesmo, de algum
modo, antitéticos.” (PIAGET, 1990, p. 118).
Tabela I – Gênese da Imitação em Piaget
Elaborada a partir da Fonte: Piaget (1990)
Após a primeira etapa – uma fase de preparação mediante ações reflexas (fase I)
– os processos de assimilação e acomodação perpassam situações em que a criança
estabelece relações binárias entre seu próprio corpo e o corpo do outro durante o ato
imitativo: compreende inicialmente movimentos que já são de seu repertório de ação
(fase II), que posteriormente ampliam-se para a imitação de movimentos visíveis no
próprio corpo (fase III) e depois para movimentos visíveis no corpo do outro (fase IV),
com cada vez maior intencionalidade acerca de suas ações. Na próxima etapa (fase V), a
criança já pode estabelecer relações com os objetos e suas propriedades, coordenando
diversas informações e estabelecendo relações mais complexas e não apenas binárias. A
última etapa da gênese da imitação (fase VI) já envolve representações de imagens e de
esquemas de ação que já foram incorporados pela criança.
De acordo com Piaget (1990), como todo esse processo depende enfaticamente
da assimilação de novos esquemas, há predominância desta sobre a acomodação. No
jogo de caráter simbólico ocorre o inverso e, embora os esquemas de ação possam ser
considerados lúdicos ou não-lúdicos de acordo com seu contexto e funcionamento, o
que acontece nesses atos imitativos ainda não configura um jogo de “faz-de-conta”. Dos
18 aos 24 meses há apenas um “esboço do símbolo em ação” (PIAGET, 1990, p. 125),
sendo a brincadeira nessa faixa etária passível de representação de imagens, mas não
uma generalização que possa desembocar em “combinações simbólicas”:
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Uma vez o símbolo constituído em sua generalidade, cedo se desenvolve em
várias combinações simbólicas... As verdadeiras combinações simbólicas, de
proliferação infinita, caracterizam uma terceira fase que só se manifesta
plenamente a partir dos três a quatro anos de idade. (PIAGET, 1990, p. 165).
Ao se considerar a gênese da imitação em Piaget e suas diferenciações quanto ao
desenvolvimento do jogo simbólico, nota-se que esse recorte de idade – 18 meses –
adotado pelo documento do SUS para os parâmetros diagnósticos nos transtornos é
questionável. Ali há o destaque para a falta de interesse em jogos de faz-de-conta nessa
faixa etária, utilizando Piaget como principal referência, mas este mesmo autor na
verdade não define o jogo de nenhuma criança antes dos dois anos de idade como
simbólico. Ele apenas faz alusão à formação do símbolo, o que faz das decisões com
base apenas no documento citado, restritas e passíveis de equívocos com facilidade.
Já Elkonin, em Psicologia do Jogo (1998), faz outro percurso: para ele, todo
simbolismo pressupõe relações sociais, o que complementa a crítica anterior. O autor
não considera como jogo as explorações com objetos características do período
sensório-motor (PIAGET, 1990). Ele defende o aparecimento da brincadeira de faz de
conta ou da dramatização de acordo com o percurso histórico-cultural de cada criança e
não faz um recorte explícito de idade, embora considere a vida pré-escolar da época
soviética, então até os 6-7 anos. Como premissas para o engajamento no jogo simbólico,
Elkonin pondera mais para a importância do repertório sobre o mundo adulto, em sua
variedade de experiências contextuais, conjuntamente à intenção de brincar, de imaginar
algo; do que para as capacidades particulares das crianças.
Etapa Des Aparecimento do jogo de dramatização em Elkonin
Preliminar Imitação acontece a partir de consignas e envolve o uso de objetos
Imitação da ação Ações repetem-se várias vezes. Objetos cumprem apenas sua função
social. Brinquedos auxiliam o processo.
Função substitutiva
de objetos
Há ressignificação dos objetos (primeira formação simbólica). A
linguagem possibilita as generalizações e transnomeações. Parceiros
podem identificar a criança como representante de um papel, mas
ainda não há concatenação lógica de ideias e diversos personagens.
Submissão ao papel Importância dos jogos com argumentos (músicas, histórias, rodas
cantadas) para que a criança confira sentido às regras e ao papel. O
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argumento destaca as regras de conduta.
Protagonização Representação do papel (segunda formação simbólica). A linguagem
e a protagonização possibilitam a construção de enredos. Desenvolve-
se a capacidade de imaginar objetos. Parceiros identificam-se como
personagens que interagem e há concatenação lógica de ideias. A
criança representa a complexidade das relações intersubjetivas
sociais.
Desenvolvimento
Social da criança
Crianças verificam as condutas umas das outras e realizam a reflexão
acerca do próprio comportamento, dentre ações e personagens,
durante o jogo.
“Claro que ainda não é uma verificação consciente.” (ELKONIN,
1998, p. 420).
Tabela II – Aparecimento do jogo de dramatização em Elkonin
Elaborada a partir da Fonte: Elkonin (1998)
Assim, a imitação vai transformando seu sentido no desenvolvimento do jogo
simbólico: parte da imitação de ações, concretas, como o ato de comer, e alcança a
abstração de relações complexas do social, no auge do faz de conta, como comer num
restaurante, representando ali toda a complexidade das interações sociais, o que pode
exigir, inclusive, maior número de personagens / participantes do jogo. Há a valorização
das possibilidades de resignificações em seu contexto social, das interações entre pares,
e do desenvolvimento da linguagem verbal na organização e interlocução de ideias, o
que ocorre após os 18 meses. Desse modo, “Falar ao telefone” – exemplo utilizado no
documento do SUS – pode ser puramente a imitação deste ato; o que caracterizaria esta
ação como faz de conta é o contexto, a intenção e o conteúdo da brincadeira da criança,
tornando esta definição complexa e difícil de analisar com base em uma resposta da
família.
Esses conflitos procedem principalmente por que há o uso com frequência de
expressões como imitação, faz de conta, fantasia, símbolo e simbolismo, sem que estas
sejam conceituadas em documentos oficiais. A ausência de definições compromete a
interpretação dos materiais, quando estes são tomados como referência por outras áreas
do conhecimento. Não há clareza principalmente na diferenciação entre “imitação” e
“jogo simbólico”, incitando a uma compreensão restrita e superficial sobre a expressão
“faz de conta”. Tal distinção é de extrema importância para a educação infantil, que
pretende construir práticas que viabilizem o avanço das relações que as crianças
estabelecem com o lúdico.
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Apesar da ponderação em descrições a partir de termos como “pode haver”,
“comumente”, “relativa” ou “não parece” para definir o quadro de um transtorno, há
grande ênfase no prejuízo ou comprometimento da representação simbólica. Torna-se,
então, controversa a utilização de documentos da área médica ou de estudos com
enfoque no tratamento, elaborados com outros fins, para subsidiar a prática escolar, por
que são materiais que não integram conhecimentos da área específica da educação.
Como compõem parte das poucas informações que se tem sobre os transtornos do
desenvolvimento, sobre a condição da criança e seu quadro sintomatológico, estes
documentos e abordagens refletem-se com maior ou menor força na prática educativa,
variando conforme o engajamento pessoal dos educadores caso optem por pesquisar
mais a respeito do tema. Pensando na educação escolar, a leitura destes materiais exige
um olhar cuidadoso, já que ali não há respostas para a reflexão e construção de um
planejamento que viabilize a participação da criança nas atividades propostas,
interações e brincadeiras, não sendo nem este seu objetivo, e sim apenas se constituindo
como parâmetros para orientar o trabalho e/ou encaminhamentos para profissionais em
sua área de atuação específica.
Pensando a educação a partir de princípios inclusivos, buscam-se contribuições
visando à interdisciplinaridade. Com um olhar mais aprofundado acerca dessa temática,
foram encontrados estudos internacionais em que os pesquisadores se propuseram a
intervir nas atividades lúdicas. Como resultado, apontam que essas crianças são capazes
de brincar e indicam que a intervenção educativa pode incitar a conduta simbólica.
Dentre esses trabalhos, destacam-se os de Jarrold et. al. (1993, 1994) e Libby et.
al. (1997, 1998), ambos do Reino Unido, das Universidades de Bristol e East Anglia,
respectivamente, que evidenciam a possibilidade dessas crianças na compreensão do
jogo simbólico e a evolução de seu brincar quando usufruem de situações estruturadas5.
Outra contribuição nesse sentido é a de Warreyn et. al (2005), da Universidade de Ghent
(Bélgica), a qual trouxe como uma de suas conclusões a possibilidade de envolvimento
com o jogo simbólico a partir da imitação. É relevante notar que, em outra pesquisa, a
de Kasari et. al. (2006), realizada pela Universidade da Califórnia (EUA), concluiu-se
que as crianças foram capazes de brincar de forma qualitativa: diferente de mero “treino
5 Aqui, a expressão “situações estruturadas” refere-se essencialmente à organização do espaço, com uso
de miniaturas e mobiliários que condicionem à melhor interpretação da brincadeira. Não possui nenhum
caráter de inflexibilidade ou mesmo de controle do adulto com relação ao jogo da criança.
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de habilidades”, foi registrada a capacidade de generalizar conhecimentos e transpô-los
a outras situações e contextos, envolvendo outros pares. Segundo as autoras, há essa
possibilidade por que a ação lúdica, em suas significações contextuais, superam as
particularidades da criança, fazendo com que seu jogo deixe de assumir caráter
ritualístico (KASARI et. al., 2006). Há ainda a investigação de Wolfberg et. al. (2012),
da Universidade de São Francisco (EUA), que examina os problemas de interação
sociocultural apresentados por essas crianças e como estes refletem a natureza do seu
brincar, propondo um modelo integrado de jogos em grupo para o desenvolvimento
dessas crianças.
A justificativa central para a importância de pensar intervenções é que a
experiência de brincar em pares, ou em grupos, é parte vital da socialização, do
desenvolvimento e da participação cultural na infância (WOLFBERG et. al., 2012).
Segundo Kangas et. al. (2012), da Universidade de Lapland (Lapônia/Finlândia), é
essencial criar meios de acesso à interação social na brincadeira. As autoras reforçam
essa iniciativa, explicando que as crianças, quando brincam em grupos, estão mais
propensas à simbolização:
De acordo com nossas conclusões, essas crianças não estão condenadas a
estagnar-se em uma única fase do jogo, podem aprender a evoluir sua
brincadeira. Queremos expandir nosso olhar para melhorar o jogo...
Fundamentalmente, o jogo é o contexto onde as crianças interagem com seus
pares. Se uma criança não pode brincar, não pode sentir essa interação.
Portanto, ensinar brincadeiras para essas crianças durante a fase inicial da sua
reabilitação pode ser considerado importante. (KANGAS et. al., 2012, p. 46,
trad. livre).
No Brasil, pesquisas que apontam para essa linha são praticamente inexistentes,
o que justifica a nova investigação. Muitas das produções acadêmicas concentram-se
nos trabalhos de fonoaudiologia, os quais têm no jogo simbólico um dos critérios na
elaboração de “protocolos” ou “relatórios”, espécie de teste que registra informações
diversas sobre o comportamento e desenvolvimento dessas crianças. A respeito da
brincadeira, é relevante citar um dos comentários da discussão de Molini e Fernandes
(2001), já que condiz com os estudos internacionais:
o jogo simbólico também pode ser melhor avaliado em situações específicas, já
que em situações espontâneas o jogo simbólico não aparece com frequência e,
assim, não pode ser avaliado, dando a falsa impressão de que essas crianças
não apresentam jogo simbólico (MOLINI e FERNANDES, 2001, p. 12).
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As conclusões desses trabalhos contribuem para a educação no sentido de lançar
um olhar para o desenvolvimento da criança, em sua complexidade particular, e romper
com ideia de que essas crianças não brincam. Entretanto, é necessário evidenciar o que
se está denominando “jogo simbólico” e construir conhecimentos de acordo com a
realidade da educação, que insere a criança em escolas regulares, concebendo-a assim
em um contexto amplo, em que há a organização do espaço e a interação com pares de
desenvolvimento típico, por exemplo. Essas características diferem de contextos da
ordem do tratamento, que abordam a criança sob um enfoque que visa seus objetivos
específicos, como o desenvolvimento da linguagem, e recorrem a estratégias centradas
em intervenções pontuais e diretas, entre criança e terapeuta.
Com o olhar específico da educação especial numa perspectiva inclusiva, foram
encontrados três artigos que argumentam sobre o brincar dessas crianças, com
abordagens diferenciadas entre eles: o estudo de Fiaes e Bichara (2009), que relaciona o
tema à Teoria da Mente6, discutindo estas questões à luz da psicologia evolucionista; o
artigo de Bosa et. al. (2013), que avalia a qualidade do trabalho oferecido pelas escolas,
estabelecendo um comparativo entre o contexto livre e o contexto guiado de
brincadeiras no desenvolvimento da competência social dessas crianças; e o de
Bagarollo et. al. (2013), o qual discute o papel da intervenção educativa na atribuição de
significações no brincar dessas crianças. Outros estudos vêm sendo desenvolvidos por
Sanini (2011) e Chiote (2014) quanto às relações entre os temas brincadeira e mediação.
Estes últimos teceram suas articulações sob o enfoque da teoria Histórico-cultural.
A baixa produção investigativa acerca dessa temática no Brasil com o enfoque
na educação reforça outro fator que se destaca no cenário nacional. Como já citado, há a
carência na formação de professores da educação infantil (GATTI, 2010; KRAMER,
20067), principalmente no que se refere à reflexão sobre as propostas lúdicas na escola e
à fragilidade das concepções sobre o brincar, a criança, seu desenvolvimento e educação
(KISHIMOTO, 2005). Considera-se que estas considerações contribuem para a
perpetuação de conclusões deterministas acerca da impossibilidade do engajamento no
jogo simbólico por crianças com transtornos do desenvolvimento, posto que nestas
6 Capacidade de inferir estados mentais próprios e de outros indivíduos (Baron-Cohen et. al., 1985).
7 O artigo refere-se aos paradoxos presentes na educação infantil, como a tentativa de conciliar, numa
mesma situação, profissionais com níveis de escolaridade distintos. (Kramer, 2006).
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condições não há investimento nem reflexão sobre as atividades lúdicas propostas na
escola. Ainda que haja intenção particular e busca por formação dos professores, há
poucos conhecimentos construídos academicamente com este enfoque.
Sendo assim, é possível o jogo simbólico? É possível, no contexto e na realidade
brasileira, que crianças com um quadro de transtornos do desenvolvimento, mais
especificamente os quadros de autismo, sejam capazes de engajar-se no jogo simbólico?
Essas crianças seguem a trajetória de envolvimento com as atividades lúdicas tal como
as outras crianças ou perdem-se em brincadeiras misteriosas, estagnando sua relação
com o brincar? Apenas reproduzem atos ensinados sem significação e reconstrução
individual ou são também capazes de avançar e simbolizar?
O objeto de estudo desta pesquisa vincula psicologia e educação para interpretar
o brincar de crianças com transtornos do desenvolvimento e compreender como
evoluem suas relações com o lúdico. Parte-se da compreensão do significado da
atividade lúdica para a criança, tomando-se como referência a evolução do jogo
proposta por Elkonin, em Psicologia do Jogo (1998). A escolha dessa obra justifica-se
por dois aspectos cruciais que se articulam no conceito de jogo, compreendido tanto
como ato de significação social e cultural (VYGOTSKI, 1986) quanto como atividade
principal ou atividade-guia da criança (VYGOTSKI, 1997; LEONTIEV, 1988), os quais
estão ali focalizados de modo coerente e complementar.
A obra de Elkonin (1998) demonstra que a origem do jogo simbólico é social e
que acontece devido à educação e à socialização das crianças. O jogo é visto enquanto
um ato social, de interação entre pessoas que partilham códigos culturais, significações
coletivas e intersubjetivas, o que torna a brincadeira passível de ser aprendida:
Brincar não é uma dinâmica interna do indivíduo, mas uma atividade dotada de
uma significação social precisa que, como outras, necessita de aprendizagem
(...) há jogo quando a criança dispõe de significações, de esquemas em
estruturas que ela constrói no contexto de interações sociais que lhe dão acesso
a eles. (BROUGÈRE, 1998, p. 28).
Desse modo, parte-se da premissa da abordagem Histórico-cultural nos estudos
do desenvolvimento humano de que o brincar é cultural e que não seria possível, para
nenhuma criança, assumir um jogo simbólico sobre o qual não possui nenhuma
referência (VYGOTSKI, 1986). Isso implica numa concepção de desenvolvimento e de
educação em que é indispensável o contato com diferentes contextos, incitando
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transformações e/ou reelaborações a partir de novas experiências (WERTSCH, 1988,
1991 e 1998). As crianças apropriam-se do contexto da brincadeira, do conjunto de
significações que a regem, reproduzindo e transformando sua própria atividade
(ELKONIN, 1998; LEONTIEV, 1988).
Nesse sentido, é preciso reiterar que o jogo necessita ser visto também como
atividade social prática (LEONTIEV, 2004), por que abarca a influência da interação,
da cooperação, da compreensão do contexto de significações, da forma como os outros
membros comportam-se e da conscientização sobre o processo, para promover a
aprendizagem e o desenvolvimento humano. Tal lógica está presente na obra de Elkonin
(1998) ao definir o jogo como atividade principal da criança, a qual está articulada à
noção de que o envolvimento em atividades práticas possibilita desenvolvimento
(COLE, 1999 e DANIELS, 2001).
Desse modo, visa-se a compreensão dos interesses dessas crianças e de suas
relações com o lúdico, a partir de seu funcionamento próprio, padronizado e
estereotipado ou não, sob circunstâncias sociais e culturais. A obra de Elkonin (1998),
no que se refere a elucidar as questões da situação imaginária, do simbolismo e da
consciência sobre o jogo, compreendida em consonância com outras contribuições da
psicologia Histórico-cultural, é crucial para esta tarefa, já que muitos dos interesses
dessas crianças são interpretados como rituais mecânicos, aparentemente sem fantasias,
presos num mundo particular sem acesso à interação social.
Para isso, concebe-se a criança como um agente social, que desenvolve funções
tipicamente humanas a partir de relações mediadas (VYGOTSKI, 1997). Nesta
perspectiva, seus comprometimentos fisiológicos ou psíquicos não são considerados
fatores determinantes no seu desenvolvimento, dado que estão em constante diálogo
com outros elementos presentes na dinâmica social e cultural da qual participam, o que
valida uma aposta em suas potencialidades.
As reflexões construídas neste estudo compreendem que a “ausência” do jogo
simbólico lida com atributos passíveis de questionamentos, por que dependem das
dificuldades pessoais de cada criança na interação, na interpretação e articulação de
referências contextuais que tornem possível a construção e a evolução da brincadeira.
Supõe-se que essas crianças podem brincar, desde que haja condições para a construção
de vínculos e parcerias, para a interpretação das significações e para sua conscientização
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sobre o processo. A partir do momento em que são pensadas e criadas estratégias que
possibilitem seu acesso qualitativo, suas relações com suas atividades lúdicas tendem a
potencializar-se.
A partir dessas premissas, definiu-se o quadro teórico que compõe este estudo.
Numa primeira seção, argumenta-se sobre quem são essas crianças a partir de estudos
sobre a concepção de infância e registros históricos sobre as formas de trabalho voltadas
a elas (ARIÉS, 1973; BANKS-LEITE e GALVÃO, 2000; KANNER, 1943; RUTTER,
1978 e FEINSTEIN, 2010), as quais refletem a maneira como a sociedade as concebia
(FOUCAULT, 2001 e MENDES, 2001 e 2010b). Para isso, também foi necessário
incluir algumas informações etiológicas, dados estatísticos e critérios diagnósticos, que
compõem um discurso que rege a sociedade contemporânea e influenciam as práticas
educativas atuais. A discussão visa abordar a infância sob uma premissa sociológica
(DAHLBERG, MOSS e PENCE, 2003; PROUT, 2005 e 2010; e PROUT, JENKS e
JAMES, 1998) e argumentar sobre a concepção de criança.
A segunda seção discute as concepções de educação e desenvolvimento, em
consonância com o que se espera para essas crianças. A partir da abordagem Histórico-
cultural, foi necessário buscar referências nos escritos de Vygotski (1982, 1986 e 1997),
definindo conceitos como interiorização, mediação e zona de desenvolvimento potencial
(ZDP) para compreender como o próprio autor articulava suas suposições acerca do
desenvolvimento de crianças as quais denominava “anormais” (VYGOTSKI, 1997, V).
Neste trajeto, surgiram alguns questionamentos com relação à formação da consciência
humana. Fez-se imprescindível então buscar outras referências, dentre as quais se
destacam os estudos de Wertsch (1988, 1991, 1998), Cole (1996, 1999, 2007), Davydov
(1999) e Daniels (2001), revendo conceitos que se apresentaram mais significativos para
esta investigação. Argumenta-se sobre as noções de contexto sociocultural, atividade
principal e formação de consciência. Segundo estas noções, para compreender o
desenvolvimento humano, faz-se necessário apreender o significado da ação de um
membro de dado grupo sociocultural, quer dizer, sua participação e engajamento em
determinada atividade (COLE, 1996 e 1999; WERTSCH, 1988, 1991 e 1998; e
DANIELS, 2001), como acontece com a criança quando há interesse numa brincadeira.
A terceira seção trata da definição do conceito de jogo, voltado ao tema de
investigação proposto. Por isso, este conceito é compreendido como ato de significação
35
cultural, elemento da cultura (ELKONIN, 1998; BROUGÈRE, 1998; SARMENTO,
2002 e CORSARO, 2002), e como atividade principal (ELKONIN, 1998 e LEONTIEV,
1988). Também é descrita a evolução do jogo simbólico de modo a compreendê-la e
subsidiar as argumentações sobre as possibilidades de engajamento no jogo por essas
crianças. Realizou-se um levantamento bibliográfico sobre como se configura sua
brincadeira a partir de referências com base em estudos internacionais, como os de
Libby et. al. 1997 e 1998; Kasari, 2006; Kangas, 2012; Wolfberg et. al., 2004 e 2012;
Williams, 2001; Warreyn, 2005; e Jarrold et. al., 1994 e 1996. Muitos destes estudos
partem da obra piagetiana em suas reflexões, o que fez necessário resgatar as ideias
desse autor.
A opção metodológica para a realização da pesquisa de campo foi o estudo de
caso com inspiração etnográfica, devido ao tempo para a conclusão de um estudo no
nível Mestrado. O quadro metodológico integra os caminhos percorridos para a
definição do estudo, a caracterização da escola e da turma em questão, e os
procedimentos de produção e categorização de dados.
Para a participação na pesquisa, foram definidos dois critérios de seleção. O
primeiro baseou-se na inserção da criança em programas de acompanhamento em escola
regular por serviços de atendimento educacional especializado (AEE), o que pressupõe
suas necessidades e valida a investigação quanto ao questionamento sobre seu quadro
sintomatológico. O segundo critério é o recorte focado na educação infantil, entre os 3 e
6 anos. Além de ser o período em que normalmente se desenvolve o jogo simbólico,
esse recorte justifica-se pelo foco da educação infantil, que possui a brincadeira como
eixo. Nesta investigação, pensou-se o acesso a propostas diversificadas para brincar, o
que nem sempre ocorre no ensino fundamental devido a sua organização curricular.
A produção de dados partiu de observações de situações lúdicas, da leitura de
documentos e de gravações em áudio e vídeo da turma em propostas de brincadeiras
livres e/ou estruturadas, com ou sem a participação de adultos. Foi possível levantar
dados anteriores à realização da fase de campo, que durou cerca de 7 meses, e assim a
geração de dados compreende os anos entre 2012 a 2014. Para conhecer a realidade e
concepções dos educadores, realizaram-se diversas conversas diárias e, na necessidade
de um registro mais formal, fez-se uso de questionário e entrevistas como instrumentos.
Todos os participantes assinaram as cartas de consentimento, inclusive as famílias das
36
crianças envolvidas. Embora tenha ocorrido compromisso e zelo pelo cuidado das
crianças, a pesquisa orientou-se de modo descritivo, não envolvendo a interferência
direta e intencional da investigadora nos processos analisados.
O processo de análise subdividiu-se em três etapas principais: a primeira
caracterizou-se pela leitura do material produzido por diversas vezes, o que resultou na
identificação dos pontos propostos no exame de qualificação. As primeiras impressões
apontavam situações que se repetiam durante as observações, como a dificuldade do
Arthur em brincar no parque sem jogar areia e seu envolvimento com jogos de encaixe
com a constante classificação das peças por cores ou formatos.
A segunda etapa do processo consistiu em rever todo o material, pensando sua
organização para posterior decodificação e emergência das categorias de análise. Essa
foi uma etapa densa do processo devido a grande variedade e riqueza do material
produzido. Buscou-se na proposta de análise microgenética respaldo para se pensar o
modo de organização dos dados, recortando o material em episódios significativos
(GOÉS, 2000), para a posterior emergência de categorias que fossem condizentes com a
complexidade dessa investigação. No estudo de caso há vantagem na utilização de
diversas fontes para a coleta de dados, o que viabiliza o processo de triangulação como
estratégia de validação ao combinar duas ou mais fontes de informação para se discutir
sobre uma mesma hipótese (YIN, 2005), considerando as múltiplas perspectivas na
interpretação de significados (STAKE, 1999). O uso de protocolos descritivos de
orientação microgenética tornou possível este cruzamento de informações. Nessa
organização, notou-se que para argumentar sobre as possibilidades da criança no
engajamento num jogo de natureza simbólica, primeiro era necessário compreender
como brincava. Assim, os protocolos criados foram analisados a partir de duas questões
norteadoras: De que ele brinca? Com quem ele brinca? Para cada fonte foram criados
gráficos para determinar os interesses da criança e um olhar analítico para as
porcentagens possibilitou a emergência das quatro categorias de análise que compõem a
discussão.
A terceira etapa do processo de análise consistiu em refletir sobre as categorias
levantadas e argumentar sobre as possibilidades da criança no engajamento no jogo
simbólico. Compondo articulações com o quadro teórico da presente investigação, essa
última etapa teve como objetivo dar sentido às partes que compõem o todo (STAKE,
37
1999) e foi concomitante à redação da dissertação final. Desse modo, essa investigação
traz um estudo sobre a brincadeira, um olhar para a criança e a evolução da relação que
estabelece com o lúdico, e propõe um resgate a pergunta geradora desse estudo em sua
complexidade, se é (ou se foi) possível o jogo simbólico.
38
I. QUADRO TEÓRICO
The view that is most often taken in academic literature on autism is
one that focuses on the individual with autism, their impairment and the ways
in which their abilities do not correspond with a preconceived 'norm'. It is a
medicalized view that is not concerned with the dynamic and unfolding nature
of the social contexts with which individuals with autism must engage.
--- Carmel Conn
Este capítulo refere-se à compreensão de conceitos fundamentais, aprofundando
o conhecimento sobre as referências teóricas que subsidiam as discussões deste estudo.
Em primeiro momento, foi preciso retomar qual o lugar dessa criança na sociedade,
abordando sucintamente as formas de apreender o quadro de sintomas do que se
considera um transtorno de desenvolvimento e suas modalidades de atendimentos, já
que refletem a concepção que se tem sobre a criança.
Uma próxima seção trata dos principais conceitos que direcionam a abordagem
Histórico-cultural, explicitando-os para conceber a constituição e o desenvolvimento
humanos, e explorá-los na medida em que contribuem com as discussões propostas.
Parte-se das contribuições de Vygotski, aprofundando o tema mediante os estudos de
seus colaboradores e autores que deram sequência ao seu trabalho.
A partir daí, busca-se uma definição para o conceito de jogo, voltado ao tema de
investigação proposto, no intuito de compreendê-lo como elemento da cultura e como
atividade principal (ou guia) da criança. Problematiza-se a evolução do jogo simbólico
tendo como referência a obra de Elkonin (1998); e examina-se a especificidade da
brincadeira dessas crianças, com base em estudos internacionais.
39
1. A CONCEPÇÃO DE CRIANÇA
Crianças com “necessidades educacionais especiais”, “transtornos globais do
desenvolvimento”, ou “distúrbios globais do desenvolvimento”, ou ainda “transtornos
invasivos”; crianças “anormais”, “loucas”, crianças que “não falam”, que “não olham
nos olhos”, ou que “olham intimidadoramente”; que possuem “dificuldades de interação
e de comunicação”; crianças “psicóticas” e “autistas”; crianças “incluídas” na educação
escolar ou simplesmente crianças... Quem seriam?
Os muitos nomes citados, todos já utilizados em algum momento histórico ou
situação vivenciada, são também carregados de significados próprios, de conceitos e
abordagens, mensagens e discursos. Diante da diversidade de interpretações que
norteiam o olhar sobre a criança e, por consequência, da prática educativa; também
considerando que a concepção de criança é uma ideia que não se dissocia do conceito de
infância, haveria então uma construção social e cultural da concepção de criança
atrelada ao termo “transtornos do desenvolvimento” na infância?
Essa seção visa compreender esse processo, tendo como base registros
históricos, referências diagnósticas, etiológicas e consequentes abordagens educativas.
Não se configura como uma tentativa de relatar casos através da história ou de
especificá-los de acordo com suas abordagens de trabalho, o que exigiria uma nova
pesquisa, de cunho historiográfico, direcionada apenas a este objetivo. O levantamento
de referências e informações tem como finalidade a apreensão da trajetória dos estudos
sobre essas crianças para compreender as possíveis concepções que se tem sobre elas.
1.1. A concepção subjacente na descoberta dos “transtornos do desenvolvimento”
De acordo com a obra de Feinstein (2010) – A History of Autism – o autismo
provavelmente sempre existiu. Os primeiros relatos surgiram no século XVIII e traziam
crianças e/ou adolescentes que apresentavam comportamentos desviantes8 da conduta
aceita socialmente. Este fato despertava o interesse científico na realização de estudos
8 Crianças que corriam nuas pelos campos e praticamente não aprendiam a falar.
40
que objetivassem a manutenção da ordem e a padronização da sociedade. Uma linha
temporal explicita os marcos na descoberta da síndrome:
Ano/Período Des Marcos na descoberta dos transtornos do desenvolvimento
1801-1805 Experiência médico pedagógica de Jean Itard com Victor de Aveyron
1809 Primeiros registros sobre comportamentos diferenciados em bebês – Dr.
Haslan e Dr. Dickinson
1879 Publicação de Patologia da Mente, de Maudsley
1898 Descrição dos sintomas de um rapaz de 22 anos – psicólogo Dr. Barr
1911 Criação do termo “autismus” (auto - referência a si mesmo / ismus -
atribuição de estado ou ação), por Dr. Bleuler, para a descrição de um
sintoma da esquizofrenia
1943 Dr. Kanner faz o primeiro uso da expressão “distúrbio autístico” para
descrever a síndrome nos casos de 11 crianças – Seria Donald o primeiro
caso de “inclusão escolar”?
1944 Uso do termo psicopatia autística por Dr. Asperger
1978 Publicação do trabalho de Rutter e reconhecimento como “transtorno do
desenvolvimento”
Tabela III – Marcos na descoberta dos “transtornos do desenvolvimento”
Elaborada a partir das Fontes: Feinstein (2010), Wolff (2004), Kanner (1943) e Rutter (1978)
Compreender a concepção de criança na análise desse percurso requer admitir
que a noção de infância é um conceito recente na história (ARIÈS, 1973). Isso se
comprova nos poucos registros encontrados, ainda mais quando se trata de crianças que
apresentavam um comportamento diferenciado. Contudo, outro fator se destaca na
apreensão desta trajetória: a ideia emergente nesta época de que a irregularidade em
relação à norma condicionava-se ao estatuto de disfunção patológica.
Foucault (2001) aborda o advento da psiquiatria como ciência dos “anormais” e
das “condutas anormais”, fazendo referência ao processo de normalização social que
data do século XVIII, com o apoio da medicina, da educação, da produção industrial e
do exército9. A origem desse processo vincula-se à normalização instituída pelo Estado
com as leis:
é que o século XVIII fez outra coisa. Ele elaborou o que poderíamos chamar de
uma nova economia dos mecanismos de poder... Isso quer dizer que ele não se
9 O autor não fala especificamente sobre os transtornos do desenvolvimento na infância, nem sobre o
autismo, mas explica como a psiquiatria tornou-se, a partir do interesse pela sexualidade infantil, um
saber que trata da infância.
41
exerceu mais através do rito, mas através dos mecanismos permanentes de
vigilância e controle (p. 74) só se punirá, em nome da lei, é claro, em função da
evidência do crime manifestada a todos, mas se punirão indivíduos que serão
julgados como criminosos porém avaliados, apreciados, medidos em termos de
normal e de patológico. A questão do ilegal e a questão do anormal, ou ainda, a
do criminoso e a do patológico, passam portanto a ficar ligadas. (FOUCAULT,
2001, p. 78).
Assim, partindo da psiquiatria criminal, que interrogava grandes crimes, a
prática da análise da anormalidade foi difundida na sociedade para todos os indivíduos:
A psiquiatria não funciona como uma especialização do saber ou da teoria
médica, mas antes como um ramo especializado da higiene pública. Antes de
ser uma especialidade da medicina, a psiquiatria se institucionalizou como
domínio particular da proteção social, contra todos os perigos que o fato da
doença, ou de tudo o que se possa assimilar direta ou indiretamente à doença,
pode acarretar à sociedade... foi preciso tornar patológicos os distúrbios, os
erros, as ilusões da loucura; foi preciso proceder a análises (sintomatologia,
nosografia, prognósticos, observações, fichas clínicas). (Ibid., p. 100-101).
Houve a decodificação da “loucura” como doença e a generalização do poder e
saber psiquiátricos, o que traz à tona a discussão a respeito do primeiro marco da linha
temporal: a experiência médico-pedagógica de Jean Itard com Victor de Aveyron – a
“criança selvagem”. O principal registro sobre uma criança em condição desviante da
norma social revela um ideal de “reeducação”, isto é, o trabalho de Itard defendia
formalmente que os hábitos de Victor eram passíveis de transformação, desde que
submetidos a métodos adequados (BANKS-LEITE; GALVÃO, 2000). Sua metodologia
baseava-se em procedimentos condicionantes para despertar a sensibilidade e promover
a aquisição da linguagem (Ibid.), desconsiderando a importância das interações sociais,
e até mesmo o fato que Victor era uma criança, com seus anseios e interesses.
Seguindo a linha temporal, de certo modo, a experiência de Itard destoa dos
outros registros, mais focados na descrição de comportamentos. Tendo como objetivo a
caracterização da síndrome, os relatos seguintes descrevem o atraso na aquisição da
linguagem e a ecolalia, as preocupações obsessivas e o isolamento social (WOLFF,
2004) dessas crianças. Aqui há outro paralelo com a obra de Foucault, ao demonstrar a
persistência daquele processo que teve início no século XVIII, durante o século XIX,
transformando a ideia de “doença” em “síndrome”, isto é, conjunto de características:
A psiquiatria terá de tornar psiquiátrica toda uma série de condutas, de
perturbações, de desordens, de ameaças, de perigos, que são da ordem do
42
comportamento. A psiquiatria se inscreve como técnica de correção... nos anos
1850-1870, abandonou o delírio, a alienação mental, a referência à verdade e,
enfim, a doença. O que ela assume agora é o comportamento, são seus desvios,
suas anomalias; ela toma sua referência num desenvolvimento normativo, a
consolidação de excentricidades em síndromes bem especificadas, autônomas e
reconhecíveis. (FOUCAULT, 2001, p. 270-271).
Com efeito, os primeiros registros sobre essas crianças vinculam-se não a sua
infância, enquanto etapa da vida ou posição ocupada em relação aos adultos (PROUT
et. al., 1998), mas sim a sua conduta, caracterizada por comportamentos desviantes10
. E
assim nasceram as primeiras concepções sobre a educação dessas crianças: como
apresentavam um comportamento desviante da norma social, deveriam ser “corrigidas”
e, para isso, requeria-se auxílio educativo. Tal ideia permanece presente durante o
século XX, quando se consolida a definição de Rutter (1978) para o autismo, por
exemplo, como uma síndrome comportamental que apresenta diferentes etiologias, nas
quais se encontra profundamente distorcido o processo de desenvolvimento infantil.
A respeito do vínculo com a educação, os relatos de Kanner também trazem
indicativos sobre como essas crianças eram vistas. Os casos apresentados contam com
tentativas de escolarização, a maioria em escolas especiais, segundo o autor por que as
experiências em escolas regulares eram “fracassadas” (KANNER, 1943). Alfred, por
exemplo, frequentou 11 escolas diferentes. Como se tratam de relatos sucintos, há
poucas referências acerca do que era realizado pedagogicamente. Donald, porém, seria o
primeiro caso de “inclusão” de uma criança com este perfil na escolar regular? De
acordo com seu relatório, “Um diretor da escola amigo da mãe concordou em fazer uma
experiência, colocando Donald no primeiro grau” (Ibid.). As poucas informações a
respeito de sua participação escolar conduzem à interpretação de que houve adaptação
da criança à proposta e boa avaliação por parte da equipe sobre o trabalho realizado:
“ficou muito mais independente (...) anda em fila corretamente, responde quando
chamado e está dócil e obediente” (KANNER, 1943).
Diferente de Victor de Aveyron, nesse contexto as crianças já tiveram maior
acesso às interações sociais. Donald frequentou um contexto escolar o qual poderia ser
interpretado sob uma perspectiva “inclusiva”, embora ainda não houvesse essa
10
Atualmente, a definição envolve ampla gama de distúrbios neuro desenvolvimentais nos eixos
interação social; comunicação verbal e não-verbal; e padrões restritos e repetitivos de comportamento
(Wing, 1996; Fernandes, 2003, p. 268).
43
conceituação, por que, de certa forma, ele pôde vivenciar o que todas as crianças
escolarizadas da época vivenciavam. Necessário pontuar, contudo, que suas diferenças
não foram reconhecidas. Assim como descrito nos relatos, Donald foi obrigado a tornar-
se “dócil”, deixando muitas de suas características pessoais para adequar-se e ser mais
uma criança que frequentava a escola regular da época. Quanto aos outros casos de
Kanner, estes condizem com mais um elemento, próprio da ideia de “criança especial”
presente no século XX. Havia uma concepção que ainda atrelava os quadros
sintomatológicos a causas orgânicas, o que impulsionava a criação de diferentes
“categorias”, de possíveis transtornos, detectados por diagnósticos e testes de
inteligência que indicavam o tipo de escolarização que deveriam frequentar. Segundo
Marchesi (2010), ideias estas pautadas numa perspectiva “determinista do
desenvolvimento, sobre a qual se baseava qualquer tipo de aprendizagem” (p. 17).
Numa breve análise a respeito da concepção de criança subjacente na descoberta
dos transtornos do desenvolvimento destaca-se a aposta médico-pedagógica, “com os
médicos pedagogos, que, desafiando os conceitos vigentes, passaram a acreditar nas
possibilidades educacionais de indivíduos que eram considerados ineducáveis”
(MENDES, 2010a, p. 11). Tal aposta traz como mérito o olhar para essas crianças e
suas possibilidades de educação. Contudo, dos relatórios de Itard, perpassando os
relatos de Kanner, à publicação do trabalho de Rutter, tal olhar revela uma concepção
situada num contexto de exaltação do papel social que a criança desempenhava,
condicionado pelo que foi considerado uma “anormalidade”, em vias à normalização de
seu comportamento. Essa criança foi concebida nesta trajetória como “ser anormal”,
sem interesses genuínos ou capacidade para participar e intervir na realidade. Uma
concepção na qual subjaz um objeto, foco dos estudos de determinada área do
conhecimento, que consolidou seu lugar como mecanismo de poder.
1.2. Concepções prevalentes a partir de questões etiológicas e abordagens educativas
Nos transtornos do desenvolvimento, o quadro sintomatológico aponta para uma
variedade de interpretações, para linhas teóricas não consensuais que surgiram como
tentativas na compreensão das causas do comportamento dessas crianças:
44
Os critérios de diagnóstico envolvem a observação e a identificação de
comportamentos, pois embora haja hipóteses de que este seja um distúrbio de
ordem neurobiológica, com forte componente genético, ainda não foi
identificado um marcador biológico11
(FERNANDES, 2003a, p. 268).
Aproximando-se dessa ideia, Jerusalinky (1984) comenta que as etiologias não
coincidem, mas sim os sintomas psíquicos:
seja por impossibilidade psíquica de sustentar um lugar de circulação simbólica
para esse filho, seja por que o filho está organicamente impedido de chegar a se
constituir como sujeito por uma insuficiência neurológica. Ainda, numa
terceira hipótese, pela combinação dos dois fatores (p. 27-28).
Por essa razão, cada explicação etiológica fundamentou sua teoria e pressupôs
como parte de sua proposta de tratamento, sua abordagem educativa. Rivière (2004)
aponta três períodos no trabalho com a síndrome, os quais sugerem suas próprias
concepções:
Período Etiologia Abordagem Educativa
1º período
1943-1963
Transtorno
Emocional
Terapias intensivas e estabelecimento de laços emocionais
2º período
1963-1983
Alteração
Cognitiva
Métodos especializados para a modificação da conduta
3º período
1983-atual
Transtorno
Qualitativo
“estilo mais pragmático e natural, mais integrador e menos
artificioso... centrado na comunicação como núcleo central do
desenvolvimento, mais respeitoso com os recursos e
capacidades das pessoas autistas” (RIVIÈRE, 2004, p. 237)
Tabela IV – Abordagens Educativas
Elaborada a partir da Fonte: Rivière (2004)
É possível o questionamento da concepção de criança que prevalecem nessas
abordagens a partir da contribuição da Sociologia da Infância. Prout et. al. (1998)
diferenciam dois períodos fundamentais nos estudos sobre a infância: pré-sociológico e
sociológico. O salto qualitativo refere-se à como conceber a criança com densidade, em
seu contexto histórico e cultural. Dentre o período pré-sociológico, destacam-se as
seguintes concepções: criança má; criança inocente e ser natural, que se desenvolve a
partir de sua maturação (Rousseau); criança passível de ser moldada (Locke); e criança
inconsciente (Freud). São concepções ora vinculadas à necessidade de cuidados e
11
A autora refere-se a um marcador genético, assim como foi isolado na síndrome de Rett.
45
disciplina na modulação de um sujeito para agir socialmente, ora como defesa da
criança como ser em desenvolvimento, natural e inocente. Esses ideais podem ser
notados durante os anos de 1943-1983, na análise seguinte acerca dos dois primeiros
períodos apontados por Rivière (2004).
Após a definição proposta por Kanner no início da década de 40, o autismo,
posteriormente enquadrado como transtorno do desenvolvimento, foi interpretado como
um distúrbio social e afetivo. Para o autor, a ruptura no estabelecimento de relações
humanas antes dos 12 meses de idade foi um dos principais fatores apontados na
caracterização do quadro sintomatológico dessas crianças. Essa consideração reafirmava
a ideia de que o cerne da “patologia” configurava-se na área social. Era ressaltada a
inabilidade de interações humanas de “maneira ordinária” e constatou-se uma falta de
consciência sobre os sentimentos dos outros, bem como a dificuldade no
reconhecimento do outro como um ser separado de si mesmo. Ao levar esse pensamento
a seu extremo, nota-se que essa criança era vista como um ser inocente, o qual não teve
sua natureza totalmente desenvolvida.
Quanto ao olhar para a educação dessas crianças, ao estabelecer um paralelo
com a história da educação especial, os anos que seguem nas décadas de 40 e 50 trazem
como contribuição, para Marchesi (2010), a crença no potencial de “cura”, com vistas à
normalidade. O questionamento acerca das origens constitutivas dos transtornos agora
estava permeado pelas influências sociais e culturais, sendo estas muitas vezes
consideradas determinantes sobre o funcionamento psíquico da criança. Por isso:
Abre-se espaço à concepção de que a deficiência pode ser motivada por falta
de estímulo adequado ou por processos de aprendizagem incorretos. Ao mesmo
tempo, incluem-se os conceitos de adaptação social e de aprendizagem nas
definições sobre o atraso intelectual, reforçando as possibilidades de
intervenção. A distinção entre causas ‘endógenas’ e ‘exógenas’ para explicar as
deficiências detectadas é, sem dúvida, um passo a mais no sentido da revisão
definitiva da ‘incurabilidade’ como traço básico na definição das deficiências.
(MARCHESI, 2004, p. 17).
Esse conceito, atrelado à expansão das escolas de educação especial, consolidou
uma visão dessa criança como um ser que necessitava uma atenção individualizada e
especializada. No Brasil, esse processo foi marcado por iniciativas privadas, seguindo
modelos que primavam pelo assistencialismo, pela visão segregada e pela segmentação
das deficiências em categorias (MANTOAN, 2011). Nesse período histórico nacional,
46
houve em 1954, por exemplo, a fundação da primeira APAE (Associação de Pais e
Amigos dos Excepcionais), juntamente com outras instituições mais tradicionais de
assistência às pessoas com deficiências mentais e campanhas voltadas ao atendimento
especializado para cada particularidade considerada “especial”, priorizando aspectos
médicos e psicológicos (Ibid.).
Saltando para o segundo período apontado por Rivière (2004), a grande
diferença quanto ao primeiro período consistia no ideal de aplicação de métodos
especializados para a modificação da conduta, rompendo com a noção de que os laços
afetivos seriam determinantes no quadro sintomatológico dessas crianças. Desse modo,
os atendimentos educacionais deveriam intervir para favorecer a aprendizagem e o
desenvolvimento sob uma perspectiva menos social e mais biológica. Nesse contexto,
ao que se denominava “autismo” foi atribuído o significado de distúrbio cognitivo, com
sua origem em alguma forma de disfunção cerebral, que acarretaria principalmente em
prejuízos na linguagem. Daí decorre a criação e utilização de métodos especializados na
década de 60, como o TEACCH e o ABA, sob enfoques comportamentalistas12
. Ao
retomar as contribuições da sociologia da infância, nota-se nesse contexto a ênfase
numa concepção de criança passível de ser moldada, visto que esses trabalhos de
intervenções comportamentalistas propõem-se a modificar as condutas. No contexto
atual, ainda se nota o uso dessas técnicas no espaço pedagógico enquanto metodologias
de ensino.
Concomitantemente, a partir da década de 60, impulsionado principalmente por
movimentos sociais, iniciou-se um processo de transformação no campo da educação
especial. De acordo com o documento Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva (2008) ainda não havia nesse período uma política
pública de acesso universal à educação, perpetuando políticas “especiais” para abordar
as questões dessas crianças. Apesar da defesa social de um enfoque mais
“integracionista”, não foi organizado nessa época um atendimento educacional
12
A psicologia comportamental ou behaviorista surgiu em 1913, a partir do trabalho do psicólogo
americano John Watson e tornou-se conhecida após os estudos de Skinner (Roediger, 2004 e Strapasson,
2012). Destacam-se o modelo de intervenção proposto por Lovaas (Roediger, 2004) e os métodos ABA
(Applied Behavior Analysis - Análise Aplicada do Comportamento) e TEACCH (Treatment and
Education of Autistic and Related Communication Handicapped Children - Tratamento e Educação de
Autistas e Crianças com Deficiência Relacionadas à Comunicação).
47
especializado em escolas regulares e, assim, permanecia uma tendência segregada em
associações voltadas para este atendimento (MANTOAN, 2011).
As concepções de criança prevalentes nessas questões de ordem etiológica e, por
consequência, em suas devidas abordagens educativas, predominantes nos anos de 1943
a 1983 seriam concepções pré-sociológicas quando se parte do referencial adotado por
Prout et. al. (1998). É possível concluir que essas crianças eram seres “passivos”, sendo
necessário investimento pedagógico, já que se acreditava que, na ausência deste, suas
vivências não possibilitavam desenvolvimento. É preciso questionar ainda o que difere
o olhar para essa criança nesse contexto de diferença, de suas dissonâncias com relação
as outras crianças. Essa era uma criança que tinha sua educação institucionalizada – de
modo ao mesmo tempo especializado e segregado. Há o encontro com o papel da
educação como meio fundamental de garantir o desenvolvimento de seus laços sociais,
no primeiro período, e de seus processos mentais, no segundo período, permanecendo
como objeto de estudo de diversas áreas do conhecimento – essencialmente a medicina,
a psicologia e a psicanálise – num ambiente isolado do convívio social. Dessa criança
foi tomada a credibilidade de desenvolver-se ao lado do outro, contradizendo a própria
caracterização de seu quadro sintomatológico. Esse processo demonstra que essa
criança passou a ocupar uma “subcategoria” dentro do próprio conceito: se a essa
criança já se lançava um olhar como objeto de estudo, agora era um objeto que deveria
ser estudado à parte do contexto.
Segundo Prout et. al. (1998), o período sociológico inicia-se entre as décadas de
70 e 80, quando os estudos da sociologia interessaram-se por questões relacionadas à
infância. A partir daí, a criança é vista como agente social, como sujeito que dialoga
com a sociedade, como produtora de cultura. Transferindo essa argumentação para esta
discussão, conclui-se que se as abordagens educativas permanecem dissociadas de um
contexto sociocultural amplo, voltadas ao tratamento terapêutico e ao condicionamento
comportamental, a concepção de criança também continua aquém do que se concebe
por criança na sociedade contemporânea. A etimologia da própria palavra “terapêutica”
já remete a “tratamento”, o que ainda traz uma conotação patológica a essa criança.
A partir da década de 80, a educação especial no Brasil configurou-se mediante
lentas transformações de políticas que antes regiam um modelo de exclusão rumo à
48
construção de um novo paradigma, sustentado pela proposta de integração13
. Com a
Declaração de Salamanca (1994), houve o advento de uma nova visão da educação
especial por que este documento trazia uma nova concepção de criança, como ser que
possui seus interesses e características próprias, habilidades e necessidades que são
únicas:
aqueles com necessidades educacionais especiais devem ter acesso à escola
regular, que deve acomodá-los dentro de uma pedagogia centrada na criança,
capaz de satisfazer a tais necessidades (SALAMANCA, 1994, p. 2).
Assim, o próprio uso da expressão “necessidades educacionais especiais”
possuía uma estreita relação com a ideia de integração, posto que são conceitos
provenientes dos mesmos movimentos sociais que se consolidaram na segunda metade
do século XX e carregavam consigo os princípios de igualdade e acessibilidade ao
ensino. Segundo Marchesi (2004),
A escolha do termo “necessidades educacionais especiais” reflete o fato de que
os alunos com deficiências ou com dificuldades significativas de aprendizagem
podem apresentar necessidades educativas de gravidades distintas em
diferentes momentos. Existe, como consequência, um conjunto de alunos que
manifestam necessidades educativas especiais em algum momento ao longo de
sua escolarização. (p. 19-20).
Entretanto, apesar do olhar proposto na Declaração de Salamanca, o diagnóstico
dessas “necessidades educacionais especiais” baseava-se em critérios de observação ou
testes psicológicos, norteados pelas expectativas escolares instituídos pelas normas
sociais veiculadas. Apesar do acesso às classes comuns, permaneciam escolas e classes
especiais, em condições que variavam de acordo com o momento histórico e social de
cada localidade.
