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O Oitocentos sob novas perspectivas

Date post: 21-Nov-2015
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Nas últimas décadas, os estudos do Oitocentos, no Brasil e no exterior, vivenciaram considerável crescimento, quantitativo e qualitativo. A consolidação da pesquisa a partir do sistema de pós-graduação nas universidades, particularmente a expansão da rede pública federal - mas não apenas -, foi um dos motores desse processo.A comunidade historiadora, que até os anos de 1980 podia reunir-se em um evento, apresenta-se atualmente tão ampliada, diversa e especializada que exige novos modelos de integração. Os projetos coletivos, núcleos, linhas e grupos de pesquisa têm se tornado cada vez mais comuns em um campo que até pouco tempo era dominado pelo trabalho intelectual solitário. Foi pensando nas exigências e oportunidades desse novo cenário que um conjunto de pesquisadores, de diversas instituições e a partir de experiências variadas, reunidos em um grande evento comemorativo dos 10 anos do Centro de Estudos do Oitocentos (CEO), consolidaram a proposta de criação da Sociedade Brasileira de Estudos do Oitocentos (SEO).Objetiva a nova entidade servir de fórum de debates e representar os diversos pesquisadores e grupos, nacionais e estrangeiros, comprometidos com a pesquisa, o ensino e a divulgação científica das histórias desse longo século XIX. Nesse movimento se insere o livro "O Oitocentos sob novas perspectivas", que reúne 16 artigos selecionados por pareceristas dentre as 29 comunicações que foram enviadas às organizadoras. Divide-se em quatro partes: “Os Mundos dos Negócios e do Trabalho”; “O Jogo da Política e a Diplomacia”; “Ciências e Letras” e “Culturas e Sociabilidades”. Em seus variados aspectos e enfoques, a sua publicação pretende ser mais uma contribuição para a renovação de perspectivas historiográficas sobre o citado período. ORGANIZADORASGLADYS SABINA RIBEIRO é professora associada IV do Departamento de História e do PPGH da UFF. É doutora em História Social do Trabalho pela Unicamp (1997), Cientista do Nosso Estado (Faperj) e bolsista de produtividade do CNPq. ISMÊNIA DE LIMA MARTINS é docente do PPGH e Professora Emérita da Universidade Federal Fluminense. Doutora em História Social pela USP (1973).TÂNIA BESSONE DA CRUZ FERREIRA é professora associada do Departamento de História e do PPGH da UERJ. É doutora em História Social pela USP (1994), Procientista (UERJ), pesquisadora do CNPq, Cientista de Nosso Estado (Faperj) e sócia honorária do IHGB.
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Gladys Sabina Ribeiro Ismênia de Lima Martins Tânia Bessone da Cruz Ferreira (organizadoras) O OITOCENTOS sob novas perspectivas
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  • Gladys Sabina Ribeiro Ismnia de Lima Martins

    Tnia Bessone da Cruz Ferreira(organizadoras)

    O OitOcentOssob novas perspectivas

  • gladys sabina ribeiroismnia de lima martins

    tnia bessone da cruz ferreira[orgs.]

    O OitOcentOs sob novas perspectivas

  • Copyright 2014 Gladys Sabina Ribeiro Ismnia de Lima Martins Tnia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa de 1990,

    que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    publishers: Joana Monteleone/Haroldo Ceravolo Sereza/Roberto Cossoedio: Joana Monteleoneeditor assistente: Joo Paulo Putiniprojeto grfico, capa e diagramao: Joo Paulo Putiniassistente acadmica: Danuza Vallimreviso: Zlia H. de Moraes/Barcmio Amaral

    imagens da capa: Jean-Baptiste Debret. Aclamao de D. Pedro i. leo sobre tela; 46 x 69 cm. In:

    bandeira, Jlio; lago, Pedro Corra do. Debret e o Brasil: obra completa, 1816-1831. 2 ed. Rio de

    Janeiro: Capivara, 2008, p. 88.

    alameda casa editorial

    Rua Conselheiro Ramalho, 694 Bela Vista

    cep 01325-000 So Paulo sp

    Tel. (11) 3012-2400

    www.alamedaeditorial.com.br

    cip-brasil. catalogao na publicaosindicato nacional dos editores de livros, rjo35

    o oitocentos sob novas perspectivas [recurso eletrnico]organizao Gladys Sabina Ribeiro, Ismnia de Lima Martins, Tnia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira - 1. ed. So Paulo : Alameda, 2014

    recurso digitalFormato: epdfRequisitos do sistema: adobe acrobat readerModo de acesso: world wide web

    Inclui bibliografiaisbn 978-85-62157-19-6 (recurso eletrnico)

    1. Brasil - Histria - Sculo xix. 2. Poltica - Brasil - Histria - Sculo xix. 3. Livros eletrnicos. i. Ribeiro, Gladys Sabina. ii. Martins, Ismnia de Lima. iii. Ferreira, Tnia Maria Tavares Bessone da Cruz.

    15-19116 cdd: 981.04 cdu: 94(81)18

  • apresentao

    parte i Os mundos dos negcios e do trabalho

    Economia escrava e abastecimento agrcola

    de uma regio da Bahia sculo xix

    alex andrade costa

    Os negociantes de grosso trato no Recife: um estudo de caso sobre as

    trajetrias de Joo Pinto de Lemos e Manoel Joaquim Ramos e Silva

    (Pernambuco, 1830-1877)

    bruna iglezias motta dourado

    Porto, navegao e artigos importados em Belm, 1840-1870

    mbia aline freitas sales

    Circuito de integrao regional: a Estrada de Ferro

    Campos-Carangola no sculo xix

    walter luiz carneiro de mattos pereira

    Forros, escravos e engajamentos no mundo do trabalho martimo

    no Atlntico luso: uma agenda historiogrfica

    jaime rodrigues

    parte ii O jogo da poltica e a diplomacia

    O debate parlamentar e a implicao dos tratados de 1825, 1826 e 1828

    na formulao da poltica externa do Brasil

    aline pinto pereira

    Splicas a Vossa Majestade Imperial: as negociaes em tempos de mudanas

    elizabeth santanna

    SUMRIO

    7

    11

    13

    27

    53

    77

    99

    111

    113

    139

  • Diplomacia a servio do Imprio: Duarte da Ponte Ribeiro e o processo

    de aproximao entre o Brasil e a Repblica do Peru (1829-1832)

    cristiane maria marcelo

    A ordem ameaada: linguagens e ideias republicanas

    na crise da monarquia no Esprito Santo

    karulliny s. siqueira vianna

    parte iii Cincias e letras

    Peridicos, escolas e livros: o cenrio das letras na Provncia

    de So Pedro do Rio Grande de So Pedro (1820-1855)

    carla renata a. de souza gomes

    Apontamentos sobre a ilustrao cientfica

    no mundo luso-brasileiro c. 1750-1820

    iara lis schiavinatto

    O princpio da moderao e a condenao de Joo Soares Lisboa

    na bonifcia: a interpretao de Mello Moraes na obra

    A Independncia e o Imprio do Brasil (1877)

    paula botafogo caricchio ferreira

    Surtos epidmicos na Provncia do Esprito Santo (1850-1860)

    sebastio pimentel franco

    parte iv Culturas e sociabilidades

    Um Gavroche no teatro: sociedade e cultura poltica na obra de Arthur Azevedo

    giselle pereira nicolau

    Paradoxos carnavalescos: a presena feminina

    em carnavais da Primeira Repblica (1889-1910)

    eric brasil

    Dos divertimentos apropriados aos perigosos: organizao

    e controle das festas e sociabilidades no Recife (1822-1850)

    ldia rafaela

    161

    181

    207

    231

    253

    275

    297

    299

    205

    321

    341

  • O Centro de Estudo do Oitocentos (ceo) foi criado na Universidade Federal Fluminense, em agosto de 2002, com a inteno de constituir-se em espao de trabalho coletivo e interinstitucional. direcionado para o estudo da histria do longo sculo xix, que compreende o perodo que se estende desde a crise

    do sistema colonial, em fins do sculo xviii, at o final da Primeira Repblica.

    A partir de temticas comuns, ao longo desses anos, o ceo foi impulsionado por

    trs projetos de Pronex (Editais 2003, 2006 e 2009). Reuniu ncleos, laboratrios,

    linhas de pesquisa, professores e alunos de graduao e de ps-graduao de dife-

    rentes instituies, com o intuito de trocar informaes, montar bancos de dados,

    compartilhar experincias e discutir resultados de investigaes e bibliografias afins.

    Quando o ceo completava 10 anos de Fundao, sistematizou-se a proposta

    de reunir e organizar os profissionais e especialistas do tema em uma associao.

    Concebeu-se, ento, um seminrio que marcasse a efemride. Tendo acontecido nos

    dias 13, 14 e 15 de maio de 2013, na Universidade Federal Fluminense, em sesso

    plenria foi discutido e aprovado o estatuto da nova entidade, denominada Sociedade

    Brasileira de Estudos dos Oitocentos (seo), e foi eleita a diretoria do binio. Nas sesses

    acadmicas, apresentaram-se 61 comunicaes que reuniram temas variados e pes-

    quisadores de todo o pas, reeditando o sucesso do primeiro seminrio regional do

    ceo, acontecido na mesma universidade e em abril de 2003.

    O livro que ora se apresenta, Oitocentos sob Novas Perspectivas, rene dezesseis

    artigos selecionados por pareceristas dentre as vinte e nove comunicaes que foram

    enviadas s organizadoras. Divide-se em quatro partes: Os Mundos dos Negcios e do

    Trabalho; O Jogo da Poltica e a Diplomacia; Cincias e Letras e Culturas e Sociabilidades.

    ApReSentAO

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]8

    Os Mundos dos Negcios e do Trabalho, primeira parte deste livro composta por

    cinco captulos. Alex Andrade Costa analisa as prticas econmicas desenvolvidas

    pela populao escrava no litoral sul da Bahia, no transcorrer do sculo xix, e discute

    alguns aspectos da economia e organizao escrava ao destacar estratgias de sobre-

    vivncia que os levasse liberdade. Bruna Iglezias Motta Dourado analisa a praa

    comercial do Recife (PE), entre as dcadas de 1830 e 1870, por meio das trajetrias

    de vida dos comendadores Joo Pinto de Lemos e Manoel Joaquim Ramos e Silva,

    membros do grupo local de negociantes de grosso trato. J Mbia Aline Freitas Sales

    estuda o porto de Belm e Walter Luiz Carneiro de Mattos Pereira a Estrada de Ferro

    Campos Carangola. A primeira, relaciona os produtos importados de Portugal,

    Inglaterra, Frana e Estados Unidos para a Provncia do Par, entre o perodo de

    1840 e 1870 e mostra que a sua aquisio revela sintonia com as ideias de civilizao

    e modernidade, to em voga naquele momento. O segundo, afirma que a mencio-

    nada ferrovia, ao ligar o Rio de Janeiro, Minas Gerais e Esprito Santo possibilitando

    a circulao de mltiplas mercadorias e no apenas o acar campista ou caf, pro-

    duzido em reas de ocupao mais recentes, consagrava um amplo arco de interesses

    econmicos regionais e espaos de interseo entre as trs provncias. Fechando esta

    seo, Jaime Rodrigues trata das formas do engajamento de escravos e de forros na

    navegao atlntica entre os portos dos domnios lusos, no perodo de meados do

    sculo xviii at as primeiras dcadas do sculo xix.

