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Revista escrita n 3

Date post: 22-Jul-2016
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Edição número 3: Brasilidade
67
REVISTA ESCRITA Literatura e Cultura revistaescrita.wordpress.com – Número 3 – Julho/Agosto de 2015
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Page 1: Revista escrita n 3

REVISTA ESCRITA Literatura e Cultura

revistaescrita.wordpress.com – Número 3 – Julho/Agosto de 2015

Page 2: Revista escrita n 3

2

EXPEDIENTE

Revista Escrita:

[email protected]

revistaescrita.wordpress.com

issuu.com/revistaescrita

Equipe editorial:

Daniel Costa

João Paulo Moreto

Giovana Ciccolani

Contribuições:

Clóvis Ribeiro

Daniel Costa

Dínamis Lara

Gabriela Laurentiis

Manuela Santos

Marina Laurentiis

Tamara Souza

Tomas Fava

Capa: Gabriela Laurentiis

Page 3: Revista escrita n 3

3

EDITORIAL

Nesta edição a RE propôs o tema da brasilidade, um tema dificílimo: o

historiador paulista Fernando Novais define a questão da identidade

nacional como a obsessão de nosso pensamento social, nunca

satisfeito.

Já foi dito em algum momento: “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão

os brasileiros?”

A equipe editorial deseja a todxs uma boa leitura e mais do que

convida os leitores a contribuir com seus próprios trabalhos para a

próxima edição, de tema livre.

Equipe Editorial.

Page 4: Revista escrita n 3

4

ENVIE SEU TRABALHO

A REVISTA recebe trabalhos (em diferentes gêneros) de qualquer

interessadX.

Na seleção, serão priorizadas as contribuições de quem enviar

mais de um trabalho, até o limite de cinco. Com isso, esperamos

conseguir expor consistentemente os estilos dXs autorXs.

Seu trabalho deverá ser enviado em um arquivo de Word (.docx)

para o e-mail: [email protected], descrevendo no assunto:

“Contribuição para Edição”.

A formatação do arquivo deve seguir: fonte Arial 12,

espaçamento 1,5 linhas, padrão de margens Normal, papel A4. A

primeira página deve conter um parágrafo de apresentação do autor,

nome completo, pseudônimo a ser publicado (se desejado) e endereço

do site pessoal ou blog.

O site da REVISTA está aberto para receber contribuições

continuamente para publicação imediata.

Essas contribuições devem ser enviadas através do formulário (ou

por e-mail, no caso de ilustrações, quadrinhos, músicas, vídeos,

animações ou fotografias), abrangendo crônicas, contos, poemas e

também resenhas de livros, bandas, séries, filmes, shows, etc.

Page 5: Revista escrita n 3

5

SUMARIO

EXPEDIENTE 2

EDITORIAL 3

DíNAMIS LARA: CHARGE 7

CLÓVIS RIBEIRO 8

DANIEL COSTA 18

GABRIELA & MARINA LAURENTIIS 30

MANUELA SANTOS 37

TAMARA SOUZA 48

TOMAS FAVA 58

Page 6: Revista escrita n 3

6

“Viver é super difícil

O mais fundo está sempre na superfície...”

Leminsky

Page 7: Revista escrita n 3

7

facebook.com/dirinhas

Page 8: Revista escrita n 3

8

CLÓVIS RIBEIRO

Poeta, Compositor, Professor de música. Gravou o primeiro

CD-Mais Feliz em 2010. Participou de dezenas de antologias

poéticas em São Paulo e em outras capitais. É membro do

Fórum de Cultura do Butantã. É produtor e apresentador Do

programa TOQUE CLOVIS RIBEIRO Na Rádio Cidadã FM 87,5.

Page 9: Revista escrita n 3

9

"Brasilidade"

Somos todos jovens

nesse Brasil varonil

Onde a fartura da água

é a boca seca

de justiça.

Somos dessa terra

Brasilis

Onde o verde

virou cinzas no cinzeiro

da esquina.