Atualmente, a proposta de educação inclusiva pode avançar na compressão da
concepção de criança, sem, com isso, desconsiderar a importância das modalidades de
tratamento, as quais podem sobrevir de modo extraescolar. Na escola, é possível olhar a
criança em interação com seus pares, como participante deste contexto, e deve, portanto,
13
Dentre a legislação nacional: Constituição de República Federativa do Brasil (1988); Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional lei n. 9394/96; Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da
Educação Inclusiva (2008) e Resolução 04/2009, que tratam sobre o Atendimento Educacional
Especializado. A inclusão foi inspirada principalmente na Declaração de Salamanca (1994), definida em
assembleia geral da ONU.
49
ser reconhecida como tal. Para isso, a concepção de criança que embasa o trabalho
escolar precisa ir além de questões diagnósticas e/ou etiológicas e considerar a criança
em seu contexto de interação social.
1.3. Concepções presentes no mundo contemporâneo
Antes de compreender que concepções de criança estão presentes no mundo
contemporâneo, necessário revelar o discurso que fundamenta os pressupostos
compreendidos como essenciais para o bem-estar físico e emocional dessas crianças,
por que as práticas educativas consideradas adequadas para elas são produtos dessa
lógica:
As construções são em si produzidas nos limites dos discursos dominantes... à
medida que são incorporados, influenciam todo o panorama da infância – as
relações entre as crianças e os pedagogos, entre elas e os pais, entre elas
mesmas e a organização das instituições pedagógicas (DAHLBERG et. al.,
2003, p. 64).
Nesse sentido, difícil esperar que essa criança não seja o produto de um discurso
social, embora este sofra suas transformações no decorrer da história. Para Vasques e
Baptista (2014), essa transformação de conceitos quanto aos transtornos do
desenvolvimento durante o século XX teve dois grandes momentos: o primeiro esteve
atrelado à descoberta do que se denominou “autismo” e sua posterior validação como
síndrome ou transtorno do desenvolvimento, com a consolidação da aceitação da
existência das psicopatologias na infância; o segundo caracterizou-se pela evolução
histórica das psicopatologias, com a produção de diversas investigações que geraram
uma série de embates polêmicos quanto à etiologia, constituição psíquica, posições
subjetivas e possibilidades educacionais. Pode-se afirmar que, para a criança com
transtornos do desenvolvimento, o que se vive hoje está permeado por certa dicotomia –
explicitada, por exemplo, pelas siglas TGD e TEA – que já incorporam seus
significados.
A legislação nacional que aborda a educação especial sob perspectiva inclusiva
traz os alunos com transtornos do desenvolvimento como aqueles que apresentam
50
alterações qualitativas das interações sociais recíprocas e na comunicação e um
repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo (BRASIL, 2008).
Já o novo DSM-5 não utiliza mais esta expressão e adota o termo TEA para referir-se ao
leque de distúrbios outrora enquadrados na categoria TGD, numa clara ruptura entre
modelos educativos e médicos. Mantoan (2011) também faz alusão a esse binômio no
que condiz com a educação especial:
...fica patente a dificuldade de se distinguir o modelo médico/pedagógico do
modelo educacional/escolar da educação especial. Esse impasse faz retroceder
os rumos da educação especial brasileira, impedindo-a de optar por posições
inovadoras. O que parece estar claro é que os legisladores estabeleceram uma
relação direta entre alunos com deficiência e educação especial. Essa
correspondência binária nem sempre é a que mais nos interessa, principalmente
quando temos como objetivo uma escola aberta às diferenças. (p. 3)
Que efeitos esse contexto traz para a educação no que tange aos transtornos do
desenvolvimento? Que concepções permeiam essa dicotomia? Como resignificar o
olhar para essa criança? Quando se realiza uma busca pelo Scientific Electronic Library
Online (SciELO), nota-se a prevalência de saberes da área médica em relação a outros
campos do conhecimento científico:
Transtornos do desenvolvimento
Autismo
Gráficos I e II: Estudos por área de conhecimento
Fonte: Banco de dados Scielo – Buscas referentes ao período: 1994 a 2013
Esses dados revelam que as pesquisas concentram-se em áreas da saúde, como
neurologia, psiquiatria, fonoaudiologia e terapia ocupacional. Quando o conhecimento
provém do campo das ciências humanas, nota-se a ênfase em estudos com focos na
psicologia e na psicanálise. As referências de trabalho articulam-se, em sua maioria, ao
51
tratamento, por vezes utilizando da educação como ferramenta terapêutica, o que ainda
traz uma concepção de criança condicionada ao estatuto de enfermidade, bem como
abordagens que a concebem de modo excluído de seu contexto sociocultural14
.
É possível atribuir parte dessa ênfase na área médica à história da psiquiatria
como ciência dos “anormais”, como visto anteriormente. Contudo, o crescimento da
indústria farmacêutica, num mundo centrado no consumismo e gerido pelo capitalismo,
impulsiona esta lógica para que seja cada vez maior seu público alvo. Um levantamento
sobre os dados atuais mediante a terminologia TEA evidencia o aumento desse grupo
socialmente minoritário, mas que passa a ser composto por categorias cada vez mais
abrangentes e flexíveis. Atualmente há a prevalência de uma “criança autista” para cada
110 de desenvolvimento típico, com a estimativa de 70 milhões de “pessoas autistas” no
mundo (ONU, 2010). No Brasil, recentemente foi publicada a Política Nacional de
Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro do Autismo (BRASIL,
2012), que já adota essa nomenclatura para sua regulamentação.
Reflexões acerca da medicalização da infância vêm sendo debatidas mais
amplamente pelo campo da psicanálise e suas relações com a educação inclusiva, numa
proposta que parte da crítica da isenção de responsabilidade educativa da família e da
escola para que a criança exerça um lugar de sujeito (GUARIDO, 2007). A medicação
atua como um “controle do comportamento”, esvaziando o lugar do educador e
exacerbando saberes da área médica em sua posição de especialidade.
A pesquisa de Vasques e Baptista (2014) explicita os objetivos dos trabalhos
publicados na área da saúde pública, que visam mensurar aspectos instrumentais das
“crianças com autismo” – partindo do DSM-5 como referência – para validar protocolos
e escalas que promovam a execução de programas e tratamentos educativos. O efeito
dessas classificações na escola, por um lado, muitas vezes é a consolidação de limites
para o processo de escolarização, visto que a neurologia e os consequentes
comportamentos dessas crianças são responsáveis por sua aprendizagem; por outro lado,
há uma supervalorização da técnica para atender a crianças com necessidades tão
diferenciadas, ressaltando apenas modelos comportamentais e cognitivistas como
soluções adequadas para o sucesso escolar dessas crianças.
14
Na saúde, é legítimo o tratamento, o qual pode inclusive aproximar “tratar” e “educar”. Questiona-se o
efeito desta lógica na educação inclusiva por que o(a) professor(a), ao interpretar paradoxalmente a
educação como forma de tratamento, pode se excluir do processo educativo.
52
Posto que os discursos são incorporados pela sociedade, é possível afirmar que
os dados atuais e pesquisas acerca desse tema consolidam concepções também na área
da educação. Essa criança “passível de medicalização”, “desestruturada psiquicamente”,
“sujeito de direitos”, “especial” e “incluída” sobressai-se nas escolas em suas relações
com este contexto e as pessoas que ali circulam, numa quase total ausência de reflexão
sobre as influências dos diversos campos de pesquisa. Há um diálogo muito incipiente e
mesmo que haja consensos quanto à multiplicidade dos quadros, bem como quanto à
precariedade de serviços e recursos oferecidos, ainda não há uma interlocução
qualitativa entre os campos do conhecimento (VASQUES e BAPTISTA, 2014).
Nesse sentido, a educação é frágil. É praticamente inevitável sofrer influência de
discursos provenientes de outras áreas do conhecimento quando há fragilidade de
concepções sobre criança, desenvolvimento e educação, característica recorrente na
educação nacional devido à insuficiência de formação e à desvalorização do magistério
(GATTI, 2010). A ausência de reflexão sobre os diversos campos de pesquisa dificulta a
interdisciplinaridade e resulta na perda de especificidade do campo da educação.
Fala-se de psicose infantil, de autismo, ou de psicose e autismo como duas
situações diferenciadas. Outros dizem que nada disso existe, que o correto é
referendar autismo ou espectro autista, conforme a noção de continuum, ou
seja, um mesmo quadro, com diferentes graus de gravidade. Temos aqueles que
afirmam: falamos de erros metabólicos, de transtornos neuropsiquiátricos que,
mesmo sem um marcador biológico identificado, implicam déficits cognitivos.
Outros replicam: falamos da loucura e, mais ainda, da loucura na infância,
possuidora de características diferenciadas do adulto... O diálogo com os
sistemas diagnósticos e as lógicas classificatórias é intenso, porém nem sempre
suficientemente esclarecido. O ponto crucial da ausência de reflexão sobre os
determinantes históricos e das concepções de sujeito presentes na elaboração
dos diagnósticos está no fato de que diferentes entendimentos imprimem
percursos escolares também diversos, cifrando destinos distintos. (VASQUES
e BAPTISTA, 2014, p. 679).
Uma discussão ilustrativa do efeito dessas múltiplas perspectivas numa escola
que carece de reflexão é a do diagnóstico. Obter um diagnóstico médico não transforma
os instrumentos metodológicos: se a criança apresenta qualquer questão e está incluída
em propostas de educação de qualidade, todos os elementos que interferem na prática
educativa já são repensados e seria papel da escola fornecer um relatório específico.
Entretanto, a questão não se esgota no educador, por apoiar-se ou não em diagnósticos
para justificar sua prática. Mendes (2010b) considera sistemas de educação inclusiva no
53
Brasil que vinculam o apoio especializado ao diagnóstico como assistencialistas. Nos
casos dos transtornos do desenvolvimento, como este diagnóstico é clínico, a realidade
se agrava: primeiro por que emerge a crítica sobre o excesso de diagnósticos decorrente
de erros de interpretação, o que implica na imediata rotulação da criança (GUARIDO,
2007), num discurso em que fica implícita a impotência da educação; segundo por que
em muitos casos a criança deixa de receber atendimento em esferas públicas, por conta
da omissão do seu quadro clínico (MENDES, 2010a), num processo que destitui saberes
do educador e insere o receio diante de seus próprios deveres.
Superar dilemas exige que concepções sejam repensadas. A escola inclusiva
desafia conceitos, que envolvem a noção de diferença dentro de um contexto social
(MENDES, 2010a). Afirmar que o diagnóstico de uma criança é um rótulo só faz
sentido numa sociedade em que esta síndrome ainda é vista como um desvio da norma,
apontado mediante um juízo de valor15
. A educação inclusiva desafia concepções e o
papel social do educador, atrelado à consistência de suas convicções. Viabilizar
transformações exige o reconhecimento de que o contexto social incorpora concepções
construídas historicamente. Conscientizar-se sobre este processo possibilita questionar
seus efeitos e lançar olhares críticos sobre o contexto que se configura hoje.
O que difere essa criança das outras crianças, nesse panorama contemporâneo?
Se antes a essa criança eram atribuídas significações, de forma segregada, no lugar
ocupado por sua “anormalidade”; hoje esta “anormalidade” é o centro de disputas dentre
significações diversas. De uma forma ou de outra, seu lugar como objeto de estudo
permanece e seu protagonismo ainda é carente. Dentre tantas nomenclaturas e saberes,
ainda é ousado reconhecer a essa criança como coconstrutora de sua própria identidade.
1.4. Uma nova concepção sobre a criança?
Desde a descoberta dos transtornos do desenvolvimento, ser essa criança e viver
sua infância apresentavam diversos entendimentos sociais. A concepção acerca dessa
criança passou por transformações de acordo com a forma de organização da sociedade,
15
A partir do momento em que uma criança cega foi vista em sua integridade e direitos, estes foram
reconhecidos acima de sua condição física e seu diagnóstico não era um rótulo e sim uma garantia de
direitos. Se no autismo não há um indicador genético, seu diagnóstico depende de um juízo de valor.
54
seus modos de produção e valorização cultural e o desenvolvimento de estudos na área
médica e educacional. A criança com transtornos do desenvolvimento é, portanto, um
ser histórico, que atua e participa da realidade a sua maneira, nos diferentes tempos.
Embora fosse vista como “ser anormal”, como “objeto de estudo”, com uma natureza
não totalmente desenvolvida ou passível de ser moldada, essa criança nunca deixou de
interagir: de algum modo, em suas relações com o mundo e com as outras pessoas,
sempre houve a produção de efeitos, para si e para os contextos aos quais pertenciam,
sejam estes nos âmbitos familiar, escolar, clínico etc.
A partir do momento histórico em que houve a preocupação com os direitos e
escolarização dessas crianças, houve também uma nova interpretação a respeito de
quem são. Pouco a pouco, o processo nomeado “inclusão escolar” foi ganhando novo
significado e, atualmente, para além da inserção desses alunos nas escolas regulares,
pondera-se a respeito da garantia do direito à diferença numa relação de igualdade dos
direitos à educação (MANTOAN, 2013). Isso significa olhar para essa criança em sua
singularidade, possibilitando e respeitando que ela aja sobre o mundo a sua maneira,
sem que lhe seja tomada, paradoxalmente, o próprio direito de participar.
Mantoan (2013) destaca a ambivalência entre diferenças e identidades na escola.
Para a autora, “A inclusão implica pedagogicamente na consideração da diferença dos
alunos, em processos educacionais iguais para todos” (p. 2). Assim, as diferenciações
podem ser ao mesmo tempo excludentes e padronizadoras. A escola atual ainda produz
identidades estáveis, definidas por critérios educacionais idealizados nos quais não há
espaço para diferenças. Explicita-se aqui uma contradição inerente ao sistema educativo
quando se pensa o processo de inclusão escolar.
Desse modo, como conceber a criança com transtornos do desenvolvimento? A
diferença fundamental nos casos de transtornos é que essa criança é frequentemente
vista e tratada de diferentes formas com relação às outras crianças. O que difere essa
criança das outras é o olhar do outro. Mas esse olhar deve ser relacional por que ele é
também social. Quando o olhar a essa criança se apoia em discursos científicos há aí a
criação de uma identidade definida por seus desvios, os quais partem do parâmetro
instituído de normalidade. Quando o olhar a essa criança busca integrá-la à escola de
forma que atinja objetivos estipulados previamente a todas as crianças, esta identidade
também parte de um parâmetro de normalidade. É possível afirmar a inclusão escolar
55
dessa criança como uma noção que perpassa duas vias: as contribuições da criança para
o desenvolvimento de comportamentos prossociais (DeANNA, 2014) e a qualidade das
interações ali presentes para o desenvolvimento da própria criança, desde que não haja
comparações entre a criança e outro, as quais reforçam padrões, validam regras e
certificam a normalidade.
Um caminho alternativo parte, então, de questionamentos (BURBULES, 1997).
Que experiências sociais há para essa criança? Quais são suas escolhas? Eis o desafio do
trabalho que requer olhar para essa criança sob outra perspectiva. Certamente, todo
conhecimento acumulado a respeito do que são transtornos do desenvolvimento não
descreve exatamente quem são essas crianças, cada uma delas, em sua singularidade.
Conn (2014) considera que um olhar atento para a vida dessas crianças revela uma
lógica que pode não ser facilmente apreendida pelo outro, mas possui seu sentido social
quando se considera o ponto de vista dos outros por que, de alguma forma, estão se
relacionando. É a natureza desse relacionamento interpessoal que talvez seja o ponto
chave na diferenciação dos transtornos do desenvolvimento, tornando necessário pensar
essa criança sob uma abordagem mais integrada, focada no grupo do qual faz parte e seu
compartilhamento cultural, do que no indivíduo isolado. O humano sucede de
particularidades enquanto espécie e também da sua inserção em diferentes contextos.
Nesse sentido, a abordagem Histórico-cultural traz suas contribuições, ao
priorizar mais as relações com um contexto de convivência que as dificuldades da
criança quanto ao que podem ou não fazer. O conceito de mediação (VYGOSTKI,
1997), uma das referências teóricas mais difundidas pelo campo da educação, comporta
esta complexidade. Instigante, portanto, pensar sobre dificuldades de meta-
representação (FERNANDES, 2003), do simbólico (JERUSALISKY, 1984). Seriam
elas determinantes sobre o potencial de participação e interpretação da criança?
Conclusões deterministas perpassam o olhar para a variedade dos quadros que essas
crianças podem apresentar e o cuidado da intervenção educativa. Mas se essa criança já
participa desse contexto, de algum modo já há interpretação. Talvez a pergunta seja a
seguinte: Como compreender essa interpretação de modo a manter uma demanda
comunicativa? Ou: Como dar a essa criança o direito de escolha ou não pelo próprio
projeto de vida?
56
Mantoan (2013) aborda essa questão afirmando que diferenciar para incluir se
torna possível quando o beneficiário de determinada ação está no gozo do direito de
escolha ou não dessa diferenciação. Tal acolhimento não se concretiza quando há uma
redução da experiência escolar a objetivos, currículos e critérios de avaliação. Ele se
configura na criatividade que se manifesta nas experiências e projetos de vida pessoais
de cada criança. Tarefa essa talvez mais próxima da educação infantil do que do ensino
fundamental, devido a seu caráter flexível na definição de currículos e programas.
Promover uma mudança de concepção envolve ir além de pensar sobre a criança,
requer admitir que ela participa de seu processo de construção pessoal, requer dar a ela
voz sobre si mesma e seu processo educativo. Essa concepção que parte das
particularidades da criança e é capaz de reconhecer a importância de sua interação com
o mundo não é nova. Mas para as crianças em questão, numa pedagogia que contemple
suas diferenças, enxergá-las sob esse enfoque é uma pretensão, é uma aposta, é dar a
elas a credibilidade de que podem ser coconstrutoras de significados, num movimento
que inclui a denúncia de todo um sistema educativo.
57
2. A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL
A concepção de educação a qual subsidia este estudo parte de uma perspectiva
de desenvolvimento baseada na abordagem Histórico-cultural. Portanto, esta seção está
orientada a tratar de conceitos e de possíveis consequências pedagógicas condizentes
com essa abordagem, partindo de uma aposta na capacidade da criança em estabelecer
relações mediadas com seu contexto de forma coconstrutora.
Vygotski foi a principal referência que deu origem às reflexões, ressaltando os
conceitos de interiorização, mediação e zona de desenvolvimento potencial. Esses
conceitos são discutidos conforme Vygotski os pensava para crianças consideradas na
época como “anormais”. Para isso, foi utilizado como principal referência Fundamentos
de Defectología, tomo V de Obras Escogidas.
Também foi necessário argumentar sobre o conceito de consciência, tanto por
que é um conceito que vem sendo rediscutido pela psicologia atual quanto por que há o
questionamento sobre como é a consciência dessas crianças, sobre si mesmas e sobre
sua percepção e interpretação de contextos significativos (RUSSELL, 2000).
De acordo com as contribuições pós-vygotskianas (WERTSCH, 1991, 1998;
COLE, 1996, 1999; ENGESTRÖM, 1999; e COLE e ENGESTRÖM, 2007), buscou-se
na teoria da atividade (LEONTIEV, 1988, 2004; ENGESTRÖM, 1999) respaldo para
novas discussões. Por fim, trata-se das particularidades dessas crianças em consonância
com a abordagem sociocultural contemporânea, discutindo possíveis consequências
pedagógicas.
2.1. Defectologia em Vygotski
Compreender as possíveis consequências de conceitos derivados da abordagem
Histórico-cultural para se pensar o trabalho com crianças com transtornos do
desenvolvimento requer primeiramente o levantamento de referências sobre os escritos
de um dos seus maiores expoentes: Vygotski. Esse texto visa à reflexão sobre conceitos
como interiorização (ou internalização), mediação e zona de desenvolvimento potencial
58
ou proximal (ZDP), em articulação com o que o autor defendia para essas crianças, as
quais denominava “anormais”; – ideias reunidas em Fundamentos de Defectología
(1997, V). Para justificar o ato educativo de acordo com a defectologia vygotskiana,
recorre-se também ao artigo de um de seus colaboradores – “Os princípios do
desenvolvimento mental e o problema do atraso mental” (LEONTIEV, 1977).
A obra Fundamentos de Defectología (1997, V) traz reflexões de Vygotski sobre
como propostas educativas podem auxiliar crianças que possuem o desenvolvimento
diferenciado da maioria. Este trabalho partiu de uma crítica ao campo da defectologia da
época, baseada em escalas e testes de inteligência que, numa categorização, instituíam
limites ao desenvolvimento da criança. Para Leontiev (1977), a pretensão destes testes
difundia a ideia de inevitabilidade do atraso intelectual e impedia pensar estratégias
educativas. Vygotski (1997, V), entretanto, num movimento contrário a esta tendência,
afirmava:
há a ajuda da educação, que cria uma técnica artificial, cultural, um sistema
especial de signos ou símbolos culturais, adaptados às peculiaridades da
organização psicofisiológica da criança anormal. (VYGOTSKI, 1997, V, p.
185, trad. livre).
Essa afirmação é consequência justamente dos princípios que subsidiam suas
construções teóricas. Um desses princípios, apontado por Leontiev (1977), consiste em
que no desenvolvimento mental da criança há “o processo de assimilação ou
‘apropriação’ da experiência acumulada pelo gênero humano no decurso da história
social” (p. 102). Portanto, quando Vygotski preconiza a criação de sistemas culturais
adaptados às particularidades da criança, esse é o modo encontrado para viabilizar o
processo de assimilação da experiência histórica humana, o processo de mediação.
Tal noção é coerente com o conceito de interiorização, quando reforça o valor da
ação educativa, essencialmente histórico-cultural, em suas relações entre funcionamento
interpsicológico e intrapsicológico. Comporta o processo de mediação, já que preconiza
viabilizá-lo. E ainda, diretamente vinculada aos outros dois conceitos, está posta a
importância da zona de desenvolvimento potencial.
O conceito de interiorização, segundo Vygotski (1997), atribui origem social a
todas as funções psicológicas superiores. Sua formulação confere tais funções tanto a
grupos sociais quanto a indivíduos, num processo que faz referência ao vínculo entre
59
dois planos de funcionamento: o interpsicológico e o intrapsicológico (WERTSCH,
1988). O vínculo entre esses dois planos dá-se no processo de interiorização, o qual se
refere à reorganização individual no curso do desenvolvimento a partir de experiências
que acontecem primeiramente no plano interpsicológico (relações sociais) e depois
intrapsicológico (relações individuais).
cada função psíquica aparece no processo de desenvolvimento da conduta duas
vezes; primeiro, como função da conduta coletiva, como forma de colaboração
ou interação, como meio de adaptação social, ou seja, como categoria
interpsicológica, e, em segundo lugar, como modo de conduta individual da
criança, como meio de adaptação pessoal, como processo interior da conduta,
quer dizer, como categoria intrapsicológica. (VYGOTSKY, 1997, V, p. 214,
trad. livre).
Para Vygotski, a partir do momento em que há relações sociais que comportem a
experiência no plano interpsicológico, há também o desenvolvimento intrapsicológico,
para toda a espécie humana. Formam-se as funções intrapsicológicas a partir da
comunicação, do discurso que permeia as relações sociais da criança para viabilizar seu
contato com o mundo (LEONTIEV, 1977).
Essas relações com o contexto só ocorrem na medida em que há mediação,
havendo o indicativo de “criação de técnicas” e/ou “sistemas artificiais” quando o
indivíduo não pode interagir com autonomia ou de modo suficiente (VYGOTSKI, 1997,
V). O autor postulava que o desenvolvimento da criança estava prejudicado quando suas
dificuldades ou deficiências impediam o processo de mediação16, sendo necessário
pensar estratégias em que a criança tivesse este acesso.
A relação mediada é realizada por três eixos: por objetos (“instrumentos”), por
artefatos da cultura (“signos”, que também envolve a linguagem), e pela relação sujeito-
sujeito (parcerias com outras pessoas, adultas ou crianças)17
. O processo de mediação
16
Uma explicação a respeito do processo de mediação explicita-se aqui para que seja dada a devida
importância à proposição vygotskiana. Necessária a clareza de que, embora se faça presente este tema no
presente estudo, estudá-lo não é o foco principal para a análise. 17
As diferentes traduções e referências com relação à obra de Vygotski apontam uma multiplicidade de
termos que tratam de um mesmo conceito. Os “instrumentos” podem ser traduzidos como “ferramentas
materiais” ou “objetos”, construídos socialmente, com funcionalidade para o humano e orientados para
uma ação externa ao indivíduo. Os “signos” ou “ferramentas psicológicas” também são construídos
socialmente, mas voltados para uma ação interna. Há ainda a distinção entre signos: pode ser um apoio
concreto (artefato cultural), ou uma construção particular, abstrata (como uma referência memorizada
para lembrar-se de algo mais complexo). Os “artefatos de cultura" envolvem desde crenças e valores até
diferentes tipos de linguagens (a escrita, o desenho, a música, a dança etc.). Alguns autores não trabalham
60
por instrumentos, artefatos e parceiros permite que o humano se aproprie de seu
contexto. Se este processo está prejudicado, então há uma incompletude na formação
das funções psicológicas superiores (Ibid.).
Pensar estratégias que viabilizem o processo de mediação é construir caminhos
que permeiem estes três eixos. Os instrumentos são objetos criados com função social e
intencionalidade, instaurando que o uso de um objeto em seu contexto, inclusive
interpessoal, permite sua apropriação. Já os signos são artefatos que auxiliam e intervém
nos processos psicológicos, sendo interpretáveis ao representar a realidade
(VYGOTSKI, 1997, III). A mediação sujeito-sujeito ocorre na parceria com outras
pessoas, sejam adultos e/ou crianças. A partir desta interação, quando há um parceiro
que assuma papel de “tutor”, é possível que a criança manifeste ações as quais não
poderia manifestar de modo independente. De acordo com estas definições, Vygotski
propunha para a educação de crianças “anormais” o trabalho com sistemas
compensatórios, como o braile para cegos e a comunicação alternativa para surdos-
mudos.
O conceito de zona de desenvolvimento potencial nomeia o campo, situação ou
experiência em que a mediação incide diretamente nas funções em desenvolvimento. Na
compreensão de Chaiklin (2011), a zona de desenvolvimento potencial é um conceito
que “não está ligado ao desenvolvimento de habilidades de alguma tarefa particular,
mas deve estar relacionada ao desenvolvimento” (p. 662). É definida como a distância
entre os níveis de desenvolvimento real (funcionamento interpsíquico que já se
manifesta nas ações da criança) e potencial (funcionamento interpsíquico que passa a se
tornar possível quando há mediação, de acordo com dado contexto social, que inclui
intervenções ou colaborações de parceiros mais experientes, desde que estas sejam
significativas para o processo de desenvolvimento singular da criança).
Embora os princípios que definam os conceitos de interiorização, mediação e
zona de desenvolvimento potencial sejam os mesmos, para cada uma das questões que
essas crianças possam apresentar, há uma proposta na obra de Vygotski para
compreender seu desenvolvimento, inclusive no que se refere a estratégias para intervir
sobre este processo. Fundamentos de Defectología (1997, V) explicita essa variedade de
com essas distinções; consideram que, no processo de mediação, todos os elementos atuantes interagem e
transformam-se mutuamente (Wertsch, 1988).
61
“desvios”, dentre deficiências, questões físicas, comportamentais e psíquicas, e propõe
caminhos para abordá-los no plano educativo.
Um ponto recorrente na obra citada é que para todas as “deficiências” abordadas
por Vygotski há uma reflexão para pensar a construção do conhecimento com ênfase na
linguagem e na comunicação. São estratégias que viabilizam o processo de mediação e,
por consequência, o desenvolvimento das funções superiores. Nesta perspectiva, a
aquisição da linguagem potencializa a formação dessas funções superiores por que
encerra o compartilhamento cultural na trajetória da filogênese humana: amplia as
possibilidades de interação do humano com seu contexto, reorganizando o pensamento
individual. Segundo Leontiev (1977),
o desenvolvimento mental da criança se realiza através da comunicação, e
antes de tudo na prática. Mas a criança entra muito depressa em comunicação
com os que a rodeiam, por meio da palavra. Descobre palavras, começa a
compreender o seu significado e incorpora-as ativamente no seu discurso. A
aprendizagem da linguagem é a condição mais importante para o
desenvolvimento mental, porque, naturalmente, o conteúdo da experiência
histórica do homem, a experiência histórico-cultural, não está consolidada
somente nas coisas materiais; está generalizada e reflete-se de forma verbal na
linguagem. (p. 114).
Se nos transtornos do desenvolvimento há dificuldades na meta-representação
(FERNANDES, 2003), no simbólico (JERUSALISKY, 1984) e na interpretação de
significados contextuais e na participação em atividades sociais (RUSSELL, 2000),
como consequência, geralmente essas crianças possuem comprometimentos também no
desenvolvimento da linguagem18
, o que agrava seu quadro sintomatológico. É
importante salientar que, no processo de desenvolvimento, as crianças apropriam-se da
linguagem e formam-se suas capacidades e funções tipicamente humanas, como falar,
compreender, ouvir, articular etc, “funções que não são inatas, mas surgem durante a
ontogênese” (LEONTIEV, 1977, p. 106). Isso significa que quanto maior o acesso da
criança a situações e atividades permeadas pela linguagem, maior sua possibilidade de
desenvolvimento. Portanto, o reconhecimento da dificuldade dessas crianças com
relação a seu contexto suscita a criação de alternativas que possibilitem inverter essa
lógica, ou seja, viabilizar sua interpretação e participação.
18
A obra de Jerome Bruner (1983), por exemplo, elucida as relações entre linguagem e atenção
compartilhada.
62
Nesse sentido, Leontiev considera três observações: 1) a influência das
condições contextuais muitas vezes depende de uma linha educativa, de planejamentos
sistematizados e de intervenção; 2) as características de sua atividade nervosa superior
não podem ser ignoradas; e 3) há problemas referentes à esfera emotiva e motivacional
da personalidade da criança19
. Portanto, viabilizar a interpretação e a participação dessa
criança em contextos significativos requer planejamento sistematizado e intervenção
precoce, para além da criação de sistemas compensatórios20
. Conjuntamente, a linha
educativa deve reavaliar-se de modo constante, para comportar as particularidades da
criança, em suas esferas biológica, neurológica, emotiva e motivacional.
Sem propor um modelo, na obra de Vygotski há uma linha educativa coerente
com as observações de Leontiev (1977). Especificamente sobre as crianças em questão,
ressalta-se em Fundamentos de Defectología a descrição do quadro de sintomas para
crianças as quais o autor denomina “dificilmente educáveis”21
. Dentre estes sintomas,
destacam-se: desorganizações da psicomotricidade; escassa capacidade para expressar
emoções; e a realização de perguntas de modo obsessivo (VYGOSTI, 1997, V, p. 303)
– os quais se aproximam do quadro atual de transtornos do desenvolvimento. Nestes
casos, Vygotski apontava dois problemas: a formação de traços da conduta que
inviabilizam o contato social e a utilização dos procedimentos culturais, em particular,
do pensamento verbal.
Na construção de suas argumentações sobre essas crianças, Vygotski recorre à
Sujareva22
, buscando explicações sobre as psicopatias na infância. Sua conclusão é que
a psicopatia não é um processo patológico, senão um estado fronteiriço, “variante
19
O artigo de Leontiev trata do atraso mental sem especificar a condição da criança. Refere-se, em
primeira instância, a características biológicas diagnosticáveis. No caso dos transtornos do
desenvolvimento, há que se considerar que ainda não foram encontrados indicadores biológicos, suas
características não podem ser consideradas “deficiências”. A inferência aqui justifica apenas que muitas
das dificuldades conceituais são decorrentes da insuficiência do processo de mediação, justamente por
suas dificuldades de interação/comunicação. 20
As abordagens comportamentalistas e o uso das comunicações alternativas ampliadas podem ser
considerados exemplos de sistemas compensatórios, quando são de fato significativos para a criança. 21
Para ele, a natureza destes casos consistia num “conflito psicológico” entre o meio e a criança, ou entre
os aspectos singulares de sua personalidade. Estes casos contemplavam crianças que sofreram influências
traumatizantes do ambiente; e crianças com quadros determinados por fatores psicológicos internos ou de
seu desenvolvimento, os quais não implicavam necessariamente inclinações patológicas. (VYGOTSKI,
1997, V, p. 194). Optou-se por manter duas das expressões utilizadas pelo autor enquanto fidelidade a sua
obra e admite-se o cuidado com o tom pejorativo que algumas expressões – “dificilmente educável” e
“anormal” – podem assumir atualmente. 22
Na tradução inglesa, Grunya E. Sukhareva. Psiquiatra russo que publicou a primeira descrição da
síndrome de Asperger, em 1926. (Cf. Feinstein, 2010).
63
anômala da personalidade” ou “certa deficiência do substrato caracterológico da
personalidade” (Ibid.). Vygotski e Sujareva corroboram sobre a indefinição desse
quadro sintomatológico na infância, afirmando que neste período não há um “autismo”
manifestado. A hipótese vygotskiana reconhece a presença de elementos de
insociabilidade e de isolamento nessas crianças, mas não pressupõe uma autêntica falta
de comunicação. A partir da natureza do processo de mediação, Vygotski alega que
quanto mais distante estiver o sintoma de sua causa primária, mais este se submete à
ação social:
Quanto mais distante estiver o sintoma de sua causa primária, mais se submete
à ação terapêutica e educativa. À primeira vista é paradoxal: o
desenvolvimento incompleto das funções psicológicas superiores e das
formações do “caráter” superiores, que são uma complicação secundária nas
psicopatias mostram-se nos atos menos estáveis, mais acessíveis à influência,
mais eliminável, do que o desenvolvimento incompleto dos processos
inferiores ou elementares diretamente condicionados pelo próprio defeito. O
que nasceu no processo de desenvolvimento da criança como formação
secundária pode ser eliminado desde o ponto de vista pedagógico-terapêutico.
(VYGOTSKI, 1997, V, p. 308, trad. livre).
Em outras palavras, quando há um quadro de processo psicológico alterado, há
uma desintegração de sistemas complexos provenientes de uma vida coletiva: sistemas
que possuem origem social e que, portanto, formam-se posteriormente, o que, de certo
modo, compreende-se como uma “falha” ou “diferenciação” no processo de assimilação
ou apropriação da experiência acumulada pelo gênero humano no decurso da história
social (LEONTIEV, 1977). A partir dessa lógica, uma das conclusões aponta para um
desenvolvimento incompleto das funções superiores como decorrência de um processo
de mediação interrompido, o que traz complicações secundárias, mas ainda passíveis de
educação. Outra hipótese é considerar o processo de mediação de forma diferenciada
nesses casos. De toda forma, a ação educativa é possível por que a proposta vygotskiana
– essencialmente “histórica, social e cultural” – compreende os conceitos de
interiorização, de mediação e de zona de desenvolvimento potencial como influentes na
formação da personalidade da criança e nas conexões estabelecidas entre suas funções
superiores23
:
23
Conclusão que, de certa forma, aproxima-se da existência da plasticidade neuronal.
64
A ideia principal (extraordinariamente simples) consiste em que durante o
processo de desenvolvimento do comportamento, especialmente no processo
de seu desenvolvimento histórico, o que se transforma não são tanto as
funções, nem sua estrutura, nem sua pauta de desenvolvimento; o que se
transforma são precisamente as relações, as conexões das funções entre si, de
maneira que surgem novos agrupamentos desconhecidos em nível anterior.
Assim, quando se passa de um nível para o outro, com frequência a diferença
essencial não se baseia na transformação intrafuncional, senão nas
transformações interfuncionais, nas conexões interfuncionais, da estrutura
interfuncional. (VYGOTSKI, 1997, I, p. 72-73, trad. livre).
Vygotski pensava do mesmo modo sobre o homem primitivo: não que este não
possuísse funções suficientemente desenvolvidas ou que lhe faltasse alguma delas, mas
sim que a distribuição e funcionamento destas funções realizavam-se de maneira
diferenciada do que se possui desde o ponto de vista do homem moderno, por que
dependem da “herança” histórico-cultural. Leontiev (1977) corrobora com a hipótese de
que as funções superiores não são morfologicamente estáveis:
Parece que a criança é impulsionada por vezes pelas suas próprias capacidades
e funções mentais naturais, que o êxito depende destas. Mas não é assim. As
capacidades humanas formam-se neste processo funcional. (...)
simultaneamente à formação dos processos mentais superiores,
especificamente humanos, se formam também na criança os órgãos cerebrais
essenciais para o seu funcionamento (...) a criança não nasce com órgãos
preparados para cumprir funções que representam o produto do
desenvolvimento histórico do homem; estes órgãos desenvolvem-se durante a
vida da criança, derivam da sua apropriação da experiência histórica. Os órgãos
destas funções são os sistemas funcionais cerebrais (“órgãos fisiologicamente
móveis do cérebro”, segundo Ujtomsky), formados com o processo efetivo de
apropriação (LEONTIEV, 1977, p. 110 e 113).
Desse modo, sob o enfoque da defectologia vygotskiana, o processo educativo
de crianças com transtornos do desenvolvimento:
Não apenas pode lutar contra a desintegração da personalidade mediante a
eliminação das causas que a conduzem, mas também mediante a construção
ativa da personalidade, a formação de sua unidade, ajudando na luta contra a
desintegração, estimulando o desenvolvimento. (VYGOTSKI, 1997, V, p. 313,
trad. livre).
A educação de crianças com questões psíquicas mais do que encontrar caminhos
que compensem suas “deficiências”, fundamenta-se na construção da personalidade, na
consolidação e integração das funções psíquicas superiores. Para isso, Vygotski defende
que a educação consiste num estudo clínico, em que há uma retomada da história das
65
relações da criança e da família24
: “Deve basear-se em uma prolongada observação
durante o processo educativo, na experimentação pedagógica, no estudo dos produtos de
sua criatividade, do brincar, e de todas as facetas de sua conduta” (Ibid., p. 194).
Conclui-se que, para esses casos, Vygotski reitera a necessidade do auxílio da
educação no desenvolvimento de interações sociais e do pensamento dessas crianças.
De acordo com sua teoria, dois fatores principais referem-se à possibilidade de alteração
do seu quadro sintomatológico, justificando a intervenção educativa. Primeiro, Vygotski
parte da suposição de que houve um processo de mediação diferenciado, sendo, por
isso, seus sintomas considerados complicações “secundárias”, “mais educáveis”.
Segundo, as conexões interfuncionais modificam-se na trajetória da ontogênese
humana. Nota-se que essa hipótese está de acordo com as observações de Leontiev
(1977), já que preconiza a intervenção educativa em consonância com as características
de insociabilidade e isolamento da criança, no intuito de comportar suas esferas
biológica, neurológica, emotiva e motivacional.
Nesse sentido, o indicativo do autor em mediar relações dessas crianças com seu
contexto social, focadas em seus interesses, processos criativos e possibilidades
construídas pelo jogo, é essencial para fundamentar a prática educativa, já que os fatores
citados demonstram detalhes sobre sua compreensão de mundo, sobre o que já se
apropriaram com relação a seu contexto e sobre o que estão próximos de se apropriar;
ao passo em que também alavancam a interação social onde normalmente há uma
resistência por parte da criança.
De acordo com Fundamentos de Defectologia, a educação dessas crianças possui
a premissa de que sua condição sintomatológica não está definida nem determinada. A
hipótese de que seus sintomas e alterações psicológicas agravam-se de acordo com sua
relação com o mundo corrobora com as conclusões de estudos que explicam o
comportamento autístico a partir da hipótese de que essas crianças possuem dificuldades
na atenção compartilhada, na interpretação e na participação em contextos
significativos. Por isso, a intervenção educativa precoce deve visar o processo de
mediação em sua complexidade e, assim, também as particularidades da criança, dentre
seus sintomas e tendências à insociabilidade e ao isolamento.
24
Ideia que se aproxima das propostas terapêuticas.
66
Resta a pergunta: se há insuficiência no processo de mediação e possibilidade de
transformação das conexões interfuncionais, por que, a despeito de tantas tentativas e
experiências que cada vez mais se ampliam na sociedade contemporânea, é tão difícil
encontrar o registro de uma criança com quadro de transtornos do desenvolvimento que
modificou seu funcionamento psíquico? O que dizer sobre a consciência dessas
crianças? Não há dúvidas de que o trabalho educativo permeie as possibilidades de
participação social da criança e desenvolva suas habilidades de leitura de mundo, mas
como se dá essa participação e esse desenvolvimento?
2.2. O conceito de consciência
O conceito de consciência traz consequências diretas para o desdobramento de
qualquer estudo que se proponha a articular as contribuições da abordagem Histórico-
cultural às questões dos transtornos do desenvolvimento, devido a dois fatores
principais: há o questionamento sobre como é a consciência dessas crianças, sobre si
mesmas e sobre sua percepção e interpretação de contextos significativos (RUSSELL,
2000); e também se considera a própria noção atividade-guia, que requer reestruturação
psíquica, da consciência, para cada etapa do desenvolvimento.
Vygotski não formulou um tratado extenso especificamente sobre esse tema
(WERTSCH, 1988). Algumas de suas suposições encontram-se no decorrer de sua obra
e sintetizam-se no texto “El problema de la conciencia” (Probliema Soznania,
VYGOTSKI, 1997, I), capítulo que reúne anotações sobre os comentários de Vygotski
em uma de suas reuniões de trabalho com seus colaboradores25
. No início do referido
capítulo, uma análise das notas do autor indica que se pensou uma definição para o
conceito de consciência como alternativa para a fragmentação do conhecimento
produzido pelo campo da psicologia da época (WERTSCH, 1988). Evidencia-se seu
intuito de rechaçar interpretações reducionistas sobre os fenômenos psicológicos, até
então vistos como neurofisiológicos e comportamentais pela reflexologia, bem como a
ideia de que a consciência seria uma “substância” coexistente com o cérebro material,
25
De acordo com a nota de Leontiev, participaram dessa conferência, além de Vygotski e Leontiev,
Luria, Bozhóvich, Zaporózhets, Liévina, Morózova e Slávina (Vygotski, 1997, I).
67
tal como defendia a psicologia subjetiva e introspectiva. A psicologia, além de não
possuir um conceito que integrasse os conhecimentos dos diversos campos teóricos,
também não considerava a consciência de modo qualitativo, já que não admitia suas
possibilidades de desenvolvimento, e sim tomava as conexões interfuncionais como
permanentes e imutáveis:
A esterilidade da psicologia dependia do fato de que não se estudava o
problema da consciência... A consciência era considerada ou como um sistema
de funções ou como um sistema de fenômenos... Como a psicologia
compreendia as relações entre as distintas atividades da consciência? Este
problema que carecia de importância, para nós é fundamental. (VYGOTSKI,
1997, I, p. 120, trad. livre).
Vygotski opôs-se a esse modelo propondo que a consciência possui organização
dinâmica. Para compreender sua hipótese, é necessário partir do significado que a
palavra “consciência” possui na sua obra26
, já que essa assume diferentes interpretações
de acordo com o conteúdo que o autor pretende expressar. Toassa (2006) conclui que
“consciência” possui três acepções na obra vygotskiana: 1) processo de tomada de
consciência; 2) atributo de conteúdos e processos psicológicos; e 3) sistema psicológico.
Essas interpretações articulam-se e produzem as bases da psicologia vygotskiana: em
sua primeira interpretação, a “tomada de consciência” refere-se à realidade ambiente, ao
próprio eu (autoconsciência) e às vivencias subjetivas; na segunda, como qualidade de
determinada função psicológica (como “memória consciente” ou estar consciente, em
alerta); e na terceira enquanto sistema psicológico que integra as transformações
interfuncionais, modificando-se de acordo com a relação dialética entre parte (funções
psíquicas superiores) e todo (estrutura geral).
Para Vygotski, a consciência humana (sistema psicológico), envolvia aspectos
intelectuais – elementos como funções superiores “conscientes” (atributo) e a
conscientização sobre conceitos, procedimentos, atitudes etc. (tomada de consciência) –
bem como aspectos afetivos, no que se refere à motivação. No desenvolvimento
humano, esses aspectos e elementos interagem continuamente entre si, transformando-
se e transformando o sistema psicológico em sua totalidade. Por isso, compreender essa
26
A diversidade de significados para a mesma palavra dificulta o entendimento das suposições do autor,
problemática que em parte surgiu da própria tradução da obra, em que termos como osoznanie (realização
consciente ou metaconsciência) e soznanie (consciência em sentido amplo) foram traduzidos ambos como
“consciência” (Wertsch, 1988).
68
organização dinâmica, ou seja, estudar o funcionamento psicológico em sua
complexidade requer a transcendência das particularidades de cada aspecto ou elemento
tomado isoladamente:
A conexão entre as atividades (psicológicas) é o ponto central no estudo de
qualquer sistema... A consciência é desde o princípio algo integral – isto é o
que postulamos... Deve-se levar em conta a transformação da consciência em
seu conjunto como explicação de qualquer transformação interfuncional.
(VYGOTSKI, 1997, I, p. 121).
Isso significa que, nos saltos de desenvolvimento, formas de funcionamento
psíquico que contam com atividades desarticuladas, fragmentadas ou com conexões
elementares, vão tornando-se cada vez mais complexas e sistêmicas. Estudar este
sistema de relações, a “consciência”, é notar como se dão estas conexões – a partir de
como estas se refletem nas ações da criança – e como passam a articular-se sob novas
configurações. Vygotski defendeu que os estudos sobre o sistema psicológico humano
necessitavam uma unidade de análise que proporcionasse “uma secção transversal da
complexidade interfuncional da consciência” (WERTSCH, 1988, p. 201). Essa reflexão
respalda duas considerações, complementares, a respeito da consciência de crianças
com quadros de transtornos do desenvolvimento.
A primeira delas articula-se às conclusões do trabalho Pensamento e Linguagem
(VYGOTSKI, 1982, II) – a importância do signo, em seu sentido social; e as relações
entre fala e pensamento, som e significado –, que levaram Vygotski à escolha da
“palavra” como unidade de análise para estudar a consciência, considerando-a capaz de
refletir a organização interfuncional humana:
Encontramos que a relação entre o pensamento e a palavra é um processo
vivo... A palavra desprovida de pensamento é, antes de tudo, uma palavra
morta... Mas o pensamento não encarnado na palavra é uma sombra. (...) Por
isso, o pensamento e a linguagem são a chave para a compreensão da
natureza da consciência humana. Se a linguagem é tão antiga quanto à
consciência, se a linguagem é a consciência que existe na prática para os
demais, e, por conseguinte, para si mesmo, é evidente que as palavras
desempenham um papel central não só no desenvolvimento do pensamento,
mas também na evolução da consciência como um todo (...) O significado da
palavra é o microcosmo da consciência humana. (VYGOTSKI, 1982, II, p.
346-347).
69
Aqui surge a primeira consideração a respeito da consciência de crianças com
quadros de transtornos do desenvolvimento. Pensar este conceito tendo a palavra como
unidade de análise traz o questionamento sobre as possibilidades de crianças que não
falam ou possuem um repertório muito restrito. Se a fala organiza o pensamento e se a
palavra tem como efeito a generalização dos conceitos, mas essa criança não apresenta
linguagem totalmente desenvolvida ou utiliza-se de frases soltas e/ou desconectas,
observa-se então uma consciência que está “fragmentada”, que estabelece conexões
elementares, com atividades desarticuladas, com informações e percepções que não se
coordenam entre si. Essa é a conclusão que se pode extrair a respeito do pensamento
vygotskiano quanto à fala e a consciência de crianças com quadros de transtornos.
Nesse sentido, é possível o questionamento sobre a imersão num mundo em que
há linguagem: ainda que a criança não fale, ela está imersa num mundo em que outros
falam com ela, para ela e até por ela – ou seja, ela não está totalmente alheia à palavra.
Dessa forma, a palavra, enquanto unidade de análise na compreensão do funcionamento
interfuncional, não se dissocia de outro aspecto, que é o posicionamento que essa
criança assume no contexto do qual faz parte. Afinal, quando se pensa em autoria e
participação social, é preciso ir além da imersão num mundo de linguagem, espera-se
que a criança tome a palavra para si, situe-se nesse mundo em relação aos outros e dele
participe com propriedade.
Os estudos pós-vygotskianos contribuem para essa discussão ao questionar a
ideia de que o significado da palavra seja capaz de transcender diferentes aspectos e
elementos psicológicos e assim retratar a organização interfuncional (WERTSCH,
1988). Isso por que as palavras modificam seus sentidos de acordo com os contextos
sociais e culturais. Nesses estudos, há a expansão da importância do contexto de
significações, em seu potencial de comunicação entre pares ou pequenos grupos, no que
se refere à mediação e à intersubjetividade, e compreende-se a formação da consciência
sob o prisma social e institucional:
Mediante a análise dos contextos situacionais institucionais em que se dá o
funcionamento interpsicológico podemos entender muito mais acerca deste
funcionamento do que se o consideramos isoladamente, o que, por sua vez,
deveria proporcionar informação abundante sobre a origem do funcionamento
intrapsicológico. Somente por meio da construção de um marco teórico em que
os níveis social e institucional, interpsicológico e intrapsicológico de análise
possam ser unidos sem ser reduzidos a um ou outro, seremos capazes de
70
responder questões sobre a relação entre os contextos situacionais de atividade
e o indivíduo. (WERTSCH, 1988, p. 224-225, trad. livre).
Desse modo, o posicionamento que a criança assume nessa rede de significações
também traz indicativos sobre sua consciência, sendo necessário compreender como
essa criança é vista pelos outros e como interage com eles ao compartilhar um objetivo
em comum. Na lógica proposta por esses estudos, para além da “palavra”, há a
argumentação de que a ação mediada por artefatos da cultura e orientada a um objetivo
configura a unidade de análise para contemplar a consciência humana (ZINCHENKO
apud WERTSCH, 1988):
Quando consideramos uma ação dirigida a um objetivo e mediada por
instrumentos, como a ação implicada na construção de um objeto de acordo
com um modelo, podemos ver que a percepção, a memória, o pensamento (ou
solução de problemas) e a atenção se encontram necessariamente implicadas e
coordenadas em uma unidade de verdadeira vida psicológica. (Ibid., p. 214).
Nessa perspectiva, elementos sociais e institucionais interagem com fenômenos
psicológicos individuais e as situações de aprendizagem são criadas e transformadas
constantemente mediante a comunicação e a interpretação, inclusive de elementos
intersubjetivos27. Durante este processo, cada membro adquire consciência de si e de sua
ação, transformando a estrutura geral de sua consciência conforme se desenvolve a
capacidade de interpretar e refletir sobre significações contextuais em relação a uma
atividade, de acordo com as interações estabelecidas entre os membros do grupo.
Para Daniels (2001), esse é um modo de compreender o desenvolvimento da
consciência dentro de contextos de atividade social prática. O conceito relaciona-se à
participação cocolaborativa em uma atividade social e cultural, até que o indivíduo seja
consciente de sua participação no grupo e do próprio processo que participa,
envolvendo suas representações, suas (re)significações e criações, o que proporciona
caráter diverso para cada “consciência”. Dá-se desenvolvimento quando se inicia a
27
O plano social institucional constrói intensa relação com os elementos intersubjetivos de um contexto.