    O Jogo da Poltica e a Diplomacia constitui a segunda parte, que composta de

    quatro captulos. Aline Pinto Pereira caracteriza a poltica externa para o Primeiro

    Reinado, ao tomar como exemplos o Tratado de Paz e Amizade de 1825; a Conveno

    de 1826 e as discusses sobre os termos que findaram a guerra da Cisplatina em 1828.

    Seguindo os caminhos da diplomacia, Cristiane Maria Marcelo faz uma anlise sobre

    as contribuies do diplomata Duarte da Ponte Ribeiro (1795-1878) no processo

    de consolidao do poder do Imprio do Brasil junto s Repblicas do Pacfico

    no contexto do ps-independncia, ao analisar a primeira misso diplomtica por

    ele encabeada junto Repblica do Peru, entre 1829-1832. Elizabeth SantAnna

    esmiua as splicas, escritas pelos sditos de diversas posies sociais, ao imperador

    D. Pedro ii e problematiza as suas condies de vida, estratgias de sobrevivncia e

    negociaes em meio as importantes mudanas poltico-econmico-sociais a partir

    de 1850. Em seguida, Karulliny Silverol Siqueira Vianna discute a recepo das ideias

    republicanas na imprensa da provncia do Esprito Santo, em meados da dcada de

  • 9o oitocentos sob novas perspectivas

    1870, analisando as linguagens polticas utilizadas pelos peridicos considerados de-

    mocrticos e portadores de novas ideias.

    Cincias e Letras so temas da terceira parte. Peridicos, escolas e livros, no Rio

    Grande de So Pedro, so analisados por Carla Renata A. de Souza Gomes ao tratar

    da cultura letrada em ambiente de constituio das primeiras experincias perio-

    dsticas no Brasil e ao refletir sobre a capacidade de produzir impressos, a habilidade

    em cultivar leitores e a necessidade em consumir informao e conhecimento. Iara

    Lis Schiavinatto estuda a ilustrao cientifica no mundo luso-brasileiro e Paula

    Botafogo Caricchio Ferreira a trajetria de Joo Soares Lisboa. Iara analisa imagens

    vinculadas estritamente, na sua constituio e circulao, a objetos, catlogos, jar-

    dins, museus e textos, bem como inventrios de seres da natureza, ambos referidos

    a espaos geopolticos e a Histria Natural. J Paula trata de Soares Lisboa por meio

    das anlises historiogrficas feitas por Melo Morais e Varnhagen, que lhe atribuem

    adjetivos tais como republicano e democrtico. Por ltimo, Sebastio Pimentel Franco

    estuda os surtos epidmicos na provncia do Esprito Santo e verifica como os dife-

    rentes agentes (legisladores, administradores, mdicos, curandeiros e populao em

    geral) lidaram com a passagem das epidemias, descrevendo suas atitudes e respostas

    geradas pelas molstias.

    Culturas e sociabilidades quarta parte, possui trs captulos que apresentam pesqui-

    sas sobre o teatro, carnaval e festas em regies distintas do Imprio. Atravs do con-

    ceito de cultura poltica, aplicado s revistas de ano e trajetria de Arthur Azevedo,

    o trabalho de Giselle Pereira Nicolau, nos convida a revisitar os primeiros anos da

    Repblica, articulando acontecimentos polticos decisivos do perodo vida cultural

    do Rio de Janeiro. J a presena das mulheres nos carnavais da capital federal, nas

    primeiras dcadas da Repblica (1889-1910), o tema artigo de Eric Brasil, que pre-

    tende com a anlise do carnaval de 1891 compreender melhor as disputas em torno

    do voto feminino e a participao das mulheres na esfera poltica institucional e nos

    espaos pblicos da cidade. Ldia Rafaela analisa os divertimentos e festas no Recife,

    entre 1822 e 1850, mostrando que definir um dia de festa e organiz-la representava

    muito mais que proporcionar divertimentos: significava organizar, relembrar e insti-

    tuir valores naquela sociedade.

    Finalmente, cabe destacar que esta publicao o resultado dos trabalhos con-

    juntos que as organizadoras deste livro desenvolvem h muitos anos e que se inserem

    tanto nas atividades dos ncleos de pesquisa dos quais participam, quanto dos projetos

    de Cientista do Nosso Estado/Faperj, que contemplam um novo olhar e perspectiva

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]10

    sobre o Oitocentos em suas vrias temticas e aproximaes terico-metodolgicas.

    Pretendem contribuir para verticalizar discusses suscitadas no evento ceo 10 anos,

    que expressaram variedade de objetos e contemplaram diversas regies do pas, esti-

    mulando novas abordagens e revises historiogrficas.

    Rio de Janeiro, 10 de maio de 2014

    gladys sabina ribeiro

    ismnia de lima martins

    tnia maria tavares bessone da cruz ferreira

  • Os mundos dos negcios e do trabalhopARte I

  • Diversos autores1 j apontaram2 a importncia que as vilas do sul da Provncia

    da Bahia tiveram para Salvador e seu abastecimento de alimentos no sculo

    xix.3 Relatos da poca tambm ajudam essa compreenso. Em suas cartas,

    o professor de grego Lus dos Santos Vilhena destacou a variedade da fauna e da flora

    daquelas vilas e como isso era propcio para quem quisesse procurar abrigo provis-

    rio ou definitivo por ali.4 A situao no era diferente para as vilas de Camamu, Barra

    do Rio de Contas e Mara. L se produziam mandioca, leguminosas, como o feijo,

    e caf e at se fabricava aguardente, considerada por Vilhena de melhor qualidade do

    que a de Paraty, na Provncia do Rio de Janeiro.5

    Spix e Martius disseram ter encontrado nas vilas de Mara e Camamu uma

    produo agrcola forte, da qual muitos produtos eram levados para a capital.6

    Sobre Camamu, em especial, consideraram a vila como a mais importante de toda

    a costa da Bahia. Seu porto, de aonde chegavam e de onde partiam embarcaes

    1 Este texto parte de pesquisa de doutorado desenvolvida na Universidade Federal da Bahia (ufba) sob orientao da professora Maria de Ftima Novaes Pires.

    2 Doutorando em histria social pela ufba. Membro do grupo de pesquisa Escravido e Inveno da Liberdade.

    3 Citamos algumas das pesquisas que discutem o abastecimento de alimentos de Salvador e suas relaes com as vilas interioranas: barickman, 2003; graham, 2005, 2010; jancs, 1996; reis, 2003; schwartz, 2001.

    4 vilhena, 1969, p. 496.

    5 Ibidem, p. 497.

    6 Ibidem, p. 215.

    Economia escrava e abastecimento agrcola de uma regio da Bahia sculo XIX1

    Alex AndrAde CostA2

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]14

    de todos os tipos e portes e para todos os lugares, era o maior e mais movimen-

    tado daquelas paragens.7

    J o comerciante britnico Thomas Lindley, em 1805, classificou de assombroso

    o comrcio que se dava entre a regio e Salvador. Segundo Lindley, dos confins

    imediatos da baa, situados em grande parte no interior, () nada menos do que oi-

    tocentas lanchas de diferentes tamanhos trazem todos os dias seu tributo de comrcio

    para a capital.8 claro que nem todas as embarcaes avistadas por Lindley eram das

    vilas do sul, mas certamente havia uma boa quantidade delas.

    Desde o sculo xviii, mesmo com a intensa participao na economia de sub-

    sistncia, Camamu era vista, pelas elites e por viajantes, como uma localidade ha-

    bitada predominantemente por pobres. A mandioca era o principal produto e re-

    cebeu a fama de ser cultura de pobres. J havia muito tempo que os senhores

    do Recncavo aucareiro resistiam s determinaes da Coroa para que, alm da

    cana-de-acar, plantassem tambm a raiz, no s com o objetivo de garantir o abas-

    tecimento interno das propriedades e comida para os escravos, mas para abastecer as

    populaes urbanas.9

    O francs Auguste de Saint-Hilaire deixou suas impresses sobre a produo da

    mandioca:

    No me possvel deixar de considerar a farinha de mandioca infe-

    rior de milho, empregada da mesma maneira pelos mineiros, mas h

    luso-brasileiros que preferem a primeira segunda e acham mesmo

    que misturada a certas substncias alimentcias mais agradvel do

    que o po de trigo. Seja como for, deve-se desejar aos brasileiros que

    o consumo da mandioca diminua no seu pas, pois parece que essa

    planta gosta dos terrenos novos e pelo menos em certos distritos ela

    esgota o solo; por conseguinte, a sua cultura deve acelerar a destruio

    das florestas. O padre Joo Daniel mostrou o quanto a cultura da man-

    dioca prejudicial aos habitantes das margens do Orellana ou Rio das

    Amazonas e Jos de S Bittencourt disse que, j em 1798, os habitantes

    do termo da Vila de Camamu, provncia dos Ilhus, se achavam redu-

    zidos misria extrema.10

    7 martius; spix, 1938, p. 216.

    8 lindley, 1805, p. 104.

    9 barickman, 2003.

    10 saint-hilaire, 1936, p. 118.

  • 15o oitocentos sob novas perspectivas

    Em outubro de 1781, perodo bem prximo ao de Saint-Hilaire, outro relato bas-

    tante interessante sobre a regio foi feito pelo advogado baiano Jos da Silva Lisboa

    e enviado para Domingos Vandelli, diretor do Real Jardim Botnico de Lisboa. Nele

    pretendia descrever a geografia, a economia e a populao da Bahia. Depois de tratar

    de Salvador, do Recncavo e de suas economias principais, centradas na cana-de-

    -acar e no tabaco, Silva Lisboa passou a comentar sobreas vilas e a economia do sul

    da Bahia. Sobre a farinha de mandioca ele disse que nada aprovisiona mais a cidade

    de Salvador do que as sumacas11 que saam do sul da provncia e que costumam levar

    seis mil alqueires12 do produto.13

    Desde o sculo xviii, o litoral sul da Bahia, longe de ser uma regio inexpressiva,

    ocupou posio de destaque na produo de alimentos, especialmente a farinha de

    mandioca. De acordo com o ouvidor Baltazar da Silva Lisboa, em 1799 entraram

    no celeiro pblico de Salvador 40 mil alqueires de farinha enviados pela vila de

    Camamu e 30 mil alqueires enviados pela vila de Barra do Rio de Contas.14 Como

    naquele ano o volume total de farinha levada ao celeiro foi de 288.611 alqueires,

    sozinhas as duas vilas do litoral sul foram responsveis por 25% de toda a farinha que

    a capital da provncia recebeu.15 Esse volume pode ter sido muito maior, pois muitos

    negcios eram feitos diretamente nos barcos, desviados por outros negociantes, no

    chegavam ao celeiro e deixavam, portanto, de ser contabilizados.