Onde os ventos

sopram de rapina

ao entardecer da honestidade.

Cidade e sinais quebrados

Tatuagens de pernas

que passam e braços

que buscam o silêncio

dos abraços.

Meu coração batuqueiro

Page 10: Revista escrita n 3

10

de brasileiro do samba no pé do moleque

que puxa um samba

de breque

e acende um do

bamba e

tudo vira canção.

Page 11: Revista escrita n 3

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REVISTA ESCRITA

Tudo está escrito

nos papiros do tempo

que passa por entre estações.

Há uma cilada escondida atrás de cada sílaba.

É preciso saber ler

nas entrelinhas das estrelinhas

do que se escreve.

O mundo clamando

por mudanças e o Deus

desnudo dança na praça da guerra santa.

Barbaridades são feitas

em tempos de barbárie

onde não se respeita a dignidade humana,

quem dirá dos animais

sagrados sacrificados

em nome de uma justiça cega

e que não vê a verdadeira

luz da verdade.

Precisamos abrir as janelas da mente

Page 12: Revista escrita n 3

12

e deixar o sol entrar para

renascer nos pensamentos

do novo amanhecer.

Page 13: Revista escrita n 3

13

Texto II

Desligo a televisão

e ligo meu coração

no badalar do sino que soa ao longe.

Por quem os sinos dobram?

Onde andará minha ilusão?

O pensamento me leva

para longe e

longe é

um lugar que não conheço bem.

Mas sigo assim mesmo na busca da minha identidade animal.

Rabisco linhas na reta do horizonte

e busco a fonte dos desejos escondidos

nos teus olhos.

Bocas e máscaras espelham nossos sonhos.

Espero o dia em que

faremos uma nova história

para nossos

sentimentos.

Busco tuas mãos

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14

em conjunção com as sinalizações

da constelação de Saturno

e choro quando

chove.

Posso partir sem me despedir

mas ainda assim

deixarei meus pedaços espalhados pelo tempo.

Page 15: Revista escrita n 3

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Texto III

Vem de lá de longe

o vento que sopra os teus cabelos.

O centro está em

tudo que habita teu olhar.

Não espero mais o dia de ontem

pois viver de passado

não ajuda a ver o futuro

dos nossos sonhos.

Olho o portal dos poetas

e contento-me

com as rimas esfriadas

sobre a mesa que ontem eram sobremesas

e já não tem o mesmo gosto.

Gosto de amora todo dia,

toda hora.

Digo nos teus ouvidos sobre o meu silêncio

e não entendes

pois as palavras pesam mais

quando não são ditas.

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Fui pescar estrelas e me perdi na

vastidão

do teu desejo

que agora se fez carne e deita comigo nas sobras do nosso

sono.

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17

Texto IV

(Poesia)

Regue sua luz todo dia

Regue sua luz toda hora

Regue sua luz toda noite

Regue sua luz agora

Tempo de iluminação

Trevas não travas mais a minha imaginação

Canto com todas minhas forças

Canto com meu coração.

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DANIEL COSTA

32, latino-americano de Mogi Mirim.

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CARTA FRATERNA IV

Você, meu caro amigo

Um precioso último de nossos loucos

Tendo se deitado como o próprio Isaque

De olhos cerrados, despido e consagrado

Posto sobre a pedra de seu próprio holocausto

E levantado as mãos contra o seu próprio peito

(como seu próprio Abraão)

Prestes ao ato do seu próprio sacrifício

E à ressurreição sob as vestes assombradas dos santos que repartem o

pão e o nada entre os escritores atormentados da história da luta de

classes

Tendo sido impedido no último instante

Por ordem de um amor

(como se o próprio Deus)

E posto em pés descalços

Sobre o concreto impossível do tempo

Com uma alma grande demais para qualquer corpo

Para qualquer trabalho

Page 20: Revista escrita n 3

20

Para qualquer salário

E braços simples para envolver o mundo

Através de uma mulher e filhos

Estudantes, padres, exilados

Desabrigados, sonhadores

Desamparados amantes de futebol

Meu caro amigo,

Deixe que seu coração poupado

Trabalhe ardente e sereno

Pois enquanto que batendo

Pulsa o nosso sangue vermelho e quente.