A especificidade das relações sociais propostas por Marx, por exemplo, subentende o processo de
produção em que o trabalho (abstrato) é transformado em valor de troca do objeto produzido (concreto).
Essa relação “objetal” originou o conceito de materialidade, de Lukács, referente ao aparecimento do
processo de produção capitalista em todos os aspectos da sociedade, inclusive da consciência. Por meio
da apropriação, o indivíduo reproduz em si mesmo a atividade histórica e social (Davydov 1988).
71
distinção entre realidade e impressões individuais, a partir do estabelecimento de um
paralelo entre o contexto e si mesmo:
A consciência humana distingue a realidade objetiva do seu reflexo, o que leva
a distinguir o mundo das impressões interiores e torna possível com isso o
desenvolvimento da observação de si mesmo. (LEONTIEV, 2004, p. 75).
Os meios mediadores são muitas vezes utilizados com pouca ou nenhuma
reflexão consciente. Na verdade, uma pessoa só se torna consciente de uma
alternativa imaginável quando se vê confrontada com um exemplo
comparativo. Essa consciência é uma das mais poderosas ferramentas
disponíveis para o reconhecimento e transformação das formas de mediação
com consequências para o desenvolvimento. (Id., 1991, p. 126, trad. livre).
Na relação com os outros membros do grupo, cada vez que ocorre a
interpretação e/ou resignificação de um ato social, há possibilidade de transformação
nas conexões interfuncionais. Na construção de uma parceria, por exemplo, é possível
uma criança executar uma tarefa sem total compreensão dela, por que o parceiro mais
experiente assume o papel de tutor e responsabiliza-se por guiar a atividade. A
consciência da criança depende da consciência desses parceiros, de suas interpretações e
representações. Tal processo é fundamental para a conscientização da criança e, assim,
para seguir o curso do seu desenvolvimento.
Surge assim a segunda consideração a respeito da consciência de crianças com
transtornos do desenvolvimento. Participar de atividades sociais exige a auto-regulação
em relação à determinada regra compartilhada e uma comunicação que seja efetiva,
ainda que não a verbal. Contudo, sabe-se das dificuldades dessas crianças em sustentar
suas parcerias: em geral, requerem a insistência dos parceiros para que se consolide um
vínculo e, quando ocorre, não dividem a atenção a vários parceiros concomitantemente.
Essas crianças muitas vezes imitam comportamentos, sem interpretá-los ou relacioná-
los a outras informações, outras vezes, isto acontece em sentido estrito, cristalizado, sem
criticidade ou possibilidade de mudança, sem distinguir o outro de si mesmo, o contexto
de suas impressões internas. Também não há adequação de seus comportamentos a
situações sociais coletivas, revelando-se uma ausência de compreensão tanto da criança
em relação aos outros quanto dos outros em relação a ela. A atitude dessa criança revela
novamente uma consciência que se atém às informações por partes, não se conectando a
um sistema integrado, que exige posicionamento diante do entrelaçamento de diversos
pontos de vista.
72
Ainda assim, necessário indicar que a noção de atividade oferece caminhos, por
que essas crianças possuem seus interesses, muitos de acordo com suas características
particulares (como a preferência por jogos e brincadeiras, o uso da linguagem musical
ou matemática). Tudo indica que o envolvimento nessas atividades, conjuntamente à
sustentação das parcerias, viabiliza um aumento de complexidade de suas conexões
psíquicas, restando saber até que ponto estas podem constituir um sistema mais
integrado. A partir dessas conclusões, conceitos como interiorização, mediação e zona
de desenvolvimento potencial não podem ser dissociados da interpretação de outro
conceito, que é o de consciência. Se esta está fragmentada, mas é desenvolvida
contextualmente, toda e qualquer crença no potencial dessa criança não pode ser
dissociada das possibilidades de linguagem e da essência da atividade social prática.
2.3. A ação mediada por artefatos da cultura e orientada a um objetivo28
O conceito de atividade possui sua origem nos fundamentos da filosofia clássica
de Kant e Hegel, nos escritos revolucionários de Marx e Engels e na abordagem
Histórico-cultural de Vygotski, Leontiev e Luria (ENGESTRÖM et. al., 1999). A
psicologia russa formulou a teoria da atividade com o objetivo de transcender os
princípios behavioristas, construindo uma nova perspectiva, na qual a ação mediada por
artefatos culturais está orientada a um objetivo (Id.).
O trabalho de Leontiev (2004) pretendia explicar o funcionamento das funções
superiores de modo a compreender o pensamento humano e a conscientização. Para
isso, ele propunha a configuração: atividade-motivo/ação-objetivo/operação-condições.
Nesta estrutura, uma “necessidade” impulsiona dirigir-se a um objeto, constituindo o
motivo da atividade; para satisfazer essa necessidade, realiza-se uma ação sobre o
objeto; as condições contextuais caracterizam essa ação, e assim, influem no resultado
da atividade, na satisfação da necessidade (LEONTIEV, 1992)29
. Socialmente, várias
ações são realizadas por diversos integrantes do grupo, guiados por um motivo comum.
28
Definição por Zinchenko apud Wertsch (1988), em que a expressão “artefatos da cultura” abrange
ferramentas e signos. 29
De modo diferenciado dos grupos animais, para o humano não há uma relação imediata entre o motivo
da atividade e o objetivo da ação. Por exemplo, o animal caça (ação) por que sente fome (motivo) e vai
73
De acordo com essa lógica, o conceito de mediação estabelece um vínculo com
aprendizagens em situações específicas, vivenciadas, e possui lugar numa rede de
conhecimentos, numa ordem discursiva e cognitiva. O conceito de interiorização, por
sua vez, deve compreender a participação ativa e dinâmica, em que as interpretações
pessoais intersubjetivas reproduzem e/ou transformam o contexto da atividade Do
contrário, o conceito poderia ser interpretado como simples processo de armazenamento
de informações, de aquisição ou transmissão de parte do conhecimento de modo estático
e limitado, para que seja recuperado e utilizado no presente. Isso pressupõe que, durante
o processo, não se pode estar dissociado de seus pares e de seu contexto, já que são
estes elementos que indicam e instituem as significações presentes. Qualquer
aprendizagem só possui sentido em uma comunidade específica e depende dos outros
membros do grupo tanto para reestruturação psíquica da criança quanto para a
compreensão de um discurso coletivo e a autoconsciência sobre este processo
(DANIELS, 2001). Mediação e interiorização, portanto, carecem de sentido
isoladamente; existem apenas em relação a situações contextuais, dentro de uma
atividade social prática, a atividade principal ou “atividade-guia”.
Sobre esse processo de compreensão de um discurso coletivo e até mesmo sobre
a autoconsciência da criança, Davydov (1999) afirma que a atividade humana, em suas
formas coletivas e individuais, dá-se de forma tanto inconsciente quanto consciente,
sendo “o processo de emergência da consciência e de suas funções na atividade muito
difíceis de analisar” (p. 50). Devido as suas variantes – a relação entre os membros de
um grupo, os procedimentos em que há troca de informações, as condições de
aparecimento da atividade individual e as variadas transformações que ocorrem no
sistema sociocultural (Ibid.) –, o processo de conscientização torna-se extremamente
particular, visto que as referências de dado indivíduo nunca serão as mesmas dos outros
indivíduos do grupo.
comer (objetivo), ou seja, o motivo possui relação imediata com o objetivo da ação; já o humano pode
caçar (ação) por diversos motivos (por que o pai mandou, por que está com fome, por prática esportiva...),
visando diversos objetivos (aprender a caçar, comer, desenvolver-se na prática esportiva). É quando o
motivo coincide com o objetivo, de acordo com a intenção humana (a caça enquanto esporte visando
desenvolver-se como esportista de caça) que há desenvolvimento. É quando há sentido entre estes
elementos (motivo e objetivo), que a atividade humana adquire outra importância e complexidade,
vinculando-se ao desenvolvimento psíquico (Leontiev, 1992). E assim, a busca consciente por satisfazer
novas necessidades resignifica ao humano e aos contextos sociais e culturais.
74
Torna-se desafiador encontrar respostas sobre o processo de conscientização de
qualquer criança, independente das particularidades que esta apresente. Esta é uma
questão que deve ser pensada no sentido de favorecer a compreensão e a reflexão da
criança sobre os processos que vivencia, sobre seus pensamentos (BRUNER apud
DANIELS, 2001), e por isso, aproxima-se mais da criação de estratégias singulares de
intervenção, até que a criança possa participar da atividade, do que ao julgamento se ela
é capaz ou não de realizar determinada tarefa.
Conceber e trabalhar com o desenvolvimento da criança de forma individual e
específica é resgatar sua história, considerar suas particularidades e reconhecer os
modos como procede para solucionar seus desafios (LEONTIEV, 1977), ou seja, é uma
ação que está associada a sua zona de desenvolvimento potencial. Considerando que a
atenção compartilhada com um adulto ou a parceria com crianças mais experientes não
é por si só uma condição suficiente para trabalhar com a zona de desenvolvimento
potencial, é preciso determinar a natureza e a qualidade da parceria de modo que esta
seja qualitativa. Segundo Wertsch (1988),
a zona de desenvolvimento próximo se determina conjuntamente, pelo nível de
desenvolvimento da criança e a forma de instrução aplicada; não é uma
propriedade nem da criança nem do funcionamento interpsicológico por si só.
(p. 87, trad. livre).
Nessa abordagem, é possível afirmar que o conceito de zona de desenvolvimento
potencial na relação educativa com crianças com quadros de transtornos do
desenvolvimento visa compreendê-las e investir na construção de vínculos produtivos
com elas, reconhecendo que o desenvolvimento não se reduz a aprendizagem, mas parte
também de sua dinâmica interna (Ibid.). Quanto mais difícil a comunicação e a
interação com a criança, bem como interpretar a relação intersubjetiva que ali se
estabelece, mais complexo é compreender e alcançar suas zonas de desenvolvimento
potencial.
Partindo das escolhas e interesses da criança, Stone apud Daniels (2001)
identifica quatro eixos essenciais para a construção de uma participação significativa, os
quais podem ser pensados de acordo com as zonas de desenvolvimento potencial da
criança: 1) Conquistar sua participação em uma atividade cultural significativa, de sua
escolha, ainda que seja além de sua compreensão atual; 2) Observar sua participação de
75
acordo com uma articulação entre sua gradativa compreensão sobre a atividade e a
quantidade de apoio ou parcerias que necessita para realizá-la; 3) Diversificar a
quantidade e a estratégia de apoio (gestos, demonstrações, indicações verbais, materiais
concretos, diálogos etc.); 4) Reduzir gradualmente o apoio, na medida em que a criança
possa controlar a tarefa ou ação.
Para cada um desses eixos é necessário pensar níveis de intervenção, os quais
abrangem, por exemplo, a demonstração concreta de uma tarefa, a seleção de materiais,
a indicação de uso de materiais (de modo fragmentado, por etapas ou sequencialmente),
sugestões verbais claras e diretas, questionamento gerais, ou nenhuma intervenção
pontual30
. São indicações que partem da percepção concreta rumo à abstração dos
conceitos, da possibilidade de imitação direta de uma ação à representação desta, de
modo em que haja cada vez menos controle por parte do educador e mais autonomia e
consciência da criança sobre sua tarefa.
Tais eixos e intervenções supõem uma compreensão mais completa sobre a zona
de desenvolvimento potencial, a qual se torna possível apenas no contexto de uma
atividade principal. A reestruturação psíquica da criança é consequência desse processo
de participação:
A noção de “atividade-guia” é uma forma de identificar quais relações
específicas na situação social de desenvolvimento são capazes de contribuir
para o desenvolvimento das funções que conduzem à reorganização estrutural
das funções psicológicas da criança... A atividade em si mesma não irá
desenvolver a criança, mas para realizar a atividade-guia a criança se engaja em
ações que servem para desenvolver as funções psicológicas necessárias àquela
atividade. (CHAIKLIN, 2011, p. 665).
Durante a atividade principal (ou guia) surgem novas formações na consciência
da criança, pois a partir do seu engajamento, a criança precisa interpretar, identificar,
classificar, refletir, isto é, por em funcionamento suas funções superiores para
solucionar desafios de determinada circunstância. Nesse processo de leitura de mundo, a
criança separa-se dele, posiciona-se diante das situações e faz escolhas.
Evidente que a apropriação da experiência humana mediante a atividade
principal é sempre um fenômeno ativo: todo esse processo necessita escolha da criança,
requer sua motivação para que seja cocolaborativo. A estrutura da atividade é inerente a
30
Correspondem aos níveis de controle 0 à 5, em ordem decrescente. (Wood apud Daniels, 2001, p. 156).
76
um componente afetivo, a um anseio ou desejo (DAVYDOV, 1999), sendo o motivo da
atividade – quando há sentido entre uma necessidade e seus interesses particulares – o
fator desencadeante de seu processo. Eis aqui uma grande questão para os casos de
transtornos do desenvolvimento, dado que muitas vezes, essa criança é uma criança que
parece não ter motivação. É preciso muita sutileza para notar seus interesses, até que ela
se engaje em atividades que lhe sejam aprazíveis, e ainda muito cuidado com as formas
de intervenção, que podem mais repelir uma parceria do que conquistá-la. Isso por que
não basta que a criança escolha uma atividade para engajar-se, ela precisa fazer escolhas
perante o outro. Por um lado, pensar na zona de desenvolvimento potencial dessas
crianças parte primeiramente de uma aposta, no sentido de oferecer diversas situações e
acreditar que alguma delas será escolhida pela criança. Por outro lado, ainda que a
criança participe sem total compreensão da atividade, pode emergir também esta
motivação. Pode ser que a criança passe a reinvidicar seu lugar na atividade a partir de
seus interesses genuínos. Por isso a brincadeira é tão importante. Esta é uma atividade
que pode indicar, numa análise mais apurada, quais as escolhas e possíveis motivações
dessa criança.
No diálogo entre o jogo e o desenvolvimento de crianças com transtornos do
desenvolvimento é preciso compreendê-lo como atividade em que há significações
culturais, mas também como modo de organização de sistemas de atividade em que
cada membro possui sua função numa cadeia social: como o jogo estabelece-se como
elemento da cultura tanto como pode constituir-se enquanto atividade principal31
.
31
De acordo com a análise de Cole e Engeström (2007), a atividade-guia (ou principal) defendida pelos
teóricos russos era definida pela faixa etária e pelos moldes organizados por sua sociedade,
institucionalizada pelo governo da época. Atualmente, há uma crítica quanto a essa segmentação, sendo
necessário considerar as contribuições de outras áreas do conhecimento e reconhecer que hoje a infância
não é única, que a escolarização e a organização do trabalho, por exemplo, não são universais, e que há
variações culturais, que envolvem fatores sociais e econômicos, que influem diretamente nas atividades
práticas (Cole e Engeström, 2007). Atividade-guia é aquela que desperta maior motivação em alguém e
está de acordo com as características do seu grupo sociocultural, representando a noção de
comportamentos ou nível de experiência esperado pelo grupo (Id.). Neste estudo, trata-se especificamente
da infância e do jogo e por isso é possível abordá-lo como atividade-guia da criança.
77
3. O CONCEITO DE JOGO
A partir da abordagem Histórico-cultural, é possível definir o jogo simbólico
como ato de significação cultural e também articulá-lo à noção de atividade social
prática, já que é um dos atos que viabiliza a participação da criança em seu contexto de
modo significativo. Como é preciso imaginar e representar durante a brincadeira, nesta
seção, os conceitos de imaginação, simbolismo e consciência são retomados. Para isso,
adota-se a obra de Elkonin, Psicologia do Jogo (1998), como referência principal para
argumentar sobre como se dá a evolução do jogo simbólico, um processo que parte da
representação direta de ações rumo à representação de situações contextuais.
Em sequência, caracteriza-se a brincadeira de crianças com quadros de
transtornos do desenvolvimento. Como há pouca produção acadêmica no Brasil com
esta temática, utilizou-se de alguns estudos internacionais (LIBBY et. al., 1997, 1998;
WILLIAMS et. al., 2001; KANGAS et. al., 2012; WOLFBERG et. al. 2004, 2012;
WARREYN et. al., 2005 e WARREYN e ROEYERS, 2007) como referências
predominantes, buscando mais especificamente os que se enquadram no espectro do
autismo. Enfatiza-se a importância da necessidade de intervenção precoce para que estas
crianças superem suas dificuldades de interação social, de participação e interpretação
em contextos significativos e, desse modo, de brincar e usufruir de diferentes
referências.
3.1. O jogo como ato de significação cultural
Para compreender o jogo como elemento da cultura é necessário questionar
como este surgiu no decorrer da história da humanidade. É sua evolução histórica que o
caracteriza mediante qualidades culturais, sendo necessário resgatar a origem do próprio
termo jogo32
. Existem interpretações que concebem o jogo como prática natural e
32
Elkonin (1998) sugere que na história os jogos dramáticos antecedem os jogos esportivos e os jogos
ornamentais, validando a articulação entre estudos que tratam do surgimento do jogo simbólico de modo
articulado ao surgimento do conceito de jogo em geral. Na presente investigação, pretende-se explorar a
brincadeira de crianças com transtornos do desenvolvimento. Tal como já explicitado, a ausência (ou
78
espontânea da criança, como se este fosse inerente à infância33
(KISHIMOTO, 1998).
Entretanto, os jogos transformam-se na história e manifestam-se distintamente em cada
grupo sociocultural, ultrapassando os limites de ordens naturais e constituindo-se como
prática social:
O jogo é mais do que um fenômeno fisiológico ou um reflexo psicológico.
Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica. É uma função
significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma
coisa ‘em jogo’ que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um
sentido à ação. (HUIZINGA, 1971, p. 4).
Henriot (1983, 1989) delineia sua interpretação de jogo associando-o as suas
possibilidades estruturantes, tais como a imagem de quem seria a criança (ou o
participante) e qual seu papel em dado contexto histórico e social. O lugar ocupado no
grupo ou na comunidade social influencia o estabelecimento de condutas, responsáveis
por guiar o compartilhamento e a atribuição de significados a objetos, ações ou
situações: “um jogo provavelmente poderia ser definido objetivamente por todas as
regras que lhe conferem uma estrutura” (HENRIOT, 1983, p. 47, trad. livre). Esse
conceito de jogo sustenta-se por uma “ideia”, compartilhada por um grupo de
participantes que aceitam jogar e que, por isso, assumem as condutas ali determinadas
(Id., 1989). Assim, ao perpassar a história da humanidade, em diferentes gerações e
grupos étnicos ou locais, o surgimento do jogo esteve condicionado à possibilidade de
compartilhamento de uma ideia que o estruturasse.
Para Elkonin (1998), que se interessa pela evolução do simbolismo no jogo de
dramatização, essa primeira possibilidade de compartilhamento de significações surgiu
na arte. Em sua obra, há uma aproximação entre o conceito de jogo e o conceito de arte,
posto que ambos possuem sentido e interpretação pessoal. Para o autor, no decorrer da
história, o humano atribui aos objetos primeiro sentidos utilitários e depois estéticos. O
surgimento do jogo estaria relacionado à ideia de um prazer compartilhado, a partir das
insuficiência) do jogo simbólico é uma das premissas que definem seu quadro sintomatológico; e é este
motivo, justamente, o que direcionou a pergunta chave deste estudo. Sendo assim, quando se aborda o
jogo, a brincadeira, compreende-se que existem os jogos didáticos, as brincadeiras tradicionais e os jogos
de construção, mas para fins deste estudo, todas as reflexões referem-se ao jogo simbólico (Piaget, 1990),
também conhecido por brincadeira de faz de conta, jogo protagonizado, jogo sociodramático ou de
representação de papéis. (Kishimoto, 1996). 33
O jogo é interpretado como conduta natural, espontânea e típica da criança a partir das concepções
românticas sobre a criança e a infância. (Kishimoto, 1998).
79
práticas de comemorações ou festividades: “ao separar-se do processo geral, esta parte
da atividade de trabalho converte-se em objeto de reconstrução e logo se consagra e se
transforma num rito mágico” (ELKONIN, 1998, p. 18). Em primeiro momento, a arte
parece inserir a dramatização no universo adulto.
Mas como o jogo simbólico chega à infância? Argumentar sobre este
questionamento envolve reconhecer a posição social da criança em determinada
sociedade, já que o surgimento do jogo na infância está atrelado justamente ao acesso da
criança ao mundo adulto (ELKONIN, 1998). Em algumas sociedades primitivas, as
crianças participavam diretamente das atividades comunitárias, visando objetivos
coletivos e vitais assim que lhes fosse condizente com seu corpo físico. Nestes modelos
sociais, o jogo tornava-se desnecessário enquanto representação do universo adulto,
dado que a criança era inserida como membro responsável nas atividades precocemente.
Deste modo, havia pouca brincadeira. Ainda que manipulassem objetos ou instrumentos
adaptados para elas, sua função e sua intencionalidade estavam direcionadas à obtenção
dos resultados comunitários. Não havia sentido pessoal nesta atividade, já que não se
voltava ao processo, e sim ao objetivo final. Daí decorre a tese de Elkonin (1998),
Assim, pode-se formular a tese mais importante para a teoria do jogo
protagonizado: esse jogo nasce no decorrer do desenvolvimento histórico da
sociedade como resultado da mudança de lugar da criança no sistema de
relações sociais. Por conseguinte, é de origem e natureza sociais. (p. 80).
As experiências desenvolvidas nas relações sociais são tomadas como modelos
de ação e, dessa forma, constituem-se como repertório de significações de determinado
grupo social. É por isso que o jogo pode ser compreendido como parte da cultura de um
sistema. As experiências humanas comportam os três eixos de mediação e a brincadeira,
ao reconstituir tais experiências, também os envolve: há o contato com objetos e
artefatos da cultura e há a interação entre os sujeitos34
. O jogo possui origem e natureza
social, o que inclui a posição da criança com relação ao adulto, bem como sua
interpretação sobre estas posições, compreendidos como papéis sociais. Para Brougère
(1998),
34
Na brincadeira pode haver o uso de objetos (recursos materiais, por exemplo), bem como a utilização
de signos e linguagem (desenhos, registros etc). A mediação interpessoal pode ser compreendida como a
interação com parceiros mais experientes, o que envolve também a intervenção do educador.
80
Toda interação supõe efetivamente uma interpretação das significações dadas
aos objetos dessa interação (indivíduos, ações, objetos materiais), e a criança
vai agir em função da significação que vai dar a esses objetos, adaptando-se à
reação dos outros elementos da interação, para reagir também e produzir assim
novas significações que vão ser interpretadas pelos outros. A cultura lúdica,
visto resultar de uma experiência lúdica, é então produzida pelo sujeito social.
(p. 27).
Sendo assim, o jogo como elemento da cultura pode ser compreendido como
forma de interpretação e reconstrução pelos membros do grupo social. A interpretação,
no processo estabelecido pelo jogo e pelas relações sociais, insere novos elementos ao
contexto, reconstruindo a própria cultura. Há uma cultura pré-existente que define o
jogo, mas esta não é estática nem imutável, posto que o jogo é uma atividade que
pressupõe a apropriação pessoal e particular, num processo em que se concebe a criança
como coconstrutora (CORSARO, 2002).
Nessa concepção, o jogo é parte de um repertório de significações que pode ser
aprendido, construído e transformado pelas relações existentes no grupo sociocultural a
partir da apropriação e do compartilhamento destes elementos significativos. A criança
aprende como se brinca ao aprender a controlar um universo simbólico compartilhado e
específico, sendo necessário dispor de referências para brincar (BROUGÈRE, 1998),
ainda que sejam regras ocultas, implícitas nas relações humanas (VYGOTSKI, 1997).
Comenta Huizinga (1971):
Se verificarmos que o jogo se baseia na manipulação de certas imagens, numa
certa “imaginação” da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens),
nossa preocupação fundamental será, então, captar o valor e o significado
dessas imagens e dessa “imaginação”. Observaremos a ação destas no próprio
jogo, procurando assim compreendê-lo como fator cultural da vida. (p. 7).
Henriot (1989) utiliza o termo “jouabilité” para se reportar a uma situação de
jogo e se refere a um potencial para o usufruto dessa experiência. Não há jogo se não há
conduta e respeito a algum tipo de regra ou estrutura sustentada coletivamente. Também
Malaguzzi (2001), especialmente sobre o símbolo, afirma “é necessário entender que
pode ser de caráter individual ou social e, portanto, provavelmente o sujeito que o usa é
portador de uma sociocultura” (p. 107). Para haver jogo, é preciso viabilizar a
compreensão da criança sobre os significados de seu contexto, contemplando sua
inserção no grupo de modo participativo, como sujeito atuante e coconstrutor de cultura.
81
Tais significados incluem tanto a função e o sentido de objetos que fazem parte do
contexto quanto a intersubjetividade presente nas relações entre as pessoas (ELKONIN,
1998). Este processo ocorre durante a participação: no decorrer do jogo, a criança,
brincando, adquire e constrói cultura (BROUGÈRE, 1998).
A compreensão da criança como ser cocolaborativo na construção de si mesma e
de cultura amplia o olhar sobre a ação infantil, abordando-o em toda sua especificidade
e complexidade. A partir destes princípios é possível rever a psicologia piagetiana e
freudiana, ultrapassando noções de egocentrismo e narcisismo para considerar a
dimensão relacional da ação infantil (SARMENTO, 2002; CORSARO, 2002; e
ELKONIN, 1998).
Para Sarmento (2002), o jogo simbólico deixa de ser interpretado como projeção
do imaginário da criança e passa a ser concebido como forma de apropriação e
reconstrução do mundo, como elemento de socialização.
As crianças desenvolvem a sua imaginação sistematicamente a partir do que
observam, experimentam, ouvem e interpretam de sua experiência vital, ao
mesmo tempo que as situações que imaginam lhes permite compreender o que
observam, interpretando novas situações e experiências de modo fantasista, até
incorporarem como experiência vivida e interpretada (SARMENTO, 2002, p.
14).
Corsaro (2002) completa essa ideia e atribui ao jogo simbólico caráter de
socialização, depositando na “interpretação criativa” as capacidades de transformação e
reprodução sociocultural:
A abordagem interpretativa considera a socialização como um processo
produtivo-reprodutivo de densidade crescente e de reorganização do
conhecimento (...) a produção da cultura de pares não se fica nem por uma
questão de simples imitação nem por uma apropriação direta do mundo adulto.
As crianças apropriam-se criativamente da informação do mundo adulto para
produzir a sua própria cultura de pares. (p. 114).
Já a obra de Elkonin (1998) faz uma crítica à interpretação psicanalítica sobre o
jogo. Este é visto como “meio terapêutico natural”, como meio para reproduzir
sofrimentos insuportáveis até assimilá-los de modo que seja possível para a criança
conviver com seus conflitos e suas sensações angustiantes. O jogo interpretado desta
forma, desvinculado de sua história cultural, perde sua especificidade, posto que o
82
contato com os elementos da cultura já não é compreendido como campo de
possibilidades de ação. (ELKONIN, 1998, p. 136).
Conceituar o jogo como elemento da cultura é relevante por que reafirma a
possibilidade de aprendizagem e desenvolvimento. Se o jogo simbólico é visto apenas
como particularidade intrínseca à criança, como expressão de suas angústias e conflitos,
como a evolução de sua “maturação” ou “estruturação” psíquica, então, no caso dos
transtornos do espectro do autismo, novamente se recai na falta de credibilidade no
desenvolvimento da criança, por que este estaria “preso” a sua própria condição. Sem
ignorar a singularidade de cada sujeito, o jogo precisa ser concebido como oportunidade
de construção de um diálogo entre cultura e particularidades da criança que interage
com seu contexto. Essa é uma perspectiva que evidencia o desenvolvimento em sua
complexidade, em que a cultura oferece caminhos, sendo a atividade lúdica um deles.
3.2. O jogo como atividade principal da criança
Até o momento, foi exposto que a infância de cada criança extrapola os limites
do seu corpo orgânico; ela está intimamente relacionada às condições de vida presentes
em cada contexto, o que inclui variáveis socioculturais, econômicas, históricas e até
políticas. As crianças que vivem em diferentes momentos históricos, do mesmo modo
que as crianças que vivem em distintos grupos socioculturais de um mesmo período
histórico, apresentam, como consequência, processos diferenciados de desenvolvimento
em virtude da especificidade de suas atividades socioculturais (SARMENTO, 2002).
Por isso, o jogo simbólico não pode ser visto como único e universal para todas as
crianças; se é um elemento da cultura, também é preciso concebê-lo como atividade
humana.
O jogo, no entanto, não é uma atividade humana produtiva, que visa resultados.
Situar o jogo como atividade é compreendê-lo em sua qualidade enquanto processo de
apropriação peculiar, estabelecido pelas crianças na infância, em relação as suas
experiências sociais e seu desenvolvimento. Isso inevitavelmente associa a experiência
lúdica às mudanças de comportamento e pensamento frente a novas situações.
83
não se trata apenas de que no jogo se formam ou se desenvolvem operações
intelectuais soltas, mas de que muda radicalmente a posição da criança em face
do mundo circundante e forma-se o mecanismo próprio da possível mudança
de posições e coordenação do critério de um com os outros critérios possíveis.
Essa mudança oferece precisamente a possibilidade e abre o caminho para que
o pensamento passe a um nível mais elevado e constitua novas operações
intelectuais. (ELKONIN, 1998, p. 413).
Esse vínculo entre jogo e desenvolvimento, portanto, é o que define o jogo para
além de uma atividade qualquer exercida na infância, delineando-se como atividade
principal ou atividade guia da criança (LEONTIEV, 1988; ELKONIN, 1998;
VYGOSKI35
, 1997). A atividade lúdica é fundamental não pelo tempo que as crianças
desprendem na atividade nem por seu resultado final, mas sim pelo caráter objetivo que
se institui no processo de compreensão da realidade circundante:
Chamamos de atividade principal aquela em conexão com a qual ocorrem as
mais importantes mudanças no desenvolvimento psíquico da criança e dentro
da qual se desenvolvem processos psíquicos que preparam o caminho da
transição da criança para um novo e mais elevado nível de desenvolvimento.
(LEONTIEV, 1988, p. 122).
Para Vygotski (1997), o jogo possui a função de atividade principal da criança
ao relacionar-se com a zona de desenvolvimento potencial. Ao brincar, a criança realiza
ações que estão além de suas experiências concretas, possíveis no mundo em que
vivem, interpretando este contexto e vivenciando situações de modo imaginativo.
Segundo Leontiev (1988), isso ocorre por que, para a criança, há uma “discrepância
entre sua necessidade de agir, por um lado, e a impossibilidade de executar as operações
exigidas pelas ações, por outro” (p. 121), sendo a atividade lúdica o modo encontrado
como solução para este conflito.
Nessa atividade, a criança reproduz em sua ação formas de interagir com objetos
e modos de relacionar-se socialmente. Com o jogo, não é possível chegar ao produto, ou
ao resultado final da atividade humana, mas é possível reproduzir o processo em toda
sua significação estrutural e discursiva, incluindo nas ações tanto a operação
propriamente dita, seus procedimentos, quanto o motivo sociocultural de sua realização.
35
Na teoria vygotskiana o jogo é reflexo dos processos criadores que reordenam a criança e a realidade
(Vygotsky, 1986). Deste modo, este não possui função apenas voltada para o prazer, nem é a atividade
predominante da criança; é uma atividade de satisfação de necessidades, experimentação de desejos
impossíveis e irrealizáveis, em que há sempre uma situação imaginária, com uma ação subordinada ao
significado e suas regras. (Id., 1997, II, III).
84
Para isso é preciso imaginar. E é justamente no processo da atividade lúdica que se
desenvolve a imaginação da criança como função superior.
De acordo com esse enfoque, a imaginação não é premissa ou condição anterior
à atividade: a criança passa a imaginar durante o processo para que ocorra a brincadeira.
Concepções que abordam o jogo simbólico como qualidade intrínseca à criança supõem
que a imaginação está posta prontamente e é “ativada” quando se brinca. Sobre esta
hipótese, Leontiev (1988) argumenta:
Esta explicação não é apenas realmente falsa, mas é, em princípio, infundada.
Este é apenas um tipo de explicação, um tipo de estudo da atividade infantil
que a deduz a partir de mudanças já existentes em sua consciência e formadas
alhures, enquanto a linha principal da análise psicológica deveria tomar sempre
a direção oposta. Isto é, deveria começar por examinar a real atividade da
criança para, com isto, compreender as mudanças correspondentes em sua
consciência, e só então descobrir o efeito contrário desta consciência, agora
modificada, no desenvolvimento posterior da atividade (p. 125).
Esse movimento inverso na interpretação da atividade lúdica considera que ali
existe uma constante reelaboração por parte da criança sobre seu contexto sociocultural
concomitante a suas formas de pensar. Durante a brincadeira, são desenvolvidas funções
superiores entre perceber, lembrar, interpretar, imaginar e conscientizar-se sobre o
processo. Tais funções não existem prontamente, inatas e aptas para uso; elas são
desenvolvidas na medida em que se fazem necessárias em diversas atividades, inclusive
durante o jogo. No caso da imaginação, sob este enfoque, esta não é, portanto, uma
premissa para iniciar o engajamento no jogo, é uma função que se constitui durante sua
realização, seu produto:
nas premissas psicológicas do jogo não há elementos fantásticos. Há uma ação
real, uma operação real e imagens reais de objetos reais (...) a estrutura da
atividade lúdica é tal que ocasiona o surgimento de uma situação lúdica
imaginária. É preciso acentuar que a ação, no brinquedo, não provém da
situação imaginária mas, pelo contrário, é esta que nasce da discrepância entre
a operação e ação; assim, não é a imaginação que determina a ação, mas são as
condições da ação que tornam necessária a imaginação e dão origem a ela
(LEONTIEV, 1988, p. 127).
85
É a imagem do objeto e o conteúdo36
da ação que influem na constituição da
situação lúdica imaginária. Para reconstituir dada situação, a criança pode precisar
simbolizar objetos, substituindo-os de modo que representem a realidade, ou mesmo
imitar comportamentos humanos. O processo de evolução do jogo levanta a questão do
simbolismo, sobre como a criança aprende a simbolizar ou de onde extrai esta
capacidade. Elkonin (1998) aborda essa questão relacionando a possibilidade de
simbolismo ao próprio contexto sociocultural. Quando as crianças entram em contato
com os objetos, estes já estão significados pelos adultos ou parceiros, já com sua função
social: os instrumentos são explorados a partir de sua utilidade e os brinquedos já são
representativos, tal como uma boneca já representa uma menina ou um bebê.
Assim se transforma o brinquedo representativo na atividade conjunta com os
adultos, de objeto que era, em brinquedo propriamente dito. É de primordial
importância denominar com uma mesma palavra o objeto e suas diversas
representações (o cão verdadeiro, que corre pela casa toda, o cão de brinquedo
e o desenho de um cão no livro). (...) A criança vive não só num mundo de
objetos, mediante os quais suas necessidades são satisfeitas (xícaras, colheres,
botas, sabão, esponja etc.), mas também num mundo de imagens e, inclusive,
de signos. O processo de transformação do objeto em brinquedo é justamente o
processo de diferenciação do significado e do significante e do nascimento do
símbolo. (ELKONIN, 1998, p. 327).
É por esse motivo que, quando se predispõe de objetos para brincar, quanto mais
parecidos à função social do objeto representado, mais já carregam significados, o que
se potencializa na presença do objeto real. Esse raciocínio é passível da conclusão de
que o simbolismo está vinculado ao seu uso social e, por consequência, à palavra. É a
palavra que resignifica o uso lúdico do objeto, por que já contém as generalizações
sociais, já se dissociou do plano concreto, e condensa muitas imagens e sentidos, sendo
capaz de levar, implicitamente, a variedade de experiências das ações humanas com o
objeto. Com o uso da linguagem, há um distanciamento entre o objeto concreto e sua
função, fazendo com que este perca sua força determinadora real. Inversamente, a
palavra determina, resignifica, a função do objeto no jogo. Leontiev (1988) denomina
36
Na relação com o contexto sociocultural para o desenvolvimento do jogo protagonizado, Elkonin
(1998) faz uma distinção conceitual entre tema e conteúdo. O tema está ligado ao repertório, à variedade
de situações que podem constituir as experiências reais: o tema de médico, de casinha, de zoológico, de
casamento, por exemplo. Já o conteúdo refere-se à parte reconstituída pela criança. É o conteúdo do jogo
que revela a maior ou menor profundidade de compreensão sobre o contexto sociocultural, estando
vinculada também a realidade que a criança vive.
86
esse processo como uma ruptura entre sentido e significado, já que o objeto da ação
lúdica continua retendo seu significado real, mas adquiri um sentido novo para a
criança, lúdico. Para ele, a evolução do jogo consiste na diferenciação e conscientização
cada vez maiores sobre a brincadeira, sobre as relações entre sentido e significado. Sob
este enfoque, a simbolização pode ser interpretada como premissa para que o jogo possa
evoluir, mas não é uma capacidade inata, já que se constitui na interação humana e no
contexto de significações socioculturais37
.
Para Elkonin (1998), na evolução do jogo há a passagem pelo simbolismo duas
vezes: na resignificação (“transnomeação”) de objetos, destruindo a rigidez imposta
durante a ação lúdica; e quando a criança representa um papel, sintetizando as relações
sociais em seu sentido humano. O autor argumenta que a atividade lúdica parte do foco
nos objetos e alcança as relações entre as pessoas; e que conforme o jogo evolui e a
criança adquire consciência sobre sua própria atividade.
Neste ponto, reveste-se de substancial importância o fato de que no jogo se dê
às razões uma nova forma psicológica. Pode-se imaginar, por hipótese, que é
justamente no jogo que se dê a transição das razões com forma de desejos
imediatos impregnados de emotividade pré-consciente para as razões com
forma de desígnios sintéticos próximos da consciência. (ELKONIN, 1998, p.
406). O desenvolvimento da consciência pessoal da criança... é resultado do
jogo. (Ibid., p. 285).
Como premissas para o engajamento no jogo simbólico, Elkonin (1998) pondera
mais para a importância do repertório sobre o mundo adulto, em sua variedade de
experiências contextuais, conjuntamente à intenção de brincar, de imaginar algo; do que
para os limites ou capacidades particulares das crianças. O repertório refere-se à
necessidade do contato com objetos e artefatos da cultura, bem como com os membros
que estabelecem atividades sociais. A partir da compreensão desta rede de significados,
a criança também necessita um motivo, a intenção de brincar. Neste sentido, imaginação
e consciência podem ser interpretadas de modo associado à evolução do jogo simbólico,
e quanto maior o repertório de experiências da criança como subsídios para sua
37
Elkonin (1998) faz uma crítica à hipótese psicanalítica com base no fort-da: “é duvidoso o próprio fato
de uma simbolização tão precoce. A simbolização pressupõe a síntese da situação que, embora puramente
afetiva, sem dúvida é simbolização. As observações mostram que em idade tão precoce acontecem
reações afetivas soltas... as sensações afetivas sintetizadas aparecem muito depois.” (p. 132).
87
atividade lúdica, mais rica se torna sua imaginação38
. A proposta de Elkonin (1998) para
a evolução do jogo simbólico parte da ação concreta com objetos, perpassa pela ação
lúdica sintetizada e alcança a ação lúdica protagonizada. Seu trajeto exemplificado é
bastante elucidativo: “há colher; dar de comer com a colher; dar de comer com a colher
à boneca; dar de comer à boneca como a mamãe” (p. 259). Segue-se uma exposição
mais detalhada.
O autor não considera como jogo as explorações com objetos características do
período sensório-motor (PIAGET, 1990). Para ele, é preciso passar à formação de ações
com objetos, modificando o tipo de interação que a criança estabelece com eles. É a
ação que define o significado lúdico do objeto e esta é aprendida no contato com seus
pares sociais, possibilitando a ocorrência de dois tipos de transferência: a ação com o
objeto, generalizando para outras situações; e a ação com um objeto substitutivo39
.
(ELKONIN, 1998). Estas transferências apenas são possíveis quando há a mediação de
um parceiro mais experiente para que ocorra a apropriação do uso social dos objetos.
Na medida em que o jogo evolui, tais ações com os objetos adquirem novo
sentido quando surge a situação imaginária e a protagonização. Os brinquedos temáticos
são bastante sugestivos no início desta mudança, já que carregam o sentido social de seu
uso. A partir do momento em que a criança assume um papel, suas ações passam por
uma nova mudança, resignificando objetos e dando lugar a situação imaginária. E
durante este processo, a criança reelabora a maneira de compreender seu próprio papel.
podemos extrair duas consequências. A primeira consiste em que o jogo é a
interpretação de um papel assumido pela criança... A segunda, em que durante
o desenvolvimento muda a maneira de a criança compreender o seu papel. Na
primeira infância ainda não existe como tal para as crianças a relação ‘eu – o
papel’; e, embora a criança jamais se identifique no jogo com a pessoa cujas
funções reproduz, ao jogar chega a compreender essa relação somente ao final
da idade pré-escolar... expressando-se então numa série de características que,
de um modo geral, aparecem como uma atitude crítica para com a interpretação
do papel assumido por ela ou para com a representação dos papéis de seus
companheiros de jogo. (ELKONIN, 1998, p. 275).
38
“A experiência da criança é muito mais simples que a do adulto. Sabe-se que seus interesses são mais
simples, mais elementares. Sua atitude diante do meio carece de complexidade, de precisão e variedade
que caracteriza a conduta do adulto, em tudo que constitui os fatores básicos e determinantes da função
imaginativa. No processo de crescimento da criança desenvolve-se sua imaginação, que alcança sua
“maturidade” apenas na idade adulta”. (Vygotski, 1986, p. 40, trad. livre). 39
Como exemplo, toma-se o objeto pente: a transferência com o objeto é generalizar este uso para outras
situações (um pente penteia o cabelo da pessoa que ensinou a ação, de si mesmo, de um boneco, do
cachorro etc); e a transferência com o uso de um objeto substitutivo (quando há o uso de uma caneta
como pente na ação de pentear). É a ação que define o significado do objeto.
88
Assim, pode-se compreender a evolução do jogo na obra de Elkonin (1998) a
partir das seguintes passagens:
Etapa Des Evolução do jogo de dramatização em Elkonin
Preliminar Há uma primeira etapa que se define como “preliminar” ao inicio do
engajamento no jogo, em que a criança utiliza os objetos com
finalidade exploratória. Aqui até existe imitação, mas limitada a uma
reprodução a partir de uma consigna, como utilizar os mesmos
objetos que um parceiro, sem incluir suas próprias experiências e sem
interação intensa com outras pessoas.
Imitação da ação Há a passagem por uma etapa em que o conteúdo está determinado
pelo objeto concreto. Aqui surge a imitação da ação, como os atos de
dormir, comer, tomar banho, cozinhar, dirigir um carro etc. Os
brinquedos são significativos para a entrada neste nível por que
incitam as ações, embora sejam objetos que ainda não cumpram
função substitutiva, posto que já estão representados em sua função
social, como uma colher miniatura, por exemplo. Nota-se ausência de
continuidade, ou seja, as mesmas ações parecem repetir-se
constantemente, como se ensaboar no banho várias vezes ou imitar
sons de carros por que tal atributo ou quesito despertou a atenção da
criança.
Função substitutiva
de objetos
Na próxima etapa aparece a função substitutiva em objetos, ainda que
vinculados de maneira lógica, como, por exemplo, uma régua
representando uma faca ou um bloco representando um pedaço de
queijo. É a primeira formação simbólica no jogo: a criança resignifica
objetos, substituindo-os conforme seu interesse, já demonstrando
iniciativa própria. Sua interação com os amigos amplia-se e enquanto
realiza a ação, os parceiros identificam a criança como representante
de um papel, mas ainda sem relação entre os papéis de uma e outra
criança. Há a passagem por um período em que a criança é capaz de
substituir objetos sem que haja relação lógica entre objeto concreto e
função representada, ou seja, o mesmo “pote” pode assumir a função
de um telefone ou capacete ou outras funções, de acordo com a
intenção da criança na brincadeira.
Submissão ao papel O salto para o início da protagonização é marcado pela passagem
pelo período em que a criança confere sentido a um papel e submete-
se a sua regra. É quando a criança aceita assumir determinado
comportamento, conduta esperada pelos outros membros do grupo,
que ela começa a perceber-se e, assim, a dar sentido a seus papeis
sociais. Ao escolher seguir as regras de um jogo compartilhado, em
nome de sua continuidade, ela passa a pensar no seu “papel”, na sua
“parte”, para que um desafio coletivo seja alcançado. Aqui, esse
processo se potencializa quando há um argumento que orienta a
trama ou a encenação da brincadeira – pode ser uma história ou
música, por exemplo – por que o argumento destaca regras de
conduta e contribui para que as crianças façam essa escolha pelo
89
coletivo.
Protagonização Na próxima etapa, desse modo, surge a protagonização como
conteúdo principal. É a segunda formação simbólica no jogo: a
representação de um papel. Aqui as crianças utilizam objetos
substitutivos, mas também são capazes de imaginar objetos sem
apoio direto e concreto. Nas parcerias, os papéis agora são definidos,
ou mesmo planejados e atribuídos pelas crianças, organizadas em
pequenos grupos. O papel que as crianças desempenham assume
função central e suas ações são coerentes com tais funções, quer
dizer, a caixa do supermercado exige que as compras sejam pagas e o
médico ordena que se tome um remédio ou se faça repouso. A
parceria é fundamental: a “infração” a determinada regra social é
normalmente percebida por outra criança e não por quem executa a
ação. A criança procura corrigir seu “erro” por que não estaria
“representando corretamente” a realidade. Conforme esse processo
evolui, a protagonização encerra a complexidade das relações
intersubjetivas sociais. A criança cria situações lúdicas cada vez mais
criativas, sendo perceptível a ampliação de seu repertório de
“vivências representáveis”, dentre papéis sociais, tramas e
argumentos. Nas parcerias, em grupos cada vez mais numerosos de
crianças, as regras de conduta de uma criança interagem diretamente
com as regras de conduta das outras crianças. Para comportar
veracidade, a fala adquire caráter teatral, dramático: um filho chora e
a mãe, por sua vez, interpreta o choro do filho carinhosamente ou
mesmo repreendendo-o, de acordo com o significado da brincadeira.
A “infração” adquire outra qualidade: as regras são seguidas não
apenas por condizerem com a realidade, mas principalmente por sua
lógica interna, sua razão social de existência.
Desenvolvimento
Social da criança
Ao final do processo, há uma mudança de atitude da criança face o
papel que representa. As regras sociais que orientam o jogo também
orientam o desenvolvimento social da criança. As parcerias incitam a
verificação da própria conduta e há uma reflexão sobre seu próprio
comportamento – “Claro que ainda não é uma verificação consciente”
(ELKONIN, 1998, p. 420).
Tabela V – Evolução do jogo de dramatização em Elkonin
Elaborada a partir da Fonte: Elkonin (1998)
A nitidez da representação do contexto cultural surge na ação com objeto e
potencializa-se quando evolui para as relações sociais autênticas. São as regras do
contexto sociocultural que são representadas implicitamente no jogo, guiando a conduta
da criança e sua ação. Quanto mais as crianças compreendem e apropriam-se dos
aspectos que regem seu contexto, mais se dedicam à fidelidade de suas representações.
No entanto, tais passagens ocorrem gradativamente, elas mesclam suas características
até que seja perceptível o foco do jogo da criança. É possível afirmar que a criança
apropriou-se de outra etapa quando já realiza a atividade sozinha, sem apoio ou
intervenção direta de um adulto.
90
Como citado na introdução deste trabalho e abordado com maior detalhamento
no item seguinte dessa seção, as referências acadêmicas que tratam da questão da
brincadeira para crianças com quadros de transtornos do desenvolvimento partem
principalmente dos trabalhos de Piaget. Por isso, necessário compreender como este
autor aborda o desenvolvimento humano, para posteriormente relacionar suas reflexões
ao tema desta investigação e também às contribuições de Elkonin. Em Piaget (1990), a
imitação e o jogo compõem questões que suscitam a função simbólica, em suas relações
intrínsecas com o papel da linguagem, a socialização do pensamento e as relações
interindividuais (id., p. 12), num caminho que também parte – assim como especificado
pela abordagem Histórico-cultural – das ações concretas ao pensamento abstrato. Mas a
definição para “jogo simbólico” não é exatamente a mesma para os dois autores,
conforme segue no ponto-chave destacado na próxima tabela, que traz um apanhado das
principais ideias de Jean Piaget nos períodos complementares que compreendem a
Gênese da imitação e o Nascimento do jogo40
:
Período
(faixa etária)
A Atividade lúdica: imitação e simbolismo em Piaget
Sensório-motor
(0 – 2 anos)
Des Gênese da Imitação
Fase I - Preparação Reflexa
Atos reflexos mediante excitação
externa. Não é imitação.
Para Piaget (1990), movimentos
reflexos manifestam apenas uma
“autêntica função adaptativa” (p.
118).
Fase II - Imitação esporádica
A criança só imita movimentos que
já fazem parte do seu repertório.
Exemplo: balbucios
Reações circulares41
primárias da
criança compõem esquemas que
só podem ser considerados
lúdicos se deixarem de ser
meramente “instrutivas” (como
“cópias” no processo de
assimilação) e passarem a ter foco
no prazer da criança (p. 120).
Jogos de exercício simples.
Fase III - Imitação sistemática de
sons já pertinentes à fonação da
criança e de movimentos
O mesmo da fase anterior ocorre
para reações circulares
secundárias. Jogos de exercício
40
A tabela não traz uma descrição mais detalhada dos jogos de regra por que esses, na visão do autor,
acontecem após o declínio do jogo simbólico – foco do presente estudo. 41
“Reações circulares” podem ser compreendidas como segmentos de conduta em que há uma associação
direta entre a ação da criança e seus efeitos. Das reações circulares primárias para as terciárias, os
“esquemas de ação” vão sofrendo mudanças significativas na ampliação do repertório da criança e
possíveis combinações entre eles.
91
executados anteriormente pelos
sujeitos de maneira visível para ela
A criança imita quando a conduta
pode ser identificada no seu
próprio corpo, quando lhe é
reconhecível. Já há reação a
objetos, mas ainda sem
intencionalidade. Exemplo: bater
palminhas.
com combinações, sem finalidade.
Fase IV - Imitação de movimentos
já executados pelo sujeito, mas de
maneira visível para ele, e início
de imitação de modelos sonoros ou
visuais novos
A criança já imita ações que não
são visíveis no próprio corpo, mas
ainda necessitam ser vistas no
corpo do outro. Pode estabelecer
relações com outras partes do
corpo ou objetos, mas mantém o
esquema de ação. Aparecimento da
intencionalidade. Exemplo: mostrar
a língua.
O mesmo da fase anterior ocorre
para reações circulares terciárias.
Com a intencionalidade, as ações
da criança podem ser
consideradas lúdicas. Jogos de
exercício e de construção com
combinações e finalidade.