    Em 1798 e 1800, foram enviadas Coroa duas representaes, assinadas por 49

    lancheiros das vilas de Camamu e de Barra do Rio de Contas, que solicitavam a ex-

    tino da cobrana de alguns impostos pelo transporte da farinha e daqueles que os

    lancheiros j eram obrigados a pagar para levar a farinha ao celeiro pblico. Achando-

    se extorquidos, pediram ao governo uma soluo. De acordo com a fonte, cada lan-

    cheiro de barra fora podia levar at trs mil alqueires de farinha, por viagem, o

    que dificilmente ultrapassava o nmero de trs ao ano, por conta das distncias e do

    perodo de chuvas.16 Como, alm da farinha, os lancheiros levavam outros produtos

    11 Barco pequeno, de dois mastros.

    12 Medida na poca de volume de um produto, e no de extenso de terra. Correspondia a um litro (grosso modo, um quilo, mas essa relao varia de acordo com a densidade, e no com o peso), o que significava, nesse caso, seis toneladas.

    13 Anais da Biblioteca Nacional, 1910, p. 504.

    14 Ibidem, 1914, p. 115.

    15 Ibidem.

    16 Anais da Biblioteca Nacional, 1882-1883, p. 575.

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]16

    de subsistncia e madeira, se cada embarcao tivesse carregado 1.500 alqueires por

    jornada e feito ao menos duas viagens por ano, o total de farinha enviado a Salvador

    pelas vilas de Camamu e de Barra do Rio de Contas teria sido de 147mil alqueires.

    Esse volume espetacular mostra a pujana da produo daquelas vilas.17

    Entre 1799 e 1822, entradas de embarcaes no porto do Rio de Janeiro indicam

    que o abastecimento de farinha de mandioca, milho e feijo provinha, dentre outras

    regies, do sul da Bahia.18 A administrao pblica tentava, de todas as formas, coibir

    essa exportao, por ser essa produo extremamente necessria para o abastecimen-

    to de Salvador, sobretudo em pocas de crises econmicas. Entretanto, nem sempre

    obtinha sucesso.19

    O comerciante Francisco Teixeira de Carvalho, de Camamu, enviou carta ao

    governo da provncia, em 30 de junho de 1843, e solicitou autorizao para remeter

    850 alqueires de farinha de mandioca para o Rio de Janeiro.20 Tal solicitao se fazia

    necessria por conta da exigncia de que a farinha fosse vendida exclusivamente

    dentro dos limites da Bahia e, mais ainda, que todo tipo de negcio que envolvesse

    alimentos se desse por meio do celeiro pblico, para onde cada produtor estava obri-

    gado a remeter as suas mercadorias.

    Quando eram impedidos de comprar farinha em Salvador, os comerciantes das pro-

    vncias assoladas pela seca subtraam-na clandestinamente da cidade ou iam de barco at

    um dos distritos produtores de mandioca da extensa e mal vigiada costa da Bahia. Ali

    obtinham facilmente a farinha que no podiam comprar legalmente em Salvador.21

    Segundo Jos da Silva Lisboa, a farinha que ali chegava abastecia os habitantes de

    Salvador e tambm tinha outros destinos: Angola e Costa da Mina para sustentao

    dos escravos, que se vo comprar e da equipagem dos navios; () e para Portugal no

    s para o comrcio, mas muito principalmente para a mesma equipagem.22

    17 Ibidem.

    18 fragoso; florentino, 1993, p. 62.

    19 O mais famoso motim foi o da Carne sem osso, farinha sem caroo (reis; aguiar, 1996). preciso lembrar que embora outros motins tivessem acontecido em Salvador por conta da carestia provoca-da pelo desabastecimento, o da carne e da farinha foi o mais famoso. A Conjurao Baiana de 1798 teve o apoio da parcela mais pobre da populao afligida pela carestia dos alimentos de Salvador (jancs, 1996).

    20 Arquivo Pblico do Estado da Bahia (Apeb). Seo Colonial e Provincial. Mao 4631.

    21 barickman, 2003, p. 149.

    22 Anais da Biblioteca Nacional, 1910, p. 504.

  • 17o oitocentos sob novas perspectivas

    Essa relao direta do comrcio de alimentos entre a baa de Camamu e a frica

    fica mais evidente quando encontramos as diversas notcias e queixas de desembar-

    que de escravos naquela regio. Baixa densidade populacional, inmeros rios e matas,

    alm da grande produo de farinha de mandioca, faziam de Camamu e arredores

    um espao propcio prtica de desova de escravos, especialmente no contexto da

    proibio do trfico, a partir de 1831.

    Em outubro de 1835, chegaram notcias de que dois irmos portugueses, Jos

    Francisco da Costa, morador da Baixa dos Sapateiros, e Joo Pedro Carreiro, mo-

    rador do Maciel, ambos em Salvador, desembarcavam escravos novos havia cerca de

    um ms. De acordo com o denunciante, Jos da Silva Azevedo, esse desembarque era

    apenas mais um entre tantos outros que frequentemente ocorriam. Os traficantes

    citados desembarcariam uma nova remessa de africanos de Angola nos dias seguintes,

    o que fez o denunciante clamar a ao policial para impedir tal fato. Para Azevedo,

    ali no h roas nem alambiques que no tenham escravos angolas novos.23 Essa

    afirmativa pode ser constatada a partir dos inventrios entre 1811 e 1820: os escravos

    angolas nas propriedades do litoral sul da Bahia correspondiam a 63% do total de

    africanos, enquanto entre 1821 e 1830 eram 50%.

    A relao do litoral sul da Bahia com Angola no era nova. Pelo menos desde

    meados do sculo xvii mantinha amplos contatos econmicos com a regio africana.

    Segundo Shawm Miller,24 um dos primeiros produtos deslocados do sul da Bahia

    para Angola foram as madeiras de excelente qualidade das densas matas da regio,

    que eram usadas para a construo de casas e navios. Tal negcio foi o precursor de

    uma relao que passou a envolver o trfico de escravos e o comrcio de alimentos

    nos sculos seguintes.

    O comrcio transatlntico feito pelas vilas do litoral sul da Bahia estava, ento,

    fortemente ligado aos produtos de subsistncia levados para a frica e aos escravos

    traficados para o Brasile havia certa dependncia entre essas duas economias. Em 27

    de agosto de 1800, por exemplo, Jos Marques da Silva, negociante e morador na vila

    de Camamu, enviou carta Corte para comunicar a inteno de fazer uma viagem

    Costa da Mina. Ao mesmo tempo, solicitava a liberao para que de l pudesse na-

    vegar diretamente para o Par ou o Maranho, onde pretendia negociar os escravos

    23 Apeb, Seo Colonial e Provincial, Escravos: Assuntos diversos, 1835, Mao 2896.

    24 miller, 2000, p. 79.

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]18

    trazidos. Desejava conduzir escravos comprados com o seu produto [grifo nosso],25

    que era a farinha de mandioca.

    As informaes da existncia de pessoas que enriqueciam por meio do comrcio

    de alimentos desestabilizam antigas teses de que a produo de alimentos de subsis-

    tncia era um negcio feito exclusivamente por pessoas remediadas. Nesse tipo de

    economia, bvio que os pobres eram numericamente superiores aos mais abastados.

    Porm, os maiores lucros se concentravam nas mos desses poucos ricos, os quais

    exploravam de diversas formas os pequenos produtores.

    A produo de farinha em Barra do Rio de Contas saltou de 30 mil alqueires

    em 1799 para entre 100 mil e 150 mil alqueires em 1866. A vila de Camamu igual-

    mente duplicou a sua produo no mesmo perodo e saiu de 40 mil para 80 mil

    alqueires. A vila de Valena foi a que teve o maior avano: partiu de entre 65 mil e 70

    mil alqueires em 1844 para 390 mil em 1875.26 Esses nmeros podem ter sido muito

    maiores, pois correspondem s remessas destinadas a Salvador e apenas se referem ao

    que foi contabilizado. Como o comrcio feito com negociantes do Rio de Janeiro e

    de Pernambuco e com os mercados africanos era ilegal sem falar dos atravessadores

    locais , torna-se impossvel saber o real quantitativo do que era produzido no litoral

    sul, especialmente quando o comrcio com a frica passou a consumir vorazmente

    a farinha do Brasil.27

    Mesmo com a participao de grandes negociantes, o macio da produo de

    farinha em Camamu e regio estava nas mos de dois grupos: pequenos lavradores

    e escravos. Ali, os pequenos proprietrios aqueles que tinham as suas fortunas ava-

    liadas em at 1.000$000 correspondiam a 48,7% dos inventrios pesquisados, entre

    1800 e 1850. Se forem observadas as fortunas que iam at 500$000, o quantitativo era

    maior em todos os nveis: 25% dos inventrios. J as fortunas acima de 10.000$000

    no chegaram a 4%. Essa era a menor de todas as faixas de riqueza.

    A maior parte da populao era pobre, o que tinha implicaes no apenas para a

    populao livre, mas pesava sobretudo para os escravos, pois o senhor era obrigado a

    manter o seu plantel alimentado. Por outro lado, tal situao reconfigurou as relaes

    entre senhores e escravos e fez com que esses ltimos conquistassem meios prprios

    25 Apeb, Seo Colonial e Provincial, Ordens Rgias, n 90.

    26 barickman, 2003, p. 155.

    27 Desde o incio do sculo xviii havia uma determinao para os sargentos-mores de Camamu e Cairu de prender todo mestre de sumaca que fosse pego com farinha sendo levada para o Rio de Janeiro (Anais da Biblioteca Nacional, 1983, p. 94).

  • 19o oitocentos sob novas perspectivas

    de sobrevivncia, nos quais a produo de mandioca e de sua farinha se destacou. Um

    conjunto de aspectos deu aos escravos brechas para a liberdade. Entre eles podemos

    citar: a necessidade do mercado externo, a pobreza local, o baixo nmero de escravos

    por propriedade entre 1800 e 1850 (em mdia 5,3)e a facilidade de acesso terra.

    Se o controle de faixas de terras e a posse de plantaes por parte de escravos

    no constituem uma novidade na historiografia da escravido nas Amricas,28 no

    litoral sul da Bahia desenvolveu-se uma prtica bastante peculiar: escravos fugidos,

    quilombolas, formaram um grupo muito bem articulado que desenvolveu, em seus

    mocambos, uma extensa produo de alimentos. Em especial, a farinha de mandioca

    era negociada com toda a sorte de pessoas, incluindo autoridades, comerciantes lo-

    cais, libertos e outros escravos.

    Entre Barra do Rio de Contas e Camamu havia um complexo de quilombos

    denominado de Borrachudo, que reunia ao menos sete. Quando da sua invaso e des-

    truio, em agosto de 1835, foram presos 14 escravos, mas as autoridades alegam que

    um nmero muito maior havia fugido. O interrogatrio dos quilombolas teve como

    objetivo descobrir, entre outras coisas, com quem eles negociavam. Esse fato no fica

    evidente nos autos da devassa do quilombo, o que pode ter sido uma estratgia dos

    interrogadores para poupar pessoas poderosas envolvidas. Somente os quilombolas

    Lauriano e Manoel Frescal revelaram os seus fregueses, que na verdade era a mesma

    pessoa. Ambos vendiam parte de suas produes de farinha de mandioca do quilom-

    bo do Borrachudo para o sargento-mor de Ilhus,29 que era justamente quem devia

    coibir tais prticas.