Page 21: Revista escrita n 3

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SALVE PARA UM SAMBISTA

(para o Peixe)

Eu sei bem por que se fala

Tantas vezes no amor

Pois se toma esse nome

Pra abafar algum pavor

Pela falta de um meu Deus

Um concreto interventor.

Seja o amor o redentor

Nada mais há de servir

É por isso que o sambista

Fez a regra por convir:

Se não for falar de amor

Eu não quero nem ouvir.

Seja o amor o protetor

Já não resta outra prece

Que abençoe as três meninas

Page 22: Revista escrita n 3

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Por que o pai ele envelhece.

Page 23: Revista escrita n 3

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MANUAL PARA O MANUSEIO DO FOGO

Vá até a janela do seu prédio

Tire todas as suas roupas

E acenda uma vela na moldura.

Do lado de fora, nas ruas

Seguem em marcha

Em hordas

Cidadãos contribuintes

Enquanto o tempo se sopra

Um vento de nada

Contra o vidro cristalino de um relógio

São os colonos selvagens

Do presente permanente

Do presente sempre em fuga

Do mundo como ele é dado

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Sempre tão oportunos

Em fazer residência na opressão

Prontos a sacar garras

Sacar presas e venenos

E a convocar a polícia

Segundo a lei do silêncio

E calar a música

(E convocar a razão

Sob a lei da gravidade

E calar o sonho).

Pule,

Salte que mover é seguir Nordeste.

Rastreie as sobras de um sonho absurdo

Escalando a coluna do país

Até chegar Valente na Bahia

Onde o diabo o chama pelo nome

E o tenta três vezes em sua infância

A vagar sozinho em suas grandezas

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Recolha o ramo de uma roseira

E volte só, em meio a uma coluna

De fantasmas que cantam sobre a fome

E a fome e a fome e a fome e a fome e a terra

E a vontade de transformar o chão

Pelos passos que se andam sobre ele

Chegando com uma declaração

De guerra, de voos, de horas e penas negras de um pássaro de mau

agouro

E um vento de cinzas e fumaça

Da brisa rala da realidade

Atravessando gritos e presságios

Contra os escudos da tropa de choque

E as armas, as armas, as armas, as armas, leis

E o seu peito entregue entre asas abertas

À vertigem.

E então,

Quando estiver prestes a cair descalço

Sobre a equação da fratura

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No monólito rosto do mundo

Acenda outra vela

Para que se clareie sentido.

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CÁLCULO DE CASAMENTO

Uma quinta feira em nossa cama

Você se senta

Entre mim e o céu imenso

E afoga os meus sentidos

Com a cascata nos seus ombros

De noite e lua cheia.

Abaixo de nós,

Onze lances de escada em que falta luz.

Querida,

Eu vou levantar uma igreja

Para abrigar minha alma ensandecida

E encontrar paz

Sentido e acolhida

No átrio de um coração desnorteado.

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E vou abrir o meu peito

Ao amor eterno e infinito

Que me arraste em nós adentro

Sem passagem de retorno

E me navegue com ternura

Nuns cem lances de oceano

Uns três quartos de doçura

Pelo círculo das fúrias e

A górgona da melancolia

E afinal nos entregue um ao outro

Ao meu por mim reconhecido

Meu eu perdido em nosso encontro.

Querida,

Quando chega o dia

A levantar o véu do delírio

Eu me despeço com um beijo

Depois ligo a dar bom dia

No intervalo do trabalho.

Page 29: Revista escrita n 3

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ÓPERA DA NOITE

Amor,

Eu me sento na janela do prédio

Com um chá temperado de chuva

E eu bebo a paz do seu sono.

