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469 ÓPERA FRANCESA: A TRAGÉDIA LÍRICA, A DANÇA, QUER E LL E DES BOU F FONS ” E ILUMINISMO Rod r igo Lopes [email protected] Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista   UNESP PPGM   Mestrado em Musicologia Musicologia/Estética Musical Bolsista CAPES   Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar, refletir e discutir a ópera francesa no período Iluminista. Até aproximadamente à metade do século, prevaleciam nos escritos sobre música comparações, paralelos, polêmicas e querelas em torno de assuntos de caráter preferencialmente geral, como questões de harmonia e melodia, de música francesa e italiana. A música, de um processo imitativo da natureza, passa a ser concebida como uma arte distinta no Século das Luzes, tanto em sua autonomia como em sua especificidade; progressivamente seu valor próprio passa a ser reconhecido, e, com as mudanças da sociedade, ela também sofre alterações. Daí a importância do que foi a tragédia lírica, a dança, as querelas dos bufões em contrapartida à ópera séria francesa, as polêmicas entre músicos e filósofos. A ópera, além de divertimento para as classes superiores, foi também cenário de uma luta entre diversas ideias filosóficas e estéticas, entre diversos gostos, além de solicitar o trabalho de pintores, dançarinos, coreógrafos, ocupando assim um espaço maior dentre as discussões da época. Palavras-chave: ópera; música francesa; século XVIII.  INTRODUÇÃO O Iluminismo foi fértil em relação à filosofia estética. Surgiram muitas obras no meio acadêmico deste período, superando outras anteriores na história deste pensamento. A efervescência causada pelo Iluminismo dá fôlego à filosofia da arte e à crítica estética, e surge nesta época a história da arte como a conhecemos hoje; uma história da arte como um meio de pensar a própria arte como manifestação cultural. Nos séculos XVII e XVIII a ópera, a dança e o teatro caminhavam juntos, e mutuamente compunham um estilo próprio na França. Devido aos estilos próprios de cada país, os chamados estilos nacionais, eles se compunham do caráter, da mentalidade e temperamento de um povo. O aspecto teatral teve como consequência uma manifestação peculiar na personalidade, como a de um indivíduo com todas as suas características, mas transposto na imagem expressiva e particular de um povo. Os franceses eram tidos normalmente como frios, formalistas, perspicazes e controlados, ao passo que, comparados com os italianos, tinha-se a ideia de que estes eram espontâneos, informais e sentimentalistas demais. E esta forma francesa de ser foi incorporada em seus espetáculos, fosse na ópera ou mesmo no teatro e na dança.
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ÓPERA FRANCESA: A TRAGÉDIA LÍRICA, A DANÇA,“QUER E LL E DES BOU F FONS ” E ILUMINISMO 

Rod r igo [email protected]

Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista –  UNESP

PPGM –  Mestrado em Musicologia

Musicologia/Estética Musical

Bolsista CAPES –  Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar, refletir e discutir a ópera francesa noperíodo Iluminista. Até aproximadamente à metade do século, prevaleciam nos escritos sobre

música comparações, paralelos, polêmicas e querelas em torno de assuntos de caráterpreferencialmente geral, como questões de harmonia e melodia, de música francesa e italiana. Amúsica, de um processo imitativo da natureza, passa a ser concebida como uma arte distinta noSéculo das Luzes, tanto em sua autonomia como em sua especificidade; progressivamente seuvalor próprio passa a ser reconhecido, e, com as mudanças da sociedade, ela também sofrealterações. Daí a importância do que foi a tragédia lírica, a dança, as querelas dos bufões emcontrapartida à ópera séria francesa, as polêmicas entre músicos e filósofos. A ópera, além dedivertimento para as classes superiores, foi também cenário de uma luta entre diversas ideiasfilosóficas e estéticas, entre diversos gostos, além de solicitar o trabalho de pintores, dançarinos,coreógrafos, ocupando assim um espaço maior dentre as discussões da época.

Palavras-chave: ópera; música francesa; século XVIII. 