Fase V - Imitação sistemática de
modelos, incluindo os que
correspondem a movimentos
invisíveis do próprio corpo
Criança já é capaz de imitar e
coordenar vários esquemas de ação
para acomodá-los a um objetivo.
Exemplo: procurar a bola que
desapareceu em baixo da mesa
(repete várias vezes, como ritual).
A mobilidade dos esquemas já
não requer “esforço de adaptação”
e a criança é capaz de estabelecer
“combinações lúdicas” (p. 122).
Jogos de construção com
combinações e finalidade. Os
esquemas já podem ser separados
de seus contextos originários e na
situação lúdica são reproduzidos
com regularidade ritual.
Fase VI - Imitação diferida e
imitação representativa
Criança já soluciona problemas
mediante reflexão prévia por que já
há representação simbólica dos
esquemas de ação e suas
combinações possíveis. Exemplo:
fingir que dorme.
O símbolo lúdico se desliga da
ritualização, sob a forma de
“esquemas simbólicos”, mas que
se reproduzem apenas na própria
criança – “auto-imitação” (p.
161).
Ponto-chave: compreende a
“imitação da ação” para
Elkonin (1998).
Pré-operatório
(2 – 7 anos)
Nascimento do Jogo
(2 – 4 anos)
Fase I - Projeção dos esquemas
simbólicos nos objetos novos
(Jogos tipo IA); e Projeção dos
esquemas de imitação em objetos
novos (Jogos tipo IB)
Esquemas simbólicos são
aplicados por imitação para outros
objetos.
Fase I - Assimilação simples de
92
um objeto a outro (Jogos tipo IIA)
e Assimilação do corpo do sujeito
ao de outrem ou a quaisquer
objetos (Jogos tipo IIB)
Linguagem verbal anuncia toda e
qualquer ação. A imitação
desempenha função simbolizante,
a personagem é evocada (p. 164-
165).
Fase I - Generalização do
símbolo em várias combinações
simbólicas (Jogos tipos IIIA, IIIB
e IIIC)
Os tipos ampliam os graus de
complexidade nas combinações.
Há transposição da vida real e a
invenção de seres imaginários.
(4 – 7 anos)
Fase II - Combinação simbólica
ordenada
Há progresso na coerência das
cenas, por que há intenção de
imitação exata do real.
Possibilidade de continuação da
brincadeira de um dia para o
outro. Maior socialização e
ajustamento dos papéis entre as
crianças.
Em Elkonin (1998), refere-se à
protagonização.
Operações
concretas
(7 – 12 anos)
Fase III - Declínio do simbolismo
e predomínio do jogo de regras.
Operações
formais
(12 em diante)
“se conservam apenas alguns
resíduos dos jogos de exercício
simples e dos jogos simbólicos, o
jogo de regras subsiste e
desenvolve-se mesmo durante
toda a vida” (PIAGET, 1990, p.
182).
Tabela VI – A atividade lúdica: imitação e simbolismo em Piaget
Elaborada a partir da Fonte: Piaget (1990)
O ponto-chave destacado na tabela traz uma importantíssima discussão para este
estudo, validando a comparação entre os dois autores. Ademais do recorte de idade –
cerca de dois anos para Piaget e a ausência desta definição para Elkonin – na última fase
do sensório-motor de Piaget há alusão inicial ao simbólico: “esses esquemas simbólicos
marcam a transição entre o jogo de exercício e o jogo simbólico propriamente dito”
(PIAGET, 1990, 157). A diferença fundamental entre estas duas referências consiste na
93
consciência da criança a respeito da própria atividade lúdica: em Elkonin (1998), na
“imitação da ação”, a criança tem consciência de que imita tal ação, mas ainda não tem
consciência sobre uma personagem, o que acontecerá apenas na “protagonização”.
Piaget já não faz esta distinção com clareza, ao menos não neste momento (aos dois
anos de idade). Ele cita, por exemplo, que aos dois anos a criança é capaz de “fingir que
está dormindo”, como um ato intencional, mas não faz alusão à representação de
alguém. Piaget mencionará a personagem apenas após o nascimento do jogo, ou seja,
nos jogos tipo IIA e IIB da fase I do período pré-operatório.
Tendo em vista essas considerações, nota-se que o processo de conscientização
da criança acerca da própria atividade lúdica é, para Elkonin (1998), essencial – dai
decorre o recorte deste estudo. O jogo, enquanto atividade social prática, indica que o
lúdico e o desenvolvimento psíquico da criança caminham no mesmo sentido e
dependem um do outro. É possível ensinar a brincar e a aprendizagem do jogo,
juntamente com o compartilhamento social que encerra, é de extrema importância para
crianças que possuem dificuldades em imaginar, representar, simbolizar e conscientizar-
se, inclusive de si mesmas. Preza-se pelo investimento no jogo simbólico pelo simples
motivo de que a brincadeira reorganiza o pensamento, principalmente sobre as relações
humanas em sociedade – déficit de crianças com quadros de transtornos do
desenvolvimento. Nesse sentido, é brincando que essas crianças vão começar a formar
suas primeiras simbolizações e representações sociais, tornando tão importante pensar
sobre a brincadeira infantil.
3.3. O que vem sendo dito sobre brincadeira e transtornos do desenvolvimento
A brincadeira de crianças com transtornos do desenvolvimento, mais
especificamente no espectro autista, tem sido descrita por pesquisas experimentais e
comparativas (LIBBY et. al., 1997, 1998). Os estudos42
, apesar de realizados em
42
As pesquisas utilizadas para subsidiar esta análise foram encontradas essencialmente na base ERIC
(Education Resources Information Center) e são estudos provenientes da Europa e da America do Norte.
Como nestas regiões houve a adequação ao DSM-5, essas pesquisas não se valem do termo “transtornos
do desenvolvimento” e sim “autismo”. Este foi o recorte realizado nesta investigação para adentrar a
questão do simbolismo no desenvolvimento dessas crianças, posto que não há referências nacionais que
especifiquem como se dá o seu brincar.
94
instituições diversas com realidades muito heterogêneas – contam com a escolarização
especial e regular, com propostas terapêuticas individuais ou em grupos, a partir de
parcerias com crianças de desenvolvimento típico ou não, entre outros fatores –,
levantam conclusões em comum, dentre as quais se evidenciam três pontos principais:
Os interesses das crianças – que expressam a similaridade do seu brincar com o
período sensório-motor (PIAGET, 1990);
As diferenças particulares que se sobressaem em jogos cooperativos ou de
atenção compartilhada (ou conjunta);
A dificuldade de engajamento no jogo simbólico.
Com relação ao primeiro ponto – os interesses das crianças e a consequente
classificação do seu jogo –, os estudos revelam que essas crianças envolvem-se mais
substancialmente em jogos característicos do período sensório-motor (PIAGET, 1990).
São situações em que a criança demonstra certa apatia para brincar ou em que há uma
tendência à repetição obsessiva de ações, o que estagna seu comportamento nesta
atividade e reforça situações de isolamento (LIBBY, 1997; 1998).
O período sensório-motor é o primeiro dos quatro estágios propostos por Piaget
(1990) para elucidar o desenvolvimento humano. Essa etapa ocorre desde o nascimento
até os dois anos e caracteriza-se pelo envolvimento dos sentidos na coordenação da
exploração do espaço e a atividade motora. O estágio é composto por seis fases, em que
as ações da criança vão ganhando complexidade quanto à forma de organização de suas
atividades no contexto em que vivem. As brincadeiras que se desenvolvem nesse
período envolvem deslocamentos variados com o corpo (entre balançar, bater palmas,
piscar, mandar beijos, virar, soprar etc.), bem como relações com objetos (entre
empurrar, esvaziar, lançar, pegar, colocar, transportar, sobrepor objetos, construir,
desconstruir, picar, amassar etc.), ações que caracterizam os jogos de exercício e os
jogos de construção.
Quanto aos jogos cooperativos ou jogos que envolvem a atenção compartilhada
(ou conjunta43
), as pesquisas indicam que essas crianças até brincam ao lado de outras,
com os mesmos brinquedos, mas não interagem. Isso significa que sua tendência à
43
Atenção compartilhada ou conjunta é o foco social compartilhado de dois indivíduos em um
objeto/situação, isto é, a alternância do foco de olhar entre pessoa e objeto de interesse que corresponde à
demanda da outra pessoa.
95
repetição obsessiva de ações parece não ser o único fator influente em suas dificuldades
de desenvolver parcerias. De acordo com Wolfberg et. al. (2012), essas crianças são
menos propensas a iniciar interações sociais ou mesmo a responder à demanda de seus
pares, devido a sua dificuldade para compartilhar interesses. Os autores discutem que os
comprometimentos dessas crianças ultrapassam a linguagem verbal e estão relacionados
também ao contato visual, às expressões faciais, aos desenhos, gestos e emoções (Id.).
Segundo Bosa (2002),
Durante atividades conjuntas, as crianças começam a notar que outras pessoas
têm reações diferentes das dela frente às mesmas situações, o que equivale a
dizer que elas descobrem que as pessoas conferem diferentes significados aos
objetos/eventos que as circundam. Em outras palavras, a criança passa a
perceber que ela pode atribuir mais do que uma representação a uma entidade e
cada vez mais passa a trocar com o parceiro tais descobertas, utilizando-se de
diferentes canais de comunicação. (BOSA, 2002, p. 81).
A partir de situações em que há atenção compartilhada, a criança aprende a
coordenar diferentes informações, por que esta organização mental é necessária para
viabilizar sua compreensão de mundo e seus processos de ação sobre ele. Como os
contextos de vivências e as interações sociais são multifacetadas, a criança utiliza
diferentes canais de comunicação para apreender as situações e atribui variadas
representações a objetos e eventos circundantes, concomitantemente, e assim, a partir de
sua intencionalidade e protagonismo, torna-se autora de seu desenvolvimento. Mas se
essa criança encontra dificuldades em coordenar essas significações diversas, isso
impede sua permanência em atividades, inclusive nas brincadeiras. Por este motivo, os
jogos em grupo tornam-se desafiadores para as crianças com quadros de transtorno de
desenvolvimento, principalmente quando pressupõem muitas trocas, quando modificam
rapidamente suas regras e parcerias (KANGAS et. al., 2012), isto é, quando requerem a
coordenação intensa dessas informações para que se torne possível a participação no
jogo. Essa capacidade de coordenar diferentes significações, construída mediante a
atenção compartilhada, também é relevante no desenvolvimento da linguagem e da
simbolização (BOSA, 2002).
Sobre o engajamento no jogo simbólico, Williams et. al. (2001) pontua que essas
crianças dificilmente participam dessas propostas de brincadeiras. Nota-se que seu jogo
raramente inclui episódios que envolvem a situação imaginária ou a protagonização,
96
sendo difícil observar a resignificação de objetos, o uso de brinquedos como atores ou a
representação de papéis. Segundo os autores, estas características demonstram que essas
crianças parecem não adicionar com facilidade elementos ficcionais durante o jogo,
assim como se verifica nas atividades das demais crianças.
Uma conclusão curiosa das pesquisas de Kangas et. al. (2012) e Wolfberg et. al.
(2012) complementa o estudo de Williams et. al. (2001) a respeito da brincadeira de
representação. As autoras notam que quando há uma situação que pode ser interpretada
como jogo simbólico, se este se submete à análise, percebe-se que essas crianças
também realizam as mesmas ações várias vezes, repetindo padrões durante a
brincadeira. Wolfberg et. al. (2012) afirmam que esta brincadeira também se torna
obsessiva, com preocupações que variam desde o fascínio com certos objetos até um
intenso foco em temas misteriosos ou sem sentido, o que traz um novo rompimento com
as parcerias.
Há a suposição de que esses três pontos característicos da brincadeira dessas
crianças articulam-se intimamente ao seu funcionamento psíquico. Wing (1996) explica
sua condição neurológica reportando-se à tríade de comprometimentos: na interação
social, na comunicação e nos padrões de comportamento, por isso, conclui que há uma
negativa de que a criança queira brincar. Mas para Wolfberg et. al. (2012), esta tríade
interage na construção de um comportamento caracterizado por rejeitar e afastar
parceiros. As autoras sugerem que estas crianças compartilham de desejos comuns a
todas as outras, como a amizade e a brincadeira, no entanto, ao demonstrarem formas
diferenciadas, e até ambíguas, no estabelecimento de um vínculo, seus pares encontram
dificuldades para reconhecer e interpretar suas tentativas, o que geralmente resulta,
depois de algum tempo sem respostas satisfatórias, na desistência e no isolamento
dessas crianças (WOLFBERG et. al. 2004, 2012). Desse modo, conclui-se que, se a
criança está excluída de seu contexto, esta carece de experiências que constituam seu
repertório para brincar e que desenvolvam sua imaginação.
White apud Jordan (2003) identifica três dimensões que podem ser afetadas nos
casos de transtornos, mais especificamente no autismo, ao passo em que também
influenciam no desenvolvimento do jogo: (1) a regulação emocional e as competências
sociais exigidas na manutenção da atenção compartilhada (ou conjunta); (2) o
funcionamento psíquico coerente a um jogo que requer interações sociais cada vez mais
97
complexas; (3) a validação dos outros membros do grupo. Sua hipótese é que as
interações sociais entre os participantes de um grupo podem influenciar diretamente o
desenvolvimento de brincadeiras de representação (JORDAN, 2003), por que tais
interações não ocorrem da maneira como deveriam suceder: não há a participação
efetiva numa atividade compartilhada, parece não haver total compreensão e
interpretação do contexto de brincadeira por parte da criança, e não há seu
reconhecimento como parceiro no desenvolvimento do jogo.
Como indicativo consensual, a intervenção precoce é fundamental para que essas
crianças ampliem suas possibilidades de interação social e de brincar. As pesquisas
apontam para várias estratégias, todas com um planejamento sistematizado de
intervenção educativa44
. Libby (1998), por exemplo, demonstra que brincadeiras
organizadas em espaços estruturados, focados em um tema específico, podem auxiliar
no desenvolvimento do jogo simbólico. Também pontua a necessidade de interpretar as
ações lúdicas de modo complexo, ou seja, sem dissociar capacidades de representação
individuais do estabelecimento de interação com outras crianças num contexto
sociocultural.
Já Wolfberg et. al. (2012) defendem a importância das experiências dessas
crianças com outras de desenvolvimento típico, retomando contribuições do campo da
sociologia da infância no que se refere à construção de significações sociais e
intersubjetivas compartilhadas pelos membros de um grupo, o que resulta numa
participação mais produtiva dessas crianças. Em sua proposta de trabalho, há momentos
de intervenções pontuais, de interpretar e resignificar ações, de atuar na zona de
desenvolvimento potencial, mas também ressaltam a necessidade de um contexto de
socialização, em que essas crianças estejam inseridas de modo cocolaborativo.
Enfatizar elementos sociais para promover o desenvolvimento do jogo simbólico
em crianças com quadros de transtornos do desenvolvimento, no espectro do autismo,
também foi o foco da pesquisa de Sherratt apud Jordan (2003). Neste estudo, partiu-se
da premissa de que o jogo de dramatização tem origem social; e a aprendizagem de
44
Considera-se intervenção educativa todo ato de pensar o desenvolvimento da criança e sistematizar
estratégias para que ela participe da proposta ofertada, o que também inclui intervenções individualizadas
com foco na zona de desenvolvimento potencial de cada criança, ou seja, intervenções pontuais
particulares e não generalizáveis. Aqui, a expressão “intervenção educativa” adquire caráter amplo e não
se restringe a métodos ou programas específicos.
98
novas competências depende de parceiros mais experientes e do compartilhamento de
objetos, ações e intenções.
Percebe-se que a intenção dessas estratégias é apoiar a participação ativa dessas
crianças nas atividades lúdicas, com o uso de participações guiadas em jogos coletivos,
por exemplo (JORDAN, 2003), ou mesmo com a promoção de situações em que a
brincadeira se desenvolva de forma espontânea (KOK et. al. apud BOSA et. al., 2013), e
não condicionar seu comportamento. As intervenções tratam para além de perspectivas
individuais, compreendendo o jogo como parte de um sistema de significações coletivo.
É uma linha de pesquisa bastante recente, que ainda apresenta escassez em estudos:
quando se trata de crianças cujos comportamentos desafiam as expectativas de
desenvolvimento, é mais provável que o jogo seja visto como um luxo, a ser
pensado apenas quando seus comprometimentos básicos já tenham sido
superados. Além disso, a ênfase atual parece ter desencorajado a busca por
jogos em contextos culturais de desenvolvimento amplo. (WOLFBERG e
SCHULER apud WOLFBERG, 2012, p. 60, trad. livre).
Para Libby (1997), ensinar habilidades no desenvolvimento do jogo simbólico
para crianças com esses quadros não é uma tarefa fácil. Mas alguns estudos têm
indicado que o uso combinado entre a participação guiada em jogos sociais e propostas
de brincadeiras estruturadas, desde que viabilizem a efetiva participação da criança em
contextos sociais e culturais, pode resultar em maiores índices de generalização
(JORDAN, 2003). A conclusão de Bosa et. al. (2013) também aponta para este
caminho: expõe os resultados de vários estudos baseados em programas de intervenção
com foco no treinamento entre pares e conclui que estes programas são menos efetivos
se comparados com propostas de investigações em contextos socioculturais, como o que
acontece na inclusão escolar.
Na escola, é possível afirmar que o papel do educador perpassa a organização de
materiais e espaços, estruturados tematicamente ou não, bem como a (re)significação
tanto de objetos culturais quanto das ações aparentemente sem intencionalidade da
criança. Neste contexto, é possível trabalhar a interação entre pares e o envolvimento da
criança em atividades coletivas, como os jogos em equipes. É um leque muito grande de
opções, sendo necessário construir caminhos que estejam de acordo com as
particularidades de cada criança. A intervenção educativa também visa à zona de
desenvolvimento potencial, tal como se pressupõe para as crianças de desenvolvimento
99
típico, até que possam estar conscientes de sua atividade em dado contexto. Há que
pensar estratégias para que a criança participe da atividade lúdica de seu interesse, para
que interprete o contexto de significações ali presente e assim possa agir sobre ele,
desenvolvendo consciência sobre sua atividade.
Esse capítulo se encerra com essa sucinta descrição sobre as características da
brincadeira de crianças com um quadro de transtornos do desenvolvimento. O intuito foi
respaldar as reflexões construídas no presente estudo de caso e compreender as
possibilidades dessa criança, em situações de interação com outras crianças, para
engajar-se no jogo simbólico. As referências apontam para a importância da intervenção
educativa e justifica a relevância do jogo em consonância com a construção de
interações sociais na infância. Em geral, as estratégias têm como objetivo que essas
crianças superem suas dificuldades de interação, de interpretação, de coordenação de
informações diversas e participação em contextos significativos, para que possam, desse
modo, ampliar suas possibilidades de brincar.
Compreende-se o engajamento no jogo simbólico a partir de contribuições da
abordagem Histórico-cultural. Sob este enfoque, o jogo já não é mais visto como um
luxo e sim como um direito, uma alternativa necessária na educação dessas crianças,
compreendidas como agentes sociais, em seu potencial de participação colaborativa. A
proposta de educação inclusiva oferece um campo de pesquisa promissor para o estudo
dessas interações em situações das mais diversas, guiadas, estruturadas ou espontâneas,
enfoque ainda pouco explorado na literatura nacional.
100
II. QUADRO METODOLÓGICO
Little by little I began to see that I was not simply verifying young
children's impressive social skills and the positive effects of peer interaction on
their individual development. I found myself studying collective, communal and
cultural processes. I was documenting the children's creative production of
and participation in a shared childhood culture. My full grasp of this
revelation was gradual because I clung strongly to the typical adult tendency
to try to interpret and evaluate almost everything children do as some of sort of
learning experience that prepared them for the future.
--- William A. Corsaro
Este capítulo explicita os caminhos metodológicos da presente investigação e
está subdividido em três seções. Como se trata de um estudo de caso com inspiração
etnográfica, a primeira seção demonstra a delimitação do estudo, expondo como foi o
processo de escolha da escola núcleo de pesquisa. Perpassa as autorizações de acesso e
alguns questionamentos orientados a enriquecer a investigação, tais como a forma de
organização da escola para viabilizar situações de brincadeira e reflexões sobre as
possibilidades de comunicação da criança.
A segunda seção traz a caracterização da escola núcleo da pesquisa e da turma
em questão. O objetivo é evidenciar quem são os principais agentes e qual seu contexto
de relações sociais. Pretende-se delinear sucintamente uma primeira impressão sobre
quem é essa criança, seu processo de chegada à escola e algumas de suas
particularidades de comunicação, comportamento e interação com outras crianças e
adultos.
A terceira e última seção justifica a escolha dos instrumentos metodológicos, as
ferramentas de coleta, de que forma os agentes da pesquisa participaram do processo e a
proposta de categorização dos dados. Todos assinaram as cartas de consentimento,
inclusive as famílias das crianças. Os anexos contêm os questionários e roteiros de
entrevistas realizadas.
101
1. DELIMITAÇÃO DO ESTUDO
A definição do procedimento metodológico para esta pesquisa partiu do que se
pretende explicitar e compreender mediante dados produzidos. A intenção é descrevê-
los, de modo narrativo, visando interpretações sobre como a criança brinca e sobre os
fatores complexos que permeiam e influem no processo de engajamento no jogo
simbólico, ou seja, compreender a relação que a criança estabelece com o lúdico,
conforme a oferta presente no contexto do qual participa.
De modo coerente com esse objetivo, concebe-se como procedimento a pesquisa
qualitativa: abordagem que consiste em estudar os fenômenos em seu contexto natural
para entender os significados conferidos pelas pessoas que ali interagem (DENZIN e
LINCOLN, 2006; HOLANDA, 2006). Para aproximar-se à experiência concreta
considerando o tempo disponível para concluir uma pesquisa no nível Mestrado, optou-
se pelo estudo de caso com inspiração etnográfica (STAKE, 1999; ANDRÉ, 2005;
GOMÉZ, 1996), sendo a unidade social para a análise uma escola municipal de
educação infantil.
Pensando a educação inclusiva, a escola é um campo de investigação devido a
suas variáveis específicas, como a organização do tempo e do espaço e a interação com
pares de desenvolvimento típico, fatores não contemplados em outras instâncias para
estudo sobre o desenvolvimento dessas crianças. O recorte da educação infantil
justifica-se pela temática que se propõe a estudar a brincadeira num contexto em que
haja um mínimo de qualidade em propostas de investimento no lúdico, as quais
contemplam espaços temáticos, situações livres e estruturadas, parque, planejamento,
registros e discussões para atender a esses objetivos. Além disso, pretende-se construir
conhecimentos que estejam de acordo com a especificidade da educação escolar, na
compreensão do processo de desenvolvimento da criança neste contexto, subsidiado por
referências acessíveis à formação do educador.
O estudo de caso possibilita a descrição das brincadeiras da criança, valorizando
suas particularidades como expressão valiosa e única do seu processo de
desenvolvimento, sem compará-lo às crianças de desenvolvimento típico. Pretende-se
abandonar conclusões deterministas a respeito do que essas crianças são capazes ou não
102
de fazer, e passar a olhar para elas, num processo que tenha como fruto a construção de
formas que conquistem sua participação em atividades sociais.
O processo de delimitação do estudo perpassou o estabelecimento de contatos
iniciais com a comunidade escolar, para conhecer o espaço físico e os participantes, as
questões éticas e autorizações de acesso e a reflexão sobre as principais fontes para
coleta de dados de acordo com procedimentos coerentes com a temática investigada
(ANDRÉ, 2005). Para isso, foram elencadas as seguintes etapas: solicitar autorização
para a realização da pesquisa na Secretaria Municipal de Educação de um dos
municípios da região metropolitana de São Paulo; levantar informações sobre quais
unidades de educação infantil possuem professoras itinerantes (AEE)45
, direcionado
especificamente para crianças com transtornos globais do desenvolvimento (TGDs)46
;
visitar as referidas escolas, no que tange a conhecer a gestão, a professora, a auxiliar de
educação, a criança e o espaço escolar; e obter o consentimento dos participantes.
A escolha do município deu-se pela facilidade de acesso às escolas, locomoção e
organização da pesquisa. O primeiro contato com a Secretaria de Educação da
Prefeitura Municipal de São Bernardo do Campo ocorreu em Fevereiro de 2014. Nesta
ocasião, foi informado que para a realização de pesquisa de campo nesta rede de ensino
seria necessário providenciar três documentos: uma carta de apresentação da
pesquisadora, fornecida pela Universidade e assinada pelo orientador responsável; um
documento de solicitação à Secretaria de informações necessárias à pesquisa – o qual já
se articula ao segundo procedimento definido para a delimitação do campo; e uma cópia
do Projeto de Pesquisa. Estes documentos foram entregues em Fevereiro de 2014 e,
cerca de um mês depois, o estudo foi autorizado.
45
Decreto n.6571/2008. De acordo com a Resolução CNE/CEB n.04/2009, o Atendimento Educacional
Especializado é “Um serviço da Educação Especial desenvolvido na rede regular de ensino que tem como
função complementar ou suplementar a formação do aluno por meio da disponibilização de serviços,
recursos de acessibilidade e estratégias que eliminem as barreiras para sua plena participação na
sociedade e desenvolvimento de sua aprendizagem. Recursos de acessibilidade na educação são aqueles
que asseguram condições de acesso ao currículo dos alunos com deficiência ou mobilidade reduzida,
promovendo a utilização dos materiais didáticos e pedagógicos, dos espaços, dos mobiliários e
equipamentos, dos sistemas de comunicação e informação, dos transportes e dos demais serviços”. Disp.:
http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/ rceb004_09. Em primeira instância, o AEE é direcionado a
escolas de ensino fundamental. Alguns municípios contam com parcerias com “professoras itinerantes”,
que auxiliam na discussão das questões educacionais de algumas crianças na educação infantil e também
participam da realização de estudos de caso, como acontece em São Bernardo do Campo. 46
De acordo com Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008).
103
Como retorno à solicitação, inicialmente a rede delimitou cinco escolas em que
se poderia realizar a pesquisa de campo. Essa amostragem representa 6,75% do total de
74 escolas que contemplam a educação infantil no município. De acordo com o Portal
da Educação, há na rede um total de 168 escolas municipais de educação básica. O
mapeamento foi feito pela rede de ensino a partir de critérios internos, os quais não
foram questionados durante o processo investigativo. Por este motivo, não foi possível
também registrar porcentagens sobre a quantidade de crianças com estes quadros na
rede e/ou em quais regiões da cidade47
.
Tendo em vista que o objetivo principal do estudo de caso não consiste em
compreender outros casos, e sim em contemplar sua própria essência (STAKE, 1999),
pensou-se em critérios para a seleção do estudo mediante suas qualidades. Desse modo,
o primeiro contato com as escolas teve como objetivo a apresentação da pesquisadora e
da proposta, para verificar o que cada escola possui de único e especial e quais
comunidades escolares gostariam de participar da investigação. Para atender a esse
objetivo, ponderou-se sobre algumas questões: Qual a etapa de escolarização? Há
aceitação pela proposta de pesquisa? Como a criança se comunica? Expressar-se
verbalmente? Como é o espaço físico da escola? Como o brincar é viabilizado? Há
formação com foco no brincar? Que outros projetos são propostos pela escola?
A tabela traz a síntese das questões citadas na primeira visita a cada escola:
Escolas
e Modalidade
Turma, Período e
Forma de
comunicação das
crianças
Empatia com a
proposta
Espaço
físico
Projeto de
Formação
(2013)
Proposta de
Formação
(2014)
Escola A
Educ. Infantil
Escola B
Educ. Infantil e
Fundamental
Inf. V (5 a 6 anos) Manhã
Criança não verbal
Inf. V (5 a 6 anos) Manhã
Criança Verbal
Inf.IV (4 a 5 anos) Manhã
Criança Verbal
1º ano Fundamental
Criança Verbal
A coordenadora
demonstrou interesse
pelo tema de pesquisa.
A diretora afirmou que
gostaria de participar
do processo.
A diretora fez
perguntas sobre a
proposta.
A coordenadora pouco
falou.
Brincadeira
(2013)
Ciências /
Música e
Artes
(2014)
Brincadeira
(2013)
Matemática
(2014)
47
Tais questões não são foco da presente pesquisa e, portanto, são aqui mencionadas apenas para
explicitar com clareza o quadro metodológico na definição do estudo de caso.
104
Escola C
Educa. Infantil
(não possui
criança com
este quadro
matriculada no
ano de 2014)
Escola D
Educ. Infantil
Escola E
Fundamental
(não faz parte
da solicitação
do estudo)
Inf.IV (4 a 5 anos) Manhã
Criança Verbal
Inf. V (5 a 6 anos) Tarde
Criança Verbal
O diretor convidou
para participação em
HTPC.
A coordenadora
afirmou concordar
com a pesquisa e que
seria interessante uma
parceria entre
pesquisadora e equipe
escolar.
Em reforma
Linguagens
(2013)
Inclusão
(2014)
Tabela VII – Mapeamento das escolas disponibilizadas pela SE
Fontes: Registros de primeira visita – Escolas A, B, C e D; Registro de Participação em HTPC – Escola
D; Registro de Conversa com a professora – Escola D.
Dentre as cinco escolas disponibilizadas pela Secretaria Municipal de Educação,
apenas três foram visitadas. Antes mesmo dos contatos iniciais por telefone, descartou-
se a escola E devido a sua modalidade de atendimento – Ensino Fundamental –, o que
descaracteriza a pesquisa. A escola C também se excluiu no primeiro contato: via
telefone, a diretora afirmou que ali não havia crianças com quadro de transtornos do
desenvolvimento. De acordo com a fala da diretora, havia uma criança no ano anterior,
mas esta havia sido transferida para outra escola no início do ano.
Assim restaram três escolas. Com base nos registros sobre a primeira visita,
sobre a participação em HTPCs48
e em conversas com as professoras e funcionários,
notou-se maior empatia à proposta de pesquisa nas escolas A e D. Nestas unidades,
tanto os diretores quanto as coordenadoras pedagógicas apresentaram-se bastante
receptivos, ora oferecendo os relatórios de desenvolvimento das crianças e convidando
para a participação em HTPC, ora apresentando professoras e conversando sobre
questões referentes ao cotidiano escolar. Por isso, optou-se por conhecer um pouco da
realidade destas duas escolas, visitando-as durante o mês de abril de 2014.
48
Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo – Resolução n. 004/2011PMSBC.
105
Com relação ao espaço físico, as duas escolas apresentavam boas propostas para
a investigação. Em ambas havia a preocupação com o aprimoramento de um ambiente
educativo ofertado às crianças, para além da materialidade presente a partir da simples
disposição de objetos no lugar. A escola A é pequena e ali se verificou grande
preocupação com a organização do espaço físico: os brinquedos estavam acessíveis às
crianças conforme as propostas de brincadeiras, as quais pareciam ter seu objetivo,
demonstrando que as situações foram pensadas pelos profissionais. Não há uma
brinquedoteca e o grupo repensou o espaço escolar de modo a ampliar a diversidade de
brincadeiras ofertadas às crianças, perpassando jogos de faz-de-conta, jogos em equipes
e parcerias, exploração de objetos diversos, entre outras.
Já a escola D estava em reforma. Contudo, o espaço havia sido adaptado para
melhor atender às necessidades das crianças, sendo uma escola grande, com bastante
espaço para propostas livres. Possui dois parques, um de grama e outro de areia, e
piscina de bolinhas: o “brinquedão”. Há um palco com arquibancada, que parece ser
utilizado para apresentações coletivas. Há também uma casinha, num espaço organizado
a partir de “mesas temáticas” para brincadeiras simbólicas. A organização sugeria que
os materiais permaneciam ali estruturados, prontos para uso das crianças. Os espaços
estavam integrados e, como a escola é grande, estes não perdiam sua especificidade.
Um espaço físico rico, com foco de trabalho voltado para as experiências das
crianças (MALAGUZZI, 2001; GANDINI et. al., 1999), promove maior envolvimento
com as propostas lúdicas e, por isso, traz bons elementos para a análise desta
investigação. Neste quesito, ambas as escolas possuíam sua particularidade, o que
tornava única a análise em cada uma delas. Entretanto, em virtude do investimento em
formação voltada para a brincadeira, promovida pela equipe de gestão da escola A,
supôs-se que ali havia consciência das professoras sobre a importância da atividade
lúdica como eixo de trabalho na educação infantil, inclusive no que se refere a sua
evolução durante o processo de desenvolvimento das crianças.
Na outra escola, a coordenadora afirmou que as propostas de formação dos anos
vigente e anterior não foram centradas na brincadeira e que ela não tinha conhecimento
sobre o trabalho antes disso, visto que fazia parte da equipe de gestão há pouco tempo.
Isso sugere que a escola D talvez estivesse em processo de consolidação de suas
estratégias formativas com a equipe e, embora se reconheça que o tema escolhido pelo
106
grupo como proposta de formação do ano de 2014 – Inclusão – fosse relevante para
pesquisa, a educação inclusiva traz questões além da temática deste estudo, que possui
foco específico na brincadeira e na psicologia do desenvolvimento.
Quanto à forma de comunicação das crianças, a linguagem é um fator relevante
no desenvolvimento do jogo (ELKONIN, 1998; LEONTIEV, 1978) e, por isso, a
capacidade da criança em expressar-se verbalmente ou não é um dado que fornece
rumos distintos à análise, o que configura um fator que merece reflexão. Muitos estudos
têm associado o desenvolvimento da linguagem às capacidades simbólicas das crianças,
afirmando que quanto maior a capacidade de “comunicação simbólica” da criança, a
fala, maiores suas possibilidades de interação (FERNANDES, 2003a).
Entre linguagem e representação, é preciso retomar a ideia de que existe um
percurso simbólico que constitui a relação entre objetos, pessoas, conceitos e a fala. O
processo de significação ocorre mediante a linguagem, não numa relação direta, mas
permeada por outras instâncias individuais e coletivas, como a qualidade dos contextos
socioculturais e as interações ali presentes. A linguagem possui seu papel na percepção,
interpretação e significação do mundo (VYGOTSKI, 1982, 1997; BRUNER, 1983;
LEONTIEV, 1977, 1992, 2004). Quando a criança adentra o universo da linguagem, ela
transforma suas relações com o mundo por que, além de compreender significados, ela
passa a resignificá-los constantemente, e assim suas funções psíquicas articulam-se sob
um novo funcionamento.
Por este viés, o desenvolvimento da linguagem e a grande variedade dos quadros
apresentados por essas crianças tornam-se fatores salutares para a delimitação do
estudo, sendo a escolha por crianças que ainda não se utilizam da linguagem verbal uma
exigência muito invasiva para a proposta. Se crianças com um quadro mais grave se
utilizam de formas de comunicação “mais primitivas”, “não simbólicas”, “como atos
motores e vocalizações” (FERNANDES, 2003a), não seria válido para o estudo e nem
sadio para a criança esperar que esta se engajasse num jogo que exige representação.
Tanto na escola A quanto na escola D havia crianças com quadro de transtornos
do desenvolvimento que já se utilizavam da linguagem verbal, fazendo uso da fala para
comunicar-se. Já no primeiro contato com a coordenadora pedagógica da escola A, foi
informado que uma das crianças ali matriculadas possuía linguagem desenvolvida,
embora a utilizasse muitas vezes em terceira pessoa para referir-se a si mesma. Ela
107
ainda comentou sobre a hipótese de que esta forma de comunicação tivesse intenção
lúdica. Na escola D, de acordo com as explicações da coordenadora pedagógica, as duas
crianças ali matriculadas possuíam linguagem totalmente preservada e apresentavam
dificuldades apenas na compreensão de algumas orientações verbais a respeito das
atividades escolares.
Pensando nas diferenças entre os quadros apresentados por essas crianças e suas
características, optou-se durante o estudo por investigar as possibilidades de uma
criança que, embora se utilizasse da linguagem verbal, não a possuísse totalmente
preservada. Isso tanto pelo questionamento sobre o quadro sintomatológico da criança,
o que invalidaria o estudo, quanto por que formas particulares de comunicação podem
incitar “generalizações naturalistas” (STAKE, 1999, p. 78).
De acordo com esses argumentos sobre a organização do espaço, a formação dos
profissionais e o modo de comunicação da criança, definiu-se a escola A como campo
de pesquisa. Todos os participantes envolvidos assinaram o termo de consentimento,
sendo que para as crianças, os pais ou responsáveis legais assinaram esta autorização.
108
2. A EMEB E A TURMA DA PROFESSORA MONICA49
A Escola Municipal de Educação Infantil núcleo de pesquisa está localizada num
dos bairros centrais da cidade de São Bernardo do Campo – São Paulo, teve o início de
sua história no ano de 1969. Segundo o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola,
naquela época o “bairro já não comportava a demanda existente, sendo necessária a
construção de um novo prédio escolar” (p. 9). A instituição foi inaugurada oficialmente
em 9 de março de 1970, sendo portanto uma escola tradicional da região.
O bairro é próximo ao centro administrativo do município e vem se ampliando
com a construção de edifícios residenciais e o aumento das ofertas de serviços, como
supermercados, feira livre, farmácias, clínicas médicas e veterinárias, unidades básicas
de saúde, estabelecimentos bancários, bases policiais, agências de correio, escolas
públicas e particulares, de idiomas, computação e artes, centros esportivos e recreativos,
de lazer e cultura, biblioteca, teatro, praças e igrejas (PPP, 2014, p. 23). A comunidade
escolar é formada, em maioria (cerca de 92%), por moradores do bairro, sendo que uma
média de 82% dos responsáveis exercem alguma atividade profissional. De acordo com
uma pesquisa anual realizada pela escola, constatou-se também que por volta de 80%
dos responsáveis possuem ensino médio completo, 25% com ensino superior. Muitas
das crianças são cuidadas por avós ou trabalhadoras domésticas. Não há menção no PPP
da escola ao nível socioeconômico da comunidade, mas diante desses dados, conclui-se
que, em sua maioria, as famílias não vivem em condições precárias e infere-se que seja
um nível socioeconômico médio. Um dado curioso é que, apesar do acesso aos espaços
culturais oferecidos pelo bairro, as famílias e crianças não costumam frequentá-los, o
que despertou na escola um compromisso em “divulgar e estimular o uso desses
recursos do bairro” (Id., p. 25), mediante projetos temáticos.
Quanto ao espaço físico, a escola é pequena, construída em um terreno de
aproximadamente 1900m². Há diversas árvores dispostas pelo terreno, todas grandes e
antigas, oferecendo sombras para as brincadeiras das crianças. A escola é dividida em
dois prédios. No primeiro há um salão com refeitório com capacidade para 30 crianças;
uma cozinha com despensa pequena; uma secretaria/diretoria e uma sala pequena
49
Todos os nomes presentes no estudo são fictícios.
109
utilizada como sala de livros, equipamentos de áudio e vídeo, ou sala para as
professoras; ao lado, há um espaço adaptado para as crianças para a leitura e apreciação
de músicas e vídeos; ao lado do salão, há uma sala de aula maior para as crianças do
período integral; dois banheiros para as crianças (feminino e masculino) e um banheiro
para funcionários, também adaptado para deficientes físicos. O segundo prédio possui
quatro salas de aula; três almoxarifados e um banheiro para funcionários. Na área
externa, há um pátio grande descoberto e um pequeno pátio coberto com telhas. Existem
dois tanques de areia, um com balanços, escorregadores, teias de corda, e outro com
uma área mais livre. Há também uma horta e um estacionamento para funcionários.
Uma das metas definidas no PPP da escola consiste em “Transformar e adequar
os ambientes escolares” (p. 15). A equipe reconhece que a escola não possui biblioteca,
ateliê, brinquedoteca ou quadra, sendo necessário avaliar o espaço limitado e pensar em
adequações, “com o deslocamento de objetos, materiais e mobiliário, para que as
crianças possam desenvolver diferentes propostas.” (Id.). Algumas das discussões da
equipe já incorporadas pelo trabalho com as crianças são: a subdivisão do pátio coberto,
reorganizando-o para a escovação e para a estruturação de uma brinquedoteca temática
e a criação de um espaço para fantasias e dramatizações num canto reservado do salão,
delimitado por tules e TNT e um tapete de montar de EVA.
No ano da realização da pesquisa, a escola possuía em maio de 2014, um total de
218 alunos, matriculados entre os períodos manhã e tarde, numa média de 22 crianças
por turma. A escola recebia crianças de 3 a 6 anos, distribuídas em turmas de Infantil
III, IV e V, agrupamentos definidos pela data 31 de março do ano de matrícula da
criança, conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil50
. A
equipe é composta por 30 pessoas: 1 oficial de escola, 1 diretora, 1 coordenadora
pedagógica, 12 professoras atuantes51
, 1 professora itinerante (AEE), 2 auxiliares em
educação, 4 estagiárias do curso de pedagogia, 4 auxiliares de limpeza, 3 cozinheiras e 1
zelador (PPP, 2014, p. 30). Das 12 professoras atuantes, todas têm formação superior e
sete concluíram cursos de pós-graduação (Id., p. 35). Para os auxiliares em educação e
estagiárias, há um plano de formação específico organizado pela equipe gestora, com o
50
Segundo o documento, “É obrigatória a matrícula na Educação Infantil de crianças que completam 4 ou
5 anos até o dia 31 de março do ano em que ocorrer a matrícula” (DCN, 2010, p. 15). Por isso, alguns
municípios adotaram esta data como parâmetro na composição dos agrupamentos. 51
Foram desconsiderados os casos de afastamentos.
110
objetivo principal de qualificar a atuação destes profissionais em parceria com as
professoras (Id., p. 40).
A turma que contribuiu para este estudo foi a da professora Monica, graduada
em pedagogia. Contando sobre sua trajetória profissional, ela diz:
“Bem eu tenho na rede de São Bernardo vinte e... praticamente vinte anos, que
eu trabalho como professora. Minha formação é pedagogia, fiz uma pós... é, fiz
uma pós sobre deficiências múltiplas, mas não entreguei o TCC. Não conclui,
então ainda não tenho [certificação]. Mas era à distância, uma vez por mês...
Então, eu tenho pedagogia né, mas sempre, desde sempre, eu tive alunos de
‘inclusão’ em sala, Down, até outros tipos de transtornos e sempre gostei,
sempre gostei. Sobre o autismo, os cursos que eu fazia lá [encontros
esporádicos promovidos pela rede de ensino], cursos oferecidos, um ou outro
curso que era oferecido. O maior mesmo foi o ano passado, mas foi no final né,
foi em setembro, com o Lugar de Vida. Bem no final, por que eu fiquei dois
anos com o Arthur, e depois de dois anos, praticamente no final que eu fui
fazer”. (Entrevista professora Monica, 13 de agosto de 2015).
A turma de Infantil V da professora Monica possuía um total de 23 crianças,
entre 5 e 6 anos, matriculadas no período da manhã. De acordo com seus registros,
algumas crianças faltavam “sem muitas justificativas... com muita frequência” (Caderno
de Planejamento e Registros, professora Monica, abril de 2014), compondo uma média
de 13 a 16 crianças na sala. Em 2014, ela contou ainda com a parceria da Letícia,
auxiliar em educação, que permanecia em sala durante todo o período letivo.
Essa era a turma do Arthur, criança com hipótese diagnóstica de autismo que
frequentava a EMEB desde 2012. O Arthur quase não faltava à escola e observou-se
que muitas das parcerias em brincadeiras desenvolviam-se com a Letícia. As crianças
dessa turma já possuíam laços bastante sólidos, visto que, em sua maioria, faziam parte
do mesmo agrupamento há mais de um ano. Devido a sua personalidade, algumas
crianças aproximavam-se facilmente do Arthur, como a Maria Eduarda, que se
destacava no grupo ao assumir postura de liderança, e o Rafael, que sempre procurava
desenvolver parcerias em suas brincadeiras; outras crianças tendiam a afastar-se dele,
como o Carlos, que se queixava de que o Arthur “batia”, ou o Hugo e a Clarice, quando
diziam que o Arthur não sabia brincar. Notou-se facilmente que algumas crianças
enciumavam-se quanto à relação entre a professora Monica e o Arthur, já que ele
demandava atenção de modo diferenciado, no entanto, aceitavam os combinados:
111
“Eles [as crianças] fizeram a escovação e após a história fomos para o parque.
Antes conversei com as crianças que no parque eu ficaria perto do Arthur para
que ele não ficasse jogando areia neles e isso ajudou bastante pois eles não
ficaram me chamando muito para balançar ou brincar com eles, e assim para
distrair o Arthur fiquei brincando de fazer bolinhos e enchendo baldinhos e
forminhas e assim ele ficou bem, só teve que trocá-lo inteiro depois de tanta
sujeira.” (Caderno de Planejamento e Registros, professora Monica, março de
2013).
Sobre a rotina de trabalho da professora Monica, ela mesma define dois pontos
que orientam sua prática:
“APRENDER A VIVER EM GRUPO – Acredito que é na interação com o
outro que a criança amplia seus saberes, aprende a partilhar, a manifestar suas
vontades: ao se deparar com o não (vindos muitas vezes de outra criança),
descobre como lidar com frustrações, amadurece em sua descoberta do outro e
de si mesmo; a partir do conflito pode também ampliar suas possibilidades de
comunicação.
O BRINCAR – É a forma pela qual a criança começa a compreender o mundo
e conhecê-lo, é brincando que a criança aprende a ser espontânea, criativa e
alegre”. (Relatório de aprendizagem, novembro de 2014).
Essas duas definições aludem aos eixos de trabalho da educação infantil:
interações e brincadeira. Uma leitura dos relatórios de aprendizagem da professora
Monica e um olhar para seus cadernos de planejamento e registros indicam que sua
prática explorava diversas áreas do conhecimento, múltiplas linguagens, como “Oral e
Escrita”, “Matemática”, “Artística”, “Científica”, “Musical” etc. De acordo com a
organização proposta no PPP da EMEB quanto ao uso do tempo e do espaço, nota-se
que as atividades escolares institucionalizadas fragmentavam-se para que fosse possível
o atendimento de toda a demanda de turmas e crianças. Isso se reproduzia no quadro de
rotina semanal da professora Monica, quando ela pontua atividades como “Roda de
Conversa”, “História”, “Parque” e “Brincadeiras”.
Importante destacar que, apesar disso, a produção dos dados no decorrer da
pesquisa revelou uma prática que segue o interesse das crianças, de forma mais
espontânea, permeando diversas linguagens e contemplando discussões entre as crianças
em pequenos e grandes agrupamentos. Ela inseria rodas de conversa no decorrer do dia,
por exemplo, o que não se reflete no seu esquema de planejamento semanal. Daqui se
conclui que o instrumento utilizado não dá visibilidade para o que a professora Monica
realmente fazia, validando outras formas de documentação que ela também investia,
como as fotografias e os registros escritos.
112
O quadro seguinte demonstra como a professora organizava seu planejamento:
SEGUNDA TERÇA QUARTA QUINTA SEXTA
ENTRADA
Quebra-cabeça
Pista / Carrinhos
Jogos de Montar
Casinha / Escritório
(pequenos
agrupamentos)
RODA DE
CONVERSA
Combinado do dia
“Patinho Feio”
(brincadeira
coletiva)
Construção de
fantoches /
Jogo de sombras
Lanche
Parque
Ver os fantoches
com as lanternas
SAÍDA
ENTRADA
Quebra-cabeça
Pista / Carrinhos
Jogos de Montar
Casinha / Escritório
(pequenos
agrupamentos)
RODA DE
CONVERSA
Combinado do dia
Patinetes
(agrupamentos
livres)
Construções com
uso de lego
Lanche
Parque
Vídeo do cientista
“Plano inclinado”
SAÍDA
ENTRADA
Quebra-cabeça
Pista / Carrinhos
Jogos de Montar
Casinha / Escritório
(pequenos
agrupamentos)
RODA DE
CONVERSA
Combinado do dia
Calendário
Contagem
Pintura em cavalete
(proposta
individual)
Lanche
Parque
Diversificada de
materiais na quadra
SAÍDA
ENTRADA
Quebra-cabeça
Pista / Carrinhos
Jogos de Montar
Casinha / Escritório
(pequenos
agrupamentos)
RODA DE
CONVERSA
Combinado do dia
Calendário
Contagem
Construção de
fantoches com
recortes
Lanche
Parque
Ver os fantoches na
luz
SAÍDA
ENTRADA
Massinha
(pequenos
agrupamentos)
RODA DE
CONVERSA
Combinado do dia
Atividade coletiva
(entre turmas)
Desenho sobre as
sombras
Lanche
Parque
Brincadeira com
bola
(agrupamentos
livres)
SAÍDA
Tabela VIII – Rotina Semanal de 19 a 23 de maio de 2014
Fonte: Caderno de Planejamento e Registros, professora Monica, maio de 2014.
Esse era o contexto de vivências explorado pelo Arthur: um trabalho organizado
pela professora com constância no planejamento, o que lhe possibilitava antecipar as
atividades diárias. Ainda é relevante destacar as estratégias para ampliar sua oralidade e
estimular a construção de vínculos com o grupo, pontos explícitos nos relatórios de
aprendizagem e que foram bem avaliados pela equipe: o uso do caderno de
comunicação; as atividades com músicas e livros que repetem frases e expressões; e “a
atribuição de sentido as suas emissões” (Relatório de aprendizagens, novembro de
2013).
O caderno de comunicação foi um recurso utilizado para viabilizar o contato
com a família a partir do uso de imagens, histórias e/ou escritas diversas, realizadas
tanto pela escola quanto pelos pais, num movimento que possibilita dar “voz” à criança
quando esta não consegue expressar-se verbalmente. É um modo de organizar suas
vivências, para que a própria criança tenha acesso a esta organização a partir da
113
linguagem verbal proferida por um interlocutor. Essas atividades com o caderno de
comunicação possuíam um momento permanente na rotina, em rodas de conversa
semanais. Já as atividades com músicas e livros, bem como a atribuição de sentido às
emissões do Arthur aconteciam diariamente, permeando diversos momentos do
cotidiano escolar.
O acompanhamento sistemático do trabalho realizado com o Arthur perpassava
reuniões mensais com a participação das professoras Monica (turma no período regular)
e Lia (atendimento educacional especializado), da equipe de gestão e, por vezes, com
um membro da família ou a auxiliar em educação Letícia. A professora Lia combinava
momentos de observações em sala de aula, sugeria alternativas de trabalho e algumas
vezes realizava intervenções pontuais. Sobre essa parceria, segue uma breve reflexão da
professora Monica:
“...a gente estudava junto. A Lia me ajudou muito, pesquisava, olhava pra eu
entender e fui lidando com o dia a dia [risos]... meu trabalho foi mesmo no dia
a dia, de observação... Fui observando, conversando, registrando e aí a gente
foi indo e a gente conseguiu esse trabalho [risos]...” (Entrevista professora
Monica, 13 de agosto de 2015).