Do lado de fora,

O céu arrasta cortinas carregadas

E a cidade se prepara

Para o ato da madrugada.

As avenidas acendem suas luzes amarelas

O diabo abre uma mesa de jogos

Numa esquina escolhida ao acaso

E um bêbado improvisa uma ária a cappella.

Aqui dentro,

Eu bebo a paz do seu sono

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30

E seguro uma xícara de chá

Dispensado do espetáculo.

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GABRIELA LAURENTIIS & MARINA LAURENTIIS

As irmãs Gabriela e Marina ensaiam uma aproximação

poética sobre o Carnaval entre fotos e letras.

[email protected] [email protected]

Page 32: Revista escrita n 3

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Bloco de Rua

Amanha a cidade

de som e purpurina

e dança a paisagem

tão estranha troca

de pele

em pele toque a

brincadeira ser

e ser

de qualquer maneira.

A manhã de carnaval

liberta o sorriso

massacrado nos juízos

no concreto

prazer da alegria

e a poesia

que a dia a dia não adia

a existência

resistir a diferença

Page 33: Revista escrita n 3

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a festa rompe a fresta

escancara a violência

do olhar de quem te vê?

nessa grande fantasia

tanto mais desmascarada

que a tanta agonia

do não desfile na

rua a vontade nua

do querer.

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Page 37: Revista escrita n 3

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MANUELA SANTOS

Sou Manuela Maluf Santos, tenho 26 anos, nasci em São Paulo

e vivi um longo tempo em Ribeirão Preto. Ainda descobrindo

para onde vai a minha escrita, prazer que me acompanha

desde sempre, acabo de perceber que não tenho a mínima

habilidade para minibios. Formada em Administração de

Empresas, atualmente trabalho como pesquisadora no

Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV, em São

Paulo.

[email protected]

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Romaria

Era um dia especial, o evento esperado pela cidade toda,

quando havia a romaria.

Em volta da mesa, posta com os talheres de prata, a família se

reunia para o tradicional banquete depois de ver os romeiros passar

pela janela.

Clarice trabalhava para os Mourão desde seus 17 anos, quando

veio da Bahia ajudar uma tia que já era criada na casa e estava para

se aposentar. Completava naquela mesma data 61 anos de idade,

sempre com dedicação e disciplina. Tinha um olhar sério que, reforçado

pelas mãos calejadas, indicavam ser ela uma mulher de fibra, como se

dizia, mesmo com seu um metro e cinquenta de altura. Só saía aos

domingos, para ir à missa, e às quartas, para fazer o jogo da mega-

sena. O seu e o do patrão.

Naquele mesmo dia de seu aniversário, e tão importante para a

reunião dos Mourão, fazia uma noite abafada, nem sinal de vento

quando Clarice abriu o vitrô da cozinha. O que viu, na verdade, foram

os preparativos para a passagem dos romeiros. Ficou paralisada

olhando a alegria daquele pessoal colocando as bandeirinhas e as

cordas que separavam a multidão. Aquela era uma festa do povo.

Tomada por um ímpeto, Clarice arrancou o avental e saiu sem ser

vista pela porta de serviço, nem tirou o cordeiro do forno.

Em um primeiro momento lá embaixo ficou atônita e deslocada.

Já havia uma organização em andamento, da qual Clarice não fazia

nem nunca sonhou fazer parte.

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Bastou, no entanto, ver um pedaço de cordão sem dono que foi

logo tomando conta de amarrar as suas pontas e se misturar entre os

organizadores.

Era a primeira vez que Clarice sentia-se útil para si mesma e para

os outros, dando sem receber nada em troca. Nem lembrava do

cordeiro no forno que, por sua vez, já começava a cheirar queimado

na casa dos Mourão.

A patroa entrou na cozinha com o nariz empinado buscando o

foco do deslize gastronômico e gritando o nome de Clarice para lhe

ajudar. Em meio a tanta fumaça saindo do forno, gritou pelos filhos e

maridos, que permaneceram intactos em suas respectivas poltronas.