INTRODUÇÃO

O Iluminismo foi fértil em relação à filosofia estética. Surgiram muitasobras no meio acadêmico deste período, superando outras anteriores na históriadeste pensamento. A efervescência causada pelo Iluminismo dá fôlego à filosofiada arte e à crítica estética, e surge nesta época a história da arte como aconhecemos hoje; uma história da arte como um meio de pensar a própria artecomo manifestação cultural.

Nos séculos XVII e XVIII a ópera, a dança e o teatro caminhavam juntos, emutuamente compunham um estilo próprio na França. Devido aos estilospróprios de cada país, os chamados estilos nacionais, eles se compunham docaráter, da mentalidade e temperamento de um povo. O aspecto teatral teve comoconsequência uma manifestação peculiar na personalidade, como a de umindivíduo com todas as suas características, mas transposto na imagemexpressiva e particular de um povo. Os franceses eram tidos normalmente comofrios, formalistas, perspicazes e controlados, ao passo que, comparados com ositalianos, tinha-se a ideia de que estes eram espontâneos, informais e

sentimentalistas demais. E esta forma francesa de ser foi incorporada em seusespetáculos, fosse na ópera ou mesmo no teatro e na dança.

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Segundo Nikolaus Harnoncourt,

“As características essenciais do estilo francês eram: a forma clarae concisa, peças instrumentais de expressão condensada,

movimentos curtos e muito simples e também a ópera, mas esta,de um gênero totalmente diverso da italiana. Era sobretudo umamúsica voltada para a dança, cujas formas racionais e lineareslembravam as da arquitetura dos jardins e palácios franceses. Eracomo se a forma clara e rígida das danças tivesse sido criadaespecialmente para que se pusesse em música o estilo destanação”. (HARNONCOURT, 1988, p. 186).

Ocorre que uma crítica estética e literária por meio da filosofia semanifestará neste período, ocupando discussões em torno da beleza da arte e desua constituição, desdobradas em duas correntes, segundo Cassirer (CASSIRER,1997, p. 367): uma, intelectualista, unindo  poética , estética   e literatura   comodomínio racional; outra, sensualista, que questiona o conteúdo do pensamento pormeio das regras da arte , do gosto  e do belo , concebida por meio do raciocínio oupelo sentimento.

 A corrente intelectualista orientava a arte do mesmo modo que orientavaas ciências, como matemática, física e outros saberes, sem levar em consideraçãoos sentimentos tidos perante a obra de arte, apenas alicerçado sobre as regras ecríticas artísticas descobertas pela razão. Como as regras universais regem a

natureza, as mesmas dirigem as artes, estas, mimeses da natureza,fundamentam o iluminismo ou classicismo francês.É introduzida nesse período a busca de um método dedutivo para as artes,

que se resume ao “princípio da imitação em geral”, como um axioma, dado porCharles Batteux (BATTEUX, 2009, p. 17), em  As Belas Artes Reduzidas a Um

Mesmo Princípio . Esse axioma já estava presente no Renascimento, na ordem dapintura, como dizia Alberti, que “tão grande força tem o que é apanhado nanatureza. Por essa razão devemos tirar da natureza o que podemos pintar, esempre escolher as coisas mais belas” (ALBERTI, 1992, p. 133), onde os preceitos

da mimese acompanhavam os artistas desde sempre. No século XVIII,diferentemente do Renascimento, a unidade das artes pela mimese eleva as artesà categoria de ciência. Música, esculturas, pinturas, poemas, tudo envolve aimitação da natureza, no sentido racional, intelectual.

 A contrapartida sensualista surge na Inglaterra, na figura de David Hume,cuja corrente foi levada para a França por Diderot, em que as artes eramanalisadas a partir do gosto, contra os métodos dedutivos sobre a obra de arte;seus partidários subordinavam a razão aos fenômenos. Ao invés de analisar aarte pelo viés da matemática ou da física, analisava-se pela lente de uma espécie

de “psicologia”, em que os fundamentos do belo estão sedimentados na naturezahumana.