    A destruio dos quilombos ainda revelou muito mais sobre as suas organizaes

    e estruturas de funcionamento. Em todos foram encontradas casas de farinha com os

    caros equipamentos necessrios ao fabrico do produto e grandes roas de mandioca,

    alm de muita farinha pronta para o consumo. Destaca-se tambm a existncia em

    grandes quantidades de outros produtos, como a cana-de-acar e a aguardente.30

    Outros grupos de escravos fugidos atuavam fortemente nos assaltos a tropeiros,

    viajantes e fazendas e saqueavam as produes e destruam as plantaes que no

    podiam levar. A Cmara de Barra do Rio de Contas citou uma dessas aes, ocorri-

    da em 1834, na qual um grupo de escravos fugidos, provavelmente do quilombo do

    28 Parte da bibliografia sobre a economia prpria dos escravos nas Amricas e suas relaes com outras economias: berlin, morgan, 1995; carney, 2001; mintz, 1989; price, 1995; tomich, 1995.

    29 Apeb, Seo Colonial e Provincial, Juzes Barra do Rio de Contas, Mao 2246.

    30 Ibidem.

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]20

    Borrachudo, invadiu uma fazenda e roubou a mandioca, as aves, o gado e a aguarden-

    te de alambique do proprietrio Joo Pacfico de Jesus.31

    O roubo podia ser para consumo dos prprios quilombolas, mas outros docu-

    mentos mostram que essas mercadorias, principalmente os alimentos, eram vendidas

    com bastante frequncia e em grandes volumes a comerciantes locais. Provavelmente,

    eles usavam a pressa dos quilombolas de se desfazer das mercadorias para obter preos

    baixos. Assim, a Cmara de Barra do Rio de Contas informava que os quilombolas

    nem s fazem os insultos aos moradores do termo como passam at a virem a esta

    villa terem negcios com alguns que para com eles contratam.32

    Alguns anos antes, um caso semelhante aconteceu na mesma regio de Barra do

    Rio de Contas. Os quilombolas do Oitizeiro eram acoitados por lavradores livres,

    que usavam a sua mo de obra enquanto lhes ofereciam proteo. Para Joo Jos Reis,

    o Oitizeiro seria um quilombo disfarado de aldeia de lavradores.33 No foi toa

    que a sua destruio, em 1806, revelou uma impressionante estrutura econmica.

    A avaliao dos bens encontrados aponta que mais da metade dos 530$380 cor-

    respondiam a 217.500 covas de mandioca que ali havia, sem contar aquela usada pelos

    cerca de 50 ndios cariris, que tinham composto a tropa de ataque, para produzir a

    farinha que consumiram por cerca de quatro meses. Mesmo assim, as 217.500 covas

    de mandioca produziriam 6.525 alqueires de farinha, o que no mercado alcanaria

    um valor superior a dois mil contos de ris.34

    Chamam ainda ateno os bens encontrados no quilombo: equipamento com-

    pleto para a fabricao de farinha, que existia em diversas casas, e pequenos barcos

    e canoas, essenciais para que a produo fosse vendida. A funo de barqueiro era

    desempenhada pelos coiteiros. narrado nos depoimentos que muitos clientes

    iam ao quilombo comprar a farinha diretamente das mos dos coiteiros/lavradores.

    Tanto o quilombo do Borrachudo quanto o do Oitizeiro tiveram uma funo

    primordial no abastecimento de farinha destinado aos comerciantes locais, que por

    sua vez acionavam o mercado externo de alimentos. Assim, foram importantes fontes

    de abastecimento da farinha que saa das vilas do sul da provncia.

    Apesar de em alguns casos os quilombolas contarem com a proteo de pessoas

    livres, no estavam imunes s aes das autoridades, tanto pela questo da fuga quanto

    31 Apeb, Seo Colonial e Provincial, Cmara Barra do Rio de Contas, 1834, Mao 1254.

    32 Ibidem.

    33 reis; gomes, 1996, p. 348.

    34 Apeb, Seo Colonial e Provincial, Quilombos, Mao 572-2.

  • 21o oitocentos sob novas perspectivas

    pela interferncia que tinham na economia local. Em 1831, o juiz da Comarca de

    Valena solicitou ao presidente da Provncia da Bahia armas, munio e guardas para

    combater os escravos fugidos, que roubavam na regio e se encontravam refugiados em

    mais de 50 quilombos.35 Essa no foi a primeira vez que esse tipo de pleito foi feito.

    Havia quatro anos, desde 1827, que o pedido era reiterado, ao menos uma vez por ano,

    o que aponta para uma situao que j se prolongava havia algum tempo. No mesmo

    ofcio, o juiz justificava o pedido como forma de impedir os roubos perpetrados pelos

    aquilombados. Segundo esse juiz, os fugidos vagam nas noites de sbado e domingo

    amedrontando a populao, roubando gado e seduzindo escravos pacficos.36

    Antes disso, em 1830, o juiz de paz de Camamu, prximo de Valena, tambm j ha-

    via noticiado ao presidente da Provncia que ali existiam escravos fugidos, que se acham

    aquilombados nas mattas deste termo, roubando e insultando os lavradores.37 Mais tarde,

    em 1835, o mesmo juiz mostrou-se insatisfeito com a falta de tomada de posio das au-

    toridades da provncia e disse que j tendo levado por duas vezes ao [conhecimento do]

    antecessor () os sucessivos assassnios, roubos e ataques causados pelos escravos fugidos,

    aquilombados nas matas desta vila () motivando que muitos lavradores abandonem

    suas lavouras a fim de escaparem de to raivoso bando,38 havia pedido providncias para

    acabar com os quilombos, l onde existe toda sorte de crimes.39

    Os roubos praticados pelos escravos, fossem de gado ou de outros bens, sugerem

    prticas organizadas e que estavam destinadas no apenas sobrevivncia dos fugiti-

    vos, mas a outras finalidades, como, por exemplo, a venda para pequenos lavradores

    dos arredores dos quilombos, com quem se relacionavam cotidianamente. O juiz de

    Valena chegou a dizer que tais prticas se davam de forma preponderante nos fins

    de semana. Isso decorria do fato de que talvez nos demais dias os escravos estivessem

    ocupados com suas prprias roas e plantaes, o que demonstrava um planejamento

    de aes por parte dos quilombolas.

    Em quilombos ou fora deles, escravos, fugidos e libertos procuraram se apropriar

    das condies sociais que o local lhes oferecia. Na maioria das vezes, as reconstruam

    a partir de seus interesses. A luta pelo acesso a formas diferenciadas de economia pr-

    pria estava impregnada de um sentido de liberdade, que era dinmica e multifacetada,

    35 Apeb, Seo Colonial e Provincial, Mao 2626.

    36 Ibidem.

    37 Apeb, Seo Colonial e Provincial, Mao 2298.

    38 Ibidem.

    39 Ibidem.

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]22

    que rompe com a percepo de que a liberdade que o escravo buscava se obtinha

    apenas com a alforria.

    Alm dos quilombolas, escravos que viviam em outras situaes de domnio da

    mesma maneira tinham participao na economia local e favoreciam a agricultura

    de subsistncia que abastecia Salvador e alhures. Esses escravos cultivavam pequenas

    faixas de terra em locais que fossem a um s tempo seguros e de fcil acesso. As terras

    ou eram dos senhores e nesse ponto a explorao poderia ser feita com ou sem

    o conhecimento dos proprietrios , ou estavam na beira das estradas, ou ainda no

    interior das matas da regio.

    Para os escravos, negociar a sua produo de forma independente e com a po-

    pulao das redondezas era a maneira mais fcil e eficiente de vend-la, pois passava

    quase que despercebida das autoridades ou de outros senhores que tentavam coibir

    tais prticas. Pese o fato de que muitas autoridades e a grande maioria da popula-

    o se beneficiavam de alguma forma dessas prticas econmicas dos escravos. Quer

    dizer que esse tipo de negcio era vantajoso tanto para os escravos, que precisavam

    negociar os produtos com pessoas de confiana e que no os denunciassem, quanto

    para os compradores, que encontravam entre os escravos preos e condies mais

    vantajosas por conta da pressa que tinham e da ilegalidade da transao. A maioria da

    populao livre das vilas do litoral sul da Bahia, na primeira metade do sculo xix, era

    formada maciamente por pessoas consideradas remediadas e que dependiam de uma

    srie de fatores para obter melhorias econmicas. Sendo senhora de poucos escravos

    e com pequenas parcelas de terra, essa populao livre do litoral sul da Bahia manteve

    uma estreita relao econmica com os escravos de sua prpria posse ou de outrem.

    Diante das vicissitudes da vida, muitos desses senhores recorreram aos escravos para

    obter emprstimos, o que refora a importncia que essa economia dos escravos teve

    na sociedade local. O que queremos dizer que a sua produo agrcola e os seus

    peclios colaboravam em alguma medida com o circuito de venda de alimentos para

    fora dos limites da baa de Camamu.

    O pequeno proprietrio Francisco Antnio Pereira, por exemplo, tinha dvidas

    de 81$080 com Roza, escrava de Jos Silveira. Mesmo possuindo dois escravos adul-

    tos e um moleque, todos homens do servio da roa, Francisco Antnio adquiria

    com relativa frequncia farinha da produo independente da escrava Roza e a usava

    para complementar a prpria produo.40 Roza foi uma das vrias pessoas com as

    40 Apeb, Seo Judiciria, Inventrios de Camamu, 04/1757/2227/01.

  • 23o oitocentos sob novas perspectivas

    quais Francisco Antnio negociou. Comprando suas pequenas produes para pos-

    teriormente revend-las para negociantes de fora de Camamu.

    Para efeito de comparao, tomaremos como parmetro o preo do litro da fari-

    nha quando ele j apresentava um sensvel aumento $304 e usaremos uma perspec-

    tiva conservadora na Salvador de 1845. Se o consumo semanal para uma famlia de

    cinco pessoas, conforme estipulou Katia Mattoso, fosse de 251 litros, a despesa anual

    seria em torno de 48$620.41 A escrava Roza obteve da venda a Francisco Antnio

    81$080, o que demonstra ter sido uma produo razoavelmente grande. O volume

    de farinha produzido por Roza certamente no era para o consumo prprio, nem

    mesmo estava destinado venda espordica. Uma escrava no faria tanta farinha para

    uma venda incerta. muito provvel que a sua produo fosse encomendada, se

    destinasse a atender a clientes.