Avançando pela área de serviço, deu com a porta entreaberta e o

avental da criada jogado no chão. Clarice havia fugido.

Puxando os cabelos para cima com as próprias mãos, Maria Alice

se lamentava em voz alta a ponto de, pela primeira vez, fazer os

homens da casa irem até ela:

“Quem vai terminar o jantar?!?”

“Daqui a pouco os convidados vão chegar!”

“Vão atrás dela!”

A ala masculina, dando de ombros à gravidade da situação,

voltou para seus assentos sem nem levar em consideração a

possibilidade de descerem até a muvuca para procurar a empregada.

Maria Alice não se permitiu o luxo do descaso, não podia perder

Clarice!

Desceu as escadas do prédio correndo e em poucos minutos se

deparou com a multidão que começava a passar pela rua.

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Os corpos suados dos romeiros passavam por ela e a arrastavam

involuntariamente pela romaria.

Gritar o nome da criada ali não lhe pareceu adequado e ela

preferiu manter o olhar atento à sua procura.

Viu um pai carregando um filho nos ombros, viu um grupo de

mulheres em um pranto baixinho, viu um jovem casal de mãos dadas,

viu turistas tirando fotos, mas não viu Clarice.

Mais alguns quarteirões e a romaria atingiu a avenida da orla,

onde flores e velas recebiam a breve peregrinação. Ali, Maria Alice já se

esquecera de Clarice e se levava, com seus próprios passos, ombros

grudados nos de seus agora companheiros de romaria.

Observava, com os olhos cheios de lágrimas que não ousava

derramar, o mistério da devoção e da alegria daquele pobre povo.

Pensou ouvir alguém chamar seu nome mas, “como podia”,

pensava, ninguém ali devia conhece-la. Continuou seu trajeto e sentiu o

chamado ficar ainda mais alto.

“Ah, sim! É Clarice!”.

“Dona Maria Alice, Dona Maria Alice!”, gritava a criada espantada por

ver a patroa lá.

Foram andando uma em direção à outra e, sem trocar uma

palavra, se enfiaram na direção contrária à multidão de volta pra casa.

Alguém tinha de terminar o jantar, dali a pouco os convidados

iam chegar.

Page 41: Revista escrita n 3

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Maria Teresa

O mar estava tão agitado naquele fim de tarde que Carlos

Alberto mal podia ouvir as pedras de seu uísque batendo contra o copo

na sacada de seu apartamento.

O movimento empolgado das pessoas na rua, que ele observava

apoiado de seu sexto andar, lembrava-o de que era sexta-feira. Mais

uma sexta-feira.

Sua tentativa de olhar o horizonte, que se escondia num céu

nublado, foi interrompida pelo interfone. Ele virou o copo derramando o

resto de gelo lá embaixo na calçada e foi atender; Maria Teresa era

capaz de matar ele se visse essa cena.

Era o porteiro anunciando a chegada da Raquel, a moça que a

partir daquele final de semana o acompanharia. A novidade imposta

pelos filhos, que achavam que ele já não podia ficar muito sozinho, foi

recebida com certa dose de resistência, mas não teve muito jeito: ela

chegaria às sextas no final do dia e ficaria até o fim da tarde de

domingo, deixando os filhos mais tranquilos.

Ele autorizou a subida dela e ficou na dúvida de qual elevador

ela usaria, mas a campainha tocou na porta de serviço e ele foi abrir

sem saber se esticava a mão ou se dava as boas vindas, pois protocolo

para tal situação ele desconhecia. Em silêncio, fez sinal para que ela

entrasse e foi caminhando com ela até um quarto de empregadas

junto da lavanderia do apartamento, que tinha sido usado, desde que

se mudaram para lá com os meninos ainda novos, somente como

depósito; Maria Teresa nunca gostou de empregada que dormisse,

achava uma invasão.