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Surge, assim, a autonomia da obra de arte, em que Diderot trata dodesmerecimento da obra de arte que desrespeita as regras estabelecidas, mas,que suscita os mais belos sentimentos. No Paradoxo Sobre o Comediante , Diderot

diz que o “artista de gênio não busca imitar a natureza comum das coisas, massim entender e reproduzir os sentimentos dos homens” (DIDEROT, 1981, p. 23). Esse pensamento suscitará posteriormente a ideia que se tem atualmente

do artista, como que produz suas próprias obras segundo seus sentimentos e suamaneira de ser, concepção esta que até então era diferente, pois os artistasseguiam os preceitos das artes imitativas, que, segundo um gosto estabelecido,tinham na mimese sua fundamentação.

 A razão não deveria ditar os parâmetros de gosto ou valor, mas explicar osefeitos do porque esses determinados parâmetros são valorizados, pois, apesar

das preferências, as pessoas julgam através da aprovação ou desaprovação,dentro do que é e o que não é opinião comum. A mimese ou imitação era tão importante que mesmo as peças musicais

instrumentais eram interpretadas como representações, por exemplo, de umacena pastoral. Ela se subordinava a conteúdos específicos em sua representação,guardando em si mensagens didáticas.

Na segunda metade do século XVIII temos então na história da estéticamusical a legitimação da música instrumental, que começa a se descolar da arterepresentativa, adquirindo “formas puras” de uma arte profunda. 

Quanto à ópera, a França viveu diversas modificações políticas e sociais noséculo XVIII, eclodindo na Revolução Francesa em 1789, o que se refletiu naópera e nas artes como um todo. Os gostos do rei e da corte neste gênero musicaleram uma maneira de se demonstrar os costumes, comportamentos e regrasmorais daquele momento.

Pela educação pensava-se corrigir e moralizar no sentido de demonstrar oscostumes corretos, o que era um traço do Iluminismo.

Quando a corte passa a ser afetada pela burguesia em ascensão, essasprerrogativas sofrem modificações pelas transformações das regras de gosto, e as

artes e a música sofrem consequências e reflexos desse momento histórico. Aburguesia, ao mesmo tempo em que possui poder econômico, passa a seragradada e “educada” para as regras de conduta do ambiente da corte em quedeseja fazer parte, porém, em contrapartida, influencia a corte com seus modos econdutas.

 A ascensão da burguesia, para a música, traduziu-se na constituição de umnovo público, maior e anônimo, que sob uma comercialização crescente, teve deadaptar-se e do qual se viu obrigada, não a receber ordens como as que lhevinham de príncipes, mas a adivinhar seus desejos, expressos ou não.

 A luta da burguesia contra a aristocracia e o absolutismo manifestou-setambém no plano cultural, e um desses sinais foi a expansão da música paralugares por ela antes pouco frequentados. Assistiu-se a um grande

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música prevalece significativamente evidente. A música e a poesia são artes que,na formulação hierárquica da mentalidade racionalista, devem serdiametralmente opostas uma a outra, uma vez que a primeira se endereça aos

sentidos e a segunda, à razão, e elas se encontram unidas para ser umespetáculo, o que para a mentalidade de um filósofo ou um escritor do séculoXVII, era um absurdo, algo confuso, inverossimilhante, um espetáculo onde aspersonagens que se desenvolviam no palco de forma ridícula e antinaturalchegavam ao ponto de morrerem cantando. É um absurdo a sensibilidade seapresentar em primeiro plano e a racionalidade em segundo, de acordo com aconcepção de gosto do século XVII.

O julgamento de escritores franceses do fim do século XVII, como Boileau,Bossuet, La Motte, e início do XVIII, como Cahusac, é a de que a ópera é em

substância uma tragédia degenerada ou corrompida, como um ajuntamentoextrínseco, onde sua função é a de manter o espectador entretido com umaestética do prazer, como num teatro, baseado num conteúdo intelectual e moral.