Para a professora Monica, o Arthur demonstrou muitos avanços desde sua
chegada à escola, inclusive com relação a conteúdos conceituais, como “nomear letras
do alfabeto e grafar o próprio nome” (Caderno de Notas 3, 17 de junho de 2014). Ela
avalia que a parceria com a professora Lia, profissional do atendimento educacional
especializado foi valiosa para conquistar os vínculos com o Arthur e promover seu
desenvolvimento. Inicialmente, a coordenadora pedagógica Julia já havia adiantado
sobre os avanços do Arthur na alimentação e higiene bucal, no tempo de permanência
na sala de aula e na construção de vínculos com a professora Monica e com as outras
crianças.
Sintetiza-se uma primeira descrição sobre o Arthur e seus interesses:
É um menino de 5 anos, que já possui linguagem desenvolvida, embora a
utilize muitas vezes em terceira pessoa. Quando questionado se quer ou não
algo, utiliza a personagem “George” do desenho “Peppa” para referir-se a si
mesmo. A Coordenadora comentou que é possível levantar a hipótese de que
esta forma de comunicação tenha intenção lúdica. Algumas vezes já fugiu da
sala, retornando quando a professora apresentava um brinquedo de seu
interesse. Necessita apoio em atividades dirigidas, sendo este realizado por
outra professora da escola enquanto não há uma auxiliar de sala
114
especificamente para a turma dele. Aprecia jogos de construção/desconstrução,
por vezes jogando areia do parque para cima ou arremessando brinquedos, o
que, segundo a Coordenadora, necessita intervenção. Recebe tratamento
particular fonoaudiológico e terapêutico52
; e deixou de frequentar o CAPS
Infantil da rede pública (Registro primeira visita, Escola A, 31 de março,
2014).
Já o primeiro contato da pesquisadora com o Arthur deu-se da seguinte forma:
Quando a pro Monica saiu da sala, ele [o Arthur] foi atrás dela, sem falar nada.
Então sentei na “cadeirinha dele”. Quando voltou, ele me olhou, me rodeou,
mas não falou nada. “Como é seu nome?” – perguntei. Sem resposta. “Como
você chama?” – mudei a pergunta. Também sem resposta. “Fala seu nome pra
ela.” – a Leticia insistiu várias vezes, então ele afastou-se. Quando ele voltou,
havia outra criança sentada na “cadeira dele”. Sem falar nada, ele repeliu a
amiga usando o corpo para afastá-la. A Laís reclamou dizendo que o Arthur
estava empurrando, mas aceitou e saiu. Ele sentou na cadeirinha e aproximou-
se de mim, ficou tocando meus braços, encostava o corpo na minha perna.
“Olha só, a pro falou ‘tá na hora de guardar’”. “Tá na hora de guardar” –
ele repetiu imitando minha entonação. (...) Um momento segurou meu rosto,
muito carinhoso, parecia tentar me conhecer, olhava pra mim, e brincava com o
olhar entre os dedos das minhas mãos. (Caderno de Notas 1, 11 de junho de
2014).
Contar sobre os participantes da pesquisa e suas percepções a respeito do
trabalho realizado têm como objetivo situar um contexto de significações que orientou o
acolhimento do Arthur no ambiente escolar entre os anos 2012 à 2014. Explicitar essas
questões está além de valorizar o trabalho realizado com ele ou sequer constitui-se
como uma ausência de foco no estudo. Considera-se esse detalhamento essencial para
demonstrar as percepções dos agentes, o que está em concordância com a proposta
qualitativa de pesquisa.
Para dar maior visibilidade ao Arthur, resgatou-se sua trajetória escolar, dando
ênfase ao seu comportamento e peculiaridades de comunicação e linguagem. Segundo a
coordenadora pedagógica, o Arthur foi matriculado na EMEB em 2012, na turma de
Infantil II com a professora Keila, que no decorrer da fase de coleta de dados também
consentiu em participar da pesquisa. Como o Arthur faz aniversário em janeiro e há a
adequação à data 31 de março para a definição das turmas, ele frequentou a turma de
Infantil IV durante o ano de 2013 e Infantil V em 2014, ambas com a professora
Monica.
52
Infelizmente, não foi possível o contato com a família do Arthur e, por isso, não se sabe a respeito das
abordagens de tratamento pelos quais passa ou já usufruiu.
115
Organizou-se um sucinto resgate da sua trajetória escolar anualmente:
2012 – A chegada à escola:
“Sua adaptação se deu de forma gradativa aos horários da escola, espaço,
colegas e funcionários e professora. Explorou todo o espaço e apenas depois de
vencida essa necessidade foi possível perceber outros avanços. Chegou
utilizando fraldas na escola e apenas em julho, antes do recesso escolar,
demonstrou interesse em usar o banheiro e passou a utilizá-lo normalmente
precisando de pouca ajuda. No início não se comunicava, apesar de emitir sons
e articular bem a boca. Somente em junho após várias atividades propostas
para este objetivo, respondeu por meio da fala e desde então demonstrou
muitos avanços...” (Questionário I, à coordenadora pedagógica e diretora, 29
de agosto de 2014).
Os arquivos pessoais e vídeos da professora Keila demonstram o Arthur e a
forma como ele inseriu-se no grupo de crianças em 2012:
Transcrição
Som da música “Blame it on the
Boogie” (Jackson 5)
Profa. Keila: Dança aí gente, dança!
Descrição
Cinco crianças dançam ao fundo. O
Arthur permanece de joelhos em
frente à televisão, assiste atento, sem
piscar, com a boca aberta.
O Arthur olha para a professora Keila
e se balança. Rapidamente volta a
olhar para o vídeo.
(Vídeo 3, arquivo sala da professora Keila, 2012)
Transcrição
Som de música indígena, com ruídos,
vozes e batuques.
Descrição
Sentadas em roda, as crianças
apreciam o som. Algumas exploram o
próprio corpo, outras conversam,
interagem entre si. O Arthur
permanece junto ao grupo de
crianças, sentando quase que no
centro da roda durante a apreciação.
Ele não fala nada, nem interage com
outra criança.
A professora Keila filma sem dizer
nada. Quando ela passa com a câmera
pelo Arthur, ele sorri. Ela espera,
focaliza-se nele. Então ele desvia o
olhar, mas permanece sorrindo para
ela.
(Vídeo 9, arquivo sala da professora Keila, 2012)
Esses dois trechos demonstram como a comunicação com o Arthur se dava de
modo bastante sutil. No primeiro exemplo, quando a professora Keila diz “Dança aí
116
gente, dança!”, ele olha para ela e se balança como quem responde “estou dançando”,
assim como também fazem as outras crianças. Também no segundo exemplo, ainda que
ele não falasse, quando a câmera passou, ele sorriu, percebendo que estava sendo “a vez
dele” ser filmado. Pode-se afirmar que, tímido, o Arthur desviou o olhar, como quem
não queria participar, mas permaneceu sorrindo para a professora, numa comunicação
intersubjetiva com ela.
Nota-se que durante 2012, toda a rotina escolar era muito diferente para o
Arthur. A maior dificuldade da professora Keila era mantê-lo dentro da sala, junto com
as outras crianças, participando de alguma proposta. O caminho que ela encontrou foi a
música e o uso de vídeos com danças, que lhe despertavam muita atenção.
2013 – O contexto escolar regrado e a consolidação do vínculo com o grupo:
Como a professora Monica também o acompanhou em 2013, tornou-se possível
retomar seus interesses e a evolução de suas atividades lúdicas durante os anos. Ela
conta que seu primeiro contato com o Arthur foi positivo, que sua adaptação “se deu de
forma bem tranquila... com muita autonomia escolhendo o lugar para sentar”, e que
apenas no retorno do recesso escolar de 2013, ele “mostrou-se mais agitado e com
dificuldade para comunicar, por meio de falas e gestos, suas vontades e incômodos, o
que gerou aumento da frequência de ‘gritos’” (Relatórios de Aprendizagem, junho e
novembro de 2013).
O resgate das informações sobre o desenvolvimento do Arthur indica que houve
avanços significativos nas suas formas de comunicar-se e interagir com os adultos e
outras crianças. Quanto à linguagem, a professora Monica relata em 2013: “Algumas
palavras soltas ele disse essa semana, mas nenhuma frase e quando disse foi de difícil
entendimento”. (Caderno de Planejamento e Registros, professora Monica, fevereiro de
2013). Depois conclui no relatório: “seu vocabulário é bem restrito, apresenta
problemas na fala (fala muito pouco e palavras soltas) necessitando fono”. (Relatório de
aprendizagem, junho de 2013).
Já sobre o comportamento do Arthur e a relação que ele estabelecia com o grupo
no contexto escolar em 2013, alguns trechos dos registros da professora Monica o
revelam com maior clareza:
117
“O Arthur, apesar da dificuldade de participar das propostas junto ao grupo,
ficou o tempo todo com o grupo, às vezes ele saia correndo na frente e quando
íamos buscá-lo parecia que ele estava brincando de pega-pega, correndo e
rindo da gente (...) Quando uma [das professoras] intervém com ele por algum
motivo ele corre para a outra pedindo ‘socorro’ principalmente quando ele
percebe que o ‘não’ [a negativa de vontades na inserção de limites e regras]
está presente.” (Caderno de Planejamento e Registros, professora Monica,
fevereiro de 2013).
“...o Arthur estava muitíssimo agitado e até mesmo agressivo, batendo, não
aceitando ordens, se jogando no chão com muita frequência e gritando muito...
Muito agitado, andando de um lado para o outro pela sala, gritando muito
quando tentávamos chegar próximo a ele, e o mais incrível agredindo a mim [e
a outra professora] com chutes e cuspes”. (Caderno de Planejamento e
Registros, professora Monica, agosto de 2013).
Percebe-se que foi necessário muito investimento e insistência por parte da
professora Monica em 2013 para inseri-lo na rotina escolar, para que acompanhasse o
grupo de crianças e aceitasse as regras ali compartilhadas. Manter o mesmo
agrupamento de crianças de um ano letivo para o outro já é uma prática da EMEB, o
que não foi possível apenas entre os anos de 2012 e 2013 devido à referida adequação
na composição das turmas. No caso da professora Monica, houve ainda uma avaliação
positiva do trabalho desenvolvido com o Arthur em 2013, já que, para a coordenadora,
sua postura pedagógica partia sempre de uma “aposta” nas capacidades do Arthur e na
percepção de suas possibilidades. Com uma leitura atenta de seus registros, nota-se em
várias passagens o esforço desprendido para conquistar a participação da criança,
justamente por acreditar não apenas que isso era possível, mas que esse era o caminho
para ampliar suas experiências:
“O Arthur mais uma vez chegou e foi direto para a mesa do quebra-cabeça,
mas é muito difícil fazê-lo entender o que tem que fazer, ele prefere ficar
jogando as peças e por isso pedi para a auxiliar ficar com ele e pegamos um
quebra-cabeça grande de madeira e ela ficou em uma mesa só com ele
brincando e tentando montar, ele conseguiu assim um pouco mais de
concentração”. (Caderno de Planejamento e Registros, professora Monica,
março de 2013).
“O Arthur estava muito agitado essa semana, foi muito difícil mantê-lo no
grupo... estamos com dificuldades em lidar com ele cuspindo, o que vem
fazendo com muita frequência, principalmente se ele sai de perto do grupo e
temos que buscá-lo, ele fica cuspindo e não temos como chegar perto dele. Mas
essa semana consegui fazer com que ele fizesse o bochecho com a água na hora
da escovação, pois ele já estava colocando e tentando escovar os dentes
sozinho, mas ele engolia toda a água, e na quarta-feira eu fiz primeiro e
brinquei de fazer barulho com a água dentro da minha boca e ele achou graça e
118
começou a fazer igual na quinta ele fez sozinho, rindo”. (Caderno de
Planejamento e Registros, professora Monica, março de 2013).
Essas situações expressam momentos em que o auxílio da parceira (auxiliar ou
professora – oferecendo objetos diferenciados do grupo, criando jogos de imitação ou
acompanhando-o individualmente) incidiu em zona de desenvolvimento potencial, já
que viabilizou a participação do Arthur nas propostas escolares. A partir da mediação,
ele passou a realizar atividades que não realiza sozinho. Percebe-se que a “aposta”, a
qual se referiu a coordenadora pedagógica, está além de crer no potencial da criança,
sendo necessário pensar na efetivação do processo educativo. A “aposta” contém a
intencionalidade do educador, parte de suas observações e preserva insistência,
constância e reflexão acerca do próprio trabalho.
2014 – O Arthur, a ampliação da oralidade e as outras crianças no ano da pesquisa:
Durante 2014, uma caracterização da linguagem do Arthur já demonstra algumas
situações em que era possível compreender o que ele falava, ainda que houvesse
dificuldades de dicção. Certa vez, no decorrer de uma atividade intersalas, o Arthur
resolveu voltar para a sala dele questionando “qui seis tão fazeno po Monca?” (Caderno
de Planejamento e Registros, professora Monica, outubro de 2014). Também quando
havia conflitos com outras crianças e ele vinha se queixar: “Po Monca, a colhei não
dexa eu pega” (Caderno de Notas 17, 06 de outubro de 2014)53
.
Em outras situações, o Arthur já conseguia pronunciar as frases após a repetição
de outras pessoas: “Touiando” – ele dizia sentado na bola. Então a pesquisadora repete:
“Tá pulando, Arthur?”. Assim ele passa a pronunciar: “Olha po, to pulando”. (Caderno
de Notas 11, 08 de setembro de 2014)54
.
Outras sentenças eram repetidas com frequência, como “O barrigão do papai” –
ele dizia cochichando (Áudio 18 e 19, 24 de novembro de 2014). Ou interessava-se por
diálogos em que imitava sons, por exemplo quando ele pergunta sobre a leitura de
histórias: “Que passa aie?”. Então a pro Monica sugere uma história a ser contada:
“Você não vai ver os desenhos da escola?”. Assim o Arthur diz: “Não. Nãããooouuuu.
53
“O que vocês estão fazendo, pro Monica?”; “Pro Monica, a colher, ele não deixa eu pegar.” 54
“Estou pulando, olha pro, estou pulando”.
119
Uouououoooonnnouuuu” – ele nega o pedido da professora e gesticula como se algo
estivesse caindo. (Caderno de Notas 20, 20 de outubro de 2014)55
. Segue a conclusão da
professora Monica ao final de 2014:
“Nesse semestre o Arthur está bem mais ‘falante’, algumas palavras e até
algumas frases já são possíveis de ser entendidas. A fala repetitiva continua
muito presente no dia a dia, bem como a fala de personagens da televisão e o
‘não’ tão presente quando falamos diretamente a ele, ainda não consigo ter
claro que esse não é realmente uma negativa, pois ao mesmo tempo em que
está dizendo não ele está realizando o que é pedido”. (Relatório de
aprendizagem, novembro de 2014).
Intrigante nesse trecho a postura do Arthur quanto a atender a solicitação da
professora, mesmo que continue repetindo o “não”. Em geral, para crianças menores,
quando ainda não há compreensão da relação entre uma negativa e a ação interditada, a
criança até verbaliza o “não”, como faz o Arthur, mas, ao contrário dele, continua
realizando a ação proibida. No caso dos transtornos do desenvolvimento, parece que a
linguagem não acompanha o pensamento e a ação. Se o Arthur continua repetindo o
“não” (linguagem), mas corresponde à solicitação (pensamento e ação), evidencia-se
uma desarticulação entre a linguagem verbal expressada por ele e o pensamento que
condiz com suas ações. A linguagem é um sistema que exige coordenar informações,
mas seu pensamento parece fragmentado, possível núcleo dessa desarticulação.
Embora em menor proporção se comparado aos anos 2012 e 2013, momentos
em que a comunicação e o diálogo eram difíceis permaneceram em 2014, sendo
necessário compreendê-lo a partir de gestos ou expressões:
“A proposta para o grupo no dia de hoje foi até que tranquila, mas para o
Arthur eu não dei nada certo. Primeiro deixei ele em um grupo (de crianças),
mas assim que coloquei a caixa na mesa (lego dacta) ele começou a pegar tudo
pra ele, não deixando as crianças pegarem as peças e quando fui intervir ele
começou a jogar tudo no chão. Como não consegui acalmá-lo pedi para que a
Letícia sentasse com ele no tapete com uma caixa só pra ele, e mais uma vez
não deu certo, ele passou a jogar tudo pela sala deixando o momento bem
agitado, a Letícia tentava pedir para que ele não jogasse mas não tinha acordo e
quando eu resolvi ir até ele e tentar pedir para que ele parasse ele começou a
gritar e correr pela sala, passando por cima das crianças que estavam
realizando a atividade, atitudes que há tempos não tinha”. (Caderno de
Planejamento e Registros, professora Monica, maio de 2014).
55
“O barrigão do papai”; “O que passa aí?”; “Não”.
120
“O Arthur fica sempre tão fascinado com essa atividade [projeto com luz e
sombras], que se recusa a sair da frente do projetor, falando muito mas que
muitas vezes não conseguimos entender”. (Caderno de Planejamento e
Registros, professora Monica, maio de 2014).
Ao pensar sobre essas dificuldades, identifica-se no primeiro trecho que o Arthur
estava certamente incomodado e o sinalizava com seu comportamento, jogando peças
no chão, correndo e passando por cima das crianças, gritando. Talvez quisesse dizer
algo sobre o jogo de lego dacta, mas a ausência de compreensão e diálogo entre ele e a
professora Monica dificultou sua participação. Possível levantar a hipótese de que o
material necessite que um adulto oriente a proposta, já que oferece muitas referências
perceptuais e torna difícil para a criança dar sentido à atividade sem tal orientação. No
segundo trecho algo similar aconteceu, já que se ele fosse entendido em suas falas,
poderia ampliar seu diálogo com as outras crianças e assim suas possibilidades de novas
aprendizagens. Avaliando o desenvolvimento da oralidade do Arthur, a professora
Monica compartilha dessa reflexão:
“Essa oralidade vem auxiliando também na relação com as crianças da sala, já
é possível observá-lo dirigindo pequenas falas ao outro, principalmente quando
ele quer alguma coisa, ele já consegue pedir ao invés de pegar como fazia
antes. Até mesmo a agressividade diminuiu consideravelmente nesse período,
talvez reflexo desse aumento na oralidade”. (Relatório de aprendizagem,
novembro de 2014).
Os registros de 2014 expressam as conquistas do Arthur e suas singularidades
que passaram a ser notadas mais nitidamente:
“O Arthur vem nos deixando um pouco confusas com sua ‘dupla
personalidade’, ora ele é o Arthur, ora ele é o George, dizendo ‘George não
quer’, ‘George não gosta’, e nesses momentos ainda não sei que atitude tomar,
apenas respeito o seu momento. Mas nos outros momentos ele está mais
esperto, mais falante e entendendo tudo o que eu falo e muitas vezes realizando
as comandas solicitadas por mim, geralmente só as minhas, as de outros
adultos é mais difícil”. (Caderno de Planejamento e Registros, professora
Monica, fevereiro de 2014).
Necessário comentar a respeito da “dupla personalidade”, devido à possível
atribuição de caráter lúdico a ela. Elkonin (1999) comenta que no desenvolvimento do
jogo a criança coloca-se ao mesmo tempo como ela mesma e como outro, um papel que
representa. Com a brincadeira, aos poucos a criança vai se tornando consciente de seu
121
comportamento e assim passa a diferenciar o “eu”, que é real, de outro “eu” que habita a
situação imaginária. No caso do Arthur, como ele não afirma “Eu sou o George”, mas
repete em terceira pessoa ‘George não quer’, ‘George não gosta’, evidencia-se uma
dificuldade em assumir sua identidade, já que não há um papel assumido por ele ou um
posicionamento como personagem. Talvez este tenha sido o caminho encontrado por ele
para falar de si: apoiar-se no personagem que gosta. Ainda que haja uma representação
mental de George, o Arthur não desempenha ações simbólicas, pois estas são suas e não
do personagem. Por isso, parece que há uma cristalização Arthur-George, demarcando
uma fragilidade na capacidade simbólica, pautada em ações repetitivas e não em ações
simbólicas.
Merece destaque um último comentário sobre as características demonstradas
pelo Arthur quando estava ou não estava bem e como estas particularidades alteravam
todo o contexto da sala da professora Monica, o que permaneceu com maior ou menor
ênfase durante todo o ano de 2014:
“Essa semana também foi bem atípica, pois além do número reduzido, não teve
a presença do Arthur que está viajando e apesar da falta que ele faz, pois com
ele na sala não parou um minuto, fica mais fácil intervir e brincar com as outras
crianças no parque e nas atividades”. (Caderno de Planejamento e Registros,
professora Monica, março de 2014).
“Essa atividade em especial foi marcada pela participação do Arthur que fez
sua primeira produção, sem excesso de tinta e sem rabiscar tudo como sempre
acontecia, troquei a sua folha e ele fez outra também bem legal que chamou a
atenção de vários adultos que estavam por perto”. (Caderno de Planejamento e
Registros, professora Monica, abril de 2014).
“O dia foi marcado por uma agitação excessiva do Arthur, não sei que
aconteceu, mas o dia foi bem mais difícil. Como ele percebeu que agora voltou
a ter outra pro na sala [Leticia] ele começou a fazer coisas que não fazia e
quando eu intervenho ele corre para a Leticia e vice-versa”. (Caderno de
Planejamento e Registros, professora Monica, abril de 2014).
É possível afirmar que, em geral, as crianças também têm seus momentos de
“altos e baixos”. Há semanas em que eles participavam mais, propostas em que eles se
engajavam mais, dependendo de seus interesses, de suas parcerias, do momento que
estavam vivendo, fatores que nem sempre eram totalmente acessíveis à professora ou à
observação de um adulto. Com o Arthur não era diferente. Mas a forma dele comunicar
tais fatores, de demonstrar seus interesses, de participar ou não de uma atividade ou
mesmo de dizer que não estava bem, diferia da forma de comunicação das outras
122
crianças. Para ele, quando não é compreendido ou não entende a situação e palavras ao
seu redor, torna-se difícil organizar-se, expressar-se mediante a fala ou controlar seu
comportamento a partir das regras sociais de determinado contexto.
Outras crianças também apresentavam dificuldades em algumas situações, a
exemplo o Carlos, outra criança da sala da professora Monica que, quando contrariada,
“fazia birra”, gritava e chorava. Muito nervoso, o Carlos não aceitava as alternativas que
os adultos ofereciam para que ele se sentisse melhor e até mesmo para que pudesse
solucionar um conflito que o estava afligindo. Com isso surge uma tendência de retomar
a ideia patológica que se atribui a comportamentos que destoam do esperado. Adultos
nem sempre estão bem 100% do tempo, há épocas em que se participa mais, em que se
produz mais, e há épocas em que isso se inverte. Não precisa ser patológico, mas apenas
encontrar um modo de comunicação e expressão passível de compartilhamento social, o
que é construído no grupo de convivência diariamente.
Esse breve comparativo revela o quão curioso era a dinâmica interpessoal na
sala da professora Monica, por que algumas vezes as reações do Carlos impactavam
mais as pessoas do que as reações do Arthur. Ali, as particularidades de comunicação do
Arthur haviam se naturalizado entre as crianças e o que não era possível para ele, era
reconhecido como uma dificuldade ou preferência, como se verá mais adiante na
descrição e análise de dados: “ele não sabe”, diziam as crianças várias vezes sobre o
Arthur, ou “ele não quer”. Como o Arthur muitas vezes não se utilizava da fala
convencional, as crianças o interpretavam dessa forma e aceitavam algumas condutas
até que fosse possível para ele inserir-se no contexto de significações do qual
compartilhavam.
Segundo toda a equipe de acompanhamento pedagógico, ainda havia situações
em que o Arthur apresentava dificuldades para “aceitar e cumprir os combinados
estabelecidos com o grupo” (Id.), o que lhe demandava auxílio direto, como os
momentos em que “fugia” da sala e ou mesmo para sua participação qualitativa em
diversas atividades. É consensual entre as professoras e a equipe de gestão que, aos
poucos, o Arthur passou a aceitar a convivência com outras pessoas e interessar-se
espontaneamente por jogos e brincadeiras.
Como os quadros de transtornos trazem uma característica de pensamento
fragmentado, a peculiaridade de suas formas de aceitação e participação no contexto
123
escolar regrado localizam-se na capacidade de interpretação e articulação das
informações ali presentes. Isso significa que quanto mais elementar for a regra ou mais
alicerçadas em relações diretas e binárias (correr-pegar, sim-não etc), maiores são suas
possibilidades de aceitação e participação no grupo. Por consequência, quanto mais
complexas e entrelaçadas forem as informações, maior sua dificuldade para aceitar tais
regras e assim surge a necessidade de um auxílio que traduza a ele um sistema
complexo em regras que lhe sejam acessíveis, como situações em que houve a imitação.
Ao concluir a caracterização do contexto em que se realizou a pesquisa, retoma-
se os principais agentes no contato com o Arthur: além dos amigos, crianças da turma,
destacam-se a professora Monica (responsável pela sala regular durante os anos de 2013
e 2014); a professora Keila (responsável pela sala regular durante o primeiro ano escolar
do Arthur, 2012); a professora Lia (itinerante do AEE); a Letícia (auxiliar em
educação); as professoras Carol e Driele (que eventualmente substituíram a professora
Monica em suas ausências); a coordenadora pedagógica Julia e a diretora Eliza, além da
presença da própria pesquisadora.
124
3. PROCEDIMENTOS DE PRODUÇÃO E CATEGORIZAÇÃO DE DADOS
A pesquisa qualitativa é uma abordagem metodológica que pode valer-se de
variadas técnicas para gerar informações (COHEN et. al., 2000). Ao aproximar-se de
uma escola de educação infantil como campo de pesquisa e ao contemplar a brincadeira
como tema, o estudo de caso contou também com a participação de crianças como
sujeitos que atuam diretamente na pesquisa. Por isso, pensou-se o processo de produção
de dados de modo a atender esta complexidade, ou seja, dar visibilidade às crianças e
aguçar a escuta a respeito do que dizem e fazem, independente da presença de um
transtorno do desenvolvimento. De acordo com a especificidade deste estudo, definiu-se
a seguinte organização na abordagem dos participantes e respectivas fontes:
Observações
/ notas
Questionários Documentos Áudio e vídeos
Crianças
Auxiliar em
educação
(Letícia)
Professoras
(Monica,
Keila, Carol e
Driele)
Professora
itinerante
(AEE - Lia)
Coordenadora
Pedagógica
(Julia)
Diretora
(Eliza)
X
X
X
X
X
X
X
X
*entrevistas
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
Tabela XIX – Instrumentos no processo de produção dos dados por participante
Fonte: --- *As entrevistas foram realizadas em agosto de 2015 no intuito de complementar e validar dados.
A observação participante exige a interação ou participação ativa do pesquisador
com os agentes, implicando no “reconhecimento do caráter dialético envolvido do ato
de pesquisar” (HOLANDA, 2006, p. 370). Esta técnica de geração de dados justifica-se
pelo cuidado em ver e ouvir as crianças, em perceber suas emoções ou mesmo intervir
125
em situações de risco (MARTINS FILHO, 2011, p. 100; ALDERSON, 2005). Foi
necessário o cuidado com a auto-observação, para que se minimizasse a interferência
nas atividades das crianças e assim acredita-se que se demonstrou interesse por suas
brincadeiras sem condicioná-las.
O uso do caderno de notas permeou todo o processo, considerando as percepções
da pesquisadora (HOLANDA, 2006). Foram incluídas fotografias de materiais
pedagógicos, recursos construídos pela professora ou criações das crianças, enquanto
sustentação das discussões que ali se delineavam. As falas dos participantes,
questionários e entrevistas trouxeram dados descritivos na linguagem do próprio agente
(BOGDAN e BIKLEN, 1994) e foram relevantes para a compreensão acerca de suas
concepções. Reconhecendo que tal processo sempre perpassa pela subjetividade do
pesquisador (CHIZZOTTI, 2003; HOLANDA, 2006), como princípio ético, todo
material transcrito foi lido e validado pela professora Monica e pela auxiliar Letícia. Na
hipótese de discordância, o material seria descartado, mas essa ação não foi necessária.
A escola demonstrou-se extremamente acessível ao disponibilizar documentos.
Foi fornecida uma cópia do PPP (projeto político pedagógico) e cópias dos relatórios de
aprendizagem do Arthur referentes aos anos de 2013 e 2014. A professora Monica doou
para a pesquisa seus Cadernos de Planejamento e Registros dos anos de 2013 e 2014. O
único documento do qual não se teve acesso foi o Registro de Acompanhamento
Específico (ficha RAE) do Arthur. Foi informado pela Orientadora Pedagógica que
estas fichas são preenchidas com a parceria de outros profissionais56
e ultrapassam as
dependências da escola, envolvendo outros setores da Secretaria de Educação do
município. Optou-se por descartar este material, a fim de atender às solicitações da rede
de ensino.
Quanto aos áudios e vídeos, estas são ferramentas únicas que possibilitam
registrar com maior exatidão um recorte da realidade (KOHATSU, 2007). Similar a
uma “memória audiovisual” (MARTINS FILHO, 2011, p. 99), ao mesmo tempo em que
direciona a atenção para aspectos que não seriam percebidos na observação participante
(PINHEIRO, 2005), também torna possível rever várias vezes as mesmas situações de
interação, num processo que revela o movimento da criança e a dinâmica de seu
56
Além da equipe de gestão, a professora da sala e a professora itinerante, contam com a colaboração da
psicóloga, fonoaudióloga, terapeuta ocupacional, entre outros.
126
contexto sociocultural (MARTINS FILHO, 2011). Os áudios compõem um total de
cerca de 1 hora de gravações, fragmentadas em pequenos trechos de entrevistas com as
crianças. Os vídeos são compostos em grande parte por doações provenientes dos
registros pessoais da professora Keila, durante o ano de 2012, produções da professora
Monica ao fim do ano letivo de 2014 e pequenos trechos de filmagens de brincadeiras,
num total de cerca de 1 hora e 30 minutos de gravações. Infelizmente, não foi possível
priorizar os vídeos como ferramenta devido à primeira solicitação da rede de ensino que
pontuava a não utilização de imagens. Contudo, durante a organização dos dados,
notou-se a riqueza desse material e contatou-se novamente a rede de ensino a fim de
utilizá-los a partir de transcrições e descrições. Tal procedimento foi então autorizado
desde que não identificasse os agentes da pesquisa.
De acordo com o quadro teórico presente neste estudo, sabe-se, por um lado, da
dificuldade dessas crianças em engajar-se no jogo simbólico; por outro, que imaginação
e simbolismo desenvolvem-se no decorrer da brincadeira. Portanto, já os primeiros
contatos com o campo de pesquisa aconteceram com perguntas norteadoras quanto ao
acesso do Arthur a experiências sociais, se havia dificuldade na compreensão destas
experiências e quais eram seus interesses e motivação para brincar.
Algumas das perguntas que surgiram durante o processo de pesquisa de campo
foram: Como é a brincadeira do Arthur? Qual a relação entre seu brincar e sua interação
com as crianças e adultos? Como se dão suas parcerias durante as brincadeiras? O que
dizer sobre o processo de mediação durante as atividades lúdicas? Que relação o Arthur
mantém com o contexto escolar? Há compartilhamento de significados ou há sua
simples “presença” num mesmo espaço?
Todo o processo teve como foco situações de atividades livres, em espaços
estruturados, individuais ou em parcerias com outras crianças, guiadas ou não pela
professora, numa frequência de 2 a 3 vezes por semana. Para isso, priorizaram-se
momentos de parque, pátio, quadra, diversificada e “brincadeira estruturada”, sendo
estas situações sempre combinadas previamente com a professora Monica e a diretora
Eliza, na construção de uma relação respeitosa perante o trabalho realizado. Nos dias
em que a sala da professora Monica esteve com uma professora substituta, também foi
questionado se o processo de pesquisa acarretaria em algum incomodo e se este poderia
ser realizado. Como as professoras Carol e Driele permanecem o tempo todo na escola,
127
possuem vínculos com as crianças e também consentiram com o processo de pesquisa,
foi possível dar continuidade à geração dos dados mesmo na ausência da professora
Monica.
O trabalho de campo realizou-se por 7 meses – junho a dezembro –, durante o
ano letivo de 2014. Segue detalhamento da duração do processo de produção de dados:
Observações
/ notas
Questionários Documentos Áudio e vídeos
2012
(resgate do
arquivo
pessoal dos
participantes)
2013
(resgate do
arquivo
pessoal dos
participantes)
2014
fev.-maio
(resgate do
arquivo
pessoal dos
participantes)
2014
junho-dez.
(7 meses da
fase de
inserção da
pesquisadora
na escola,
frequência: 2
vezes por
semana)
2015
agosto
Tempo Total:
Compilação
do material
X
Cerca de
60horas
X
entrevistas
---
X
X
X
X
---
X
(vídeos)
X
(vídeos)
X
(vídeos)
X
(áudio e vídeos)
Áudio: 1hora
Vídeos:
1hora30min.
Tabela X – Instrumentos no processo de produção dos dados por tempos/duração da pesquisa
Fonte: ---
Inicialmente, optou-se por aproximar-se das crianças e familiarizar-se com a
rotina da professora Monica de modo a minimizar comportamentos atípicos dos
participantes e a evitar ao máximo possíveis distorções da realidade (BOGDAN e
BIKLEN, 1994). Por isso, o uso de áudios com entrevistas e questionários restringiu-se
ao final da etapa de inserção da pesquisadora no ambiente escolar. Nos primeiros dias,
128
também não houve nenhuma tentativa de compartilhamento de brincadeiras com o
Arthur, o qual foi lentamente se aproximando em diversas situações. Ao final de todo o
processo de produção dos dados já era possível brincar com ele, embora ele
manifestasse claramente suas preferências: a professora Monica e a auxiliar Letícia.
Após o encerramento do processo de geração dos dados, organizou-se todo o
material e cópias em DVD de dados foram entregues à EMEB e à Secretaria de
Educação de São Bernardo do Campo, conforme acordado no ato de autorização da
pesquisa. O processo de análise subdividiu-se em três etapas principais: a primeira
caracterizou-se pela leitura do material por diversas vezes, o que resultou na
identificação dos pontos propostos no exame de qualificação. As primeiras impressões
apontavam situações que se repetiam durante as observações, como a dificuldade do
Arthur em brincar no parque sem jogar areia e seu envolvimento com jogos de encaixe
com a constante classificação das peças por cores ou formatos.
A segunda etapa do processo consistiu em rever todo o material, pensando sua
organização para posterior decodificação e emergência das categorias de análise. Essa
foi uma etapa densa do processo devido a grande variedade e riqueza do material
gerado. Buscou-se na proposta de análise microgenética respaldo para se pensar o modo
de organização dos dados, recortando o material em episódios significativos (GOÉS,
2000), para a posterior emergência de categorias que fossem condizentes com a
complexidade desse estudo. Compreende-se que na microgenética a interpretação dos
fenômenos ocorre mediante a captura dos momentos de transformação da dinâmica das
interações e desenvolvimento humanos (KELMAN e BRANCO, 2004), o que não foi
possível nesta investigação, já que os registros evidenciavam os saltos no
desenvolvimento da criança, mas não alcançavam os detalhes do processo.
Assim, houve uma articulação entre procedimentos metodológicos do estudo de
caso e da microgênese para a organização e análise dos dados. No estudo de caso há
vantagem na utilização de diversas fontes para a coleta de dados, o que viabiliza o
processo de triangulação como estratégia de validação ao combinar duas ou mais fontes
de informação para se discutir sobre uma mesma hipótese (YIN, 2005), considerando as
múltiplas perspectivas na interpretação de significados (STAKE, 1999). O uso de
protocolos descritivos de orientação microgenética tornou possível o cruzamento de
informações.
129
Durante a segunda etapa do processo de análise, os protocolos descritivos foram
utilizados para cada fonte de geração dos dados, com foco no que houve em cada
episódio considerado como brincadeira. Esses protocolos tiveram como eixos o que as
crianças fizeram e falaram; a proposta e duração da atividade; o interesse do Arthur e
sua participação; o que ele falava e se havia recusa à proposta ou chamados dos amigos;
a intervenção e o processo de mediação; a avaliação da proposta, comentários e
observações.
Cada eixo continha transcrições e descrições na íntegra, bem como as primeiras
reflexões da pesquisadora. Tornou-se necessário retomar veementemente a pergunta
central do estudo, “É possível o jogo simbólico?”, já que muitas questões para análise
emergiram durante essa etapa. Notou-se que para argumentar sobre tal questão, primeiro
era necessário compreender como o Arthur brincava e depois afirmar sobre suas
possibilidades de simbolização. Assim, os protocolos criados foram analisados a partir
de duas questões norteadoras que pudessem caracterizar a brincadeira do Arthur: De que
ele brinca? Com quem ele brinca? A leitura do material suscitou as possibilidades de 1
a 8 para cada uma dessas perguntas norteadoras. Os temas foram definidos a partir do
que o Arthur fazia em consonância com o questionamento central da pesquisa, dando
ênfase a situações que poderiam ser consideradas como simbólicas. Já as parcerias
foram pensadas de modo a aumentar a complexidade do relacionamento interpessoal,
partindo da brincadeira sem parceiros rumo ao compartilhamento de significações.
Para cada fonte foram criados gráficos para determinar os interesses do Arthur.
Um olhar analítico para as porcentagens possibilitou a emergência de categorias que
pudessem explicitar como era a brincadeira dele. Por temas, o cruzamento das quatro
fontes indicaram dois pontos de destaque: 1. A exploração do movimento, dentre jogar
coisas e percebê-las no espaço; 2. A ausência do jogo de papéis criando enredos. O jogo
funcional também foi recorrente, mas não foi considerado como categoria por que
englobava muitas possibilidades de brincadeira (uso de miniaturas, leitura de livros,
quebra-cabeças, bingos etc.). Quanto às parcerias, o cruzamento das informações
resultou em duas outras categorias: 1. O brincar sozinho ou com apenas um parceiro,
preferencialmente um adulto; 2. A inabilidade para inserir-se no grupo, com exceção
das propostas realizadas com música.
130
Os gráficos ilustram as preferências por temas e por parcerias do Arthur:
Observações / notas
Total de situações descritas 71 Documentos
Total de situações descritas 63
Questionários
Total de situações descritas 18 Áudio e vídeos
Total de situações descritas 50
1. Jogar as coisas (areia, água, objetos etc. – ver e explorar o movimento) 2. Correr e fugir
3. Construção/desconstrução
4. Percepções no espelho 5. Categorização de peças
6. Jogo funcional (uso de miniaturas, leitura de livros, quebra-cabeças, bingos)
7. Imitação ações (com ou sem substituição de objetos) 8. Assumir papéis criando enredos
Gráficos III – De que o Arthur brinca?
Fontes: Processo de produção de dados
Gráficos elaborados em porcentagens
Observações / notas
Total de situações descritas 71 Documentos
Total de situações descritas 63
Questionários
Total de situações descritas 18 Áudio e vídeos
Total de situações descritas 50
1. Sozinho 2. Com um parceiro (adulto)
3. Com um parceiro (criança)
4. Com dois parceiros (dois adultos) 5. Com dois parceiros (um adulto e uma criança)
6. Com dois parceiros (duas crianças)
7. Com mais de dois parceiros (adultos e/ou crianças) 8. Junto com o grupo (coletivo) – todos os registros de ocorrência contaram com música
Gráficos IV – Com quem o Arthur brinca?
Fontes: Processo de produção de dados
Gráficos elaborados em porcentagens
131
A terceira etapa do processo de análise consistiu em refletir sobre as categorias
levantadas e argumentar sobre as possibilidades do Arthur de engajamento no jogo
simbólico. Compondo articulações com o quadro teórico da presente investigação, essa
última etapa teve como objetivo dar sentido às partes que compõem o todo (STAKE,
1999) e foi concomitante à redação da dissertação final.
132
III. DESCRIÇÃO E ANÁLISE DE DADOS
Adentrando a brincadeira do Arthur: de quê e com quem ele brinca?
Our knowledge of any complex phenomena, such as social
engagement, children's play, friendship and so on, depends to some extent on
how we choose to view it. How we look at autism - whether we focus on
sameness or difference, the individual or the group, strengths or weaknesses -
affects our understanding of what autism is and our ideas about how to support
it.
--- Carmel Conn
Conforme explicitado no quadro metodológico, a organização dos dados e sua
categorização partiu da retomada da pergunta central do estudo, “É possível o jogo
simbólico para o Arthur ?”, já que muitas questões para análise emergiram durante essa
etapa. Para isso, tornou-se necessário compreender como o Arthur brincava e depois
afirmar sobre suas possibilidades de simbolização. Das duas questões norteadoras na
caracterização da brincadeira do Arthur, De que ele brinca? Com quem ele brinca?,
emergiram as quatro categorias presentes nessa análise, que tem como objetivo
demonstrar os resultados da pesquisa e viabilizar a discussão sobre o processo de
desenvolvimento do jogo em suas formações simbólicas e as possibilidades de
engajamento nessa atividade para o Arthur.
Nesse capítulo, as categorias serão abordadas em dois grandes eixos: escolhas e
preferências do Arthur por temas e por parcerias no desenvolvimento das brincadeiras.
Por temas, consideram-se 1. A exploração do movimento, dentre jogar coisas e percebê-
las no espaço; 2. A ausência do jogo de papéis criando enredos. Quanto às parcerias,
concebem-se 1. O brincar sozinho ou com apenas um parceiro, preferencialmente um
adulto; 2. A inabilidade para inserir-se no grupo, com exceção das propostas realizadas
com música.
133
1. “VER-CAIR”: O ESTUDO DO MOVIMENTO
Ele tá jogando no telhado e esperando cair. Ele gosta de ver cair. Eu
já fiz esta brincadeira na casa da minha avó...
--- Gustavo (sobre a brincadeira do Arthur)
A análise dessa categoria inicia-se com uma retomada do quadro teórico quanto
à caracterização da brincadeira de crianças com transtornos do desenvolvimento, mais
especificamente as que se enquadram no espectro do autismo. Os diversos enfoques
vêm demonstrando que essas crianças possuem interesses limitados e comportamentos
atípicos ao engajar-se em suas brincadeiras, o que resulta num quadro em que o jogo
parece menos espontâneo se comparado às crianças de desenvolvimento típico. Segundo
Conn (2014), essas crianças encontram dificuldades em diversificar suas formas de
brincar. Geralmente, atribuem aos objetos sentidos sociais de modo bastante limitado,
preferem jogos de natureza física, explorando principalmente o tato e o campo visual, e
envolvem-se em experiências em que a categorização ocupa lugar de destaque, como
colecionar itens, elaborar listagens, repetir sons ou trechos musicais, soltar ou derramar
objetos/líquidos e observar movimento.
Nessa categoria, pretende-se explicitar como se dava esse interesse no Arthur.
Na análise dos dados produzidos no decorrer da pesquisa, essas formas de brincar
apareciam com muita frequência e embora se considere que alicerçar a discussão desse
estudo nesta particularidade possa, de algum modo, restringir a qualidade da brincadeira
da criança, este não é o objetivo.
Por um lado, há uma aposta em suas potencialidades para engajar-se em
brincadeiras de outra natureza, tal análise permanece necessária para que seja dado ao
Arthur um reconhecimento de que suas preferências talvez não sejam assim tão
dissonantes do usual, como se conclui num primeiro olhar, menos meticuloso. Tem-se
como primeiro objetivo lançar um olhar à criança, sem, com isso, menosprezar um de
seus maiores interesses: o jogo nomeado por outra criança – o Gustavo –, como “ver-
cair” ou, como será abordado aqui, o estudo do movimento das coisas. Compreende-se
que essa é uma interpretação da pesquisadora, que encontrou em sua análise base para
fundamentá-la.
134
Por outro lado, é tecida uma argumentação se este jogo pode ou não ser
considerado como ação simbólica, de acordo com uma abordagem histórico-cultural.
Esse conjunto de ações que caracterizam a brincadeira “ver-cair” poderiam ser
considerados como motivação para atividade principal da criança? Há situação
imaginária? De que natureza? Estas questões orientam a compreensão sobre a atividade
lúdica do Arthur e compõem o segundo objetivo da análise presente nesta categoria.
A seguinte discussão parte de dois relatos, o primeiro da professora Monica e o
segundo da coordenadora pedagógica, já que consideram vários aspectos – lançar
objetos, classificar, observar o movimento, resistência –, os quais serão explorados no
decorrer dessa categoria:
"Seu contato com objetos se dá muito na exploração, do jogar, de ver o
movimento, de classificar (quando jogos de montar) por cores e tamanhos."
(Questionário II, à professora Monica e auxiliar Letícia, 07 de novembro de
2014).
“Gosta de explorar o movimento em espaços externos... Areia e água são
explorados por ele sendo lançados, provocando uma difícil situação com
queixas dos colegas... e resistência em abandonar esse comportamento.”
(Questionário I, à coordenadora pedagógica e diretora, 29 de agosto de 2014).
A primeira impressão que se tem a respeito da brincadeira do Arthur é bastante
similar ao que as crianças da turma da professora Monica pontuam quando questionadas
sobre isso – “A brincadeira dele é só de jogar” (Duda, Áudio 1, 22 de setembro de
2014) – ou até mesmo da própria professora Monica quando do início do seu trabalho
com o Arthur em 2013:
“...sua única participação era jogar as letras longe... é muito marcante sua
necessidade de jogar as coisas, principalmente peças dos jogos... essa
necessidade aparece também na hora do lanche quando ele esfarela todo o pão
e no parque jogando o tempo todo areia para cima... quando a gente consegue
levá-lo para a balança ele passa a jogar areia com os pés, o mesmo ele faz
quando anda chutando areia.” (Caderno de Planejamento e Registros,
professora Monica, fevereiro de 2013).
Como é possível que esse interesse tenha se transformado na sua trajetória
escolar? Como uma ação que parecia um gesto de indisciplina ou rebeldia em situações
de recusa recebeu outro significado ao final de 2014? De que forma as experiências de
lançar objetos tornaram-se interpretáveis diante dos outros? Por que é válida essa
135
afirmação de que passou a acontecer, para o Arthur, um estudo do movimento das
coisas?
Nas diversas situações de jogos, ou seja, situações em que o Arthur parecia
concentrado em algo, focado em algum projeto que lhe parecia aprazível, observou-se
que o núcleo de seu interesse se mantinha. Pensar e interpretar o movimento eram base
de quase todas as experiências que lhe despertavam atenção:
Durante a atividade diversificada, o Arthur questiona à Leticia quanto às cores
das peças, conforme vai organizando-as em sequencia: “Que cor ié iessie?" – a
Letícia vai nomeando. Tento participar do jogo: "Oi Arthur, que você tá
fazendo? Que você tá montando?" – não obtive resposta. Insisto: “É uma
escada?” – interpreto a fala do Arthur enquanto ele repete os nomes das cores,
dizendo “Pode subir... pode subir”. (Caderno de Notas 21, 31 de outubro de
2014).
(Figura I – Produção com peças de encaixe)
Tento inverter o formato das peças, depois que ele me aceita, ele recusa a
inferência “por que tem que ser assim?” Ele joga pra trás as peças que não
precisa, imito o comportamento. “Já sei! Vamos por assim” – mostro outro
jeito “Não! É assim! Assim!” – ele diz, mostrando e falando muito enfático.
(Áudio 9 e 10, 31 de outubro de 2014).
Nesse dia, o Arthur recusou quase todas as tentativas de participação no jogo.
Repetia falas ao passo em que também repetia o movimento do braço e do corpo ao
manusear as peças na direção de sua produção. À primeira vista, ainda mais quando se
tem a imagem da produção (Figura I), é que sua brincadeira é um jogo de categorização,
seriação das peças, que necessita seguir as mesmas posições. De fato, não se pode negar
essa peculiaridade do jogo dele. Mas há outra questão quando se debruça sobre o
interesse do Arthur. Além dos movimentos que ele realizava durante o direcionamento
das peças na produção, ele repetia “O azul pode subir... agora o laranja... pode subir,
pode subir...” – e assim continuava dizendo para cada peça que seriava. Da questão das
oposições e alternâncias – construir/desconstruir, ver/não-ver, colocar/tirar – emerge a
136
relação com o interesse em ver os objetos caírem: ele diz “pode subir”, mas o que sobe,
cai, tem que descer. Essa relação pode ter sua origem no vínculo que ele estabelecia
com a Letícia, que sempre brincava com ele quando lançava bolinhas de ping-pong para
o telhado e as esperava cair: “Onde está? Desceu?” – ela perguntava. (Caderno de Notas
24, 17 de novembro de 2014).
Também quando há uma negativa da parceria no jogo, quando há sua recusa,
evidencia-se uma mensagem que pode ser interpretada como “se você quer brincar,
brinca direito então”, por que, na verdade, nenhuma das inferências realizadas
aproximava-se da sua ideia de ver como as peças iam se movendo e assumindo as
posições na produção57
. As interferências apenas inseriam novas significações com
vistas a transformar um jogo que era do seu interesse genuíno em um jogo que não lhe
interessava mais. Sob essa lógica, natural que ele repelisse a parceria de alguém que não
entendia sobre o que ele realmente queria brincar.
A situação seguinte explora o movimento sob outra perspectiva:
Transcrição
Arthur: Atacaaar!
Pesq.: Oh Arthur, vai quebrar...
Arthur: çaduvadumuno ai priiiiii
Pesq.: Vai quebrar tudo se jogar pra
cima, liga, liga pra Leticia, liga, vê se
ela fala com você, liga pra ela.
Letícia: Arthur, você tá tacando no
chão é, pra quebrar?
Descrição
O Arthur monta e desmonta o telefone
na base do aparelho. Monta e
arremessa para cima, olha para a
queda do objeto preso ao fio da base.
Quando quebra ao cair no chão, ele
remonta.
O Arthur arremessa o telefone.
Ele imita o som do toque do telefone.
Letícia senta ao lado do Arthur,
enquanto ele arruma a base do
telefone que havia quebrado. Ele olha
para ela e para de jogar o aparelho. A
Leticia se distancia. Logo depois o
Arthur começa a bater o objeto na
parede, até quebrar. Ele remonta,
busca com olhares os adultos
presentes na sala e, na sequencia e
sem dizer nada, ele joga novamente o
objeto.
(Vídeos 15, 17 e 18, arquivo sala da professora Monica, 2014).
57
Hipótese da pesquisadora.
137
Nessa situação, o Arthur explora o movimento do telefone a partir dos
lançamentos realizados com auxílio do fio preso à base (conector à fonte de energia). O
interesse dele era explorar onde e como aconteciam as quedas do objeto. Num
momento, tentou lançar a base toda do telefone, mas foi acompanhando com as mãos
para que não se chocasse com tanta força ao chão, o que indica que ele sabia que era
muito pesado. Com o “gancho” do telefone, ele descobriu que poderia arremessar e
estudar onde cair. No entanto, quando o telefone caia no chão e quebrava, ele buscava
os adultos com o olhar, como quem verificava se estava sendo observado. Os vídeos
indicam, assim, que ele sabia ser um jogo proibido pelos adultos, pela possibilidade de
quebra do brinquedo, mas explorar o movimento do telefone ao ser lançado era mais
importante para ele, por isso, o jogo permanecia.