    A viva Maria do Carmo do Sacramento, com bens avaliados em pouco mais

    de 2.000$000, tinha dvidas de 1.589$899, o que consumiria mais de 75% da sua

    fortuna. A sua produo era grande e diversificada. Nela trabalhavam 25 escravos em

    um engenho de mandioca e nas roas de arroz, caf e mandioca, tudo produzido

    em grande quantidade. Dos escravos que possua, dois eram empregados ao ganho:

    Jacinto era sapateiro e Caetano trabalhava como alfaiate. Para os padres da localida-

    de, mesmo sendo uma grande proprietria, Maria do Carmo ainda complementava

    a sua produo agrcola comprando a farinha produzida por escravos da vizinhana,

    como Faustina, que era escrava de Caetano Correa da Silva e tinha a receber 10$640

    de Maria do Carmo, referentes ao que lhe fora vendido.42

    Outros senhores, como, por exemplo, Manoel Corra da Costa, se endividaram

    com escravos do prprio domnio, o que atesta outra faceta da escravido rural no

    litoral sul da Bahia. Proprietrio de Ana Crioula, na sua pequena propriedade, na vila

    de Camamu, Corra da Costa era senhor demais trs escravos adultos. Alm de dever

    a outros pequenos proprietrios das imediaes, devia 53$110 a Ana Crioula, o que

    pode ser resultado tanto da compra de alguma produo agrcola como de emprs-

    timo tomado em espcie.43

    Os ganhos que os escravos obtinham iam alm das questes puramente econ-

    micas. Consistiam em estratgias de reposicionamento social, com amplas repercus-

    ses culturais e polticas em suas vidas. Por essas vias, alguns escravos encontraram a

    41 mattoso, 1978, p. 368.

    42 Apeb, Seo Judiciria, Inventrios de Camamu, 07/3261/01.

    43 Ibidem, 04/1939/2411/14.

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]24

    oportunidade de alterar o jogo de poderes e adquirir lugares menos desconfortveis

    naquela estrutura social. Para eles, negociar com pessoas da prpria localidade pode

    ter sido a nica opo para obter ganhos e correr riscos menores, uma vez que o

    comprador tambm infringia as leis. Tambm pode ter servido como elemento de

    afirmao e de demarcao de espaos dentro daquela sociedade.

    Em uma regio marcada pela presena de uma maioria de lavradores livres

    pobres, a produo independente dos escravos teve um papel essencial na comple-

    mentao dos gneros alimentcios que negociava com outras localidades. A grande

    extenso de terras desocupadas entre labirintos de rios e o aumento da demanda por

    farinha uma vez que a regio j era reconhecida como grande produtora desde o

    sculo xviii , somados s baixas condies econmicas de boa parte dos proprie-

    trios daquela regio, favoreceram escravos e quilombolas, que angariaram espaos

    importantes que influenciavam diretamente os rumos da economia local, ainda que

    bastante restritos e instveis. A renda que obtinham dos negcios que faziam, fossem

    eles lcitos ou no, passou a ser vista por lavradores livres como uma importante

    e acessvel fonte financiadora que podia socorr-los nas necessidades por meio do

    recebimento de emprstimos financeiros.

    Embora em menor nmero, as concesses de emprstimos financeiros para es-

    cravos, incluindo os do prprio domnio, seguiam duas tendncias: a formao de

    uma rede de dependncia qual os escravos se prendiam e que dificultava a aquisio

    da alforria; e o estmulo ao aumento da produo agrcola dos escravos, que facilitava

    a aquisio pela populao livre.

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  • O presente artigo busca analisar a praa comercial do Recife (pe), entre as dcadas de 30 e 70 do sculo xix, por meio de uma abordagem das traje-trias de vida dos comendadores Joo Pinto de Lemos e Manoel Joaquim Ramos e Silva. Mencionados nas fontes como negociantes de grosso trato, estiveram

    simultaneamente envolvidos na economia atlntica e no abastecimento interno. A

    posio privilegiada desses homens de negcios na hierarquia mercantil possibilitou-

    -lhes o exerccio de mltiplas atividades comerciais, permitiu-lhes assumir a direo

    de casas bancrias e outras corporaes mercantis e estabelecer, assim, uma participa-

    o econmica e poltica mais dinmica que a do simples comerciante. Nosso estudo

    vislumbra compreender quem foram os atores, por meio de suas trajetrias individuais,

    para ento ampliar a explicao do funcionamento da instncia social a que eles per-

    tenceram. Desse modo, o esforo de resgatar essas trajetrias coincide tambm com a

    busca pela apreenso das prticas sociais, culturais e comerciais do sculo xix.1

    O comrcio em grosso e a retalho

    O comerciante de grosso trato ou em grosso, denominao tpica do sculo

    xix era, antes de tudo, o homem que diversificava suas atividades e se dedicava aos

    vrios segmentos do comrcio. Entretanto, essa categoria de ocupao j existia no

    vocbulo social para identificar as distines que permeavam as prticas econmicas

    relacionadas ao comrcio atacadista, ou de grosso trato, e as prticas do comrcio

    varejista, ou a retalho.

    1 Mestranda em histria pela Universidade Federal Fluminense (uff).

    Os negociantes de grosso trato no Recife: um estudo de caso sobre as trajetrias de Joo Pinto de Lemos e Manoel Joaquim

    Ramos e Silva (Pernambuco, 1830-1877)

    BrunA IglezIAs MottA dourAdo1

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]28

    Um bom exemplo do que caracteriza as particularidades de cada uma dessas

    prticas comercias pode ser lido no dicionrio de comrcio de Jacques Savary des

    Bruslons, editado pela primeira vez no incio do sculo xviii e traduzido para o

    portugus em 1813. O Dictionnaire universel du commerce, em seu verbete commercio,

    distinguia assim os modos como podiam ocupar-se os indivduos no comrcio:

    O primeiro objeto do comrcio comprar as produes da terra e

    da indstria, para tornar a vend-las por pequenas parcelas aos outros

    indivduos. As pessoas que exercitam essa profisso se chamam mer-

    cadores de retalho. Essa ocupao mais cmoda do que necessria para

    a sociedade concorre, contudo, para a circulao interior () outro

    objeto do comrcio compreende a ocupao de um membro que re-

    mete para os pases estrangeiros a produo de sua ptria, ou seja, com

    fim de troc-las por outras necessrias, ou por dinheiro, esse comrcio

    feito por terra ou por mar, na Europa, ou em outras partes do mundo,

    tem o distinto nome de comrcio em grosso; e os que se ocupam nele so

    chamados homens de negcio. Essa profisso muito necessria porque

    a alma da navegao e aumenta as riquezas relativas do Estado.2

    Notamos que a definio do dicionrio proclama o comrcio em grosso pro-

    tagonista das prticas mercantis atacadistas nas relaes exteriores, alm de vincular

    a alcunha de homens de negcio a seus empreendedores. J o comrcio varejista

    ficaria a cargo dos mercadores de retalho, responsveis pelo fomento da circulao

    interior das produes da terra e da indstria de um Estado. Ora, mesmo no sendo

    tarefa simples, a definio precisa de tais categorias comerciais, as distines sociais

    que as acompanhavam clareiam-nos um pouco mais sobre a amplitude da atuao

    mercantil das respectivas categorias de ocupao.

    Para Jorge Pedreira, em seu estudo sobre os padres de recrutamento e percursos

    sociais dos negociantes de Lisboa no sculo xviii, a criao da Junta de Comrcio,

    em 1755, constituiu-se como um momento crucial para a distino dos homens de

    negcio de grosso trato em relao aos comerciantes de varejo. O surgimento de tal

    instituio no inaugurou a distino social, j existente, mas foi a sua primeira ex-

    presso institucional, funcionando como um instrumento de interveno do poder

    na classificao dos agrupamentos e dos agentes sociais na esfera comercial.3

    2 sales, 1813, p. 154.

    3 pedreira, 1992, p. 417.

  • 29o oitocentos sob novas perspectivas

    Em Portugal, o Alvar de 16 de Dezembro de 1757 repartiu os mercadores em

    cinco classes ou corporaes:mercadores de l e seda; mercadores de lenaria; mer-

    cadores de meias e fitas de seda, chamados de capela; mercadores de meias de l e

    quinquilharias, chamados de Porta da Misericrdia e Arcos do Rcio e Campainha;

    e mercadores de retroz.4

    A criao dessas categorias de distino mercantil teve como funo tanto de-

    terminar os espaos pblicos que deveriam ser ocupados por cada uma dessas classes

    quanto derivar de si mesma a lgica de honorificao da atividade dos homens de

    negcio, por meio da concesso de privilgios e ttulos.5

    As distines entre as vertentes atacadista e varejista do comrcio emergem da

    anlise de Max Weber acerca da gnese do capitalismo moderno como produtos da

    penetrao do princpio mercantil na economia, cujo clculo de rentabilidade norte-

    ava-se pelas oportunidades de mercado. O autor explica que no curso do sculo xviii

    o comrcio atacadista separa-se definitivamente do varejista e forma uma camada espe-

    cfica do estamento mercantil. Ademais, o comrcio atacadista decompe-se em outras

    duas formas: o de importao e o de exportao. Na forma atacadista de importao

    prevalece a transmisso do produto na venda em leilo, modo mais dinmico de escoar

    a mercadoria importada e repassar os dividendos dessa transao ao exterior. J o co-

    mrcio atacadista de exportao o da consignao, habitualmente o ultramarino, e

    domina em lugares em que o comerciante no tem relao com o varejista.6

    A temtica da caracterizao das categorias de ocupao comercial abordada

    em Civilizao material, de Fernand Braudel, sob a proposta de que a partir das de-

    sigualdades percebidas na economia de trocas, estabelecidas em amplitude crescente

    no mercado, foi definida a existncia de uma hierarquia na sociedade mercantil:

    a especializao social composta pelas mais diversas profisses engendradas pelo

    mundo comercial (aquelas dependendo desse) se teria instalado primeiro na base

    da hierarquia, mediante a distino das tarefas e a fragmentao das funes.

    Segundo o autor cujas formulaes estabelecidas sobre a sociedade capitalista

    e suas categorias comerciais so em grande parte inspiradas dos argumentos lanados

    por Max Weber e Savary des Bruslons os grandes comerciantes, ou capitalistas, esta-

    riam no topo dessa sociedade, numa esfera da circulao que lhes concederia o privi-

    lgio da polivalncia e da no especializao; esfera na qual ser negociante implicava

    4 chaves, 2006, p. 174.

    5 Ibidem, p. 154.

    6 weber, 2006, p. 34.

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]30

    a adaptao aos mais diversos tipos de ofertas e demandas estabelecidas pelo mercado.

    Seriam ainda eles detentores do controle do comrcio de longa distncia, do privi-

    lgio da informao, da cumplicidade do Estado e da sociedade.7

    A participao econmica do comrcio de grosso trato no contexto da formao do Estado Imperial brasileiro

    O controle exercido pelos negociantes de grosso trato sobre o comrcio Atlntico

    por meio do monoplio da atividade negreira, bem como do privilgio de suas

    posies no campo do abastecimento interno o profundo trao da entrada des-

    ses representantes da elite mercantil, entre 1790 e 1830, em uma economia colonial

    tardia, marcada por mudanas nas formas de acumulao, que deram novas feies s

    elites coloniais. Em outros termos, a partir de ento a economia colonial ter estado

    estreitamente vinculada a esses negociantes de grosso trato.