Mas a ópera triunfa num sucesso crescente, atraindo um círculo deouvintes cada vez maior. As personagens ali retratadas não fazem osespectadores saírem cheios de gravidade e sentimentos nobres, mas marcam umaternura totalmente feminina, indigna das almas viris ou das pessoas fortes esábias. Para aquele momento, quanto aos costumes, não havia dúvidas de que amúsica moderna dos teatros era prejudicial e estava entre os pontos mais altos

quanto a perturbar os costumes e a moral do povo que entrava em contato comela, inclinando-o a uma vida vil e plena de lascívia, segundo sua concepção.Diferente da ópera italiana, a França valorizou a dança em seu gênero

musical dramático, e esta era o ballet de cour . O elemento formal da óperafrancesa é marcante, cujas árias possuem a rigidez da dança; a ópera francesacombina vários materiais dramático-musicais, em que envolvem a dança, amúsica instrumental e o canto. O que era a “ópera séria” francesa foi a tragédie

lyrique   [tragédia lírica], cujo conteúdo envolvia uma ação mitológica conduzidapelos deuses sempre interrompida por um divertissement  [divertimento] no final

de cada um de seus cinco atos; o divertissement  era um interlúdio dançado, quepoderia ser cantado ou não, era um número como uma masque   teatral, enormalmente não tinha relação com a ação principal. Era comum nesse momentoexistir o uso de maquinarias teatrais, como máquinas voadoras, fogos deartifícios, que geravam maior interesse ao espetáculo, e aqui as diversas dançasfrancesas se faziam presentes, até terminar com uma tempestade desencadeadapelos deuses no último ato.

Todos por natureza rejeitavam a ideia de uma boa ópera; ideia estaapoiada por teóricos dos séculos XVII e XVIII, o que é ausente do ponto de vista

do racionalismo clássico. A música deveria ser expulsa da ópera, condenada namedida em que são reconhecidos seu poder negativo e seu fascínio secreto e

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irresistível; o pior julgamento que se poderia fazer de um poeta é dizer que suapoesia se adaptava bem à música.

 A desconfiança se voltava para o elemento emotivo e passional, e o

reconhecimento implícito de uma afinidade eletiva e secreta da música com basena negação, revela um medo para com a arte do som. A música desperta em nósuma disposição inquieta e vaga para o prazer, que não tende a nada e que tende atudo.

Num primeiro momento, a tragédia lírica parece ter causado um efeitodevastador. A ópera havia se transformado num teatro verdadeiro, possuindouma dimensão dramática de um mundo que se constitui com regularidade, serevelando como um desafio à ópera italiana, mas também erguendo a cena líricaà altura da cena dramática: ela se apoiou na comparação com sua rival, tornando-

se assim seu homólogo. Perto dela, a ópera italiana não pareceria mais que umconjunto desprovido de verossimilhança irregular, longo e confuso.Encarnação por excelência da ópera, ao ponto dos termos “tragédia em

música” e “ópera” serem sinônimos, ela eclipsa e esteriliza os outros gêneros quepretendiam uma ocupação parcial no domínio lírico.

 A teoria da tragédia lírica e de seu esplendor possui basicamente quatroaxiomas: o primeiro trata do axioma intelectual do conhecimento, em que supõeuma verdade da natureza como abstrata e que repousa em relações formalizáveis;o segundo axioma faz a ilusão cumprir a função de artífice revelador da verdade;

este é o axioma sensualista da ficção teatral; o terceiro, chamado de axioma do“teatro dos encantamentos”, anuncia a tragédia lírica como o inverso da tragédiadramática. O quarto estipula a constância da relação material entre a música e alinguagem articulada, os significantes da língua e os sons da música; este é oaxioma da necessidade do recitativo e da articulação da música.

Esses axiomas envolvem um conjunto de sistemas que abraça umaconcepção de mundo, do homem e da arte que remonta à ideia dos números apartir da filosofia de Descartes.

 A tragédia lírica ganhou partidários e também inimigos. Seus partidários

pensavam ser ela um reviver dos preceitos da antiga tragédia grega, devido aseus temas mitológicos, e outros preferiam o riso, o burlesco, como ocorria naópera italiana, até mesmo com personagens trágicas e cômicas atuando no palcoao mesmo tempo.