Há a hipótese de que essa brincadeira era um jogo de construção/desconstrução,
a qual se descartou quando houve o choque intencional do telefone com a parede. Ainda
que o objeto também quebrasse e viabilizasse sua remontagem, o Arthur retomou os
lançamentos e recomeçou a observação do movimento do aparelho, como quem
estudava as relações do objeto com o espaço físico. Bater o aparelho na parede não foi
suficiente para atender a esse objetivo.
Outra situação ocorre em 2014, quando a professora Monica desenvolveu com a
turma um projeto com luz e sombras. Nessas experiências, as crianças exploravam os
objetos e os projetavam para apreciar e argumentar sobre as sombras. Mas acontece que
uma sombra não é estática. As sombras têm movimento, sempre, para além do que se
propõe realizar com o objeto, por que as sombras dependem de incidência de luz e de
outros fatores externos, presentes no contexto naquele momento. O movimento das
sombras foi o que provavelmente despertou o interesse do Arthur, ainda que pudesse ter
outros fatores que lhe chamassem atenção:
“Muita alegria para mim ver o Arthur se divertindo e mostrando tudo para o
pai, brincando com as lanternas, brincando com as mãos e dizendo ao pais falas
como: olha o cachorro, olha o pato.” (Caderno de Planejamento e Registros,
professora Monica, junho de 2014).
Pesquisadora: Nas atividades com sombras você conta que o Arthur ficava
fascinado. Por que você acha que esta atividade despertava tanto o interesse
dele?
Professora Monica: “É, primeiro eu acho que a questão do movimento já
chamava a atenção pra ele, dele né, de forma geral. Então assim, no primeiro
ano eu não podia ligar o ventilador da sala... Eu não podia ligar o ventilador,
138
por que ele ficava olhando o movimento do ventilador, e depois a gente foi
conseguindo distrair e tirar, mas assim todos os brinquedos que rodavam, ele
ficava muito tempo rodando as coisas, ele gostava, então tudo que era
movimento ele gostava, prestava muita atenção. Mas eu acho que na sombra...
a questão do movimento era um motivo de chamar e o ambiente escuro,
brincar, mexia, ele percebia que ele se mexia, dava pra, ele via que ele se mexia
na parede branca, então tudo, a mão dele, ele mexia os dedos, ele se mexia pra
ver... então assim, foi um trabalho de ver, a gente fazia fantoches pra eles
poderem brincar com fantoches...” (Entrevista professora Monica, 13 de agosto
de 2015).
Aqui há destaque para o trabalho realizado e para as reflexões da professora.
Para uma criança que aprecie o estudo do movimento, um projeto com o uso de luz e
sombras é uma alternativa que atende a seu interesse genuíno. Outro fator que pode ter
despertado a atenção do Arthur é a questões dos contrastes no ambiente escuro. Quando
a professora Monica afirma que “foi um trabalho de ver”, referindo-se à apreciação, ela
valida o interesse do Arthur em explorar sua percepção acerca do mundo físico, a partir
do estudo do movimento. No primeiro trecho, destaca-se a demanda do Arthur pelos
pais, compartilhando com eles suas experiências perceptuais.
Os dois próximos trechos dizem respeito a mesma sequência de atividades: um
projeto de construções com uso do lego dacta como recurso. Nessa proposta, havia a
construção do carrinho para a posterior discussão com as crianças sobre como este se
movimentava pela rampa. O primeiro trecho ocorreu com a colaboração da professora
Lia (atendimento educacional especializado) e suas intervenções para que fosse possível
a participação do Arthur. Ele apresentava algumas dificuldades para compreender a
proposta, iniciava a seriação e a categorização das peças e acabava por não realizar as
construções, quer dizer, não participava da atividade seguindo a consigna, o que
impedia o compartilhamento de significações com o grupo e as demais crianças. Já o
segundo trecho descreve a tentativa de repetição desta experiência, mas agora sem a
intervenção direta de um adulto:
“o mais legal nesse dia foi incluir o Arthur na atividade com a ajuda da Lia que
me orientou a colocar uma imagem de um carrinho pronto para ele observar e
não dar também todas as peças do Lego e sim apenas as que foram usadas na
construção do carro e assim conseguimos com que ele montasse o seu carro e
que depois se divertisse com ele descendo a rampa milhões de vezes, não
conseguia tirá-lo da atividade tamanho foi o seu envolvimento. Essa foi a etapa
de introdução do plano inclinado.” (Caderno de Planejamento e Registros,
professora Monica, junho de 2014).
139
“Não consegui envolver o Arthur na construção... Depois durante a roda ele até
que se envolveu um pouco, mas foi difícil, pois ele só queria ficar no centro da
roda, em frente a rampa, dificultando o trabalho do grupo, foi bem cansativo
tentar fazer com que ele participasse sem atrapalhar a atividade do grupo.”
(Caderno de Planejamento e Registros, professora Monica, junho de 2014).
Logo no início do projeto, o lego despertou muito o interesse do Arthur, devido
os momentos de conferência das peças, que parte da seriação e da categorização para
reorganização do jogo. Com a intervenção da professora Lia, tornou-se possível sua
participação, mantendo seu interesse em outro foco, que não as peças “soltas”. O plano
inclinado correspondeu às expectativas do Arthur e ele pode explorar o movimento de
forma significativa, dentro de um contexto social. No primeiro trecho, todo o processo
foi compartilhado com a Lia. Ela conversava com ele, acompanhando seu interesse e
articulando-o à proposta para viabilizar sua compreensão e participação. Seguindo o
raciocínio de que o Arthur possui interesse pelo movimento, evidente que no segundo
trecho ele permaneceu em frente à rampa. Seu maior interesse não estava na proposta de
construção do carrinho, e sim no estudo do seu movimento propiciado pelo plano
inclinado. Na primeira experiência, além da participação da Lia, a rampa era explorada
apenas por ele, já na segunda vez, além de não possuir um adulto interagindo
diretamente, ele precisou dividir a rampa com outras crianças, um desafio que lhe foi
muito maior.
As situações seguintes possuem algum fundo temático o que traz a tona o
questionamento quanto ao simbolismo. A organização do espaço induz ao jogo
imaginário quando pressupõe um cenário para brincar. Contudo, o processo para o
Arthur dá-se de maneira peculiar:
Logo o Arthur começa a jogar brinquedos dentro da pia. A professora Monica
percebe muito rapidamente e me diz: “Agora acabou a brincadeira”. Pergunto
por que, e ela me explica que é por que ele começou a jogar as coisas dentro do
buraco da pia. “Agora ele não para mais” – completa. Ela intervém para não
deixá-lo entrar neste movimento. O Arthur diz: “Pode parar!” e a professora
Monica segue firme: “Não! Pode parar você!”. Então, ela sugere novos jogos.
“Vamos brincar de outra coisa?” Mas ele não aceita. Ela insiste, tenta impedir
seu movimento com o corpo, intervindo de outras formas além da verbal. Ela
vira a pia para a parede, de modo que a porta não abra mais, coloca uma
banheirinha no buraco onde era a pia: “Vamos dar banho agora”. A Eliana, que
estava perto, se interessa pela brincadeira e vem com uma boneca. O Arthur
resiste: “Onde que tá?” – questiona sobre o buraco da pia. Logo percebe e tenta
desvirar a pia da parede. A pro Monica não deixa e diz: “Vem dar banho na
boneca”. Ele resiste e responde: “George não quer dar banho!” – fala sobre si
mesmo. (Caderno de Notas 10, 05 de setembro de 2014).
140
(Figura II – Pia adaptada para crianças em madeira)
Ainda com o sorvete e o bolo de rec-rec nas mãos, o Arthur se interessa por
outro cantinho: pega um boneco McStill. Ele explora o elástico, pendurando o
boneco numa espécie de rapel entre um pilar e outro. Outras crianças gostaram
da ideia: se aproximam e penduram novos bonecos McStill, mas o Arthur só
interagia com a Letícia. Ela pendura um boneco num dos cantos do elástico,
próximo a um dos pilares de madeira. Conforme o Arthur vem batendo com o
bolo de rec-rec no fio elástico esticado, o boneco se desprende da corda e cai
numa caixa logo abaixo. Assim ele repete para si mesmo: “Muito bem,
Arthur!”. Ele repete esta sequência (pular no fio, cair na caixa, comemorar e
recomeçar) cerca de 14 vezes, solicitando a Letícia que continue colocando o
boneco de volta no fio após a queda na caixa. Ele diz: “Caiu!”. A Letícia:
“Ich!” Cada vez que o boneco cai, ele comemora. Certo momento a Letícia se
nega a por o boneco novamente no fio, então ele diz: “Põe aí!” (Caderno de
Notas 7, 23 de agosto de 2014).
Nessas situações, nota-se alguns riscos que a brincadeira “ver-cair”, ou engajar-
se no estudo do movimento dos objetos, podia assumir quando o Arthur iniciava esta
exploração sem o entendimento ou a resignificação realizados por seus pares, como
relatado na experiência com o lego, que contavam com as inferências da professora Lia.
Tanto na sequência de jogar objetos dentro da pia quanto no jogo de rapel com o boneco
McSteel, ele passou a repetir movimentos de modo obsessivo, a ponto de recusar
parcerias, já que estas não compreendiam seus objetivos durante estas atividades. Há
duas observações principais a respeito dessas brincadeiras: a primeira é que seu jogo
assumia caráter misterioso, enigmático, e a repetição assemelhava-se a subsequentes
tentativas de solucionar um problema que apenas o próprio Arthur entendia; a segunda
refere-se à natureza dessas brincadeiras, consideradas motoras e repetitivas, que são
típicas de crianças numa fase abaixo aos três anos, período classificado por Piaget como
período sensório-motor.
Ao retomar Malaguzzi (1999), compreende-se que cada criança é única em suas
particularidades e agente de suas próprias escolhas e decisões. Expressar-se por meio de
“cem linguagens” significa que há diversas experiências pelas quais cada criança
141
apreende o mundo a sua maneira. Desse modo, olhar para a brincadeira do Arthur na
tentativa de compreendê-la, não a partir de seu caráter misterioso e enigmático, mas sob
o enfoque que o próprio Arthur atribui a suas ações é privilegiar a participação dele na
construção de seu conhecimento. Para ele, essa brincadeira não é obsessiva; ela é sua
forma de solucionar um problema, ainda que o outro não o compreenda. Ela possui um
significado que já não é “estranho” quando se toma seu interesse enquanto um projeto
de estudo, projeto guia idealizado pela criança.
Quanto ao período sensório-motor de Piaget (1990), este é caracterizado pela
coordenação de sensações e experiências perceptivas a comportamentos motores. Nessa
etapa, gradativamente a criança vai reconhecendo sua existência no mundo e dando
intencionalidade a seus atos. Ela passa por subestágios em que estabelece relações
repetitivas de exploração e ensaio com o próprio corpo, depois com o corpo do outro, e
assim amplia para sua relação com os objetos. No último subestágio do período
sensório-motor, a criança já consegue reproduzir ações com objetos, utilizando para isso
a reflexão prévia, relações de causa e efeito, tentativas diversas para solucionar um
problema.
Honey et. al. (2007), em estudo sobre comportamento repetitivo e a brincadeira
em crianças com transtornos do desenvolvimento, reitera que esta atividade predomina
em crianças até os 4 anos de idade, depois tende a diminuir, enquanto em crianças com
um quadro de transtornos, esta característica se mantém pelo menos até os 8 anos. Essas
brincadeiras, no caso do Arthur, realmente possuem essas características, já que repetem
esquemas de ação, possuem seu objetivo e são intencionais. Além da faixa etária, a
diferença fundamental consiste em que, no sensório-motor, a criança faz ensaio e erro
até encontrar a solução adequada para a situação vivenciada; mas para o Arthur, parece
que há uma “certeza” sobre que esquema utilizar, pois ele repete a mesma estratégia por
diversas vezes, ainda que não alcance a solução do problema. Por isso, embora suas
brincadeiras sejam similares e condizentes com o período sensório-motor proposto por
Piaget (1990), tal enquadramento não se faz conclusivo neste estudo.
A próxima situação traz um dia bastante elucidativo quanto ao interesse do
Arthur pelo movimento:
Neste momento vem a turma do Infantil IV para a quadra e começam uma
brincadeira com tecido. Um bonecão fica no centro do tecido e as crianças,
142
segurando as pontas, contam: “um, dois, três... já!” e arremessam o bonecão
para cima. O Arthur fica olhando muito concentrado, do alto da casinha de
madeira do parque. Ficou um tempo ali, olhando ao longe, desistiu de jogar as
coisas por este tempo. Quando saímos do parque, ele foi direto junto a turma
que brincava com o tecido. Aproximou-se das outras crianças da turma de
Infantil IV. Percebeu que ainda estava com a caneca do parque na mão. A pro
Monica a pediu e volta, para guardar. Então o Arthur jogou a caneca bem alto,
muito de longe... mas a caneca cai exatamente nas mãos da pro Monica. Ele
fica tão feliz, que dá um grito maroto: “Ahhhhhh!” E vai de novo admirar a
brincadeira do tecido. (Caderno de Notas 13, 15 de setembro de 2014).
Antes do início da atividade da outra turma com tecido, ele permaneceu todo o
tempo que estava no parque arremessando objetos, até que o bonecão sendo lançado
para o alto lhe foi mais instigante. Novamente percebe-se como observar os objetos
caírem e notar seu movimento no espaço possuía um significado muito pessoal para o
Arthur. Ao final deste registro, a exatidão na cena: ao atender ao pedido da professora
Monica, ele lançou a caneca, observou seu movimento em parábola e depois ficou
nitidamente extasiado quando esta caiu exatamente nas mãos dela: “Ahhhhhh!” – ele ri,
num jogo comunicativo que ela corresponde: “Peguei Arthur!”. Aqui, é como se o jogo
houvesse atingido seu ápice, como se ele houvesse calculado o movimento com destreza
até que o objeto fosse às mãos da professora Monica.
Na trajetória escolar do Arthur, a partir de diversas situações, nota-se que,
lentamente, o ato de arremessar as coisas foi deixando de ter caráter de afrontamento e,
embora possuísse características aparentemente dissonantes do contexto social ou
mesmo apesar da tendência ao ritual de repetição, este ato passou a delinear-se de modo
mais ameno, passível de tolerância por parte do outro, por que já não parecia uma
resistência ou rebeldia e sim um desejo, um interesse genuíno. Existem alguns fatores
que podem ter levado a esse desfecho: as intervenções da professora Monica, validando
momentos em que jogar objetos eram possíveis e proibindo as situações de risco ao
inserir regras de cunho social:
“Terei também que focar meu trabalho com o Arthur, principalmente se não
vier uma auxiliar, pois mantê-lo junto ao grupo, dentro da rotina não foi muito
fácil nestes primeiros dias... Minha preocupação a princípio, além de introduzi-
lo na rotina, é de entender por que ele joga tudo o que pega, areia, jogos de
montar, lanche e como lidar com isso no grupo, para que ele pare com esse
costume ou que controle esse movimento” (Caderno de Planejamento e
Registros, professora Monica, fevereiro de 2013).
“Depois de quase dois anos de areia voando... Optei por retirá-lo do parque,
antecipando primeiramente a ele que se jogasse areia voltaria para a sala.”
143
(Questionário II, à professora Monica e auxiliar Letícia, 07 de novembro de
2014).
O trabalho da professora Lia (atendimento educacional especializado), foi
fundamental para este processo, pois dela partia a intencionalidade de significar as
ações do Arthur, em atribuir-lhes sentido social, de modo que estas fossem passíveis de
compartilhamento com o outro para além do contato físico, mas para uma interpretação
que se dá de forma intersubjetiva. Segue trecho de discussão com a professora Monica a
respeito do trabalho realizado com o Arthur:
...interromper o que é constante em seu comportamento com o cuidado de
desconstruir olhares patológicos, por exemplo, a mãe conta que em casa o
Arthur brincava com o feijão e o arroz assim como ele faz com a areia e que
outras crianças também se interessam muitas vezes por categorizar objetos,
mas não direcionamos a isso um olhar patológico. É desfocar a ideia da
diferença que pode estimular a mudança de posição dos outros com relação ao
Arthur, e isso pode ampliar seu repertório e atentar para o fato de que ele tem
outros interesses a ser explorados. (Caderno de Notas 5, 27 de junho de 2014).
O jogo “ver-cair”, aqui compreendido como um estudo do movimento a partir
das percepções do Arthur no espaço físico, pode ser analisado sob diversos enfoques: a
indisciplina e as resistências, o isolamento da criança, o caráter ritualístico e obsessivo,
as oposições, jogos de construção/desconstrução, as particularidades que se aproximam
do período sensório-motor, como já discutido, se há ou não representação e simbolismo
nessas ações etc. Para a professora Monica, percebe-se que há uma fronteira entre o ato
de jogar as coisas e a preocupação genuína com a segurança do grupo de crianças,
levantando questionamentos como: por que o Arthur possui este interesse? ou: como
lidar com as outras crianças para que entendam este comportamento do colega? e ainda:
de que modo “controlar” ou “resignificar” socialmente esta ação para o próprio Arthur?
Optou-se neste estudo por lançar um olhar para o Arthur para que ele seja visto
em sua singularidade para transformar enfoques, muitas vezes concebidos como
patológicos, em projetos de brincar, em elaborações próprias de hipóteses sobre estes
processos. Sua trajetória escolar revela – sem desconsiderar as vivências extra-escolares
– que este interesse do Arthur foi adquirindo outro sentido a partir de experiências
mediadas pelo contexto do qual participa.
144
Em muitos momentos, evidente que lançar objetos não era uma atividade lúdica,
e sim permanecia uma forma de comunicação que também pode ser compreendida
como “indisciplina”, pois o Arthur já havia construído suas formas particulares de dizer
sem palavras, de demonstrar que estava bravo ou que estava incomodado em várias
situações. Isso constituía um grande desafio de trabalho para a escola, por ser uma
criança que apresentava claras dificuldades de comunicação:
“Na sala, outra crise, jogou massinha pela sala e mais uma vez correu e
começou a gritar pelas mesas quando fui intervir. Sentei-o então na cadeira e
falei bem sério com ele e ele acabou chorando e muito, não permiti que ele
saísse por uns minutos até se acalmar um pouco. Hoje foi um dia muito
difícil!” (Caderno de Planejamento e Registros, professora Monica, agosto de
2013).
Quanto ao isolamento, Libby (1998) sustenta a ideia de que brincadeiras como
essas restringem a experiência da criança com o mundo, tanto com relação à exploração
de objetos no que tange a construção de novas representações funcionais ou capacidade
de atribuir-lhes novas significações, quanto à expansão de suas possibilidades de
interação entre pares, já que essas brincadeiras muitas vezes não são compartilhadas
pelas outras crianças. Nesse sentido, os três eixos do processo de mediação estão
interrompidos e a criança permanece isolada de seu contexto: não há mediação sujeito-
sujeito por que não há vínculo com o outro, não há no eixo sujeito-objeto por que este
nem sempre é utilizado em sua função social, nem no eixo sujeito-cultura, já que não há
uma linguagem que sustente uma relação significada com o mundo.
Há a possibilidade de um jogo como esse, analisado nessa categoria, aprisionar a
criança em si mesma, em um mundo que parece sem acesso aos outros. Talvez haja a
dificuldade de entendimento dos significados que o Arthur atribui a sua brincadeira e
por isso não haja compartilhamento de significações por que ele dispensa uma parceria
que não lhe parece produtiva. Duda e Eliana, por exemplo, demonstraram não entender
o jogo de lançar as bolinhas para o telhado e esperar que elas caíssem... (Caderno de
Notas 24, 17 de novembro de 2014). Fundamental observar a criança para encontrar
pequenas brechas onde o compartilhamento se torne possível e, a partir deste, propor
novas parcerias, ampliando seu repertório de significações. Certo dia, no escorregador
do parque, seu interesse era ver descer as pedrinhas que eram jogadas do alto. Logo
outras crianças interessaram-se pelo jogo, aproximaram-se, também observavam,
145
dialogavam, riam juntas e, ainda que não haja respaldo suficiente para argumentar sobre
essa interação entre as crianças, daqui se extrai que este jogo não é tão patológico assim,
visto que outros se interessam, como afirma o Gustavo: “Eu já fiz esta brincadeira na
casa da minha avó...”.
Neste estudo, optou-se por uma hipótese em que há uma preferência pela
credibilidade na brincadeira da criança, pensando de modo que seu jogo deixe de ser
estranho e passe a ter significado num contexto. A brincadeira deve ser concebida como
um fenômeno complexo, carregada de interesses intrínsecos da criança, de suas
peculiaridades físicas e escolhas, mas também de elementos sociais e culturais. Nos
casos de crianças com transtornos de desenvolvimento, a atividade lúdica requer uma
abordagem mais integrada, coerente com a infância, menos biologizante ou
medicalizada. Se o jogo se desenvolve na interação entre pares, já não importa se este
segue padrões ou regras específicas, desde que seja passível de compartilhamento com o
outro. Para Corsaro (1989), é mediante a interação entre pares que as crianças aprendem
como podem negociar vínculos sociais e adequar suas necessidades particulares às
exigências do contexto.
Necessário, contudo, pontuar que, embora esteja sendo dada credibilidade à
criança quanto ao seu potencial de experiência com o mundo, ao tomar a perspectiva
teórica deste estudo para análise desta forma de brincadeira – “ver-cair”, o estudo do
movimento – esta nunca poderia ser vista como simbólica. Isso por que a exploração do
movimento, ou qualquer outro jogo de natureza que se aproxime do período sensório-
motor de Piaget, não é considerado jogo para Elkonin e seus colaboradores:
a nossa visão do jogo como forma peculiar da atividade infantil, cujo objeto é o
adulto – sua atividade e o sistema de suas relações com as outras pessoas...
Assim, a base do jogo protagonizado em forma evoluída não é o objeto, nem o
seu uso, nem a mudança de objeto que o homem possa fazer, mas as relações
que as pessoas estabelecem mediante as suas ações com os objetos; não é a
relação homem-objeto, mas a relação homem-homem (ELKONIN, 1998, p.34).
Já sabemos como o brinquedo aparece na criança em idade pré-escolar. Ela
surge a partir de sua necessidade de agir em relação não apenas ao mundo dos
objetos diretamente acessíveis a ela, mas também em relação ao mundo mais
amplo dos adultos. Uma necessidade de agir como um adulto surge na criança,
isto é, de agir de maneira que lhe disseram, e assim por diante. (LEONTIEV,
1988, p. 125).
146
Ainda que o Arthur se utilize de objetos para estudar o movimento e explorar o
espaço físico, não há uma necessidade de agir como um adulto. Embora seja possível
atribuir alguns significados a suas brincadeiras, como os lançamentos que realizou com
o telefone para atingir determinado ponto, seus interesses permanecem motores, além de
repetitivos. Como já destacado, há um interesse genuíno do Arthur em brincar, mas este
não pode ser considerado como motivação, posto que este termo, concebido conforme a
atividade principal da criança, é proveniente da necessidade de interpretar o mundo
adulto, o que não se concretiza na atividade lúdica do Arthur. É nesse contexto que
emergiria a situação imaginária:
Na brincadeira, a criança cria uma situação imaginária. Parece-me que é esse o
critério que deve ser adotado para distinguir a atividade de brincar dentro do
grupo geral de outras formas de atividade da criança. Isso torna-se possível em
razão da divergência, que surge na idade pré-escolar, entre o campo visual e o
semântico. (VYGOTSKI, 2008, p. 26).
Nessa categoria de análise, constatou-se que, como não há nessa brincadeira do
Arthur a necessidade de agir como adulto, não há a motivação que o oriente a adentrar o
jogo como atividade principal. A situação imaginária é interpretada como a situação em
que se representa, mentalmente, as relações humanas. Se o Arthur permanece repetindo
ações entre subir, cair, lançar, derrubar, observar onde o objeto para no espaço, entre
outras, não há nenhuma ação que traduza uma necessidade de representar a realidade
mediante a situação imaginária. O que acontece é, no máximo, uma representação
mental da própria situação que está vivenciando, isto é, a construção de esquemas que
lhe permitam manusear sua própria experiência.
147
2. IMITAR AÇÕES, ASSUMIR PAPÉIS: A AUSÊNCIA DE ENREDOS
Eu vou ligar pra vovó pig... vovó pig falando. Alô? Alô? – repete em
tom ecolálico, como no desenho Peppa Pig. Priiiimmmm... Quem é? –
pesquisadora tenta iniciar um enredo. Eu vou ligar pra vovó pig... – Arthur
reinicia a brincadeira.
--- Trecho sobre o jogo com telefones
Com base nos parâmetros diagnósticos que definem os quadros dos transtornos
do desenvolvimento, difundiu-se a ideia de que há uma lacuna na evolução da
brincadeira dessas crianças, principalmente quando se concebem os casos de autismo.
Utilizando-se das premissas apontadas nos trabalho de Piaget (1990), postula-se um
déficit na capacidade de simbolização, ao imaginar e criar cenas de brincadeiras. Jarrold
(2003), em uma revisão sobre as pesquisas acerca dessa temática, conclui que os
diversos achados apontam a ausência de espontaneidade no engajamento em jogos de
natureza simbólica, sendo que essas crianças demonstram características próprias e
envolvem-se nessas atividades lúdicas apenas sob certas circunstâncias.
Nessa categoria de análise, explicita-se toda característica do jogo do Arthur que
possa ser interpretada como ação simbólica. O que foi observado sobre o jogo que o
Arthur fazia espontaneamente? O que ele fazia sob certas circunstâncias? Que
circunstâncias eram essas? A presente discussão tece um diálogo que perpassa a
imitação de ações, no que se refere ao uso funcional de objetos, à substituição destes –
atribuindo novos sentidos a eles – e à abstração total, até abarcar situações em que haja
a submissão a papéis, considerando a flexibilidade no uso de informações, a repetição
ou continuidade de cenas na brincadeira e a possibilidade de criação de enredos. Ao dar
visibilidade ao jogo do Arthur, buscou-se compreender como ele brinca e, ao verificar a
ausência de enredos, fez-se necessário concluir com uma reflexão sobre as influências
da linguagem verbal e do protagonismo da criança para que o jogo se torne cada vez
mais complexo.
Quanto à imitação de ações, os três primeiros trechos trazem o envolvimento do
Arthur em situações de brincadeira em que isso ocorreu. Em primeiro momento, para
todas essas ações, é possível questionar se foram ensinadas ou se partem da própria
percepção do Arthur acerca do mundo em que vive:
148
A Letícia coloca uma “bola” no sorvete de brinquedo em miniatura. O Arthur
dá uma lambida e diz “Hum, delicioso” depois sai correndo. Ao meu lado, ele
grita “Sorvete!” Repete várias vezes “sorvete, sorvete”. Sentam no banco, num
gesto oferece o sorvete para a Leticia como quem diz “quer um pouco?” ela
aceita também gestualmente, dá uma lambidinha no sorvete. Ele sorri, balança
bastante as mãos alegremente, depois levanta e se afasta. (Caderno de Notas 7,
23 de agosto de 2014).
Olha-se no espelho, passa o pente no cabelo. Com um secador, fingiu secar o
cabelo da pro. Ficava cantando em frente ao espelho, se via de lado como quem
faz pose. Ele imita o jogo da pro, mas não faz alusão às personagens citadas,
fica repetindo a imitação da ação. Também ficou me rodeando com dois
secadores de cabelo. Simulava o vento do secador. “To pintando” – ele diz – “e
agora tô secando” – enquanto sopra perto do secador. “Nossa, como você tem
cabelo!” – ele diz para a professora. Então ela completa: “Deixa eu ver se eu
fiquei bonita”. Ele coloca o espelho na frente dela e exclama: “Nossa! Como
ficou bonita!” (Caderno de Notas 9, 30 de agosto de 2014).
No parque ele inicia: “Atchim!” Letícia comenta sorrindo: “Ele finge que está
espirrando”. “Atchim!” – ela repete com ele. Depois segue: “Saúde” –
responde Leticia. (Caderno de Notas 20, 20 de outubro de 2014).
No primeiro trecho, considera-se a possibilidade do Arthur ter aprendido a
brincadeira com outra criança, com algum familiar ou em qualquer outro contexto do
qual participava. Isso por que, no caso do secador de cabelos, por exemplo, descartou-se
a hipótese da professora tê-lo ensinado, já que a professora Monica tem cabelo curto,
negou tal intervenção e o mesmo ocorreu com a professora substituta, que participava
do jogo naquela ocasião. Segundo a Letícia, auxiliar em educação, ele pode ter
aprendido a imitar a ação do secador – soprando para simular a saída do vento – no
âmbito familiar: “Não sei... talvez a mãe dele seque o cabelo com o secador” – ela
afirmou. Outra hipótese parte de sua própria leitura de mundo: por que não ter
aprendido essa forma de brincar sozinho? Por que não dizer que ele criou a “técnica” de
soprar o vento?
No segundo trecho, com os sorvetes, a presença das miniaturas pode ter induzido
o comportamento para o jogo de imitação (ELKONIN, 1998). A cena compartilhada
com a Letícia, muito simples, repetiu-se algumas vezes, de modo bastante prazeroso
para a criança, numa troca em que houve parceria e vínculo de afeto entre eles. Talvez o
jogo fosse ensinado pela própria Letícia, num processo que pode ter ocorrido até mesmo
sem intencionalidade e a percepção da educadora não foi suficiente para uma reflexão
mais apurada sobre os processos que ocorriam com o Arthur. Nas duas situações
exploradas, não foi observado um diálogo entre eles que sustentasse uma história.
149
O mesmo se pode dizer sobre a situação no parque e a imitação dos espirros,
num jogo em que se evidenciou a intenção lúdica mais no aguardo da resposta da
Letícia do que no imaginário sobre uma vivência. Foi uma situação de brincadeira que
em que ele imitou a ação de espirrar, mas quase que “preso” à relação existente entre o
ato de espirrar e sua resposta imediata, dizer “saúde”, repetindo-as várias vezes, sem
articular uma história que sustentasse essas ações. Não foi possível ter certeza se ele
assumia o papel de doente, já que não se autodenomina assim.
O que se pretende destacar no início da análise dessa categoria é que, sendo estas
ações ensinadas ou não, por imitação, com apoio de intervenções das mais variadas,
como a oferta de miniaturas ou o incentivo a novas parcerias, essas foram ações
possíveis para o Arthur, ou seja, faziam parte de seu repertório lúdico, enquanto modos
prazerosos de brincar. Observou-se riqueza de detalhes em sua brincadeira, de forma
espontânea e natural, no sentido de que partiam da intencionalidade da criança, ainda
que não houvesse uma história ou enredo que organizasse o jogo. Assim, é possível
afirmar que o Arthur também brinca a partir de elementos tomados do real, do acesso
que possui a referências que são culturais (VYGOTSKI, 1986), realizando leituras
próprias do contexto em que vive.
Durante essa investigação, constatou-se que a habilidade de imitação do Arthur
possibilitava a ampliação de seu repertório lúdico a partir de dois enfoques principais:
imitar articulava-se à aprendizagem quanto ao uso funcional dos objetos ou novos
brinquedos e imitar também possibilitava a atribuição de novos significados aos objetos
durante o jogo. Para Elkonin (1998),
O desenvolvimento das ações com os objetos é o processo de sua
aprendizagem sob a direção imediata dos adultos. Ao examinar esse
desenvolvimento, tem-se em conta todas as ações com objetos, ou seja, tanto a
assimilação das habituais (com a xícara, a colher etc.) quanto das lúdicas (com
brinquedos que, nas primeiras fases de desenvolvimento, se manifestam tal
qual os objetos). (ELKONIN, 1998, p. 216).
Pensando o primeiro enfoque – o desenvolvimento do Arthur quanto à imitação
e à aprendizagem do uso social de objetos ou novos brinquedos –, as situações a seguir,
muito similares entre si, retratam a função social que o jogo assumia quando ele já havia
se apropriado de repertório suficiente para a brincadeira:
150
Transcrição
Arthur: “Brummm brummm.”
Descrição
No papel pardo, havia uma cidade
desenhada, representando pistas para
os carros, estacionamentos,
construções, parques...
O Arthur circula com os carrinhos nas
pistas desenhas.
Ele imita o som dos carros.
(Vídeo 13, arquivo sala da professora Monica, 2014).
No tapete que simula pistas com carrinhos, o Arthur imita a ação de andar do
carro. “Brum” – ele diz. Havia também um posto de gasolina de madeira, que
foi por ele explorado: colocando a cabeça dentro dos buracos e espiando dos
outros lados. Também se interessou pelos cordões, balançava dois abastedores
e rodava num movimento similar a um jogo com barangandã. (Caderno de
Notas 2, 13 de junho de 2014).
(Figura III – Carrinhos em madeira e posto de gasolina)
De acordo com a obra de Elkonin (1998), as primeiras significações são
fornecidas pelos adultos ao apresentar os brinquedos e as formas de manuseá-los. Nesse
contexto, o carrinho era um brinquedo socialmente mais acessível, o que ampliava as
possibilidades de interação do Arthur e suas aprendizagens. Quando houve a tentativa
de brincar com o posto, como era um material com o uso não totalmente apropriado, sua
compreensão ainda se situou na exploração, mediante as percepções físicas. Isso indica
que ele já havia construído o repertório de brincar funcional com o carrinho, mas não
com o posto. Além disso, brincar com o posto parecia lhe exigir maior complexidade na
coordenação de diferentes ações: não era só imitar o andar ou correr do carro, mas
também imitar suas ações em relação à função do posto de gasolina, como abastecer e
lavar o carro ou subir nas rampas para troca de óleo.
Outro aspecto refere-se à natureza da atividade lúdica do Arthur: brincar com o
carrinho constituía uma ação que podia ou não se tornar repetitiva. Com o posto, como
ele ainda não havia se apropriado de um repertório de ações lúdicas, não foi possível
151
registrar ações repetitivas e sim apenas movimentos de caráter exploratório. Houve a
exploração do brinquedo e logo depois a perda de interesse. Tanto com os carrinhos
quanto com o posto, a exploração dos objetos, com ou sem uso funcional, possilitou a
ampliação de um repertório para brincar, mas não se verificou o engajamento numa
atividade que tivesse como base um argumento, um diálogo ou uma história contada.
No que se refere ao segundo enfoque citado – a imitação em sua potencialidade
para favorecer a substituição de objetos – nas duas situações seguintes, há a atribuição
de novo sentido lúdico às peças de lego e à raquete, que se transformam em telefones
durante o jogo:
“Trimmmmm” – eu dizia e a Letícia atendia. “Não!” – falava o Arthur, quase
que automaticamente, mas ria do nosso jogo. A Letícia oferece pra ele:
“Atende o telefone. Tá tocando!” Depois do jogo ficou tão feliz que saiu
falando: “Olha lá, pessoal!” (Caderno de Notas 26, 28 de novembro de 2014).
(Figura IV – Telefones de lego da pesquisadora)
(Figura V – Telefone de lego do Arthur)
Transcrição
Arthur: “Eu vou ligar pra vovó pig...
Vovó pig falando! Alô? Alô” – repete
em tom ecolálico, imitando também
os sons da música tema de abertura
do desenho Peppa Pig.
Pesq.: “Quem é?”
Arthur: “Eu vou ligar pra vovó pig...
Vovó pig falando! Alô? Alô” – ele
reinicia o jogo.
Pesq.: “Pirrrrimmm”
Arthur: “Ta ta ta tata ta”
Pesq.: “Priii”
Arthur: “Vai...”
Pesq.: “Alô?”
Descrição
Com uma raquete de plástico,
utilizada para jogo de tênis, na mão
direita, o Arthur simula um telefone
ao falar.
Pesquisadora tenta participar do jogo
apenas verbalmente, sem nenhum
objeto na mão. O Arthur não
responde, continua as mesmas falas
anteriores.
Pesquisadora imita o som do toque do
telefone.
Arthur imita o som do teclado do
telefone. Finge pressionar algo na
raquete enquanto emite os sons.
Quando a pesquisadora diz “alô”, ele
reinicia o jogo.
152
Arthur: “Não deixe cair a raquete!
Não deixe cair...”
Pesq.: “Deixa eu ligar pra essa vovó,
Pig aqui, deixa eu ligar, deixa...”
Pesq.: “Oh Arthur, que você tá
brincando?”
Pesq.: “Arthu-ur... que brincadeira é
agora?”
Arthur: “Ahhhh!”
Arthur se afasta, circula batendo a
raquete pelas plantas no jardim ou no
banco de concreto.
Pesquisadora insiste na brincadeira. O
Arthur grita “Ah!”, enquanto balança
as mãos, ainda com a raquete.
(Vídeo 27, arquivo sala da professora Monica, 2014).
(Figura VI – Raquete com função de telefone)
No primeiro trecho, destaca-se o potencial da criança para a construção de
elaborações próprias e interpretações da realidade, e sua intencionalidade nas escolhas
por brincadeiras. Antes do início do jogo, o Arthur não se interessava pelas propostas na
sala, mesmo com as ofertas da Letícia, auxiliar em educação, que trouxe o jogo de
casinha ou a leitura de livros, ambos rejeitados por ele. Então a pesquisadora utilizou
uma peça de lego para simular um telefone e iniciou um jogo com a Letícia, a fim de
despertar a atenção da criança sem realizar pedidos diretos. Rapidamente ele se
interessou e entrou no jogo. O Arthur aceitou a peça de lego, criação da pesquisadora,
como objeto substitutivo do telefone. Depois criou seu próprio telefone, a sua
interpretação, montando uma torre de lego. As teclas do telefone – similares aos pinos
presentes nas peças de lego – foram por ele imaginadas na montagem, por que ele optou
por utilizar as laterais para discagem. Aqui se evidenciava a imitação da ação de
telefonar, ao realizar a substituição e abstração de objetos conforme o interesse da
criança na manutenção do jogo. Houve dimensão criativa do Arthur nesse ato e prazer
durante a atividade: “Olha lá, pessoal!” – ele dizia, como quem conta suas conquistas.
A capacidade de substituir objetos, ou mesmo abstraí-los, aparece nos dois
trechos citados. Nas situações anteriores, discutiu-se o uso funcional de brinquedos que
já estão simbolizados, provenientes do universo adulto. No caso dos telefones, além da
153
substituição de objetos, similares e dissimilares58
com relação à proposta de
representação, houve a dimensão criativa da criança, com a abstração das teclas que têm
como função a discagem no aparelho telefônico. Observou-se essa capacidade do Arthur
em maior ou menor grau, de acordo com sua intencionalidade no jogo, tal como
acontece com as crianças de desenvolvimento típico. O que se configurou como
diferença peculiar foi certa imobilidade na função do objeto, quer dizer, quando lhe era
atribuída uma função, essa assim permanecia até o final do jogo. Isso destoa da
brincadeira que, no auge do jogo simbólico, demonstra crianças capazes de atribuir
diferentes funções a um mesmo objeto de forma bastante dinâmica. No Arthur, essa
característica não foi observada nenhuma vez, ao contrário, sua forma de brincar
demonstrava certa rigidez, como se a função atribuída ao objeto se cristalizasse e fosse
possível brincar apenas daquela maneira, impossibilitando a construção de novos
sentidos lúdicos no decorrer do jogo, ao mesmo tempo em que diálogos ou histórias
pudessem sustentar cenas para brincar. Ao final do vídeo transcrito, nota-se que a
raquete assumiu novamente sua função social, como raquete, inclusive sendo assim
nomeada pela própria criança, mas não lhe foi atribuído nenhum outro sentido lúdico
além de telefone.
Atribuir novos sentidos aos objetos associa-se à criação de enredos (ELKONIN,
1998), por que, conforme a criança vai contando histórias, ela necessita que os objetos
ali disponibilizados para brincar sejam suficientes para sustentar suas ações e assim
subsidiar seus enredos. Por isso, um mesmo objeto pode ganhar inúmeros sentidos
lúdicos durante um único jogo. O segundo trecho citado demonstra tentativas da
pesquisadora para a participação na brincadeira, incentivando-o a seguir um enredo, o
que faz com que o Arthur logo reinicie a atividade completa. É como se as intervenções
externas disparassem uma repetição do jogo, embora não seja possível afirmar se isso
ocorre pela perda de concentração da criança e posterior reorganização de sua própria
atividade ou mesmo se a criança não compreende a proposta iniciada pela parceria. De
qualquer modo, constatou-se que um diálogo ou uma história criada e recriada na
relação entre um e outro, não se efetivou e a imitação de ações tornou-se reiterada e
58
Na substituição de objetos similares, o objeto é substituído por outro que remete à função social do
objeto a ser representado, como no caso de uma caneta que passa a ser utilizada para representar uma
faca. Na situação primeira analisada, a peça de lego é utilizada com telefone. Na substituição de objetos
dissimilares, a criança utiliza um objeto que não remete à função do objeto a ser representado, como uma
caneta simulando um copo de suco. Na segunda situação descrita, a raquete é utilizada como telefone.
154
permaneceu como centro da atividade lúdica do Arthur. Mesmo a partir do desenho da
Peppa Pig, que possui uma história, esse entrelaçamento de informações pareceu não se
instaurar. O Arthur apenas repetia um trecho de cena – o telefonema – sem se inserir na
trama, sem dar a ela os traços de sua individualidade. Houve somente uma cópia de
ações, sem dimensão de criação quando se apontava para a história do desenho. Ainda
que houvesse diversas elaborações da criança ao brincar com o objeto, as falas que
acompanhavam suas ações permaneciam as mesmas e houve um disparador dessa
repetição de ações quando se deu a tentativa por parte de um parceiro de inserir novos
elementos na trama. Tal característica do jogo do Arthur é, no mínimo, intrigante.
Esses dois enfoques abordados – o uso funcional de objetos e a possibilidade de
substituição e abstração destes – explicitam a importância da imitação para que seja
possível ampliar o repertório lúdico do Arthur por que incidem em sua zona de
desenvolvimento potencial (ZDP). Elkonin (1998) explica este processo:
Sem negar que a criança possa descobrir as funções de objetos soltos, ao
cumprir por sua própria conta tarefas que exigem e emprego de instrumentos,
consideramos não ser essa, no entanto, a forma fundamental. A forma
fundamental é a de atuarem em conjunto crianças e adultos a fim de,
paulatinamente, estes transmitirem àquelas os modos planejados pela sociedade
para utilizar os objetos. Nesse trabalho conjunto, os adultos organizam em
conformidade com um modelo as ações da criança, e em seguida estimulam e
controlam a evolução de sua formação e execução. (ELKONIN, 1998, p. 217).
Pode-se dizer que a imitação possui dupla atuação na ZDP: primeiro por que
amplia as possibilidades de atuação da criança, isto é, durante os processos imitativos há
aprendizagem de novos modelos que fazem parte do patrimônio cultural; e segundo por
que imitar pode provocar a inserção de marcas pessoais nas ações, tal como um bebê
que imita o ato de bater palmas mesmo quando o outro bate com as mãos nas pernas ou
em algum objeto, quer dizer, quando imita o “esquema de ação” (PIAGET, 1990), não
faz exatamente uma cópia do modelo observado. O curioso desse processo, no caso do
Arthur, é que há dificuldade da criança em inserir suas interpretações, isto é, nem
sempre há clareza se ele realiza uma imitação com resignificação do ato e inserção de
suas marcas pessoais, ou se há a mera cópia do que lhe foi demonstrado. Libby (1997)
também traz esta ideia em seu estudo:
A imitação provavelmente tem uma função no desenvolvimento do jogo de
papéis, trazendo a ZDP e possibilitando à criança internalizar e generalizar
155
habilidades. Mas isso provavelmente não ocorre se a criança está simplesmente
copiando as ações de outra pessoa. (LIBBY, 1997, p. 376, trad. livre).
Para Vygotski (1997, 2008), a criança, ao brincar, está em ZDP por que ela age
para além do que é seu nível de desenvolvimento real: ao imitar ações do repertório do
mundo adulto, ela age além do que lhe é esperado. Mas no caso do Arthur, não parecia
que ele estava motivado a agir como adulto e sim que exercia a pura cópia dos mesmos
atos. Os adultos agem de diferentes formas com os objetos, em situações que são
contextuais. O Arthur repetia uma única ação, mesmo quando havia a tentativa de um
parceiro mais experiente em ampliar suas possibilidades.
Desse modo, nas situações apresentadas de jogo de telefones, questiona-se até
que ponto houve interpretação ou cópia do Arthur durante suas experiências. Quando
houve uma cristalização do sentido atribuído ao objeto, em sua função social ou em
qualquer substituição que ele tenha realizado, por conta própria ou por apresentação de
outro parceiro, há um indício de que esta ação não pode ser resignificada culturalmente
por ele, já que permaneceu cristalizada no mesmo sentido atribuído pela primeira vez.
Portanto, a primeira situação relatada parece ter incidido em sua ZDP mais que na
segunda, posto que na primeira verificou-se dimensão criativa da criança, o que já não
se pode afirmar a respeito da segunda situação.
Quanto a assumir papéis, observaram-se momentos em que o grupo de crianças e
educadores o nomeavam como personagem. Essas situações ocorreram principalmente
em dramatizações e em circunstâncias de um jogo estruturado:
Na subdivisão em papéis, a professora usa as plaquinhas, questionando as
crianças o que querem ser. O Arthur não escolhe seu personagem. Tenho a
impressão que lhe parece sem sentido o processo de escolha. (...) No hospital, o
Arthur deitou no colchão que representava a maca, no chão, levantou a blusa
para o exame de pulmão e coração, ficou esperando o Hugo, que era o médico.
“Pronto, acabou!” – o Hugo diz. Então o Arthur levanta da maca e puxa a prô
Monica pelo braço: “Vem Monca!” – ele a chama. Ela participa sorrindo. Ele
repete o mesmo jogo, agora como médico, examina a prô Monica, dá injeção
nela, explora os instrumentos, fazendo dela paciente. “Que dente lindo! Muito
bem!” – ele repete. (...) Também brincou imitando a ação de médico com a
boneca Monica. Tento ser mãe, ele disfarça, parece não entender, se afasta e
vai para o consultório ao lado com a boneca. Insisto na personagem mais uma
vez. Ele coloca os óculos em mim: “Sou o médico?” – pergunto. “Põe o
óculos” – ele responde. “Não! Eu quero ser a mãe! Não chora minha filhinha!”
– continuo dizendo para a boneca Monica. Ele se afasta, agora em direção à
sala de aula, mais longe. Quando ele retorna, peço pra Leticia tentar inserir o
personagem a sua maneira: “Dr. Arthur? Tá bem, meu neném?” – ela pergunta
– “Dr., minha filha está boa? Ela tá com febre?” – mas ele parece não entender,
156
desiste da boa e passa a brincar com a Letícia, colocando-a no papel de
paciente. (Caderno de Notas 18, 10 de outubro de 2014).
“...mais importante, divertiram-se muito também. Ah! Não só ele, eu também,
como paciente sendo examinada pelo Arthur, deitada no colchão...” (Caderno
de Planejamento e Registros, professora Monica, outubro de 2014).
Brincadeira estruturada com tema de restaurante. Cantinhos: salão de jantar,
caixas para pagamento, cozinha com lava-louças, cozinha para confecção de
massa na bancada, bar de sucos e bebidas, bancada de aventais, cardápios,
blocos de anotações. O Arthur primeiro ficou vendo o preparo da massa junto à
professora Carol, depois sentou à mesa para brincar. As crianças e adultos o
nomeavam como cliente, embora não transparecesse em suas ações e falas algo
que indicasse essa intencionalidade. Sentado junto à mesa, o Arthur pega a sua
massa, faz o formato de pizza, põe no prato e coloca cat chup e mostarda. “Cat
chup? Qui ié isso?” – ele diz. Depois, olhando no cardápio, ele repete
“Refrigerante” – e imita o comportamento leitor, seguindo com os dedos. “Já
escolheu?” – questiona a Letícia. (Caderno de Notas 12, 12 de setembro de
2014).
Nessas situações de brincadeira de hospital e de restaurante, o primeiro ponto de
destaque refere-se ao potencial para aparecimento do papel ou, melhor expressado para
fins desse estudo, à interpretação dos outros quanto à representação pelo Arthur de um
personagem, já que ele não se autodenomina assim. De fato, os trechos evidenciam
certo envolvimento do Arthur com um jogo que é coletivo, compartilhando-o ora com
adultos, ora com as outras crianças, com ou sem a participação da Letícia ou da
professora Monica. Essa possibilidade aconteceu apenas nas situações em que havia um
diferencial quanto à organização do espaço. Essas brincadeiras estruturadas pelo grupo
de educadores da escola possuíam algumas etapas: as escolhas dos temas e personagens
pelos participantes, a preparação do local para brincar junto com as crianças, a prévia
seleção e organização dos recursos utilizados, a reorganização do espaço para que um
próximo grupo pudesse brincar.
Na análise desse potencial para assumir um papel, ainda que dependente da
interpretação do outro, constata-se que isto aconteceu apenas sob essa circunstância,
assegurando a hipótese de que a brincadeira estruturada viabiliza sua participação, tal
como defendido por Jarrold (2003). Para o autor, surgem essas possibilidades quando a
criança é encorajada a brincar a partir de alguns aspectos, como incentivar as parcerias,
a imitação de ações próprias de algum personagem e as experimentações dos recursos
ofertados em espaços estruturados.
Esses três aspectos pontuados (Ibid.) estão presentes nos trechos descritos acima.
Quanto às parcerias, fácil notar o envolvimento do Arthur tanto com o Hugo quanto
157
com as professoras. Ele percebe e aceita que a brincadeira de hospital precisa de ao
menos um parceiro – se é médico ou paciente – para que haja exploração dos objetos,
recursos ali disponíveis. No que se refere à imitação de ações, há objetos miniatura
sendo utilizados em sua função social e substituição de objetos similares à função
necessária para a brincadeira. Isso ocorreu por que as situações estavam previamente
estruturadas por adultos e esses recursos, desse modo, já estavam ali simbolizados. Não
que a substituição de objetos dissimilares e/ou sua total abstração não sejam
possibilidades para o Arthur – essas foram as características abordadas na argumentação
anterior –, mas neste contexto de jogo estruturado, substituir objetos ou abstraí-los
tornou-se desnecessário, isto é, a brincadeira não dependia dessas qualidades. E no
terceiro aspecto, as experimentações dos recursos ofertados, estas aconteciam
espontaneamente para o Arthur, em parte devido ao trabalho desenvolvido em sua
trajetória escolar.
Um ponto requer cuidado especial sobre as possibilidades do Arthur em assumir
um papel, por que toda cena transcorre sem enredo. Retomando a discussão realizada a
respeito da aparente cristalização do sentido lúdico atribuído ao objeto, constatou-se que
o mesmo ocorre para a imitação de ações. Durante a brincadeira, há uma relação
intrínseca entre o sentido lúdico do objeto e a ação que a criança executa. A raquete
utilizada como telefone estava inerentemente vinculada à ação de telefonar. Se há uma
cristalização na função de objeto, há também uma cristalização na ação que dele
depende e vice-versa. Se a cena transcorre sem enredo, isso significa que não são dados
novos sentidos lúdicos aos mesmos objetos e nem as ações transformam-se e
interligam-se durante o jogo.