Page 42: Revista escrita n 3

42

A moça era mais nova do que os meninos haviam dito: tinha

menos de trinta anos, usava branco e os cabelos presos. Eles disseram

que ela era enfermeira, mas, com aquela idade, devia estar ainda na

faculdade. Ele esperou que ela acomodasse a sacola no armário e

disse que ia dormir.

Ainda era bem cedo e ele nem tinha jantado, mas preferiu se

isolar no quarto.

Sem sono e com fome, Carlos Alberto ficou na cama pensando.

Pensou que seus filhos eram uns ingratos e queriam invalida-lo. Pensou

que aquela era sua casa e quem mandava era ele. Pensou que jamais

faria isso com o pai dele. Pensou que as noras é que deviam ter

colocado a ideia na cabeça dos meninos. Pensou que não ia se

acostumar com uma moça estranha dentro de casa. Pensou que não

precisava dela. Pensou que o salário que ela ganhava não devia dar

para nada. Pensou que ela provavelmente estudava a semana toda e

agora trabalharia aos finais de semana. Pensou que a vida dela devia

ser infeliz e solitária – e aquilo o incomodou muito. Pensou em ir até lá

dispensa-la. Ouviu o micro ondas apitando.

Ele percebeu que não tinha oferecido nada a ela como jantar e

ficou transtornado imaginando o que ela estaria esquentando, assim,

com tamanha naturalidade, já usando o forno no primeiro dia na casa

dele.

Fez um esforço e dormiu.

No dia seguinte acordou com barulho de louça sendo lavada na

cozinha. Com certeza era ela, terminando de tomar seu café da

manhã. Ele pensou em se vestir para ir até lá comer o dele, mas foi só

Page 43: Revista escrita n 3

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de shorts mesmo, afinal ele estava na sua casa e tinha o direito de

circular de samba-canção quando acordasse.

Tinha uma leve esperança de que ela pudesse ter deixado a

mesa posta, mas não. Pegou então um prato no armário, queijo na

geladeira e um pão de forma que já estava em cima da mesa. Tinha

uma laranja também, numa fruteira sobre a mesa. Enquanto ele decidia

se a comeria ou não, Raquel apareceu vinda de seu novo aposento.

- Bom dia, Dr. Carlos.

- Você descascaria essa laranja para mim?

De repente lhe pareceu tão cômodo que alguém pudesse

descascar sua laranja, como Maria Teresa costumava fazer de vez em

quando para ele ler o jornal sem estar com as mãos meladas.

Ainda sob o constrangimento da falta de clareza do que tinha de

fazer ali, a moça estendeu a mão, pegou a laranja, buscou uma faca

na gaveta e em pé, com a barriga apoiada no balcão da copa,

começou a descascar.

Parecia que era a primeira laranja que ela descascava na vida,

coitada. Com a franja caindo na testa e as mãos já indisponíveis para

ajeita-la, ela ainda tinha que de vez em quando olhar para ele pelas

frestas para tentar se defender do modo como ele agora a encarava.

Não adiantava muito: o olhar dele estava inabalável.

Carlos Alberto ali sentado esperando mantinha o olhar fixo sobre

a moça. Ela mal conseguia manter o ritmo do deslizar da faca, a pobre

menina. A cara de esforço dela não precisava, no entanto, ser tão

provocante. O decote dela, ele podia ser um pouco mais discreto. Seria

mais adequado, também, que ela não ficasse molhando os lábios de

tempos em tempos.

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Antes de se lembrar do tempo em que era mais novo, quando

ainda nem conhecia Maria Teresa, lembrou-se que aquela era uma

moça em sua cozinha, acabando de descascar, com muito esforço,

uma laranja para seu café da manhã.

- Aqui está, Dr. Carlos.

Ela entregou o fruto já sem casca e partido em quatro lançando um

olhar de gelo para ele, logo se retirando para o quarto.

- Você aceita um gomo? Ele ofereceu, embaraçado.