 A antiga pastoral foi absorvida; as transformações que fizeram dela atornaram um laboratório poético da cena lírica e foram incorporadas pelatragédia. A introdução da dimensão heroica e da violência nas primeiraspastorais trouxe à ópera um novo colorido e novas nuances. Embora a história daópera francesa comece com as pastorais, somente a tragédia lírica se fará entrar

nas lendas e delícias das querelas literárias.

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 A música, com seus encantos íntimos e secretos, fornece uma disposiçãoque suaviza a alma e abre o coração para o sensível, sem saber exatamente o quese quer.

2. O balé à francesa, o balé de cour , chamado de “grande balé”, se farápresente em qualquer tragédia. A dança será responsável pela verdadeiradramatização que inaugura a tragédia, além de realçar sua dignidade comorepresentação dramática e confessa sua estranheza com o teatro clássico.

Não seria eliminando a dança que a tragédia eliminaria o balé de corte,pelo contrário. Partindo disso, a ópera italiana revelou aos franceses certadistância considerável entre a ordem do espetáculo musical e do verdadeiro teatrolírico: a tragédia lírica, revelando as possibilidades dramáticas da dança, asdiferenças entre o espetáculo coreográfico e a coreografia teatral, conquista e

assume uma função poética plena.Por ser um dos componentes essenciais do teatro lírico, a dança tinha queir além da simples propriedade, da simples pintura de caracteres. Ela tinha quese inserir não somente na economia geral dramática da obra, mas encontrar umlugar na unidade poética utilizada tanto no seu acolhimento como na suautilização, mas possuir ela mesma um movimento capaz de fazer progredir aação: o balé não deveria ser “inserido” na obra, ele deveria ser “introduzido”. 

É feita uma combinação das diversas Entrées  do grande balé, de maneiraque elas concorram ao objeto principal proposto, permitindo aos bailarinos

desenvolverem, cada um em sua ocasião, as graças e belezas da dança simples;mas a dança deve compor, exprimir as paixões e por consequência ser digna doteatro.

Cahusac (1706-1759), libretista que compôs obras para Rameau,considerava que, ao mesmo tempo em que a dança passava a viver uma situaçãoestranha, por causa de um novo gênero de balé advindo entre 1673 e 1697 por LaMotte, criticava o caráter episódico na economia geral da peça; a dinâmica poéticadeveria satisfazer a dimensão da obra, coisa que não acontecia, e para isso,deveria de ser bem construída. Nesse sentido, a tragédia lírica reporta à dança

uma dimensão dramática que o balé é incapaz de possuir. O paradoxo da situaçãose explica pela natureza da representação teatral que inaugura a ópera: ele passade um simples espetáculo a um mundo verdadeiro, da pintura de caracteres parauma função poética dramática.

O paradoxo se acentua ainda mais se se examinar a realidade da tragédialírica, sua execução e não mais somente sua concepção. Ela revela a funçãodramática da dança como se vê em autores como Lully e Quinault, seja comoleitor ou ainda como espectador ideal, que Cahusac revela e aprecia noacontecimento dramático. Mas esta revelação não conhece a verdade

efetivamente empírica, que continua latente como performance cênica; elapermanece como um acontecimento mais poético do que real. A admiração semlimites que Cahusac admite quanto ao texto poético propriamente dito das

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tragédias líricas de Quinault e Lully se sucede um apontamento lamentávelquanto à pobreza da realização cênica, em que diz que “o lugar das grandes enobres ideias de Quinault é substituído por uma execução magra, de pequenas

figuras mal desenhadas e de um colorido mal desenhado” (CAHUSAC, 2004, p.81-82).Deve-se levar em conta que os espectadores reais devem ser satisfeitos; o

acontecimento poético foi certamente um acontecimento histórico, mas não foiuma verdadeira efetivação artística real.