    Uma abordagem da economia colonial brasileira entre a ltima dcada do sculo

    xviii e as trs primeiras do xix, com base na acumulao e na hierarquia na praa

    mercantil do Rio de Janeiro, desenvolvida por Joo Fragoso. O comportamento da

    praa comercial do Rio de Janeiro e a estruturao de sua hierarquia mercantil so

    analisados e percebe-se que ali, assim como o teria dito Braudel, o grande mercador

    est no patamar mais alto. A elite mercantil, como categoria comercial, dividia-se,

    grosso modo, em funo de duas prticas, as comerciais especulativas e as monopo-

    listas, ambas voltadas para a atuao comercial dos indivduos nos diversos setores

    do mercado e para seu tempo de permanncia em cada um deles. A dominao do

    comrcio de longa distncia, posio estratgica e representativa, seria ainda outra

    prerrogativa comum a todos os membros dessa elite.8

    Por meio de uma costura das consideraes levantadas pelos autores, dir-se-ia que o

    segmento mercantil da elite colonial tardia demonstrava uma tendncia esterilizao de

    seus capitais, uma vez que esses eram retirados da esfera da circulao e reinvestidos em

    atividades agrcolas (voltadas para a agroexportao) e rentistas (vinculadas aquisio de

    bens imveis). Demais, poder-se-ia afirmar que o ideal aristocrtico, presente na socieda-

    de colonial tardia do princpio do sculo xix, imprime-se a partir de uma transformao

    da acumulao gerada pela circulao de bens, em terras, homens e sobrados.9

    7 braudel, 2009, p. 353.

    8 fragoso, 1998, p. 44-45.

    9 Idem, 2001, p. 24.

  • 31o oitocentos sob novas perspectivas

    Entrementes, importante ressaltar que o perodo em questo s vistas de uma

    perspectiva econmica global refere-se ao momento da passagem da prevalncia do

    capital industrial sobre o capital mercantil. Essa constatao no implica, todavia, uma

    negao do papel dominante que o capital mercantil continuou a exercer na economia

    do Imprio brasileiro. No caso da economia brasileira, fundamental salientar que

    a reintegrao da regio de agricultura mercantil-escravista que pos-

    sibilitava um monoplio virtual no se processava nas correntes em

    expanso de um comrcio mundial qualquer, e sim em um mercado

    mundial que era reordenado de acordo com os interesses do capitalis-

    mo concorrencial e cuja lgica no era mais dada pela acumulao pri-

    mitiva de capital, mas pela acumulao capitalista propriamente dita.10

    A monarquia brasileira se havia esforado por manter o monoplio da responsa-

    bilidade poltica, em relao ao mundo do governo.11 O imperador, por meio do poder

    Executivo, tinha como dever o de promover a perpetuao da centralizao poltica

    e estabelecer uma espcie de ordem ou efeito coesivo sobre as gestes poltica e

    administrativa, uma adjunta outra. Por conseguinte, a esfera administrativa da ges-

    to do Estado Imperial brasileiro figurava como articuladora do poder Moderador:

    esse percebia naquela um elemento de equilbrio para as possveis alteraes de sua

    autoridade. Forjava-se assim a necessidade de uma aliana entre empreendedores e

    detentores de capitais e lderes do governo.

    O processo poltico de consolidao do Estado Imperial brasileiro, mais do que

    um embate entre as elites hegemnicas ou entre as foras de centralizao e descen-

    tralizao do poder estatal, representa o somatrio das reivindicaes presentes nas

    disputas entre as fraes da classe senhorial,12 dentro de suas especificidades regionais.

    O fracionamento da classe contenedora dos capitais do grande comrcio brasilei-

    ro se fazia em meio a disputas: polticas, econmicas, sociais e locais. Tais disputas

    10 mattos, 1987, p. 63.

    11 A expresso mundo do governo empregada por Ilmar Mattos em O tempo saquarema para designar o ato conjunto de governo da Casa (poder privado) e do Estado (poder pblico). O mundo do governo estaria ainda em oposio ao mundo do trabalho (noo empregada em relao ao trabalho escravo).

    12 Os negociantes constituram uma frao da classe senhorial, a classe dominante e dirigente do pro-jeto saquarema do Estado Imperial brasileiro, e pode ser usado o estilo de vida como o que define o comportamento senhorial, e no razes meramente econmicas (MATTOS, 1987).

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]32

    caracterizam a consolidao do Estado Imperial brasileiro e denotam a ansiedade

    pela formalizao do aparato administrativo e financeiro desse Estado.

    Aps a regulamentao da lei de criao do Banco do Brasil, por meio da fuso

    do Banco Comercial do Rio de Janeiro e do Banco do Comrcio e da Indstria do

    Brasil (Banco do Brasil, de Mau),13 disputas travadas pelos grandes comerciantes do

    Rio de Janeiro pela ocupao dos cargos de diretoria na instituio demonstram que

    essa no era simplesmente uma empresa, e sim um lugar de acomodao de interes-

    ses e de construo de [suas] estratgias capitalistas, ligadas ao controle do financia-

    mento s demais atividades econmicas.14

    Sobre a configurao dos grupos de interesses econmicos durante o sculo xix

    pode-se dizer, em outros termos, que as associaes comerciais e industriais e ou-

    tras organizaes coorporativas tornaram-se espaos sociais que congregavam grande

    parte dos interesses da iniciativa privada no pas, por meio das quais os grupos de

    interesses econmicos efetivaram o sentido de sua atuao poltica. Vale salientar de

    passagem que a forte influncia estrangeira pode ser demonstrada mediante verifica-

    o da nacionalidade dos membros da direo de tais associaes.15

    As iniciativas governamentais para a promoo de uma reforma monetria e

    bancria durante o Brasil Imprio acabaram por reforar os mecanismos centraliza-

    dores da circulao de crdito e moeda. A lei bancria de 1853 restringiu a emisso da

    moeda ao Banco do Brasil do Rio de Janeiro e promoveu a criao de um sistema

    de moeda e de crdito, assente na massa de capitais at ento investidos no trfico

    africano.16 A tentativa de pluralismo bancrio presente na Lei Souza Franco (1857),

    que concedeu a emisso monetria a um nmero limitado de estabelecimentos nas

    principais provncias, foi interrompida pela Lei dos Entraves e pelo retorno definitivo

    unidade de emisso, em 1860.

    A praa comercial do Recife

    A segunda metade do sculo xix o perodo no qual o Estado Imperial brasileiro

    consolida-se mediante uma organizao das bases do aparato poltico-administrativo do

    Imprio. A partir da aprovao de legislaes como a Lei Eusbio de Queiroz, a Lei de

    Terras ambas de 1850 e o Cdigo Comercial, o Brasil vivenciou um momento de

    13 Leis do Imprio, Decreto 1.223, de 31/8/1853.

    14 piero, 2002, p. 97.

    15 ridings, 1994.

    16 mello, 1999, p. 104.

  • 33o oitocentos sob novas perspectivas

    notrias transformaes na sua estrutura econmica. O decnio 1850-60 abre alas com

    a fundao de 62 empresas industriais, 14 bancos, trs caixas econmicas, 20 companhias

    de navegao a vapor, 23 de seguros, quatro de colonizao, oito de minerao, trs de

    transportes urbanos, duas de gs e, finalmente, oito de estradas de ferro.17

    Tal estmulo s atividades econmicas urbanas parece no ter circunscrito so-

    mente o centro-sul do pas, de modo que no s a nova capital do Imprio pulsa

    e chama a ateno do mundo, como os antigos centros, Salvador e Recife, ganham

    nova respirao.18 A praa comercial do Recife foi um dos pontos privilegiados do

    circuito econmico vinculado ao Mundo Atlntico desde o sculo xvii.19

    No incio do sculo xix o Recife consta como um dos setores mercantis mais

    atuantes no esquema de fluxo monetrio, de distribuio e abastecimento regional

    do Brasil Imprio. Em 1857, a cidade contava com uma companhia de seguros de

    escravos, duas de seguros contra fogo e quatro de seguros martimos, alm de uma

    companhia de vapores, a Companhia Pernambucana de Navegao a Vapor (1854), e

    a Companhia do Beberibe (1838), essa responsvel pelo abastecimento e saneamento

    das guas da cidade.20

    Uma das particularidades do setor regional financeiro liderado por Recife, em

    comparao com os setores das praas mercantis de Rio de Janeiro e Salvador, est no

    atraso que demonstrou a cidade no processo de instalao dos bancos comerciais. At

    por volta de 1850 nenhuma sociedade havia entrado em atividade em Pernambuco,

    diferentemente da Corte e da Bahia, onde j era intensa a incorporao de bancos.

    Segundo Levy e Andrade, tal fenmeno se justifica pelo fato de as casas comerciais e

    bancrias (entre elas as comissrias, as de descontos e as de importao-exportao)

    permanecerem exercendo satisfatoriamente as funes de bancos. O capital usurrio

    permaneceu, como assinalaram as autoras ainda, garantindo a hegemonia nas relaes

    de financiamento da economia pernambucana.21

    Dentro das especificidades da praa comercial do Recife, desde o sculo xviii,

    percebe-se que seu aspecto centralizador no que tangia no s exportao dos

    produtos pernambucanos como tambm importao de mercadorias europeias, que

    satisfaziam a demanda de toda a regio restringia para si os ativos de comrcio e, por

    17 prado jr., 1969, p. 128; ianni, 1976, p. 300.

    18 mota, 2000, p. 216.

    19 alencastro, 2000.

    20 Apeje, 1857, p. 321-322.

    21 levy, 1985, p. 29.

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]34

    conseguinte, boa parte das atividades comerciais internas, isto , o comrcio entre o

    porto do Recife e o interior e as outras capitanias, como ressaltou George de Souza:

    la comunidad mercantil recifense, que estuvo fuertemente, extenda su

    red de negocios por una ampla rea geogrfica que inclua las capi-

    tanas anexas al norte (Paraba, Rio Grande do Norte y Cear) y los

    puertos suministradores de esclavos en frica, especialmente Angola, o

    incluso el extremo sur de la colnia.22

    As unidades agrcolas (e seus proprietrios), ligadas ou no s produes da cana-

    -de-acar e do algodo os dois produtos de maior valor comercial exportados por

    Pernambuco durante boa parte do sculo xix , tornavam-se refns do predom-

    nio do sistema de adiantamento de provises ou da troca simples de mercadorias. Por

    esses meios, lavradores e senhores de engenho mantinham um sistema de conta cor-

    rente com os comissrios: os intermedirios. Um processo que trazia altos lucros aos

    bolsos desses ltimos, sem que houvesse, para tanto, um direto comprometimento seu

    com o sistema produtivo, uma vez que controlavam o capital-dinheiro do produtor

    e at determinavam a expanso ou a retrao de seus negcios.

    O antigo fazendeiro ou o senhor de engenho trabalhava para o trafi-

    cante que lhe fornecia escravos como o atual trabalha para o corres-

    pondente ou para o banco, outra instituio da cidade que com a che-

    gada de D. Joo vi se levantou no Brasil, modificando-lhe a paisagem

    social no sentido da urbanizao; no sentido do domnio dos campos

    pelas cidades. Acentuando a gravitao de riqueza e de energia para as

    capitais () e para os capitalistas, pode-se dizer, sem receio de prejudi-

    car a verdade com o trocadilho fcil.23

    O sistema de crdito ao produtor no era uma particularidade da praa comer-

    cial do Recife. A concatenao fazendeiro/comissrio/comerciante era uma carac-

    terstica comum a todas as economias regionais do Imprio. Entretanto, a concentra-

    o de casas comerciais a um s tempo exportadoras e importadoras gerou na praa

    do Recife uma espcie de coincidncia entre os sacadores e tomadores de cmbio.