Segundo Elkonin (1998), há uma fase do desenvolvimento do jogo em que as
“ações repetem-se muitas vezes com um mesmo objeto... sem mudar de conteúdo” (p.
228), seguida de outra fase em que “o jogo consiste já em duas ou várias ações
elementares sem vinculação nenhuma” (Ibid.). Mas o salto de complexidade ocorre
quando tais ações passam a formar “uma concatenação lógica transcorrida num só ato
complexo” (Ibid.). Cada ação realizada pela criança precisa ter sua continuação lógica
em outra ação que substitui a primeira e, conforme o jogo se desenvolve, estas relações
se tornam cada vez mais complexas e os sentidos atribuídos aos objetos diversificam-se
cada vez mais.
158
Nas situações apresentadas na demonstração do jogo do Arthur, há a imitação
das ações, mas não há um fio, uma lógica que conduza a brincadeira, e as ações com os
objetos permanecem presas a uma repetição de regras elementares. Outra característica
decorrente deste raciocínio é que, embora ele seja nomeado pelos outros como cliente
no restaurante e como médico no hospital, não se ilumina em suas ações a submissão ao
papel, que está apenas potencialmente representado. Ainda que ele fale, em suas falas
não houve autodenominação, nem enredo que evidencie sua intenção em assumir um
papel. Uma primeira evidencia de que isso não ocorre é o próprio processo de escolha
de personagens no início das propostas: o Arthur não participou nenhuma vez por que
não lhe foi possível realizar uma escolha, não lhe era acessível a significação daquele
momento de modo que viabilizasse uma escolha consciente. Tal hipótese torna-se muito
coerente quando há a tentativa de inserção de outros personagens na trama, como no
caso da mamãe preocupada com a filha doente. A inserção desse terceiro personagem
parece perturbadora para o Arthur, já que ele não consegue aceitar e compartilhar o
jogo, nem compreender a proposta. A presença de outro personagem ultrapassa a
imitação das ações, ela requer transformações entre significados, requer a substituição
de uma ideia por outra, de uma ação por outra, interligadas com um sentido lógico para
que se configure uma relação entre personagens para além de uma relação binária. A
entrada de um terceiro personagem necessita a coordenação de informações, na
construção de enredos que se transformam, por que dependem da interpretação e
reinterpretação desses parceiros de forma viva. No caso do jogo do Arthur, a ação
apresentava-se cristalizada e a partir do momento em que ele assumia determinada
função no jogo, era como se não pudesse assumir outras, como se não fosse possível
modificar seu significado e assim ele permanecia até o final da brincadeira.
Libby et. al. (1997) também notam esse ponto em seu estudo:
...enquanto essas crianças parecem capazes de imitar papéis, eles permanecem
num nível em que há a cópia dos comportamentos no lugar de uma imitação
com completo entendimento das ações que estão sendo produzidas. (LIBBY,
1997, p. 376, trad. livre).
Para esses autores, o engajamento em jogos repetitivos, ainda que de aparente
natureza simbólica, como imitar as mesmas ações reiteradas vezes durante situações de
brincadeira, estão diretamente correlacionados a essa lacuna no desenvolvimento do
159
jogo simbólico. Nessa argumentação quanto à estruturação do espaço para viabilizar a
brincadeira, salienta-se o cuidado ao nomear a “imitação de ações” ali realizadas como
“imitação de papéis”. Assumir um papel depende da consciência da criança, de sua
intencionalidade, e não apenas da interpretação dos outros participantes acerca dessa
função. Nas situações descritas para análise, há uma interpretação do grupo de crianças
e dos educadores a respeito de personagens que se alicerça na força imposta pela
estruturação do espaço no transcorrer da atividade lúdica, mas um olhar mais cuidadoso
constata a permanência da imitação de ações reiteradas vezes, ainda que num repertório
amplo, bem como a ausência da representação de um papel genuíno, que parte da
motivação e entendimento da criança, já que isso exige que aquele repertório de ações
seja, de algum modo, composto por ações conectadas entre si. De acordo com Elkonin
(1998), o jogo não pode ser examinado a partir das ações lúdicas, mas sim pelo papel
assumido pela criança. É o papel que determina o conjunto de ações realizadas durante a
situação imaginária. “Imitar a realidade não significa copiá-la, mas interpretá-la com o
uso da imaginação, adicionando, unindo, selecionando elementos numa criação nova e
original” (PIMENTEL, 2008, p. 126). Daí decorre a relação entre a imitação de ações
reiteradamente e a lacuna no desenvolvimento do jogo simbólico.
Diante desse quadro, como interpretar o jogo do Arthur? Uma primeira
interpretação alude à capacidade de leitura de mundo. A criança só pode representar em
suas brincadeiras informações que lhe são acessíveis de alguma forma. Conforme se
ampliam suas experiências, também se enriquece seu repertório para brincar
(VYGOTSKI, 1986). Segundo Elkonin (1998),
O conteúdo do jogo é o aspecto característico central, reconstituído pela
criança a partir da atividade dos adultos e das relações que estabelecem em sua
vida social e de trabalho. O conteúdo do jogo revela a penetração mais ou
menos profunda da criança na atividade dos adultos. (ELKONIN, 1998, p. 35).
Não que o Arthur não tenha vivências. Pelo contrário, ele vive o papel, embora
não se assuma como personagem. Isso significa que a forma utilizada por ele para
organizar as informações presentes no contexto é diferente da habitual, realizada pelas
outras crianças. Talvez o nível de profundidade com relação as suas interpretações não
seja o suficiente para que ele apresente uma brincadeira mais complexa. Retomando a
caracterização da turma da professora Monica e a trajetória escolar do Arthur,
160
evidencia-se a insistência dos parceiros mais experientes, adultos e/ou crianças, para
que ele compreenda uma regra social simples, como, por exemplo, escovar os dentes
realizando o bochecho sem engolir água. Se o funcionamento do Arthur possibilita a
apreensão de informações sociais de maneira direta entre um e outro sujeito, como
esperar que ele demonstre em suas brincadeiras representações sistematizadas,
generalizadas? Sua capacidade de leitura de mundo não apenas está articulada a suas
brincadeiras, mas se reflete com exatidão na maneira como acontece: a forma como o
Arthur lê o mundo é a mesma pela qual ele brinca, com regras diretas e elementares. Por
isso também talvez seja para ele tão difícil resignificar o uso dos objetos durante o
mesmo jogo. Seu brincar demonstra rigidez por que a função que atribuiu àquele objeto
pode ter sido a que se apropriou de forma direta e elementar, sem validar outras
possibilidades de funcionamento.
Dessa forma, nessa categoria de análise, ao evidenciar a brincadeira do Arthur
em ações que façam qualquer alusão a natureza simbólica, verificou-se que seu brincar é
diferente e não produz enredos. Isso conduz a argumentação a duas reflexões principais
e complementares, acerca das influências da linguagem verbal e do protagonismo da
criança, para que o jogo se torne cada vez mais complexo.
No lúdico, os objetos perdem sua forma determinadora em função de uma fala
que os nomeia e tece um enredo. Nessa interpretação, encontra-se na linguagem verbal a
possibilidade de coordenação das informações de modo que se tornem coerentes entre
si, isto é, a palavra, impregnada de um sistema de representações possíveis, tem poder
generalizante:
...os nexos das ações com o objeto e a palavra que o significa constituem uma
estrutura dinâmica unida. Isso assim é, indubitavelmente, pois caso contrário
seria impossível o emprego lúdico do objeto... primeiro, para inserir-se nessa
estrutura dinâmica a palavra deve impregnar-se de todas as possíveis ações
com os objetos; segundo, que só tendo-se impregnado de todo o sistema de
ações a palavra pode substituir o objeto... o jogo constitui precisamente uma
prática original de operar com a palavra, prática essa em que se produzem
mudanças das relações entre o objeto, a palavra e a ação. (ELKONIN, 1998, p.
351).
O Arthur é uma criança que participava de seu contexto mediante a linguagem
verbal, mas em relações diretas entre um e outro. Rodas de conversa para ele eram
desafiadoras por que ele necessitava parceiros para organizar informações provenientes
161
dos diversos interlocutores e para participar efetivamente da atividade. O caderno de
comunicação, por exemplo, era um recurso disponível para viabilizar esta organização.
O Arthur apresentava dificuldades para coordenar diferentes informações que compõem
regras sistêmicas e sua consciência refletia uma organização binária ou fragmentada.
Sua fala peculiar demonstrava estas características, o que influía diretamente no seu
jogo. Criar enredos requer diálogos, histórias contadas, recriadas na relação do eu com o
outro e o mundo: a fala não pode estar entrecortada, fragmentada, ser direta ou
metódica, ela precisa estar organizada, condensar informações, generalizar, sistematizar.
Alguns momentos da rotina da professora Monica questionam esta problemática
e oferecem formas de comunicação mais articuladas para o Arthur, como as propostas
de brincadeiras com fantasias, as brincadeiras de “lutinha” e as narrativas: seriam estas
formas de organizar um enredo, havia cenas extensas nestes casos, mesmo que sem a
fala? Nas brincadeiras com fantasias, em que as crianças caracterizam-se de algum
personagem com perucas, apetrechos e roupas diversas, o Arthur até explorava os
materiais ofertados, olhando-se no espelho e mostrando-os para a professora Monica ou
para a auxiliar Letícia, que sempre teciam comentários a respeito. Contudo, o ato de
vestir-se não conduzia à representação de um papel, do mesmo modo que os jogos de
lutinha, dos quais o Arthur sempre participava, estes não conduziam à representação de
um personagem, como um herói. Então, nota-se que, além da fala, há outro elemento
crucial na composição dos enredos: a questão do protagonismo da criança.
O último trecho ilumina a argumentação sobre a importância do protagonismo
ao trazer uma narrativa. Nessa situação, o Arthur isolou-se do grupo e organizou vários
estojos no armário da sala. Durante a narrativa, suas vocalizações assemelhavam-se a
um orador, como quem conta uma história para uma plateia:
Transcrição
Arthur: “Voua pizza, voua! Que na
cenoura...”
(ininteligível)
Arthur: “As vezes é totalmente... Ah
não! O ovo, a galinha...”
(ininteligível)
Arthur: “Não quero... nunca,
nunquinha!”
(ininteligível)
Pesq.: “Terminou?”
Arthur: “Não!”
Descrição
Enquanto vai contando a história, faz
gestos com as mãos e aperta os olhos.
Está distante do grupo, longe das
outras crianças durante a narrativa.
Criança afasta-se da pesquisadora.
162
Pesq.: “É uma história?”
Arthur: “Não...”
(Vídeo 36, arquivo sala da professora Monica, 2014).
Na narrativa, tal como em leituras de histórias e recontos, não se percebe um
enredo por que este possui natureza diferenciada. As narrativas e os recontos orientam
histórias que não reivindicam da criança identificar-se com personagens. Não lhes é
exigido fazer escolhas ou tomar decisões para que se siga o rumo da atividade. Nessas
propostas, embora também organizadas pela linguagem verbal, não é preciso submeter-
se a um papel. A criança que narra uma história não precisa posicionar-se ou colocar-se
como personagem do que conta, enquanto que na dramatização, há uma dimensão de
protagonismo, explorada sempre de modo diferente por que depende da individualidade
de cada participante.
Quando a criança cria um enredo mediante a linguagem e posiciona-se dentro
dele, há um processo de criação e recriação, em que ela situa-se no mundo. Ao
denominar-se “si mesma” ou “personagem”, fazer escolhas, dialogar com os colegas,
manusear objetos de acordo com suas vontades e representar ações que se seguem de
maneira lógica, a criança remonta sua identidade, estabelece comparações perante o
outro e o mundo, separa-se do seu “eu” e, assim, assume um papel. Por isso Elkonin
(1998) afirma que a consciência pessoal da criança é resultado do jogo: conforme ela
brinca, reelabora a maneira de compreender a si mesma a partir de uma atitude crítica
para com sua interpretação e a de seus companheiros no jogo.
Argumentou-se sobre as possibilidades de ensinar ao Arthur ações que ampliem
seu repertório lúdico, mas se verificou pela ausência de enredos que não se ensina um
“papel”: este a criança assume a partir de suas falas e protagonismo. Portanto, a
brincadeira do Arthur pode ser concebida como um apanhado de ações representativas
sem conexões entre si por que ele as repetia sem criar enredos. Em complexidade, é um
jogo que não pode ser considerado simbólico na visão proposta por Elkonin (1998), pois
não há um entrelaçamento de informações que componham um sistema generalizável,
nem uma articulação entre diversas perspectivas que possibilitem sua submissão a uma
ordem social.
163
3. BRINCAR SOZINHO OU BRINCAR EM PARES: AS AMIZADES
É em duplas. Quem vai jogar com quem? – questiona a prô Monica.
Após encontrar sua raquete, o Arthur se aproxima da Letícia. Bate assim, a
raquete na bola – ela ensina. Enquanto ele a imita, ela repete: Aí, Aí Arthur!
Muito bem! – incentivando-o.
--- Trecho sobre a parceria no jogo com raquetes
Essa categoria de análise tem como meta demonstrar como se davam as escolhas
do Arthur por parcerias durante suas brincadeiras e argumentar sobre as influências
dessas escolhas no processo de engajamento no jogo simbólico. De acordo com Conn
(2014), pouco tem se pesquisado a respeito de tais variações nas brincadeiras dessas
crianças em seu contexto social, mas alguns estudos já têm apontado características
recorrentes: são crianças que dedicam menor tempo ao aproximar-se de outras crianças,
ao olhar e ou falar com elas, também demonstram um comportamento social menos
complexo no que tange à combinação entre ações, expressões e falas, se comparadas
com as crianças de desenvolvimento típico.
Essas características correspondem aos parâmetros diagnósticos, que embora
considerem um amplo leque de possibilidade de interação dessas crianças em suas
vivências singulares, pontuam o déficit apresentado por elas nesse campo. Kangas et. al.
(2012), em estudo sobre as escolhas dessas crianças para brincar, consideram jogos que
se desenvolvem isoladamente e jogos em grupo. As autoras concluem que essas
crianças preferem dedicar maior tempo a seus jogos particulares do que coordenar-se a
uma atividade compartilhada e são menos propensas a iniciar uma parceria ou a
responder a convites de outras crianças, mas podem aceitar a participação de novos
parceiros quando as atividades ocorrem em pequenos agrupamentos. Conn (2014)
consente e complementa essas interpretações, pontuando que as possibilidades de
interação social dessas crianças ampliam-se em pequenos grupos ou em pares, um a um,
isto é, a criança e um único parceiro.
Desse modo, as pesquisas indicam que crianças com quadros de transtornos do
desenvolvimento também são socialmente ativas em diversas situações cotidianas e não
totalmente isoladas de seu contexto social. Como conceber essa participação no mundo
em que vivem e a relação que estabelecem entre pares de modo a interpretar suas
164
possibilidades de brincar? Como essa criança é vista pelos seus melhores amigos? Se o
jogo de papéis é um jogo de natureza social que revela o nível de profundidade da
compreensão da criança sobre as relações sociais, o que dizer sobre as preferências do
Arthur? Há jogos com parceiros mais experientes que atuam em sua ZDP?
Ao lançar um olhar para a brincadeira do Arthur na escolha de suas parcerias,
verificou-se que as descrições acima acerca das amizades estabelecidas por crianças
com transtornos do desenvolvimento são congruentes com suas preferências. Para a
professora Monica,
“Ele tem um bom relacionamento com o grupo, mas em alguns momentos
observo-o brincando sozinho, principalmente se ele encontra algum objeto ou
brinquedo que lhe interesse muito...” (Relatório de aprendizagem, junho de
2013).
O Arthur consolidou diversas amizades no âmbito escolar, dentre adultos e
crianças, mas se observou numa frequência muito maior o brincar sozinho ou o brincar
em pares, isto é, ele e apenas um amigo de cada vez. No decorrer dessa categoria de
análise, serão exploradas situações em que ele brinca sozinho, brinca com apenas um
parceiro, adulto e/ou criança, e situações em que há a tentativa de inserção de mais um
parceiro no jogo. As reflexões têm como intuito apreender as relações que ele estabelece
com os amigos, seu potencial de leitura de mundo e coordenação de diferentes pontos
de vista, para concluir sobre seus efeitos quanto às possibilidades de engajamento num
jogo de natureza simbólica.
As situações seguintes retratam momentos em que o Arthur brincava sozinho:
Pesquisadora: - Oh lá, mas oh... oh... Mas é legal a brincadeira de pegar. Oh lá
o Lucas correndo.
Maria Eduarda: - Mas Pegá... ele [diz sobre o Arthur] não pega, mas ele joga.
Pesquisadora: - O Arthur, cê não quer brincar com a Duda? [ele fez que não ao
longe]
Pesquisadora: - Por que não? Por que que cê não quer brincar com ela? [ele se
distancia, observa ao longe]
Maria Eduarda: - Viu, ele foge. Ele foge.
Pesquisadora: - Quê? Como que é? [risos]
Maria Eduarda: - Ele foge!
Pesquisadora: - Por que que ele foge será?
Maria Eduarda: - Eu acho que ele.. que ele tá dizendo que não é não. Por que
eu acho que ele não quer brinca.
(Áudio 1, 22 de setembro de 2014).
165
Transcrição
Algumas crianças falam ao fundo
sobre seus jogos particulares
(ininteligível).
Arthur não diz nada.
Descrição
Arthur brinca isoladamente, fica de
joelhos no tapete, onde estão
espalhadas muitas peças pequenas.
Sem dizer nada, vai agrupando todas
as peças que possuem apenas uma
fileira de encaixe. As peças que não se
enquadram nessa categoria são
espalhadas com as mãos pelo tapete
bruscamente.
Arthur olha para a câmera, sorri.
Levanta, anda pela sala sozinho e
volta para sua brincadeira.
Vai ajustando as peças uma ao lado da
outra na mesma posição. Depois cria
subagrupamentos, cada um com cerca
de 4 peças, e monta figuras similares a
estrelas.
(Vídeos 37 e 38, arquivo sala da professora Monica, 2014).
(Figura VII –Seriação de peças com uma fileira de encaixe)
Sobre essas experiências, alguns autores consideram que, na maioria dos casos,
ao brincarem sozinhas, essas crianças não estão muito atentas às outras crianças
(KANGAS, 2012). Neste estudo, considera-se que, na verdade, quando todas as
crianças estão atentas a seus projetos pessoais, suas experiências de aprendizagem,
natural que desprendam maior atenção a eles que ao que acontece ao seu redor, o que
não significa que não percebam o movimento das outras pessoas. Questiona-se assim,
no caso do Arthur, se ele realmente permanece alheio ao mundo quando brinca sozinho
ou se essa é apenas uma escolha. As descrições de áudio e vídeo acima explicitam a
ausência de contato com as outras crianças e educadores. Na primeira situação, ele
responde às perguntas da pesquisadora, embora não atenda a seus pedidos; na segunda,
ele olha para a câmera e sorri. Essas reações demonstram sua percepção a respeito do
mundo no qual está imerso e indicam que ele não permanece totalmente alheio ao que
acontece a seu redor e sim apenas está comprometido com seu interesse em seus
projetos particulares.
166
Já a próxima situação demonstra o inverso: não a percepção do Arthur sobre os
outros, mas as percepções das outras crianças a respeito dele brincando sozinho. Neste
caso, uma atividade demonstrava uma habilidade ou domínio especial:
A Clarice, a Maria Eduarda e a Bianca querem vir brincar conosco. “O Arthur,
vou sentar aqui perto de você” – diz a Clarice. As meninas percebem o
envolvimento da professora Monica e meu na atividade e também o interesse e
habilidade do Arthur pelos quebra-cabeças e assim querem participar desta
atividade com ele. Então, conforme elas vão montando, vão mostrando para
ele: “Oh Arthur, consegui!” – diz a Clarice. (Caderno de Notas 15, 26 de
setembro de 2014).
Com base nas relações sociais e culturais estabelecidas no universo infantil,
crianças que possuem grande reconhecimento social por parte das outras crianças, em
geral, são capazes de destacar-se no grupo por alguma habilidade para fazer algo que
envolve certa complexidade ou por alguma inabilidade que a torne diferenciada. Para
Corsaro (1989), em estudo sobre como se dão as amizades na infância, a ideia de
“melhor amigo” implica o reconhecimento de qualidades pessoais que embasam a
relação entre uma e outra criança. Este aspecto se verifica quando há uma atividade
compartilhada por duas ou mais crianças com interesses em comum. É como se as
outras crianças admirassem ou respeitassem essa outra criança por suas competências
para fazer algo difícil, o que também pode ocorrer nos momentos em que suas
características pessoais a impedem de usufruir algo. O conceito de amizade, assim, está
relacionado às exigências sociais e culturais próprias do contexto onde se dá a interação
entre eles (Ibid., p. 152). Quanto ao Arthur, há esses dois olhares: o primeiro é sua
habilidade para “desvendar” alguns jogos, como as propostas com quebra-cabeças; o
segundo é composto por seu comportamento diferenciado, principalmente no que se
refere à comunicação e à fala, que o impede de participar efetivamente, por exemplo, de
rodas de conversa mais complexas ou a atender pedidos de brincar.
O ponto alto desse processo é que a criança inserida em um contexto social
amplo, com significações que compartilhadas, como é o caso da escola regular, tem a
oportunidade de ser vista e submeter-se à interpretação de outras crianças, isto é, o
Arthur não é visto a partir do seu “transtorno”, pensado este enquanto um “nome” ou
“categoria” que estereotipe seus comportamentos, pelo contrário, mesmo que esteja
167
brincando sozinho, ele é identificado pelo grupo como outra criança que participa do
grupo escolar, e ele sente esta interação, como acontece na sequencia abaixo:
...Mas ele não dá muita atenção. Assim as meninas começam a guardar os
jogos, atendendo à solicitação da pro Monica. O Arthur ainda está terminando
de montar uma das figuras... Então elas esperam mais tempo, ficam apoiadas
na mesa, apreciando a produção dele. A Clarice conta as peças já encaixadas, a
Bia segura a caixa para que ele veja a figura, a Isadora segura uma das peças.
Mas logo ele se incomoda com todo este apoio. “Ei!” – diz o Arthur, tirando a
peça da mão da Isa. “Começa a dizer muito baixinho, para ele mesmo: “Onde
está a peça?”. Repelindo a ajuda das meninas, ele monta sozinho as três figuras
do quebra-cabeças gradativo. Após concluído, ele compara os três, faz um
movimento com a palma da mão para baixo e para cima em cada figura
completa. Afasta as caixas dos jogos que as meninas montaram de perto do
jogo dele. Admira sua produção e desmonta tudo. “Puxa vida! Você....” – ele
me diz algo, mas a frase é ininteligível, questiono novamente, mas ele não
repete. Então abro a caixa para ajudá-lo a guardar as peças. Muito atentamente,
ele olha a figura do fundo e da tampa da caixa, conferindo se é a caixa certa.
Após guardar as peças, ele repete “ei!” – num pedido de licença para as outras
crianças, que estão próximas à porta do armário. (Caderno de Notas 15, 26 de
setembro de 2014).
Nem sempre brincar sozinho significa que a criança está alheia ao mundo. O
jogo de quebra-cabeças, por exemplo, tornou-se acessível para usufruto do Arthur na
medida em que lhe foi ofertado pelo outro, no caso, a professora Monica. É um jogo que
já contém significações da cultura. Em algumas circunstâncias, brincar sozinho pode,
inclusive, potencializar o desenvolvimento: é explorando este material e pensando sobre
suas hipóteses para atingir o objetivo da montagem completa que a criança desenvolve
seus esquemas mentais. No episódio abaixo, numa situação de pintura com cavalete, o
fazer sozinho também tem seu papel na construção da autonomia:
“Essa atividade em especial foi marcada pela participação do Arthur que fez
sua primeira produção, sem excesso de tinta e sem rabiscar tudo como sempre
acontecia, troquei a sua folha e ele fez outra também bem legal que chamou a
atenção de vários adultos que estavam por perto, tiraram foto”. (Caderno de
Planejamento e Registros, professora Monica, abril de 2013).
Sem desmerecer a importância das parcerias, essa reflexão tem como intuito
primeiro a interpretação do “brincar sozinho” do Arthur sob um enfoque positivo,
buscando as qualidades que lhe são possíveis. Ainda que ele afaste as parcerias, há que
se considerar suas possibilidades de aprendizagem ao explorar sozinho determinadas
experiências. Parceiros mais experientes atuam em ZDP até que a criança possa realizar
168
a atividade sozinha, com autonomia (CHAIKLIN, 2011; STONE apud DANIELS,
2001). O nível de desenvolvimento potencial da criança expressa-se quando ações que
não eram possíveis são viabilizadas a partir de “andaimes”, que envolvem a mediação
nos três eixos e inclui as colaborações de parceiros mais experientes (VYGOTSKI,
1997, III). Se o Arthur realiza a atividade sozinho é que por que as ações e esquemas
mentais que a compõem já fazem parte de seu nível de desenvolvimento real.
Sobre o brincar em pares, este possui outra natureza. Conn (2014) defende que
normalmente crianças com esses quadros possuem ao menos um amigo e que existem
dificuldades na participação em grupos. Nas situações observadas sobre as amizades do
Arthur, constatou-se que de fato ele não permanecia todo o tempo isolado, que também
possuía suas preferências, principalmente quando essas crianças aceitavam e/ou
compreendiam suas formas de brincar. Importante notar que em alguns casos, essa
parceria acontecia sem a intervenção de um adulto que a sustentasse. Isso acontecia
frequentemente com o Rafael e o Patrick:
Durante a atividade diversificada, Rafa e Arthur compartilhavam uma
brincadeira de casinha: “Suco de limão” – o Rafa dizia. “Suco de limão” – o
Arthur repetia. “Agora vou fazer de pera... Cadê o copinho?” – o Rafa
questionava o Arthur após o suco pronto. A Letícia observa a brincadeira deles,
às vezes entra no jogo, mas pouco participa. O Arthur mais imita o
comportamento do Rafa. (Caderno de Notas 9, 30 de agosto de 2014).
Chega o Patrick com outro McStill e faz de conta que o boneco está tentando
pegar o Arthur. Ele aceita prontamente esta brincadeira e corre do Patrick,
rindo, fugindo, ainda com o pedaço de bolo rec-rec na mão. O Arthur corre e
grita, o Patrick corre atrás com o boneco. Os dois riem muito. Dão voltas ao
redor do espaço todo. O Arthur abraça a professora Monica, como se fosse um
“piques”, com muito afeto direcionado a ela. Ele interage com o Patrick e com
a professora Monica neste momento. Eles correm de novo ao redor de todo o
espaço. “Não está cansado?” – questiona a Letícia quando ele passa por ela. A
professora Monica potencializa a brincadeira: “Ele vai te pegar!” – diz em tom
de cuidado, sorrindo. Os dois riem, correm para a sala, guardam a blusa.
Quando voltam, a brincadeira dispersou. (Caderno de Notas 7, 23 de agosto de
2014).
Em análise sobre as amizades na infância, Corsaro (1989) conclui que dois
aspectos sustentam as preferências das crianças quanto as suas escolhas para brincar: o
primeiro deles é que as crianças normalmente optam por brincar mais com crianças que
já brincaram antes – quanto maior o tempo de contato, maiores as chances de brincarem
novamente. O segundo aspecto refere-se às afinidades pessoais entre uma e outra
criança. Ao considerar as preferências do Arthur por brincar sozinho ou em pares, nota-
169
se que estas vão além do trabalho realizado pela escola: suas escolhas estão pautadas
também na ampliação do contato com determinados amigos, ou seja, em geral ele brinca
sempre com as mesmas crianças, o que também decorre da personalidade dessa outra
criança. Tanto o Rafa quanto o Patrick eram crianças que se aproximavam muito do
Arthur. O Rafa, por exemplo, era uma criança muito tolerante às amizades: em nome da
manutenção da brincadeira e da parceria, ele fazia muitas concessões. Já o Patrick era
um menino muito descontraído, gostava de fazer piadas com os colegas e que estes
correspondessem aos seus jogos. De modo geral, considera-se que as crianças possuem
preferências, independente de um quadro de transtornos do desenvolvimento. Elas
fazem suas escolhas a partir das brincadeiras que desenvolvem em determinados
contextos, buscam as parcerias que lhe sejam mais aprazíveis, isto é, possuem
afinidades pessoais.
Entretanto, poucas foram as vezes em que o Arthur compartilhou jogos com
outras crianças sem a intervenção de um adulto, responsável por sustentar a parceria.
Muitas vezes, as crianças encontravam dificuldades para se aproximar, brincar com ele
e compreender seu interesse; algumas vezes também demonstravam receio de suas
reações. Além disso, ele resiste à entrada de algumas crianças em suas brincadeiras e em
compartilhar seus interesses. O Arthur também mantinha amizades com a Isadora e a
Luana, mas tanto uma quanto a outra preferiam aproximar-se do Arthur nos jogos em
que houvesse a participação de um adulto, normalmente a professora Monica ou as
professoras substitutas Carol e Driele, como se nota no exemplo abaixo:
Neste momento, as meninas estão passando chapinha na Luana. O Arthur
lentamente e timidamente penteia o cabelo dela, troca de instrumentos, pega o
espelho e também mostra para a Luana como ela ficou. A Clarice e a Isadora
continuam penteando a Luana. Quanto mais a pro incentivava o jogo, mais ele
participava. Quando a pro cessou as intervenções, para manter a parceria com
as outras crianças, ele se distanciou. Então a pro Driele tenta novamente
reconstruir as parcerias entre as crianças: “Vamos fazer de novo? Na Luana?” –
ela sugere. “Tá bom” – ele concorda. O Arthur passa a sobra e seca o cabelo da
Isa também, mas ela demonstra certo medo quando ele se aproxima. Ele vem
rápido para passar a sombra, um pouco forte e um pouco brusco. Parece com
certa dificuldade para controlar o movimento, às vezes com vergonha, outras
com repulsão. Esta forma peculiar do Arthur desperta uma reação nas outras
crianças. A Isa, por exemplo, afastou-se. Com a prô, ele também faz o mesmo,
mas ela intervém, explica que precisa ser devagar e tem paciência para deixá-lo
iniciar a interação novamente. (Caderno de Notas 9, 30 de agosto de 2014).
170
A participação dos adultos nas brincadeiras contribuíam para consolidar os
vínculos do Arthur com outras crianças quando essa ação era intencional, como ocorreu
na experiência acima com a professora Driele. Mas os adultos também encontravam
dificuldades para brincar com ele, sendo necessária a insistência na parceria, até que as
relações se tornassem cada vez mais estáveis com o tempo.
Uma análise da trajetória escolar do Arthur indica o quanto sua relação com o
outro se transformou ao longo dos três anos em que permaneceu na escola. De acordo
com os registros da professora Monica, em 2013 o Arthur permanecia quase todo o
tempo fugindo das pessoas. Ela conta que uma de suas formas de aproximação foi
encher baldinhos no parque, brincando com a areia. Com as outras crianças, no início
foi necessário trabalhar a aceitação em ambas as partes, com o grupo e com o Arthur:
Eu acho que foi todo um processo né... No começo ele não interagia com
ninguém, ele brincava só sozinho, geralmente jogando tudo, jogando os
brinquedos, então foi muito tempo pra conseguir. E aí, aos poucos, na
brincadeira, ele foi né, por que o problema é que, não sei né, se ele não sabia
brincar, mas por exemplo, você ia fazer uma brincadeira de pega-pega, então
em vez dele pegar, ele batia, mas ele participava do movimento da brincadeira
(...) às vezes as crianças se assustavam com ele, por que ele empurrava, ele
derrubava, então eu tinha que, eu vivia falando “olha ele tá só brincando, ele
não tá batendo, ele não tá empurrando, ele tá só brincando com você”, então aí
foi todo um trabalho... aos poucos as crianças foram, algumas crianças foram
chegando, foram se aproximando e ele foi se deixando né também, por que aí
ele permitiu, ele se permitiu também eu acho, ele permitiu essa aproximação,
algumas crianças ele permitiu, como na Clarice (Entrevista professora Monica,
13 de agosto de 2015).
Outras experiências que necessitam a participação de adultos são as situações em
que há conflitos. Em alguns casos, a professora Monica necessitava ser pontual e muito
firme com ele, como explicitado no quadro metodológico dessa investigação – como
parar de jogar areia ou brincar com o lanche. Em outros, a professora avaliava a
interação entre eles, observava como se dava a situação e intervinha quando preciso. No
exemplo abaixo, ela pouco participou, devido à proximidade já construída entre a Duda
e o Arthur, e à relação das crianças da sala com os combinados prévios do grupo:
A Bianca e a Duda se aproximam: “Vamos fazer pic-nic” – e pegam cestas
com alimentos da casinha. O Arthur logo se interessa e também pega uma
cesta. A Duda diz que ele não pode ir junto, e a Bianca concorda. A prô
Monica, que observa distante, pergunta se o Arthur também quer uma cesta.
Gestualmente é possível compreender que sim e a professora então dá uma
cesta pra ele. Eu questiono as meninas: “Por que ele não pode ir com vocês?”
171
Elas disfarçam e não me respondem. Saem para fazer pic-nic juntas. O Arthur
começa então a se interessar pela brincadeira da Eliana, ainda com sua cestinha
na mão. Mais do que muito rápido, a Duda percebe o interesse dele e pensou
uma forma de pegar a cestinha que a prô havia dado ao Arthur: deu um
“bichinho” de plástico pra ele e, assim que ele se distraiu, pegou a cestinha e
afastou-se, indo para perto da mesa da prô, que logo compreendeu tudo o que
estava acontecendo. A prô Monica ficou um tempo observando e me disse:
“Olha só...”. Ficamos observando como eles solucionariam o conflito. Assim
que o Arthur percebeu o que a Duda tinha feito, ele foi e tomou a cesta de
volta; depois olhou para a prô, como quem espera aprovação ou reprovação. A
professora Monica não se manifestou, permitiu que eles interagissem e
solucionassem o conflito. A Duda também olhou para a prô e disse: “Ai
Arthur!”, mas já sabia que não teria argumento e aceitou ficar sem a cesta.
Neste momento a prô conclui: “Vai fazer pic-nic junto”. Mas as meninas se
distanciam. (Caderno de Notas 10, 05 de setembro de 2014).
Aqui se evidencia como as crianças interagem intersubjetivamente, inclusive
com o Arthur. Tanto a Bianca quanto a Duda queriam exclui-lo da brincadeira, mas
como ele tinha uma cesta, era preciso encontrar um meio de conquistar o objeto e uma
das formas foi propor uma troca. Quando a pesquisadora questiona se ele pode ir junto
fazer o pic-nic, as meninas protegem seu jogo por que acreditavam que o Arthur não
saberia brincar. Segundo Corsaro (1989), quando as crianças estão participando de
atividades entre iguais, costumam proteger a brincadeira, resistindo à entrada de outras
crianças por que sabem que uma nova inserção no jogo pode desestabilizá-lo e provocar
sua transformação. As crianças, independente de um transtorno do desenvolvimento,
entram regularmente em conflitos como este, caracterizado pela insistência de uma
criança para entrar no jogo – de um lado – e a resistência para que esta criança não entre
– de outro. Isso acontece por que as crianças interpretam, ainda não conscientemente, a
fragilidade da interação que sustenta a brincadeira. Com o Arthur, todo esse processo é
velado, ocorre sutilmente e possui um diferencial, por que nas situações em que ele não
era reconhecido como parceiro apto para entrar no jogo, havia evidente resistência das
outras crianças e surgia um conflito, mas mesmo quando ele queria participar, não
conseguia contra-argumentar. Quem assumia essa função e interferia nas interações
presentes no grupo de crianças era um adulto, o que configurava uma relação de outra
natureza, como será analisado mais adiante.
Além dos exemplos citados nas situações anteriores, em que há a interação com
um parceiro, os jogos mais compartilhados com o Arthur concentram as brincadeiras de
“fugir e pegar” ou de “lutinha”. Percebe-se que são situações em que há interação entre
pares, assim como nas situações de resolução de conflitos. Entretanto, são situações que
172
acabam por gerar conflitos que oferecem riscos à integridade física das crianças e estes
são interpretados como indisciplina pelos educadores. Assim, sempre há intervenção de
um adulto, o que acontece com todas as crianças:
“O Arthur, apesar da dificuldade de participar das propostas junto ao grupo,
ficou o tempo todo com o grupo, às vezes ele saia correndo na frente e quando
íamos buscá-lo parecia que ele estava brincando de pega-pega, correndo e
rindo da gente.” (Caderno de Planejamento e Registros, professora Monica,
fevereiro de 2013).
Na hora de ir embora, uma surpresa: jogo de lutinha. A pro Monica impede, já
que esta brincadeira “sempre acaba mal”. Ela me diz que o Arthur é mais forte.
Observei que curiosamente, neste jogo, o Arthur é visto como parceiro
equivalente, apto para o jogo. Ele gosta da brincadeira, sorri e olha a pro... é
nítido que ele gosta, assim como os outros meninos. (Caderno de Notas 22, 07
de novembro de 2014).
Nas situações de jogos de lutinha, é ainda possível questionar a interação do
Arthur com as outras crianças: Por que será que ele se interessava por esse jogo?
Haveria representação de personagens? Na verdade, essas situações demonstravam mais
um contato corporal do que uma dramatização. Não havia complexidade nas relações,
nem verbalizações que possibilitassem o entendimento de que ali havia uma história.
Curioso que nesse jogo o Arthur era visto como parceiro e era aceito pela outra criança
com quem “lutava”. De certa forma, uma amizade ali se delineava por que ele era
considerado apto para o jogo e não havia resistência – salvo em momentos em que
alguém se ofendia ou se machucava. Uma hipótese para seu prazer por esta brincadeira
consiste na aceitação das outras crianças: o Arthur também reconhecia que, apesar de
proibido pelos adultos, havia um jogo entre iguais.
As três situações seguintes subsidiam a análise das amizades e as possibilidades
do Arthur em compartilhar uma brincadeira com mais de um amigo ao mesmo tempo,
isto é, como ele se comportava em pequenos grupos:
Logo a brincadeira de roda se dispersa e fomos “chutar bola”. O Arthur começa
o seu jogo de bola com a Letícia. Brinca e imita uma risada parecida com a do
pica-pau. A Letícia tenta várias vezes inserir outros amigos no jogo com bola,
mas o Arthur se afasta. Ele chuta a bola ou sozinho ou com a Letícia. O zelador
da escola se aproxima e também brinca com bola. Aos poucos, o Arthur foi
aceitando a participação deste novo amigo. Assim como no dia em que
brincamos os três juntos (o Arthur, a Letícia e eu), o zelador também pôde
brincar, mas um de cada vez e sem outras crianças, só há interação com
adultos. (Caderno de Notas 11, 08 de setembro de 2014).
173
Correram, escolheram as raquetes e organizaram-se com autonomia em pares
ou equipes, pequenos grupos. "É em duplas. Quem vai jogar com quem?" – diz
a pro Monica. Depois que o Arthur encontra a raquete na caixa, faz parceria
com a Letícia. Brincam seguindo as regras do jogo, bate uma vez na raquete,
em direção do parceiro e aguarda o retorno da bolinha. Mas apenas com a
Letícia. Quando tentei participar, ele me repeliu. Assim tentamos outra criança,
que ele também repeliu. Após muita insistência, ele me aceitou, mas só
compartilhava com uma de cada vez, ou eu ou a Letícia, não em grupo, não
como trio. Com as crianças, mesmo quando tentamos brincar com o Rafa, que
é um amigo que ele aceita, o Arthur afastava-se da brincadeira. No fim, outras
crianças se interessaram por brincar conosco. Mas sem aceitar a Isadora e a
Bianca, foi brincar sozinho. (Caderno de Notas 13, 15 de setembro de 2014).
Transcrição
Profa. Monica: “Isso”.
Arthur: “E agora pro?”
Profa. Monica: “E agora? Agora tem
o chapéu dele... Aeee!”
Crianças conversam ao fundo sobre
seus jogos particulares.
Profa. Monica: “É aí mesmo, só que
ta rasgadinho...”
Arthur: “Não, ta eado...” [Não, ta
errado]
Profa. Monica: “Tá errado?”
Arthur: “Vai pro, vai mexendo aqui”.
Profa. Monica: “Vai você, você
consegue!”
(...)
Arthur: “Muito bem Mari”
Pesq.: “Eeeee”
Arthur: “Muito bem Mari”
Pesq.: “Vamo acha outra?”
Arthur: “Vamo acha outra”
Pesq.: “Vamo ver essa onde que é...
serve? E esse oh? Que tal?”
Arthur: “Ie iesse? Você pode que
daiqui dequidaqui?”
Pesq.: “Procurar essa?”
Arthur: “Isso!”
Pesq.: “Posso! Acho que é aqui oh...
Vê se funciona”
Arthur: “Nossa que se quie...” –
ininteligível.
(...)
Arthur: “Agora o chocolate... Cadê o
chocolate?”
Pesq.: “Só faltou o chocolate, perdeu
a peça.”
Pesq.: “Tá no chão?”
Pesq.: “Não tá?”
Pesq.: “Quer montar outro? Não?
Descrição
Arthur vai encaixando e montando as
peças do quebra-cabeças.
Ela comenta sobre uma peça que ele
tem dificuldades para encaixar.
Ele monta outra peça. Tenta de um
lado, depois de outro. A peça não
encaixa, ele solta.
Professora Monica sorri.
Arthur pega na mão dela e coloca em
cima de outras peças espalhadas para
montagem.
Uma criança se aproxima e solicita a
atenção da professora Monica para a
solução de um conflito. Ela se afasta e
o Arthur segue sozinho com a
montagem.
Pesquisadora pega uma peça e dá nas
mãos do Arthur. Ele vai montando e a
peça encaixa.
Arthur termina a montagem do
quebra-cabeças. Resta um espaço,
uma peça faltante.
Ele olha para as outras peças na mesa,
abaixa e olha no chão.
174
Tem outros oh... tem dos Incríveis, do
Peixonauta, tem esse da Galinha
oh...”
Arthur: “Oh uquisi Peixonauta.”
(...)
Julia (coord. pedagógica): “Bom dia!
Tudo bom?”
Pesq.: “Oh a boca olha...Que fácil
heim! Que fácil essa!”
Julia: “Oi Arthur, bom dia!”
Arthur: “noooooo-coooooo.”
Julia: “Sou eu, a Ju, sou eu que to
falando com você.”
Arthur: “o ju so nenli.”
Julia: “Eu gosto do Peixonauta e
você? A amiga dele é a Marina.”
Pesq.: “Ah, então essa chama
Marina?”
Julia: “Marina, o Zico... Não é? Eles
descobrem os mistérios, eles
desvendam os mistérios. Não é?”
Arthur: “Ah... nãããoooouo.”
Arthur pega a caixa do jogo do
Peixonauta, espalha as peças e inicia a
montagem.
Chega a coordenadora pedagógica e
inicia um contato entre o Arthur e a
pesquisadora, que montavam as peças
do novo jogo.
Arthur grita “noooooo”. Sem olhar
para ela, balança a mão direita para o
alto.
A pesquisadora também participa da
conversa. O Arthur continua
montando as peças, agora sem falar
com nenhuma das duas.
A coordenadora se afasta. A
pesquisadora busca novas peças para
montar com o Arthur. Ele procura as
próprias peças e recusa as dela.
(Vídeos 41, arquivo sala da professora Monica, 2014).
Nessas situações, transparece uma dificuldade do Arthur no estabelecimento de
parcerias em pequenos grupos. Em diversos momentos, foi constatada a sua presença
em sub-agrupamentos durante propostas como leitura de histórias, jogos de construção,
o momento de lanche, entre outras. Apesar disso, quando ele demonstrava alguma
interação, esta acontecia com apenas um único parceiro, adulto ou criança. As
descrições acima indicam que, para o Arthur, a articulação das demandas provenientes
de dois parceiros conjuntamente demonstrava-se exaustiva. No início, ele repelia os
novos parceiros, mas mesmo após a aceitação destes, coordenar sua atenção entre um
parceiro e outro e apreender as significações presentes na relação que se estabelece
entre as pessoas era um desafio.
Nas duas primeiras situações, ele até repetia a regra de chutar a bola ou bater
com a raquete, com um dos parceiros, mas se qualquer outra resignificação ocorresse no
jogo, sua participação já se comprometia e ele se afastava. O Arthur, portanto,
demonstrou compreender a regra elementar de cada jogo, mas não captou os traços
característicos das condutas, nem as inferências de cada participante no processo de
desenvolvimento da brincadeira. Ademais, a última situação de vídeo descrita, traz o
175
potencial do Arthur para compartilhar suas experiências com a professora e depois com
a pesquisadora, sem que ambas participem da proposta com ele ao mesmo tempo. À
chegada da coordenadora pedagógica Julia, houve a tentativa de inserção de um novo
participante: ela solicitou a atenção do Arthur ao mesmo tempo em que conversava com
a pesquisadora. Assim, além de concentrar-se na montagem do quebra-cabeças, ele
deveria compartilhar sua atenção entre duas amigas. Ainda que sejam duas adultas que
insistiam na parceria, o final da situação explorada demonstra o desconforto da criança,
que resultou na repulsão das parcerias.
Ao analisar as amizades do Arthur, nota-se que suas preferências permaneceram
durante o ano. Em geral, ele buscava a professora Monica ou a Letícia para desenvolver
suas brincadeiras. Também recorria a algumas crianças, mas em grau muito menor. O
vínculo estabelecido, principalmente com pessoas adultas, possibilitou a consolidação
de um rol de ações para o Arthur, que passaram a compor seu repertório lúdico. Se uma
criança brinca sozinha ou interage apenas com um parceiro, o que dizer sobre os
parâmetros que terá para representar as relações que um adulto estabelece com outros e
com o mundo? Que influências essas argumentações trazem para o simbolismo?
Conforme a brincadeira se enriquece, mais complexas se tornam as ações entre
as crianças, que contam com aspectos compartilhados entre os repertórios lúdicos dos
participantes na representação de papéis. De acordo com a obra e Elkonin (1998), o jogo
simbólico não pode ser compreendido sem o olhar para as relações entre as pessoas:
Uma das premissas para que a criança adote a representação do papel de
qualquer adulto é que se capte os traços típicos da atividade desenvolvida por
esse adulto. Pode-se supor que o conteúdo do papel se desenvolve
precisamente em relação com o caráter dessa captação e vai desde a escolha
das ações objetais exteriores características do adulto até as suas relações com
outras pessoas. (ELKONIN, 1998, p. 283).
O jogo não pode ser visto como prática de ações, ainda que estas possuam suas
regras definidas. Ao ter como foco as relações entre as pessoas, o jogo precisa ser visto
como prática de coordenação de perspectivas, de diversos pontos de vista e significados
presentes. Para isso, em primeiro momento, é preciso ir além de brincar sozinho. A
consciência da criança distingue o mundo de suas impressões interiores a partir da
observação de si mesmo em comparação ao outro (LEONTIEV, 2004) e, conforme vão
176
se ampliando essas comparações ao outro, maior a compreensão sobre si mesmo, por
que suas escolhas estão articuladas às diversas perspectivas a coordenar.
Nessa categoria de análise, quando se atém ao comportamento do Arthur em
suas brincadeiras, ele parece apegar-se a determinada regra – quando não a determinada
“pessoa” – e reproduz as mesmas ações, como chutar a bola ou bater com a raquete.
Algo similar ocorreu na categoria anterior quanto à repetição de ações em situações de
brincadeiras estruturadas. É possível afirmar ainda que este “apego” acontecia quando o
Arthur se autodenominava “George”, personagem da Peppa Pig. Nesta última, de forma
mais nítida se comparada as outras situações, era como se não houvesse uma fronteira
clara entre quem é o Arthur e quem é o George. Ele repetia as ações da personagem, as
regras elementares que orientavam seu comportamento, sem que houvesse distinção
entre eles. Quando as crianças assumem um papel no jogo, elas são conscientes de que
são personagens, inclusive estabelecendo diálogos paralelos com o enredo se necessário.
Mas para o Arthur, havia uma cristalização na personagem: era como se ele fosse “ele
mesmo” e o “George” ao mesmo tempo, sendo impossível assumir um posicionamento
perante o outro devido ao aglutinado ou fusão que se estabelecia.
Para Turiel (1989), uma das consequências da criança não conseguir distinguir-
se como ser separado do outro é a incapacidade de assumir as perspectivas de outras
pessoas. De acordo com esta lógica, se essa criança está fundida na outra, não consegue
discernir diferentes pontos de vista, e segue regras relativas apenas a esse indivíduo
modelo, a partir de cópias e não ressignificações sobre seu contexto social. Essa lógica
dá sentido à atitude do Arthur face ao jogo quanto a repetir as ações ou mesmo não
assumir personagens, como visto na categoria anterior.
Nesse sentido, brincar sozinho ou brincar em pares, quando este pareamento se
estabelece de forma aglutinada ou cristalizada (em regras reiteradas ou em pessoas
preferidas), não contribui para o aparecimento de um jogo de natureza simbólica.
Elkonin (1998) afirma que o jogo é uma atividade cooperante entre as pessoas, o que
exige um processo de descentramento permanente. Sobre o brincar sozinho, ele diz:
Efetivamente, no jogo individual, em que na melhor das hipóteses a criança
tem por companheiro de jogo um boneco, não há necessidade nenhuma de
mudar de posição nem de coordenar o ponto de vista próprio com os dos outros
participantes no jogo. É possível que o jogo, longe de cumprir a função de
descentramento moral e cognoscitivo, fixe ainda mais o critério pessoal, o
único da criança, sobre os objetos e as relações, fixe o critério egocêntrico. Um
177
jogo assim pode desviar efetivamente a criança do mundo real e enclausurá-la
no mundo isolado de seus desejos individuais limitados pela estreita moldura
das relações familiares. (ELKONIN, 1998, p. 413).
Pensando a experiência do Arthur e suas preferências, de modo a incentivar uma
conduta simbólica, um caminho seria pensar situações em que ele ampliasse sua relação
com o outro, mas sem fixar-se a esse outro. Não basta que ele imite as ações ensinadas
pela professora Monica, pela Letícia ou por outros colegas. Tratando-se da questão do
simbolismo, o Arthur precisaria coordenar os critérios ensinados com outros critérios
possíveis, ensinados por outras pessoas, adultos ou crianças, ou mesmo critérios que ele
próprio estabelecesse.
As últimas situações apresentadas, em que houve a tentativa de inserção de mais
um parceiro no jogo, embora ainda com dificuldade para aceitação do Arthur, indicam
uma alternativa de trabalho pedagógico em que é preciso captar as condutas e demandas
de dois parceiros concomitantemente, fazendo com que seja necessária a mudança de
posicionamento perante o outro e a coordenação de diferentes pontos de vista. Como, no
caso do Arthur, ele “aceita” esta interação, ou seja, não está além do que lhe é possível e
tolerável, estas atividades incidem em sua ZDP. Jogos em pequenos agrupamentos, com
a participação de duas a três crianças de desenvolvimento típico, como a proposta
defendida por Wolfberg (2012) tem como princípio esta ideia. Em maior ou menor grau,
as crianças vão ampliando suas possibilidades para lidar com as diferentes informações.