 A dança dramática fez ressurgir o balé como gênero; o balé modernoinventado por La Motte que, rico em aquisições dramáticas, revela uma poéticatrágica. Esse balé possui interesse por colocar a questão da dominação do gênerotrágico em termos poéticos e por corresponder a uma realidade, a de que o balé

sofre um eclipse, assim como se eclipsou a pastoral. A cena lírica francesa se caracteriza por sua grande diversidade: junto coma tragédia lírica disputam outros gêneros como pastoral heroica, a ópera-balé, acomédia, que disputam o mesmo sucesso daquela.

3. Dentre as polêmicas existentes nesse período, está a Querelle des

Bouffons [Querela dos Bufões], que interessa em igual medida à história damúsica e à história das ideias. Ela possui dupla qualidade capital, e participaramdela Diderot, Rousseau e os enciclopedistas. Isso se deu devido à instalação deuma companhia itinerante italiana na Ópera de Paris em 1752, para dar

espetáculos de intermezzi  e de óperas bufas, o que fez a França dividir-se entre osadeptos dos italianos de um lado e os representantes da música francesa do outro. Antes já havia discussões em torno da música francesa e italiana, com Lecerf eRaguenet, em 1704.

 À primeira vista os italianos triunfaram de forma inexplicável; porém,ocorre que a ópera francesa não se renovava desde a morte de Lully em 1687.Rameau, que tomou seu lugar, foi contestado; e nisso o público sofria asinvestidas de autores secundários. Nesse marasmo, o público já estava cansadoda ópera séria, que não emocionava mais, e as óperas bufas, trazidas pelos

italianos, tornaram-se um grande sucesso dentre o público.O enredo padrão de uma ópera bufa (ou intermezzi ) consistia de uma sériede peripécias cômicas sem qualquer episódio estranho à ação, e para o quebastavam poucas personagens. O enredo tirava toda a sua força de sua rapidez,da expressão realista de sentimentos cotidianos, de sua linguagem musical.Exemplo disso é a Serva Padrona  (Criada Patroa), de Pergolesi, que depois de umfracasso na França foi posteriormente de um sucesso muito grande.

Contra isso estavam os partidários da música francesa que, adeptos datragédia lírica, não toleravam o riso, e a queriam aos moldes do que para eles

teria sido a tragédia grega. A tragédia grega, de acordo com a Poética , de Aristóteles, apresentava, como personagens, figuras elevadas da aristocracia:reis, príncipes, grandes heróis, ou figuras de deuses mitológicos, em que a

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personagem principal sofre mudança de sorte, passando de um momento felizpara um infeliz.

 A personagem, por exemplo, como a de Édipo Rex, de Sófocles, comete um

erro [neste caso o de ter assassinado o pai e se casado com a própria mãe, massem saber que eram seu pai e sua mãe], que ignora saber ter errado, porém, eledeve ser punido por sua falta, o que causa terror pelo tipo de erro cometido, mas,ao mesmo tempo, causa piedade, pois ignorava que tivesse feito tais coisas apessoas do próprio sangue; a esses sentimentos contrários sentidos ao mesmotempo, dá-se o nome de Catarse . Neste tipo de ação consiste a tragédia .

É o prazer através do contato com experiências dolorosas.Com esse modelo, a música está vinculada muitas vezes aos modelos das

tragédias de Racine e Corneille, que neste caso o tipo de tragédia é chamado de

clássica, marcante no teatro francês do século XVII, que pensa reproduzir atragédia antiga, ou seja, a tragédia grega de Sófocles, Eurípides, e outros, ondenão se admitiam personagens cômicas em simultaneidade com personagenstrágicas.

Por este viés estão exemplos como os do compositor Lully, com  Acis et

Galatea  [Acis e Galateia] e Campra, com Alphée et Aretusa  [Alfeu e Aretusa].