    Fato que, por sua vez, remete a outro aspecto da economia monetria pernambucana:

    22 souza, 2008, p. 72.

    23 nabuco apud freyre, 2004, p. 118.

  • 35o oitocentos sob novas perspectivas

    a particularidade de suas taxas de cmbio frente aos demais portos brasileiros. Se

    comparadas as operaes comerciais entre Recife e Londres com as estabelecidas

    entre o Rio de Janeiro e aquela mesma praa no exterior, sobressai a maior valori-

    zao do mil-ris em relao libra na praa nortista. Destarte, constata-se que em

    Pernambuco a moeda nacional permaneceu, com eventuais excees, at meados do

    sculo xix, mais valorizada do que no Rio de Janeiro ou na Bahia.24

    A questo da concentrao de casas comerciais ao mesmo tempo exportadoras e

    importadoras na praa comercial do Recife justificada tambm pela proeminncia

    de elementos estrangeiros nesse ramo comercial. Entre os negociantes que atuavam

    no Recife de 1850 a 1860, a grande maioria era composta por estrangeiros. De acordo

    com as fontes, em 1850 foram listados 73 negociantes: 26 brasileiros, seis portugueses,

    21 ingleses, dois americanos, oito franceses, sete alemes, um holands e dois suos;25

    j em 1860 contam-se 158 negociantes listados: 66 brasileiros, 66 portugueses, 12

    ingleses, dois americanos, quatro franceses, trs alemes, um holands, dois suos e

    dois sardos.26

    O quantitativo acima demonstra que, para 1860, aproximadamente 42% dos ne-

    gociantes listados eram de origem lusitana. Esse percentual sofreria um aumento

    significativo se considerssemos que boa parte dos negociantes de grosso trato decla-

    rados brasileiros, como tambm de indivduos presentes em outras categorias mer-

    cantis, era composta pelos chamados brasileiros adotivos,27 ou seja, estrangeiros que

    passaram por processo de redefinio de sua nacionalidade.

    Os interesses do grupo de comerciantes portugueses eram muitos e da opo

    pela causa do Brasil dependia, entre outras coisas, a manuteno do patrimnio

    econmico constitudo no pas. Vale mencionar, para alm, que a adoo da nova

    cidadania garantia ao forasteiro tanto o pleno gozo dos direitos polticos brasileiros

    quanto a sua admisso nas instituies nacionais recm-estabelecidas.

    A forte presena da comunidade lusitana em Pernambuco, que atuava principal-

    mente nas atividades mercantis da praa comercial do Recife, explica parcialmen-

    te a intensidade dos movimentos antilusitanos que assolaram a provncia durante a

    24 brasil, 1859, p. 23.

    25 Apeje, 1850, p. 303-304.

    26 Idem, 1860, p. 288-293.

    27 Termo usado para designar os indivduos estrangeiros que haviam passado por processos de redefini-o da sua nacionalidade que ocorreram, principalmente, no momento da Independncia do Brasil (1822). Existiram at perto da Maioridade (1840) registros de adoes da nacionalidade brasileira feitos na Cmara Municipal do Recife. Ver: cmara, 2012, p. 48.

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]36

    primeira metade do sculo xix, dos quais temos como exemplo os mata-marinhei-

    ros presentes na dcada de 1840, inclusive na Insurreio Praieira (1848).28

    Uma anlise mais aguda mostra tambm em que medida as reformas polticas e

    econmicas promovidas nas dcadas de 1840 e 1850 aliceraram a montagem do apa-

    rato administrativo e financeiro do Estado Imperial brasileiro. Podemos citar, guisa

    de exemplo, a Reforma Tributria de 1844, a Reforma Monetria de 1846, a Lei de

    Sociedades Annimas de 1849 e o Cdigo Comercial e a Lei de Terras, ambos de

    1850. nesse contexto que o Banco Comercial de Pernambuco29 teria sido fundado

    pela iniciativa de comerciantes do Recife.30

    Alm do estmulo que a fundao de um banco representava para a fluidez da cir-

    culao dos capitais na econmica local pernambucana, a instituio financeira foi de

    aprazvel serventia para alguns membros do partido conservador, que sempre estiveram

    envolvidos em negcios, uma vez que tinham empenhado nos seus cofres suas prprias

    economias e capitais.31 O banco teria sido fundado com o auxlio de um administrador

    conservador da provncia, Vitor de Oliveira, e sua presidncia entregue ao tambm con-

    servador Pedro Francisco de Paula Cavalcanti de Albuquerque, visconde de Camaragibe.

    Foi ainda membro daquela diretoria o negociante Joo Pinto de Lemos.32

    O processo de modernizao da indstria aucareira promovido em Pernambuco

    durante o sculo xix no foi estabelecido, todavia, sem certa dificuldade de mobili-

    zao de capitais pelo produtor agrcola junto s instituies bancrias. As incertezas

    no cumprimento dos compromissos financeiros adquiridos tanto pelo fato de o

    setor agrrio demonstrar certa vulnerabilidade em relao s vicissitudes do mercado

    mundial quanto por razes que remetem falta de regulamentao das hipotecas

    foram equacionadas pelo fato de que os entraves do recente modelo dificultavam a

    reverso dos bens imveis do produtor em garantias de crdito. Donde se conclui

    que a influncia do setor de fornecimento de capitais privados, muitas vezes perso-

    nificado na figura do grande comerciante e do comissrio de acar, era considervel

    para o equilbrio da estrutura agroexportadora da economia local.33

    28 A respeito do movimento antilusitano em Pernambuco durante o sculo xix, ver carvalho, 2003; carvalho e cmara, 2008.

    29 Leis do Imprio, Decreto 888, de 22/12/1851.

    30 rosas, 1999; ridings, 1994; levy; andrade, 1985, p. 17-41.

    31 rosas, 1999, p. 97.

    32 Apeje, 1851, p. 144.

    33 mello, 1999.

  • 37o oitocentos sob novas perspectivas

    A migrao de capitais outrora aplicados no trfico internacional de escravos

    verificada tambm em Pernambuco engendrou possivelmente um reinvestimento,

    aps a legislao de 1850,34 em setores estratgicos da economia, como os da infra-

    estrutura e da indstria caberia dizer tambm que o surto de algodo dos anos

    1860-70 atraiu, sem dvida, tais fundos.35 Em relao ao provvel destino dos capitais

    negreiros h ento a possibilidade de sua transferncia para a esfera da circulao, via

    instituies bancrias, em virtude da existncia de emisses crescentes lanadas por

    bancos fundados com capitais oriundos do trfico de escravos.36

    A promulgao do Cdigo Comercial Brasileiro (1850) foi providencial para o

    desenvolvimento das atividades mercantis na medida em que especificou as distin-

    es entre os comerciantes e os auxiliares do comrcio e consolidou-se como uma

    conquista, uma resposta aos anseios de representatividade dos grandes. Por conse-

    guinte, a imagem do grande comrcio distinguiu-se nitidamente, tanto no plano

    social quanto no econmico.

    Analisaremos doravante a insero econmica de Joo Pinto de Lemos e Manoel

    Joaquim Ramos e Silva, notrios comerciantes locais, em funo de suas redes de

    interesses mercantis na praa comercial do Recife e das ligaes que mantinham com

    o mercado de abastecimento interno e o comrcio atlntico. Anloga a esse objetivo,

    e tambm dele decorrente, ser a anlise das redes sociais desses comerciantes no que

    se refere s relaes familiares e de prestgio evidenciadas em suas trajetrias.

    Os negociantes de grosso trato e suas trajetrias de vida

    A intencionalidade do tema contido no presente artigo no vislumbra um estu-

    do regido sob a tendncia de supervalorizar os exemplos individuais aqui tratados.

    So exemplos decorrentes da assero que declararia que para avanar na explicao

    do funcionamento de uma instncia social devemos, como premissa, conhecer-lhe

    os atores. De acordo com um de seus textos fundamentais, a vertente posopogrfica

    indica que seu mtodo deve combinar a habilidade humana na reconstruo hist-

    rica, por meio da concentrao meticulosa nos detalhes significativos e nos exemplos

    34 A abolio efetiva do trfico internacional de escravos s se tornou vivel aps a aprovao do Decreto 581, de 4/9/1850, tambm conhecido como Lei Eusbio de Queiroz, a lei antitrfico. Ver rodrigues, 2000, p. 96.

    35 eisenberg, 1977, p. 100.

    36 Ibidem, p. 174.

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]38

    particulares, com as preocupaes tericas.37 Mediante essa inclinao metodolgi-

    ca, pretende-se aqui, tambm, revelar os objetivos por trs dos fluxos das trajetrias

    de vida dos negociantes de grosso trato no ps-1830.

    Joo Pinto de Lemos (1796-1871) e Manoel Joaquim Ramos e Silva (1792-1877),

    negociantes de grosso trato, figuram entre os maiores consignatrios de embarcaes

    comerciais das mais diversas origens ancoradas e despachadas no porto do Recife

    a partir dos meados da dcada de 1830 e pelo menos at aos derradeiros anos da

    dcada de 1850.38 A multiplicidade das atividades mercantis desses indivduos e o

    prestgio social por eles experimentado so aspectos que devem ser levados em conta

    na anlise de suas carreiras mercantis e podemser entendidos, tambm, como uma

    condio comum do grupo a que pertenciam.

    Tentaremos trazer algumas questes sobre o agrupamento social do qual faziam

    parte Pinto de Lemos e Ramos e Silva. Ambos nasceram em Portugal e chegaram ao

    Brasil nas duas primeiras dcadas do sculo xix. Sabe-se que a presena de estran-

    geiros, assim como sua dominao sobre as atividades comerciais no pas, remonta ao

    perodo colonial.39 Porm, tanto Pinto de Lemos quanto Ramos e Silva figuraram nas

    listagens produzidas em Pernambuco como negociantes brasileiros.40

    Nesse sentido, particularmente interessante o caso de Pinto de Lemos. Nos

    registros de seu testamento consta ser ele cidado brasileiro, natural do Porto.41 De

    acordo com essa fonte, ele emigrou para a Provncia de Pernambuco em 1806, com

    apenas dez anos. L-se ainda:

    Sua adeso causa do Brasil era no mnimo antiga () em 1822

    esteve presente na sesso extraordinria convocada pelo Conselho do

    Governo, presidida por Gervsio Pires Ferreira, para votar a respei-

    to de uma representao assinada por inumerveis pessoas de todas

    as classes do povo que pedia ao Conselho o embarque imediato do

    37 stone, 2011, p. 134.

    38 Informao extrada de levantamento feito, e publicado no Dirio de Pernambuco, por meio de uma amostragem produzida com base nos anncios das entradas e sadas de embarcaes do porto do Recife veiculados nas colunas Notcias Martimas e Movimento do Porto para 1835, 1836, 1837, 1839, 1843, 1850, 1851, 1856 e 1857.

    39 ridings, 1994, p. 35.

    40 Na lista dos negociantes de grosso trato publicada em um dos almanaques locais em 1848 Joo Pinto de Lemos e Manoel Joaquim Ramos e Silva so referidos como brasileiros (Apeje, 1848, p. 198).