Sendo assim, não há uma resposta direta a respeito das possibilidades do Arthur
em engajar-se numa brincadeira de natureza simbólica. Contudo, há uma evidência
nítida de que este jogo é difícil para ele. Necessário analisar ainda como ele se comporta
em situações de jogos coletivos.
178
4. JOGOS EM GRUPO: A INABILIDADE PARA COORDENAR-SE
Pesquisadora: O Arthur é pegador também? [crianças sinalizam que
não]. – Misael: Não. – Pesquisadora: Por que o Arthur não pode ser
pegador? Nunca foi o Arthur o pegador? [sinalizam que não]. Nunca? Ele
pode descongelar? – Misael: Não. Ele não sabe não.
--- Áudio sobre a brincadeira de pega-pega
O universo habitado pelas crianças não é apenas guiado por seus interesses e
desejos, mas também um mundo povoado por outras crianças, as quais contribuem para
orientar suas escolhas. Desse modo, deduz-se que ser criança que convive em diferentes
contextos, dos quais o campo escolar é um dos mais ricos em diversidade, é situar-se ou
posicionar-se perante outras crianças, que compõem a cultura da qual compartilham. As
formas de comunicação e interação presentes na escola dizem respeito às diferentes
subjetividades ali presentes, bem como à forma pela qual estas diferentes identidades
são aceitas ou ignoradas pelo grupo.
Essa categoria de análise trata sobre o potencial do Arthur para participar de
atividades coletivas, isto é, os momentos em que deveria dialogar com o grupo. Durante
a categorização dos dados, constatou-se em suas brincadeiras uma ocorrência muito
maior de preferências por brincar sozinho ou em pares e uma grande dificuldade para
participar de jogos nos quais era necessário coordenar diversas perspectivas e ações com
outros participantes da brincadeira. Na rotina da professora Monica, havia três tipos de
atividades principais com essa natureza: as propostas com música, as rodas cantadas e
os jogos coletivos com regras. Ao explorar como o Arthur envolvia-se nessas propostas,
discute-se sobre suas possibilidades de inserção no contexto do qual participa, enquanto
sujeito que faz suas escolhas e compreende diferentes perspectivas presentes, aspectos
que já foram abordados anteriormente quanto à questão do simbolismo.
As situações a seguir contam sobre as experiências com música:
“Ele canta” – dizia a Duda. A pro Monica pega o rádio e coloca “Assim sem
você”. O Arthur canta vários trechos, fazendo uma voz diferente, em falsete. A
música acaba e as meninas pedem de novo. O Arthur faz gestos, sorri, anda
pela sala. Quando começou a faixa seguinte, o Arthur foi até o rádio. Olhou ao
longe para os adultos. “Aperta” – eu falo. Então ele aperta e “pausa” a música.
“Olha, é esse.” – explico como volta a música. A pro Monica pergunta: “Ele
179
quer voltar?” Digo que ele já aprendeu como fazer. Com autonomia, ficou
voltando a música várias vezes. (Caderno de Notas 22, 07 de novembro de
2014).
Na sala, a pro Monica explica a brincadeira “Hoje precisa de música e na
quadra não dá pra ouvir” – ela comenta. “Antes de começar a brincadeira, nós
vamos ouvir a música”. As crianças sentam em roda, o Arthur também. “Abre
a roda tindolelê, abre a roda tindolalá”. Enquanto a música toca o Arthur se
afasta, deita no chão com a barriga pra baixo. As crianças começam a cantar,
acompanhando a melodia, batem palmas, dão as mãos (...) Pro Monica chama o
Arthur para participar da brincadeira: “Vamos Arthur, dançar com a pro?”.
Então ele vai para perto dela, fica de mãos dadas e participa... Na hora de bater
palmas, o Arthur acompanha, solta a mão de pro e depois procura as mãos dos
amigos para fechar a roda novamente. A pro diz: “Olha, dá a mão para o
Arthur, ele está dando a mão pra vocês” – assim as crianças seguram e voltam
para a roda. Ele participa de toda a proposta, com reboladinha e tudo. Ao fim
da música, a pro propõe “de novo!” E as crianças reafirmam em coro: “Eeee!”.
Desta vez participo da roda. Depois pergunto para a pro Monica se é a primeira
vez que ela faz esta roda. Ela conta que no ano anterior, trabalhou muito com
música e que foi esta a forma que ela encontrou de incluir o Arthur nas
propostas da escola, por que ele adora música. Mas que esta roda, com este
tema era a primeira vez. O Arthur participou tendo como referência o grupo de
crianças, enquanto coletivo, e não os adultos. (Caderno de Notas 17, 06 de
outubro de 2014).
“... em seguida fomos para a quadra e a Keila organizou uma atividade com
uma música do grupo Palavra Cantada e para acompanhar o ritmo folha de
papel sulfite dobrado em quatro partes e para fazer o batuque canetinhas, foi
muito legal e mais ainda ver o Arthur acompanhando o ritmo certinho, ele fazia
igualzinho a Keila.” (Caderno de Planejamento e Registros, professora Monica,
maio de 2013).
Observa-se, nesses exemplos, a participação e o envolvimento do Arthur de
forma harmônica com as outras crianças. O primeiro relato demonstra o prazer que ele
sentia nessas experiências e o interesse em se apropriar do funcionamento do aparelho
de som. No segundo, evidencia-se uma habilidade da criança para seguir os padrões
musicais utilizando o corpo, sendo esta proposta de trabalho, inclusive, uma estratégia
adotada pela professora Monica para ampliar sua participação nas atividades escolares.
O terceiro relato traz uma experiência do ano anterior à pesquisa de campo, em que já se
nota a facilidade do Arthur em acompanhar esta forma de linguagem.
Mariano (2015) propõe a articulação entre a linguagem musical e os processos
imitativos. A autora explica que as crianças, a partir da imitação, passam a decifrar e
compreender o código da cultura musical. Esse código é composto por uma variedade
de padrões tonais e rítmicos, que são percebidos desde a primeira infância. Os processos
imitativos possibilitam à criança ampliar este repertório e, ao perceber as diferenças que
compõem tais padrões, emerge também a construção de relações entre eles. É desse
180
modo que a música se torna uma linguagem, enquanto forma de expressão humana
intencional e consciente, da qual cada criança se apropria a sua maneira. A articulação
entre a linguagem musical e os processos imitativos traz duas reflexões principais
quanto ao envolvimento do Arthur nessas propostas: o questionamento sobre sua
capacidade para coordenar diferentes perspectivas e o modo como estabelece seus
processos imitativos.
Em todos os trechos descritos, o Arthur estava junto ao grupo de crianças, o que
já lhe foi uma conquista, se considerada sua trajetória escolar. Mas brincar junto ao
grupo é diferente de brincar com um grupo. A linguagem musical traz consigo um
padrão determinado e, com isso, a possibilidade de que os comportamentos sejam lidos
por todos os participantes do grupo. Ainda que haja traços da personalidade de cada um
enquanto diferença ou marca de sua individualidade – como gestos, expressões faciais
ou modos de tocar os amigos durante a atividade – o que sustenta a proposta transcende
essas características. Então, nessas situações, não se pode afirmar que há um verdadeiro
compartilhamento de informações que se entrecruzam entre os membros, já que todos
eles compartilham da mesma representação, de um mesmo padrão imposto pelo código
musical. É como se a linguagem musical cumprisse papel organizador para o Arthur,
quer dizer, é como se coordenar-se ao grupo não fosse mais um desafio para ele, por que
a música apreende as diversas perspectivas entre os participantes e sobrepõe apenas a
sua própria representação como base. Bastaria propor uma discussão em roda após essas
atividades, como uma apreciação com levantamento de hipóteses sobre seus elementos,
e provavelmente, ainda que o Arthur tivesse suas próprias elaborações, não conseguiria
compartilhá-las ou comunicá-las aos outros. Nesse sentido, corrobora-se com Caspurro
apud Tormin (2014), que considera a música uma forma de comunicação humana, mas
não é uma linguagem propriamente dita.
Nessas situações, a habilidade do Arthur em reproduzir os padrões musicais era
admirável. Isso por que seus processos imitativos seguiam à risca o modelo e faziam
com que ele entrasse em sincronia com a proposta. Tormin (2014) explora os diversos
estágios no desenvolvimento musical das crianças e conclui que a imitação não pode ser
uma etapa final, já que não privilegia a atuação musical autônoma e independente.
Assim como já explorado nas outras categorias de análise, a imitação é uma estratégia
utilizada pelo Arthur em suas aprendizagens, mas não se registrou nenhuma criação
181
durante estas propostas, nenhuma reelaboração a partir da linguagem que ele havia se
apropriado. Essa reflexão indica, mais uma vez, que os processos imitativos do Arthur
são mais próximos a cópias de um modelo do que a ressignificações sobre a realidade.
A próxima situação demonstra outra experiência em que há uma linguagem
compartilhada, que não a verbal, que também organiza os comportamentos das crianças:
Transcrição
Ao som de “Fico assim sem você” –
Claudinho, interpretada por Adriana
Calcanhoto.
Profa. Monica: “Lá no chão... com as
costas... lá no chão”
Profa. Monica: “Pra trás, pra trás”
Profa. Monica: “Com uma mão... eu
vou lá trás oh... Com a outra mão...”
Profa. Monica: “Volto... isso... coloca
no braço e... rodo... paro... sento...
agora a gente vai fazer a mesma coisa
sentado... vamo ir lá no chão... vai lá
no chão... subiu... do outro lado...
subiu... lá pra frente... oh lá... volto...”
As crianças pedem de novo.
Descrição
Crianças vão imitando os movimentos
propostos pela professora Monica. Ela
faz a comunicação verbal e gestual,
crianças em roda seguem imitando. O
Arthur participa conforme as outras
crianças, sem qualquer intervenção
específica direcionada a ele.
(Vídeo 31, arquivo sala da professora Monica, 2014).
Percebe-se que as atividades que contavam com linguagens de natureza ritmada,
como a música e a dança, influenciavam no grau de participação do Arthur, embora não
fossem propostas coletivas, tal como os jogos em grupo, em que o compartilhamento de
regras sucessivas é passível de transformações. Nos casos apresentados, a proposta era
reproduzir determinada regra, quer dizer, compartilhar de uma mesma informação de
modo direto, o que já se discutiu ser acessível ao Arthur.
Partindo desse raciocínio, será que as situações de brincadeiras com histórias ou
rodas cantadas também viabilizam a participação do Arthur, visto que trazem um
argumento que sustenta a brincadeira? Seria o argumento um organizador da atividade?
As próximas situações ilustram algumas vivências:
“Com bambolês, brincaríamos com a história dos três porquinhos: os bambolês
seriam as casinhas dos porquinhos e enquanto a música tocava os porquinhos
tinham que andar e dançar pela floresta e quando a música parava o lobo tinha
que sair para pegar os porquinhos que tinham que voltar correndo para as
“casinhas”. Adivinha quem foi escolhido para ser o lobo, eu mesma, levei uma
canseira das crianças, eu e a Lia que se ofereceu para ser lobo na segunda
rodada. Foi bem gostoso, apesar da agitação, pois foi possível ver o Arthur
correndo durante a atividade e voltando para o bambolê quando a música
182
parava, nem eu e nem a Lia pegamos as crianças, pois eu apenas queria que as
crianças entendessem a brincadeira, da próxima vez quem for pego saíra do
jogo.” (Caderno de Planejamento e Registros, professora Monica, abril de
2013).
“As atividades realizadas nos espaços externos da sala continuam sendo para
ele um momento de explorar o movimento, de correr, sem se entreter muito às
propostas que estão sendo realizadas, mas já é possível observá-lo mais atento
ao grupo, ao que estamos fazendo e em alguns jogos e brincadeiras há sua
participação (Patinho-feio, jogos com bambolê, algumas brincadeiras de correr)
e principalmente todas que há música (ex: Rodas cantadas), aliás momentos
onde a música se faz presente continua sendo uma grande ferramenta para
chamar sua atenção e seu envolvimento”. (Relatório de aprendizagem,
novembro de 2014).
Então a pro Monica propôs uma brincadeira em roda: o jogo dos ratinhos.
Nesta brincadeira, as crianças ficam dentro da roda e os amigos impedem a
saída. “Tem ratinho aí?” – a pro questiona. “Tem!” – dizem os ratinhos. “Vai
sair?” – a pro questiona novamente. “Não!” – o grupo responde. Segundo a pro
Monica, o Arthur participa deste jogo. (Caderno de Notas 23, 10 de novembro
de 2014).
Nessas atividades, similar a presença de música, todos imitam um mesmo
comportamento, guiado por um argumento ou história. Também há a percepção e
interpretação de uma única referência, sem necessidade de articular informações que se
entrelacem no decorrer da atividade. No jogo das casinhas dos três porquinhos, no início
a oposição entre som/silêncio despertou o interesse do Arthur, que passou a participar
da proposta e compreender a significação ali compartilhada. O jogo dos ratinhos é ainda
mais elaborado, já que não há música que estruture a proposta, é a própria repetição das
falas e comportamentos dos participantes que insere uma representação estável: “Tem
ratinho aí? Tem! Vai sair? Não!” – e as crianças impedem que os amigos saiam da roda.
Segundo Elkonin (1998), os jogos com argumento inserem novos sentidos às
ações. Diferente de uma linguagem que organiza as informações e assim viabiliza a
participação do Arthur, “a introdução do argumento acelera a objetivação das ações e
ajuda a dirigi-las” (Id., p. 367). Quanto mais as crianças são capazes de interpretar o
sentido que sustenta o jogo, mais se comprometem com a execução de ações que deem
continuidade à brincadeira.
Nas situações apresentadas, difícil concluir se o Arthur participava efetivamente
da proposta por que compreendia o sentido ali compartilhado ou se seguia as ações do
grupo de crianças por imitação. O sentido do jogo, quando as brincadeiras partem de
histórias ou quando são rodas cantadas, está na interpretação do papel. No jogo dos
183
ratinhos, a “criança ratinho” não pode sair: há uma regra elementar que se funde ao
papel interpretado pela criança. Os parceiros, que compõem a roda, não podem deixar o
ratinho sair, ou seja, buscam ações também condizentes com a regra do jogo:
Em resumo, podemos dizer que o argumento muda no jogo o sentido que ele
tem para a criança. Se, no jogo, se percebe algum sentido oposto à regra, é que
não se a acata; e se o sentido do papel interpretado pela criança inclui alguma
regra, isso leva a acatá-la. Em tal caso, a regra funde-se com o papel e não sai
dele. Nas etapas seguintes desmembram-se a regra e o papel e o sentido do
jogo para a criança reside precisamente em interpretar o papel de acordo com
as regras. (ELKONIN, 1998, p. 371).
Esse processo de acatamento à regra a partir do sentido que possui no jogo é o
primeiro sinal de submissão da criança ao papel, tornando esta reflexão essencial para se
pensar sobre as possibilidades do Arthur. Daqui se extrai duas hipóteses: a primeira é
que se a criança faz essa leitura e acata a regra, então ela participa interpretando seu
papel no jogo; a segunda, se a criança não faz essa leitura, mas participa do jogo, é por
que segue por imitação o comportamento das outras crianças que, nesses tipos de jogos,
são similares ou praticamente iguais.
A obra de Elkonin (1998) propõe que o acatamento à regra nesses jogos orienta
a organização das informações presentes e acontece junto com a objetivação das
próprias ações que contribuem para o seu maior controle. Assim, para acatar à regra,
embora o argumento mobilize o processo para tal, a criança necessita utilizar-se de seus
recursos para organizar as regras de comportamento, dentre compará-las e avaliá-las no
decorrer da brincadeira, e escolher que postura adotar face as outras crianças, ao dirigir-
se e posicionar-se diante o jogo. Considerando esse aspecto, o acatamento à regra e a
interpretação do sentido do jogo exigem que o Arthur sistematize estas informações e
passe a controlar suas ações, tendo como objetivo sair da roda (se ratinho) ou impedir a
saída do outro (se de mãos dadas com os colegas), o que é compartilhado com as outras
crianças. Ao avaliar seu desempenho, na primeira situação, evidenciou-se ser a pausa na
música o direcionador de sua ação e não a submissão ao papel, o que leva a pensar que
o Arthur seguia a música e imitava o comportamento do grupo de crianças. Já no caso
do jogo dos ratinhos, essa ideia não está clara, pois é um jogo com uma regra tão
elementar que esta pode estar fundida ao papel. Como o Arthur não se denomina nem
184
ratinho, nem Arthur, mais provável que não haja sua submissão. Ademais, já se
comprovou sua capacidade para seguir regras elementares e torná-las estáveis.
As próximas situações, sobre os jogos coletivos, complementam essa discussão e
contribuem para a compreensão sobre a natureza do jogo do Arthur:
Na quadra fizemos a brincadeira do Tubarão. A pro Monica separa as crianças
em pequenos agrupamentos, dentro das “ilhas”, representadas por círculos
desenhados no chão. O Misael é o Tubarão e as crianças correm entre as ilhas,
fugindo dele. O Arthur também corre, entra e sai das ilhas, mas parece não
compreender a regra de ficar dentro da ilha para escapar do tubarão. Enquanto
as crianças ficam nas ilhas, o Arthur circula e a criança Tubarão também não
corre para pegá-lo. Ele participa e gosta da correria, mas não se apropria da
regra do jogo. (Caderno de Notas 20, 20 de outubro de 2014).
Pesquisadora: Na brincadeira de Tubarão, o Arthur já foi o Tubarão? Ele segue
as regras do jogo? Como foi?
Professora Monica: Sim, já o convidei para ser o tubarão, mas ele não segue as
regras do jogo com o grupo. Ele corre muito, tanto faz sendo pegador ou não.
A regra de correr, de sair de uma ilha e ir para a outra ele realiza, mas sem
ligação alguma com o pegador, foge a esmo, mesmo sem ninguém ir atrás dele.
(Questionário II, à professora Monica e auxiliar Letícia, 07 de novembro de
2014).
Na quadra brincamos de “Limpa Casa”, um jogo de equipes. Com uma corda
estirada ao meio, muitas bolinhas ficam distribuídas no chão, de um lado o
time das bolinhas azuis e do outro o time das bolinhas amarelas. Ganha que
fica com a “casa limpa”, quer dizer, sem nenhuma bolinha no chão que compõe
seu território. O time rival joga as bolinhas para o outro lado. Os ajudantes
foram definindo as equipes escolhendo os colegas. Enquanto isso, o Arthur
estava correndo pela quadra, ao longe, mais interessado na corda que na
composição da equipe. A pro Monica decide o grupo do qual ele participa.
Como ele adora jogar as coisas para o alto, esse jogo é uma forma de significar
e contextualizar seu interesse. A pro Monica vai administrando o jogo:
“Bolinha no chão e mão pra cima! Bolinha no chão e mão pra cima!
Valendo!!!” As crianças correm, gritam e dão muitas risadas, gargalhadas.
Adoram a brincadeira proposta! Como estamos ao ar livre, o vento ajuda um
dos times, por que empurra as bolinhas para o outro lado. “Este time ganhou de
novo!” – comenta a professora Monica. Mas as crianças não entendem a piada.
Então a pro propõe a troca de equipes. Vou correr e participar desta segunda
vez. Na sala, pergunto para a professora Monica se ela acha que o Arthur
compreende a regra deste jogo, de manter a “Casa Limpa”. Ela diz que não,
com certeza, por que ele joga dos dois lados. “Ele gosta de jogar as bolinhas”.
(Caderno de Notas 16, 29 de setembro de 2014).
Pesquisadora: Eloi, você brincou de pega-pega?
Eloi: Eu não fui o pegador.
Pesquisadora: Quem é que foi o pegador? Cê não sabe os amigos que pegaram?
Misael: Foi eu, a Laís e a Eliana.
Pesquisadora: O Arthur é pegador também? [sinalizam que não].
Misael: Não.
Pesquisadora: Por que que o Arthur não pode ser pegador? Nunca foi o Arthur
o pegador? [sinalizam que não]. Nunca? Ele pode descongelar?
Misael: Não. Ele não sabe não.
185
Pesquisadora: Não sabe não? [as crianças parecem não gostar do
questionamento e desconversam].
(Áudio 4b, 6 de outubro de 2014).
Nessas situações, há uma inabilidade para coordenar-se no grupo a partir das
informações que ali se articulam. O jogo de regras, quando usufrui de maior número de
participantes, pressupõe sucessivas percepções e constantes interpretações e tomadas de
decisões, que possibilitem o engajamento no jogo de acordo com o que cada
participante infere. O Arthur demonstra dificuldades para se organizar perante situações
que lhe exijam coordenar-se desse modo e quanto maior o número de participantes no
jogo, maior o desafio para ele. Na brincadeira de Tubarão, por exemplo, ele imita o
comportamento do grupo de crianças, correndo e por vezes entrando e saindo das ilhas,
mas sem nenhuma relação com o objetivo central do jogo, o que valida a argumentação
anterior de que não há sentido para o Arthur a submissão ao papel.
Kamii e DeVries (2009) explicam como se configuram os jogos coletivos. Cada
participante da brincadeira necessita encaixar-se em papéis que são interdependentes,
opostos e cooperativos. As autoras citam o jogo de esconde-esconde que, tal como o
jogo dos ratinhos, possui regras arbitrárias entre esconder/achar (esconde-esconde) e
entre entrar/sair (no jogo dos ratinhos). Em primeiro momento, os jogos coletivos têm
regras interdependentes e opostas por que a intenção de um participante é impedir que o
outro atinja seu objetivo. Na brincadeira de Tubarão, por exemplo, pode-se dizer que
uma de suas regras elementares seria entrar/sair das ilhas, outra fugir/pegar. São regras
estáveis que condicionam o jogo e possuem característica oposta e binária.
Outro elemento que compõe os jogos coletivos é seu caráter cooperativo, isto é,
as estratégias pensadas pelas crianças colaborativamente para que os objetivos sejam
alcançados. Nesse sentido, os jogos em grupo adquirem complexidade: esconde/achar
pode ter um planejamento prévio entre os participantes, entrar/sair da roda no jogo dos
ratinhos pode contar com combinados do grupo. Já no jogo de Tubarão, este não ocorre
sem a cooperação entre as crianças: entrar/sair das ilhas é uma regra oposta que já está
condicionada à regra de fugir/pegar. O Limpa Casa também apresenta esta natureza: em
primeiro momento, os papéis interdependentes e opostos são exercidos pelas duas
equipes, mas, dentro de cada equipe, os participantes precisam dialogar, interpretar
comportamentos uns dos outros e posicionar-se diante da equipe rival para conquistar a
186
vitória. As possibilidades que compõem as estratégias nas brincadeiras de Tubarão e
Limpa Casa são inúmeras e, sem a coordenação dos diversos pontos de vista, o jogo não
acontece. Em alguns jogos coletivos nem sempre este encadeamento entre regras faz-se
necessário, em outros, ele é fundamental.
Nesse sentido, tanto o jogo dos ratinhos e quanto a brincadeira com bambolês
para representar as casinhas dos três porquinhos é bastante similar à proposta de
Coelhinho sai da toca:
Pode até se dar como jogo de colaboração, no qual todos tem uma toca. Esse
jogo permite uma certa variedade de visões, possibilitando que cada criança
exercite sua maneira específica de jogar. Essas diferentes visões, às vezes,
levam a uma quebra do jogo. No entanto, ele não depende sempre da completa
concordância de ideias, e a existência de diferentes visões apresenta às crianças
a possibilidade de se tornarem conscientes das ideias de todos. Contudo, muitas
jogadas são individuais ou sem coordenação com a de qualquer outro jogador,
ou então coordenadas com um jogador de cada vez. (KAMII e DEVRIES,
2009, p. 241).
Essas brincadeiras têm como possibilidade a não coordenação entre os diversos
pontos de vista entre as crianças para que ocorra, não depende necessariamente disso. Já
os jogos competitivos e em equipe, como Tubarão e Limpa Casa, são colaborativos em
essência e, por isso, não abrem esta possibilidade. Essa argumentação dá sentido ao
comportamento do Arthur em suas possibilidades de inserção em brincadeiras que não
dependem da colaboração entre parceiros e sua inabilidade para coordenar-se em jogos
em equipe. Tal peculiaridade do Arthur é facilmente interpretada pelas outras crianças,
quando sinalizam, na última situação descrita, que ele não pode ser o pegador por que
não sabe brincar: “Não. Ele não sabe não.” – diz o Misael.
De acordo com a definição de Kamii e DeVries (2009) sobre os jogos coletivos,
as situações analisadas anteriormente sobre as propostas com música não podem ser
consideradas jogos, por que embora exijam uma regra e um modelo a seguir, não se
configuram a partir de papéis opostos, nem há um objetivo claro a ser alcançado. Para
essas autoras, os jogos em grupos devem conter várias ações, articuladas entre si, nas
quais diversas perspectivas dentre os participantes são consideradas. Essas brincadeiras
possuem “valor cognitivo” ao requerer da criança o planejamento, o levantamento de
hipóteses, o estabelecimento de relações, entre outras estratégias, para a organização e
descentralização de seu pensamento.
187
O jogo coletivo faz com que a criança descentralize seu pensamento para
reconhecer outros pontos de vista, coordenando-os num sistema composto por ações
interligadas. Ao isolar informações e abstrair propriedades, há a descontextualização de
determinado conhecimento, que passa a ser utilizado em outros contextos. As ações e
regras apropriadas pelas crianças no decorrer do jogo desligam-se de sua percepção
imediata e assumem novas funções. A brincadeira vai adquirindo complexidade na
medida em que a criança faz escolhas, quando se situa no contexto de significações e o
amplia, encadeando novas variações, definindo novos temas, inserindo sua marca
pessoal. O pensamento generalizante é construído por relações voluntarias e é essencial
na construção de sínteses a respeito da experiência. Eis o funcionamento simbólico:
E não se trata apenas de que no jogo se formam ou se desenvolvem operações
intelectuais soltas, mas de que muda radicalmente a posição da criança em face
do mundo circundante e forma-se o mecanismo próprio da possível mudança
de posições e coordenação do critério de um com os outros critérios possíveis.
Essa mudança oferece precisamente a possibilidade e abre o caminho para que
o pensamento passe a um nível mais elevado e constitua novas operações
intelectuais. (ELKONIN, 1998, p. 413).
A mudança no funcionamento psíquico para outro nível articula-se à formação
de conceitos (Vygotski, 1997). Contudo, esse processo não se verificou no Arthur, não
exatamente dessa forma. Do mesmo modo que nas situações de brincadeira estruturada,
ele reproduzia ações soltas com regras elementares e sem conexão com o contexto
amplo do jogo. Para Vygotski (1997, 2008), a brincadeira de faz-de-conta já contém
regras. A imaginação parte de elementos tomados da realidade que, por sua vez, estão
fundamentados por leis específicas e normas de conduta. No jogo simbólico, tais regras
estão ocultas e há predomínio do imaginário para o controle da atividade lúdica (Id.,
1986). Importante ressaltar que este processo é diferente do que propôs Piaget (1990),
que não ressalta a presença de regras no jogo simbólico e sim apenas na etapa posterior.
Por isso, ao analisar as ações do Arthur em brincadeiras estruturadas e nos jogos em
grupo, nota-se que seu comportamento repetia um mesmo padrão, de aprendizagem de
esquemas elementares que não se relacionavam entre si. A diferença consiste em que na
dramatização, como as regras estão ocultas, seu comportamento era interpretado como
um ritual, com destaque para o imaginário. Nesta brincadeira, as regras elementares que
a criança segue não são nitidamente interpretadas como regras pelos outros participantes
188
do jogo, nem pelos adultos. Já nos jogos em grupo, como as regras estão explícitas, esta
característica configurava-se como inabilidade do Arthur, por que os outros
participantes percebiam claramente que ele não seguia as regras contextuais e sim
apenas ações elementares, o que o levava à posição de quem não sabia brincar.
Pensar a questão do simbolismo para o Arthur, sob o enfoque da abordagem
Histórico-cultural, relaciona-se a seu potencial de interpretação de regras contextuais
que vão se tornando cada vez mais explícitas, na medida em que a criança adquire
consciência de quem ela é (ELKONIN, 1998). No início, tal interpretação condiciona-se
aos membros do grupo quanto ao estabelecimento de parcerias por que é apenas na
interação com o outro que essa criança poderá estabelecer comparações, perceber-se e
fazer escolhas. Conn (2014) pontua a importância da linguagem verbal para que seja
sustentada uma parceria entre as crianças que compartilham de um mesmo contexto.
Kangas et. al. (2012) também concluem que essas crianças podem brincar quando suas
habilidades de comunicação verbal estão suficientemente desenvolvidas. Para o Arthur,
embora também não houvesse fala totalmente preservada, era difícil posicionar-se
perante o grupo de crianças. Tal como na segunda categoria de análise, não era apenas a
linguagem verbal, mas a linguagem em relação ao protagonismo da criança.
189
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O barrigão do papai...
--- Arthur
Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões
numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela
aumenta suas conexões... A Pantera Cor-de-rosa nada imita, nada reproduz;
ela pinta o mundo com sua cor, rosa sobre rosa, é o seu devir-mundo...
--- Deleuze e Guattari
Durante esta investigação, argumentou-se sobre a brincadeira de crianças com
transtornos do desenvolvimento, mais especificamente os que se enquadram no espectro
do autismo. Mediante o estudo de caso de inspiração etnográfica, a intenção inicial era
verificar como evoluem as relações da criança com o lúdico e se foi possível o jogo
simbólico, considerando as experiências desenvolvidas na educação infantil.
Ao refletir sobre a realidade brasileira que subsidiou o núcleo de pesquisa para
este estudo, conclui-se que esta unidade escolar não pode ser considerada um parâmetro
nacional. Havia uma frequência em média de dezesseis crianças na sala da professora
Monica, um trabalho reflexivo por parte de uma atuação colaborativa entre professora
da sala regular, professora do atendimento educacional especializado e equipe gestora.
Demais educadores participavam do processo sempre respaldados pelas discussões
realizadas, principalmente no que tange à organização dos tempos e espaços escolares e
à participação do Arthur nas propostas. Um trabalho extremamente consciencioso, que
não reflete a realidade nacional quando se pensa na desvalorização do magistério
(GATTI, 2010; KRAMER, 2006; KISHIMOTO, 2005).
Para o Arthur, revelaram-se seus avanços, num processo que foi documentado
com maior propriedade a partir do estudo realizado. As reflexões apontaram para a
importância do olhar para a criança em seus projetos vida e suas brincadeiras
particulares, viabilizado mediante o enfoque metodológico do estudo, em seu processo
de produção e categorização dos dados. Ainda que não fosse um dos objetivos iniciais
190
dessa investigação, o uso de áudios, vídeos, questionários, entrevistas, caderno de notas
e dos registros e relatos diversos da professora compuseram um acervo semelhante à
documentação pedagógica com vistas à historicização do processo de inclusão escolar
do Arthur no período que corresponde aos anos 2012 a 2014.
Constatou-se que a criança não estava totalmente alheia ao mundo. O Arthur
tinha amigos e estabelecia com eles relações de amizade, com suas preferências e
conflitos. Há duas formas para interpretar essas interações: a primeira é afirmar que seu
acesso ao outro é “restrito”; a segunda é dizer que seu acesso é diferente. É o olhar do
outro que qualifica sua participação. Na escola regular, os diversos olhares lançados ao
Arthur revelaram sua singularidade para além do que poderia ser denominado como
uma patologia. O processo de inclusão escolar foi verdadeiramente significativo para
ele. Considerando o amplo leque dos quadros de transtornos do desenvolvimento, não
se espera generalizar esta conclusão, mas validá-la sob a ótica do que foi possível para o
Arthur por que, no seu caso, houve igualdade de um direito à educação na infância sem
reduzi-lo a uma identidade definida por um parâmetro de normalidade.
Mas em que medida seria a brincadeira do Arthur um jogo simbólico? Como
responder à pergunta norteadora deste estudo? Ao dar visibilidade à brincadeira do
Arthur, partindo das duas questões – De que ele brinca? Com quem ele brinca? –,
consideraram-se as ações com conotação simbólica, bem como a interação que ele
estabelecia com as outras crianças e educadores para engajar-se num jogo de natureza
social e cultural.
Para Elkonin (1998), nem todo brincar pode ser considerado atividade principal.
Para que promova o desenvolvimento psíquico da criança, a brincadeira necessita
algumas características, como a imitação de ações simbólicas, a linguagem que cria
cenários imaginativos, o entrelaçamento de temas, a submissão a papéis multifacetados
e a estrutura de tempos estendida (BODROVA e LEONG, 2007). Tais características
não se consolidaram no jogo do Arthur. Seu brincar demonstrou outra natureza, mais
repetitiva e fiel ao modelo representado. Quando ele utilizava e substituía objetos com
finalidade lúdica, estes cristalizavam sua ação, sem que fosse possível atribuir vários
sentidos ao objeto durante o jogo. Sua linguagem não subsidiava a criação de enredos,
resultando em cenários pouco elaborados, nos quais se repetiam as mesmas ações, ainda
que com personagens diferentes. Desse modo, os temas explorados não se integravam.
191
O Arthur não compreendia a entrada de personagens diversos para compor a trama, já
que isso lhe exigia coordenar os vários pontos de vista de cada criança em seus papéis.
Cada papel é assinalado por particularidades próprias, como a entonação e as atitudes da
criança. A escolha de personagens, a montagem do espaço para brincar e os dias em que
as crianças brincaram, perpassando os mesmos temas, compõem uma estrutura
estendida do tempo, até que seja possível sua auto-regulação com relação aos outros
membros do grupo. Todas essas características apontam que, para o Arthur, o jogo
simbólico não atingiu a complexidade que deveria, embora tenha se manifestado de
forma latente em diversas situações. Como não havia na sua brincadeira a necessidade
de agir como um adulto, não havia motivação que o orientasse a adentrar o jogo como
atividade principal (ELKONIN, 1998). A repetição de ações, ainda que com conotação
simbólica, não traduzia uma realidade contextual, que deveria ser representada mediante
a situação imaginária.
Não que o Arthur não pudesse participar. Mas, necessário enfatizar, seu jogo era
diferente. Importante validar essa diferença por que a brincadeira não pode ser vista
como um conteúdo da educação infantil e sim como eixo que orienta as propostas
ofertadas às crianças. O seu jogo diferente é também um brincar, orientado por seus
interesses e projetos pessoais. Essa diferença pode não ser percebida pelo outro,
essencialmente os adultos, que podem interpretar seu jogo como rituais sem sentido ou
reafirmar sua posição como a criança que “não sabe brincar”.
O Arthur representava o social de modo elementar e binário, por que ele também
estabelecia suas relações deste modo. Suas amizades eram aos pares, sua interpretação
das regras presentes em jogos em grupo era direta, sem alcançar o entrelaçamento das
diversas referências que, assim, não eram compartilhadas com as outras crianças na
construção de estratégias que lhe possibilitassem a conquista do jogo. Se a leitura de
mundo do Arthur apresentava-se de forma elementar e binária, como esperar que,
durante sua dramatização, ele representasse algo que, para ele, ainda não fazia sentido?
Nesse caso, há o indicativo de que deveria ocorrer uma transformação na sua forma de
leitura de mundo, já que, de acordo com a abordagem Histórico-cultural, esse seria o
caminho para que seu funcionamento psíquico passasse para um nível superior, com a
formação de uma consciência de modo integral, isto é, com funções psíquicas superiores
conectadas entre si.
192
Foi visto que, para Vygotski (1997), nesses casos há insuficiência do processo
de mediação. Uma hipótese é que há uma evolução gradativa de níveis de dificuldades
para viabilizar a participação efetiva do Arthur nas propostas. Para Kangas (2012), em
grupo as crianças estão mais propensas à simbolização por que precisam coordenar
diferentes referências para participar da brincadeira. Sendo assim, quanto maior o
número de participantes, maior o desafio; não apenas para ele, mas para os outros, que
precisam insistir cada vez mais na manutenção do vínculo. Inserir mais de um parceiro
no jogo é atuar em sua ZDP até que ele possa reconhecer as perspectivas de outros
participantes em relação a sua própria atitude e, assim, posicionar-se diante do outro.
Kamii e DeVries (2009) estabelecem três critérios para que o jogo seja produtivo: a
proposta deve ser interessante e desafiadora, a necessidade da auto-avaliação ou auto-
regulação e que todos participem ativamente do início ao fim da atividade. Por isso, o
olhar para o jogo do Arthur deve contemplar propostas nas quais ele possa reconhecer a
si mesmo, e situações em que seja possível sua participação prazerosa. Neste trabalho
educativo, com certeza sua relação com as atividades lúdicas seriam potencializadas,
mas não é possível afirmar até que ponto haveria uma transformação na sua forma de
leitura de mundo e na formação de sua consciência de modo integral.
Portanto, retomando a crítica aos documentos oficiais e referências teóricas
exploradas principalmente na introdução deste estudo, pontua-se que, nesta pesquisa, a
criança era capaz de imitar e, com isso, apropriar-se de diversos modelos e esquemas de
ação. Brincar sozinho também possuía suas vantagens para seu desenvolvimento por
que possibilitava o levantamento de hipóteses e a consolidação de esquemas mentais.
Este processo, no entanto, carecia de ressignificações na cultura e constatou-se
dificuldade da criança em despreender-se do outro, coordenar diferentes perspectivas e
posicionar-se diante das situações. Este quadro concebe uma consciência que não se
organiza de modo integral (VYGOTSKI, 1997), que não faz generalizações, já que se
apropria das experiências de forma elementar e fragmentada. As diversas referências
teóricas que apontam a “falha” na meta-representação (ASSUMPÇÃO JR., 1997;
FERNANDES, 2009a), no simbólico (JERUSALISKY, 1984), fazem alusão a este
processo. Justifica-se esta investigação em seu esforço para centrar seu olhar na criança,
na construção de uma referência que parta da abordagem Histórico-cultural, mais
acessível no cenário da educação nacional.
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204
ANEXOS
Anexo I
À Secretaria de Educação de São Bernardo do Campo – Seção de Educação Infantil
Departamento de Ações Educacionais
Eu, Mariane Falco, RG n. 30518656-5, aluna do programa de Pós-graduação nível Mestrado da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) conforme dados expressos em carta de
apresentação assinada por minha orientadora, Profa. Dra. Tizuko Morchida Kishimoto, caso seja
autorizada a realização de minha pesquisa na rede municipal de ensino de São Bernardo do Campo,
solicito:
Informações sobre quais Escolas Municipais de Educação Básica (EMEBs), modalidade Infantil
de 0 a 6 anos, recebem serviço de Atendimento Educacional Especializado (AEE) direcionado
especificamente para crianças com transtornos globais do desenvolvimento ou síndromes do
espectro autista;
A intenção é mapear as instituições escolares frequentadas por essas crianças para delimitar
estudo de caso etnográfico. Será dada prioridade às escolas que apresentarem mais de uma
criança com quadro de transtornos, com matrículas no período da tarde.
Autorização de acesso às referidas escolas, no que tange a conhecer: 1) a gestão; 2) o
profissional do serviço de AEE que acompanha a unidade escolar; 3) a professora responsável
pela turma da qual faz parte a criança em questão; 4) o auxiliar de sala (se houver); 5) as
crianças; e 6) o espaço escolar;
Ainda para delimitar o estudo, após o levantamento anterior, o acesso à escola visa apresentar
a pesquisadora e a proposta, verificando quais comunidades escolares gostariam de cooperar e
participar da investigação. Será realizado o contato com a secretaria assim que definido.
Autorização para coleta de dados: observações, fotografias e gravações em vídeo focadas em
situações lúdicas; acesso ao planejamento e registro da professora sobre o brincar; entrevistas;
e, se necessário, participação em discussões com a brincadeira como tema.
São previstos seis meses para a coleta de dados.
Disponho-me a entregar relatórios, visando compartilhar meu trabalho sempre que solicitado
pela secretaria ou qualquer membro da comunidade escolar; também para qualquer eventual
esclarecimento sobre a pesquisa. Assim que concluída, encaminharei a dissertação em formato pdf.
Aguardo deferimento,
Mariane Falco
São Bernardo do Campo,____de_____________de 2014.
205
Anexo II
Consentimento para Participação em Pesquisa
Meu nome é Mariane Falco, sou estudante do programa de pós-graduação da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, n. USP 3462717, e estou realizando uma pesquisa de mestrado
sobre o brincar, sob a orientação da professora Dra. Tizuko Morchida Kishimoto. Minha intenção é
estudar as relações que as crianças estabelecem com o lúdico, visando compreender os fatores influentes
no processo de engajamento no jogo simbólico, isto é, a brincadeira de faz de conta, e interpretar o
quanto isso é significativo para o desenvolvimento na infância.
A pesquisa foi autorizada pela Secretaria de Educação de São Bernardo do Campo e, a partir do
levantamento fornecido pela Seção de Educação Especial, fui encaminhada para esta escola para a
realização do estudo, o qual será realizado durante o ano letivo de 2014. Para isso, farei algumas
observações com foco nas brincadeiras das crianças, registrando-as com anotações, fotografias e
gravações em vídeo. Também pretendo realizar entrevistas, registrando-as com gravador de voz, e ler
documentos, como o projeto pedagógico da escola (PPP), o planejamento e registro da professora, as
devolutivas da coordenadora pedagógica e da profissional do AEE, os relatórios de desenvolvimento da
criança e seu portfólio.
Todos os dados coletados serão transcritos e encaminhados para os agentes envolvidos para que
sejam validados. Caso você não concorde com a transcrição, esta será revista até que você se sinta
contemplado conforme suas crenças, concepções ou opiniões. Ainda assim, se isso não for possível, o
referido material será descartado. Todos os registros serão utilizados para fins exclusivamente de estudo
e a identidade tanto da escola quanto dos agentes será preservada. Reitero que a participação é voluntária
e não inclui nenhum tipo de pagamento.
De acordo com as Resoluções 466/2012, do Conselho Nacional da Saúde, e 4871/2001, do
Código de Ética da USP, é necessário seu consentimento, o qual pode ser retirado em qualquer fase da
pesquisa, sem penalização alguma. Portanto, você apenas participará da pesquisa se autorizar.
Caso haja qualquer dúvida, disponho-me com prazer a qualquer esclarecimento pelos contatos
de email mfalco@usp.br ou telefone celular (X)XXXX-XXXX.
Muito Obrigada.
Eu, _______________________________________________, autorizo minha participação na
pesquisa acima especificada.
São Bernardo do Campo, _______ de ______________________ de 2014.
Nome legível e Assinatura
Mariane Falco
206
Carta à Família – Consentimento para Participação em Pesquisa
Meu nome é Mariane Falco, sou estudante do Programa de Pós-graduação da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, n. USP 3462717, e estou realizando uma Pesquisa de Mestrado
sobre o brincar, sob a orientação da professora Dra. Tizuko Morchida Kishimoto. Minha intenção é
estudar as relações que as crianças estabelecem com o lúdico, visando compreender os fatores influentes
no processo de engajamento no jogo simbólico, isto é, a brincadeira de faz de conta, e interpretar o
quanto isso é significativo para o desenvolvimento na infância.
A pesquisa foi autorizada pela Secretaria de Educação do município e fui encaminhada para esta
escola para a realização do estudo, o qual será realizado durante o ano letivo de 2014. Para isso, farei
algumas observações com foco nas brincadeiras das crianças, registrando-as com anotações e gravações
em vídeo. Todos os registros serão utilizados para fins exclusivamente de estudo e a identidade da escola
e das crianças será preservada. Reitero que não existe nenhum risco para as crianças na participação da
pesquisa, que esta participação é voluntária e não inclui nenhum tipo de pagamento.
De acordo com as Resoluções 466/2012, do Conselho Nacional da Saúde, e 4871/2001, do
Código de Ética da USP, é necessário o consentimento dos pais ou responsáveis legais, os quais podem
decidir retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma. Portanto, a
criança apenas participará da pesquisa se for autorizada.
Caso haja qualquer dúvida, disponho-me com prazer a qualquer esclarecimento pelos contatos
de email mfalco@usp.br ou telefone celular (X)XXXX-XXXX. Ou ainda por correspondência entregue
na escola, que será encaminhada a mim.
Muito Obrigada.
Autorizo ______________________________________________________________
(nome da criança)
a participar da pesquisa acima especificada.
_______ de ______________________ de 2014.
Nome legível, RG e assinatura do responsável
Mariane Falco
207
Anexo III
À Diretora e Coordenadora Pedagógica
Bom dia meninas!
Elaborei este questionário no intuito de conhecer mais a respeito da criança, a qual batizei
carinhosamente de “Arthur”, e sobre sua trajetória escolar. Agradeço o máximo detalhamento nas
respostas. Peço para que me devolvam até o dia 05/09. Por favor, não se identifiquem, nem citem o
nome verdadeiro da criança.
Muito Obrigada,
Mariane Falco, n. USP 3462717
Questionário I – Entregue dia 29/08/2014. Retorno em ___/___.
1) Hoje, como vocês descrevem o Arthur? O que ele faz de particular que o torna quem ele é?
Quais suas características individuais que mais despertam a atenção das pessoas em geral?
2) Quais os principais interesses do Arthur? O que ele mais gosta? Como são suas brincadeiras
preferidas?
3) E o que o Arthur não gosta? O que para ele é de difícil aceitação?
4) O Arthur possui dificuldades na compreensão dos limites do espaço e do tempo? Como vocês
percebem se ele aceita ou não os combinados do grupo? Ele costuma “fugir” da sala? Quando
isso acontece?
5) Como foi a chegada do Arthur à escola em 2012? Como foi o processo de adaptação? Houve
dificuldades? Quais? Como se deu a relação entre escola e família? Como esta relação se
transformou e como é agora?
6) Pensando nos procedimentos de higiene, o Arthur faz uso do banheiro na escola? Como era em
2012 e como vocês percebem os avanços? Ele se auto-manipulava? Como foi o trabalho neste
sentido? Ele conquistou autonomia?
7) Vocês percebem se o Arthur recua perante desafios? Quais? Ele demonstra medos? Como era
em 2012? No passar dos anos, houve mudanças? Quais? Ele ainda apresenta alguma
resistência? Qual? Quando ele passou a participar da rotina escolar?
8) Durante 2012, quais os principais encaminhamentos e intervenções no trabalho com o Arthur? E
em 2013? Em que medida o trabalho desenvolvido nestes anos trouxe resultados para 2014? Por
favor, citem exemplos.
9) Houve redução do número de crianças por turma para contemplar as necessidades do trabalho
com o Arthur? Quantas crianças? Foi autorizada a presença de um auxiliar em educação para a
sala? Quando? Como foi este processo?
10) Outras considerações:
208
À Professora e Estagiária
Bom dia meninas!
Elaborei este novo questionário no intuito de conhecer mais a respeito do Arthur, seu desenvolvimento, o
modo como ele interage com as outras crianças e como ele é visto pelo grupo. Agradeço o máximo
detalhamento nas respostas. Por favor, não se identifiquem, nem citem o nome verdadeiro da criança.
Muito Obrigada,
Mariane Falco, n. USP 3462717
Questionário II – Entregue dia 31/10/2014. Retorno em ___/___.
1) Em geral, como vocês acreditam que o Arthur é visto pelas pessoas que convivem e trabalham
na escola? Vocês acreditam que ele está totalmente inserido na cultura escolar e nas relações
sociais?
2) O que vocês acham o que o Arthur tem de diferente na interação com as outras pessoas? Vocês
notam diferenças no seu contato com os objetos e brinquedos? Como vocês definem seu
comportamento sem dar diagnósticos?
3) Em que medida vocês percebem que o Arthur compreende nossos hábitos, as brincadeiras do
grupo, as consignas das atividades propostas etc?
4) Em que medida vocês percebem que o Arthur é capaz de participar, reproduzir e resignificar
nossa cultura? Por exemplo, em situações de jogos cooperativos, brincadeiras coletivas, rodas
cantadas e música?
5) Em geral, como vocês acreditam que o Arthur é visto pelas outras crianças da turma? Ele é um
amigo que participa das brincadeiras ou é “café-com leite”?
6) Quais intervenções pontuais e diretas vocês fazem (ou já fizeram) para que o Arthur participe
(ou participasse) das brincadeiras? O que parece ser “mais difícil” para ele?
7) Quais brincadeiras vocês percebem que o Arthur é visto pelas outras crianças como um amigo
“importante” no jogo, como um participante da “equipe”?
8) Vocês acreditam que a brincadeira pode ser uma forma de linguagem? Os jogos possuem
significações contextuais?
9) E o Arthur? Ele possui linguagem(ns)?
10) Outras considerações:
209
Anexo IV
Roteiros de Entrevistas
Professora Monica:
1. Solicitação de autorização para gravação e informações sobre a transcrição do áudio
2. Qual sua trajetória profissional? Qual sua formação? Você já estudou sobre os transtornos do
desenvolvimento antes?
3. Como o Arthur chegou até você? Como se deu sua aproximação a ele? Por que você acha que
ele te seguia quando saía da sala e sempre te acompanhava com o olhar?
4. Você pode descrever algumas crianças da sua turma? Como você notava a relação destas
crianças com o Arthur?
5. Nas interações com as outras crianças, como o Arthur estabelecia parcerias? Quem as iniciava?
Acontecia sempre com um parceiro ou você já o viu compartilhando atenção com mais de um
amigo ao mesmo tempo?
6. Nas brincadeiras propostas, você já viu o Arthur sendo personagem? Havia enredo em suas
brincadeiras? Como podemos descrever o “jeitinho” dele brincar?
7. Quanto aos recontos, você já viu o Arthur recontando uma história? Quando e como acontecia?
8. Nas atividades com as sombras, você conta que o Arthur ficava fascinado. Por que você acha
que a proposta lhe despertou tanto interesse? As crianças faziam movimentos para notar as
relações entre as sombras e os objetos?
9. Quando foram ao passeio no Sabina, você conta que o Arthur adorou o dinossauro. O que
acontecia quando ligavam?
10. Há algo que você queira acrescentar?
11. Agradecimento à entrevista e coleta de dados.
Professora Keila:
1. Solicitação de autorização para gravação e informações sobre a transcrição do áudio
2. Qual sua trajetória profissional? Qual sua formação? Você já estudou sobre os transtornos do
desenvolvimento antes?
3. Como o Arthur chegou até você? Como se deu sua aproximação a ele?
4. Você trabalhou com música em 2012, por que você acha que o Arthur se interessava tanto?
Essas atividades mudavam a relação dele com o grupo de crianças? Como?
5. Na apreciação de música indígena, como você observava a percepção e memória do Arthur
quanto aos ritmos musicais?
6. Você lembra da Aninha? Como era a amizade dela com o Arthur? O Arthur tinha algum amigo
mais próximo na sua sala? Como era?
7. E a relação entre o Arthur e a professora que auxiliava sua sala, como era?
8. Há algo que você queira acrescentar?
9. Agradecimento à entrevista e coleta de dados.