Corneille, (...) ao lado de Racine, é considerado um dos grandesdramaturgos franceses, que também se dedicou à teoria, marcadapor releituras de Aristóteles, reorganizando preceitos da

composição da tragédia em favor dos deslocamentos que operavaem suas obras e que, não raro, como foi o caso de El Cid ,polemizaram com críticos de sua época. Questionou a regra dastrês unidades (de ação, de tempo e de lugar) pela qual o teatroclássico francês se pautava e que seus defensores supunham serlegitimamente derivadas de Aristóteles por atenderem a critériosrígidos da verossimilhança da ilusão teatral (FERREIRA, 2011,p. 139).

Rousseau escreveu a Carta à Música Francesa , que atacava de frente amúsica francesa versus música italiana. Para ele a música francesa abusava de

uma mitologia mais que batida, utilizava-se de libretos pomposos, imperava aausência de ação dramática, as montagens eram exageradas e aparatosas, asárias eram à base de trinados, gesticulações e brilharecos vocais, e tudo isso semrelação com os sentimentos que o texto expressava. Fora os comentários quanto àprosódia entre a língua italiana e francesa, que para Rousseau, a italiana possuíamais musicalidade e sempre estaria além de qualquer música de Rameau.

Rousseau e os enciclopedistas foram os inimigos mais acirrados deRameau, fazendo com que o compositor saísse de sua reserva que fora mantidapor muito tempo. Este simbolizava a totalidade das forças aristocráticas

conservadoras, e só foi visado enquanto sua ópera refletia os modelosestabelecidos por Luis XIV. Nem por isso Rameau deixou de ser atacado por suas

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ousadias harmônicas consideradas “bárbaras”. Para ele, a música era sumamenteracional, igual em todas as épocas, ou seja, a música é um fenômeno universal.Para Rousseau, a música expressa infinitas variedades do coração humano, e não

saberia de modo algum ser universal em sua forma. O caráter da melodia nãotem como não variar de um povo para outro, de um momento para outro dahistória: a compreensão da música é um fato histórico e cultural. Para Rousseau,a música é a expressão dos sentimentos como a matemática é para Rameau.

CONSIDERAÇÕES FINA IS

 A ópera, num primeiro momento, é recebida com desconfiança e comoperigo para a educação de seu público, insuflando as paixões e maus costumes;

em pouco tempo, passa a ter prestígio e muito sucesso, refletindo os gostos emodismos do rei e da nobreza da corte na tragédia lírica, a ponto de ganhar aatenção de filósofos e homens de letras. A dança era a marca principal destanobreza, sendo seu reflexo por excelência.

Com as querelas dos bufões, a ópera cômica começa a ganhar prestígio,principalmente dentro da classe burguesa que começa a ganhar ascensão etriunfo, constituindo um novo público para as artes.

Um dos problemas capitais da estética musical nos séculos XVII e XVIII éa relação entre verbo e som, entre poesia e música. A arte como imitação da

natureza , é um dos vetores desse debate, a ponto de uma história da estéticamusical poder coincidir, de forma geral, com a história desse conceito: todas asquerelas entre França e Itália nos dois séculos estão presas nessa relação.

Em 1704, Lecerf de la Viéville respondeu a Raguenet com suaComparaison de la musique italienne et de la musique française   [Comparaçãoentre a música italiana e a música francesa], fazendo crítica aos italianos quantoa seus excessos e extremos, enaltecendo o comedimento e a naturalidade damúsica francesa; em 1753, Rousseau condenava nos franceses os excessos e afalta de naturalidade, encontrando somente elogios para os italianos.

Em meio século, o conceito modificou-se radicalmente: a natureza já nãoera sinônima apenas de razão e equilíbrio, mas também de sentimento. Destaforma, pode-se ver nisso, o despontar do Romantismo.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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Humanitas & Imprensa Oficial, 2009.CAHUSAC, Louis de. La danse ancienne et moderne, ou Traité historique de la

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CASSIRER, Ernest. A filosofia do Iluminismo . Campinas, Ed. Unicamp, 1997.DIDEROT, Denis. Paradoxe sur le comédien . Paris, Flammarion, 1981.DIDIER, Béatrice. La musique des lumières: Diderot –   L’Encyclopédie –  

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 Aristóteles . In:  Análogos Anais da XI SAF-PUC, Semana dos alunos de pós- 

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