    41 ihgpe, Inventrio do Comendador Joo Pinto de Lemos, com testamento, 1871, caixa 206, fl. 8.

  • 39o oitocentos sob novas perspectivas

    Batalho de Infantaria que tinha chegado a [sic] pouco tempo em

    Pernambuco de Portugal. () Meses depois, com a proclamao da

    Independncia, Lemos se tornava, por escolha, cidado brasileiro.

    Assim como ele, muita gente nascida em Portugal se tornou agente

    ativo da descolonizao.42

    Ora, como j mencionado atrs, os interesses do grupo de comerciantes portu-

    gueses eram os mais diversos e da opo pela causa do Brasil dependia tambm a

    manuteno do patrimnio econmico constitudo no pas. Adotar a nova cidadania

    significava garantir direitos polticos e presena nas instituies. Muitos membros do

    grupo optaram, assim, por aderir causa e fixar residncia no pas, sobretudo por

    conta de suas atividades no comrcio e dos laos matrimoniais construdos.

    Nas trajetrias de Pinto de Lemos e Ramos e Silva foi verificada a ocorrncia de

    matrimnios com mulheres brasileiras, naturais de Pernambuco. Pinto de Lemos casou-

    -se duas vezes, primeiro com Maria Libnea de Lemos, com quem teve nove filhos,43 e,

    em 1847, com Adelaide Gil de Moura Mattos Lemos, com quem teve cinco filhos.44 J

    Ramos e Silva casou-se uma nica vez, com Natlia Maria Benedita da Silva, e teve 15

    filhos.45 Diferentemente de Pinto de Lemos, Ramos e Silva confirmou, em testamento,

    sua nacionalidade portuguesa e mencionou ter nascido e sido batizado no Porto.46

    A partir da dcada de 1830 as atividades comerciais de Pinto de Lemos e Ramos

    e Silva se tornaram mais evidentes em Pernambuco. E a composio do capital ca-

    racterstico do grupo de negociantes de grosso trato, apesar de ser proveniente do

    comrcio, era variada.

    Em 1833, Pinto de Lemos estabeleceu na rua dos Barbeiros, no Recife, escritrio

    relacionado a um ponto de venda de escravos para fora da provncia.47 J em 1837

    anunciou o arrendamento do Engenho Manima, na Vila de Goiana, Pernambuco.48

    Ainda na dcada de 1830 Pinto de Lemos surgiu associado aoutros comerciantes em

    42 cmara, 2012, p. 167.

    43 ihgpe, 1871, caixa 206, fl. 12v.

    44 Ibidem, fl. 13.

    45 Idem, 1877, caixa 245, fl. 4.

    46 Ibidem, fl. 6.

    47 Lapeh, 1833, n 201.

    48 Idem, 1837, n 10.

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]40

    uma notcia que anunciava a organizao da Associao Comercial de Pernambuco e

    a convocao de um comit para a elaborao do estatuto da entidade.49

    Tanto Ramos da Silva como Pinto de Lemos foram membros da Associao

    Comercial de Pernambuco (1839) presidida por Pinto de Lemos em 1848.50 Tal ins-

    tituio congregou boa parte dos interesses mercantis da provncia. De modo geral, as

    associaes comerciais brasileiras contribuam para os negcios da iniciativa privada

    atuante no pas e acordavam a seus membros um notvel potencial de influncia junto ao

    governo imperial e sobre outros grupos de interesses econmicos no sculo xix. Fenmeno que

    provinha da relativa escassez desses demais grupos organizados no Brasil e estabelecia uma

    competio por ateno e favores do governo. Poder-se-ia salientar ademais que os membros das

    associaes comerciais eram tambm definidores da elite econmica de cada comunidade, sobretu-

    do aqueles que compunham as diretorias, amplamente ocupadas por comerciantes estrangeiros.51

    Ramos e Silva aparece nas fontes como consignatrio de embarcaes ancoradas no porto

    do Recife. Em 1839, somente em maro, so trs: o patacho Leal Constante, proveniente da

    Bahia;52 a barca So Manoel, oriunda de Portugal;53 e a barca portuguesa Josefa, vinda de

    Luanda,54 na frica. As duas primeiras declaravam trazer gneros da terra, j a ltima decla-

    rava estar em lastro, denominao caracterstica de embarcaes empregadas no comrcio tran-

    satlntico de escravos. Outro indcio que relaciona a participao de Ramos e Silva no trfico de

    escravos uma notcia de 1835, na qual Gabriel Antnio, conhecido traficante de escravos que

    atuava em Pernambuco,55 anunciou uma viagem ao Rio de Janeiro deixando os negcios de

    sua casa ao cargo de Manoel Joaquim Ramos e Silva, nica pessoa autorizada a realizar todas

    as suas transaes, e adicionou que s a ele podem pagar os seus devedores.56 No demais

    lembrar que um dos negcios era o trfico de escravos.

    A atuao dos indivduos ligados aos grupos de interesses econmicos, alm

    de ter importncia nos empreendimentos comerciais nacionais, pode ser relacio-

    nada ao desenvolvimento da infraestrutura nas reas urbanas, pois, em alguns ca-

    sos, a iniciativa privada interferiu em esferas restritas iniciativa pblica. As fontes

    49 Idem, 1839, n 183.

    50 Apeje, 1848, p. 198.

    51 ridings, 1994, p. 48.

    52 Lapeh, 1839, n 90.

    53 Idem, n 99.

    54 Idem, n 105.

    55 carvalho, 2005, p. 205.

    56 Lapeh, 1835, n 27.

  • 41o oitocentos sob novas perspectivas

    comunicam um caso exemplar desse tipo de interferncia. No Recife, a chamada

    rua do Comrcio, que antes de 1870 era conhecida com rua do Trapiche, ou rua do

    Trapiche da Alfndega, foi reformada em toda sua extenso por iniciativa dos capi-

    talistas desta praa Joo Pinto de Lemos, Elias Baptista da Silva e ngelo Francisco

    Carneiro.57 Durante o sculo xix, essa rua foi caminho obrigatrio para carga e

    descarga das mercadorias que passavam pelo porto do Recife.

    Os membros da iniciativa privada e dos grupos ligados aos interesses mercantis

    estiveram ainda relacionados fundao de bancos e companhias de seguros, de nave-

    gao a vapor e ferrovirias, entre outras, ajudando a criar as bases da infraestrutura

    de comunicao durante boa parte do perodo imperial brasileiro.58

    Em mais um caso exemplar da tutela da iniciativa privada sobre as esferas de

    atuao da iniciativa pblica no Brasil Imperial, relacionado o nome de Ramos e

    Silva pela Assembleia Legislativa Provincial de Pernambuco para organizar uma caixa

    econmica no Recife. Em 20 de abril de 1847 foi ento autorizada uma lei provin-

    cial para a criao da Caixa Econmica, ou de Socorro, em Recife, com o fim de

    preencher a funo de banco de depsito e emisso, que prescreveu que o presidente

    da provncia nomeasse uma comisso de cinco cidados brasileiros abastados e de

    bem que quisessem ser acionistas para dar o primeiro andamento, instalar a Caixa e

    organizar uma assembleia geral. Foram nomeados para tal encargo Manoel de Sousa

    Teixeira, Toms de Aquino Fonseca, Manoel Joaquim Ramos e Silva, Antonio da

    Costa Rgo Monteiro e Manoel Gonalves da Silva.59

    Entretanto, a partir da dcada de 1830 que a atuao econmica dos referidos

    negociantes se tornou mais evidente e torna possvel a elaborao de uma periodi-

    zao que divide o recorte temporal da anlise de suas carreiras em duas partes. A

    primeira corresponde a 1830 a 1860, no qual foi verificada uma maior incidncia de

    suas atividades mercantis. O perodo seguinte tem incio em 1860, ano em que entra

    em vigor a legislao conhecida como Lei dos Entraves,60 passa pelo momento da

    ecloso da primeira grande crise econmica do Brasil Imprio, denominada Crise

    57 costa, 1965, p. 159.

    58 ridings, 1994, p. 90.

    59 costa, 1965, p. 491.

    60 O Decreto 1.083, de 22/08/1860, conhecido como Lei dos Entraves, fez parte de uma poltica do governo imperial no sentido de impor restries emisso de letras de crdito e de moeda por ban-cos provinciais, alm de condicionar a abertura de companhias de natureza limitada autorizao do Conselho de Estado. Ver: guimares, 2012, p. 199.

  • gladys ribeiro * ismnia martins * tnia ferreira [orgs.]42

    do Souto,61 e segue at 1877, fase que coincide com a etapa de declnio das atividades

    mercantis de Ramos e Silva e Pinto de Lemos.

    A criao dos Tribunais do Comrcio da Corte e das provncias agraciadas com a

    concesso de uma instncia jurdica prpria para o julgamento de suas causas comer-

    ciais propiciou o processo de montagem do aparato burocrtico para a administrao

    da justia comercial. O Cdigo Comercial Brasileiro (1850) previu a criao de um

    Tribunal do Comrcio em Pernambuco.62

    O Tribunal do Comrcio de Pernambuco, de acordo com o Cdigo Comercial,

    contaria com os cargos de: presidente; deputados comerciantes, sendo um secretrio

    e dois suplentes tambm comerciantes; e um fiscal, que seria sempre um desembar-

    gador com exerccio efetivo no Tribunal da Relao da provncia. Os cargos de de-

    putados comerciantes seriam eletivos e podiam concorrer para eles os comerciantes

    matriculados na dita instituio. Os pr-requisitos para a candidatura eram contar

    com idade superior a 30 anos e mais de cinco anos de atuao profissional. As pri-

    meiras nomeaes para esses cargos foram feitas por indicao do imperador, como

    tambm previa o Cdigo. Na ata da sesso de instalao do Tribunal do Comrcio de

    Pernambuco Pinto de Lemos listado como deputado comerciante, cujo suplente

    foi Elias Batista da Silva.63 Pinto de Lemos ainda seria eleito deputado comerciante64

    de forma direta pelos matriculados no Tribunal em 185265 e Ramos e Silva ocupou o

    cargo de suplente de deputado comerciante em 1858.66

    Importante saber que tipos de interesse conduziam os negociantes a ingressar

    no aparato burocrtico representado pelo Tribunal do Comrcio. As motivaes te-

    riam sido as mais diversas, dentre as quais se poderiam sublinhar os denotativos de

    61 O processo de falncia da importante casa de comrcio A. J. A. Souto & Cia, deflagrado em setembro de 1864, evidenciou, entre outras questes, a falta de liquidez do mercado brasileiro e as falhas na estrutura de financiamento e circulao existentes na economia do pas. Ver: guimares, 2012, p. 209.

    62 machado, 1982.

    63 Jucepe, dvd 8, P-LV1I002.

    64 O cargo de deputado comerciante foi criado pelo Decreto 556, de 25/6/1850, que estabeleceu a eleio de quatro deputados e dois suplentes entre os comerciantes matriculados nos Tribunais do Comrcio de cada provncia para o perodo de quatro anos. A esses cargos, assim como aos de presi-dente do tribunal e fiscal adjunto (cargos


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