Ela continuou andando e nem mexeu a cabeça:

- Essa faca está precisando mandar amolar.

Page 45: Revista escrita n 3

45

SATISFAÇÃO GARANTIDA

Foi o desespero que levou Pablo àquela consulta: depois de já ter

tentado benção de padre e visita a médium no centro, topar com um

cartaz do Pai Léo de Ogum enquanto descia a Augusta lhe soou

providencial, o divino finalmente mexendo os pauzinhos em prol de um

ateu sem solução.

o rapaz não tinha amigos, não terminou faculdade e vivia de bicos, o

mais recente um esquema de pirâmide para venda de shake

emagrecedor.

fazia exatos 20 meses, 3 semanas e 2 dias que Marli tinha ido embora

com o padrasto e lhe deixado sem uma mão na frente mas com as

duas atrás, amaciando o traseiro que ainda doía do duro pé na bunda.

“tenho a solução para qualquer problema”, dizia a propaganda no

cartaz, com o endereço para a página de Facebook do dito pai de

santo.

após o pagamento de uma taxa de R$20,00 o sistema online liberava o

credenciamento e a agenda do líder espiritual.

dois dias depois Pablo já estava lá: entregou uma caixa de shake de

baunilha na casa de uma cliente, com a promessa de satisfação

garantida ou o dinheiro de volta, e montou no trem pra São Miguel

Paulista, onde Pai Léo atendia.

logicamente, a fila era enorme. via-se ali que os tempos não eram dos

mais fáceis pra ninguém.

uma hora de espera depois, Pablo teve um minuto para contar sua

história e escutou: “me traz um cabelo dela”.

Page 46: Revista escrita n 3

46

charlatão-filho-da-puta foi o primeiro pensamento, mas, por via das

dúvidas, agradeceu a si mesmo pelo próprio romantismo que o levou a

guardar em uma caixinha uns pentelhos que ficaram no lençol após a

última noite de amor já nada tórrido entre ele e Marli e levou lá no dia

seguinte.

“é pra se vingar então?”, perguntou pai Léo.

“é sim”.

“aqui é satisfação garantida ou o dinheiro de volta”.

charlatão-filho-da-puta, pensou Pablo mais uma vez. em todo caso, saiu

já na expectativa de receber em breve uma notícia trágica de Marli.

chegou em casa, tomou duas cervejas já aliviado, como se já sentisse

antes de qualquer notícia ruim a Marli enfim desamarrada dos

pensamentos dele e foi fazer um xixi.

sentindo uma ardência horrível, olhou seu pinto mais de perto e viu que

uma vermelhidão tomava conta dele. o negócio ardia e só ia ficando

mais escuro, quase roxo.

desesperado, Pablo se jogou no chuveiro, ligou a água fria e a

sensação cessou. não lhe parecia, porém, que os susto não lhe deixaria

sequelas. pensou em todas, mas coelhinha nenhuma da playboy fazia

aquilo levantar.

Pablo se enxugou e correu para o Google em busca de uma solução

ou um caso parecido, que fosse, para dar um conforto. mas antes que

abrisse o navegador, pipocou um e-mail em sua tela:

“Prezado Sr. Pablo,

Comunicamos que houve um equívoco: análises posteriores

indicaram que o material entregue para trabalho continha espécimes

femininas e masculinas, diferentemente do indicado na consulta, que

Page 47: Revista escrita n 3

47

indicava uma vítima mulher. Pedimos de antemão desculpas por

qualquer inconveniente e o número de sua conta para efetuarmos o

reembolso.

Atenciosamente,

Pai Léo de Ogum Ltda.”

Page 48: Revista escrita n 3

48

TAMARA SOUZA

Mineira, Bióloga, com alguns anos de idade, apaixonada por

arte e música. Colaboradora do Blog Colina do Tordo, onde

escreve e ilustra suas histórias. Vê na natureza melodias e

inspirações que a fazem expressar sentimentos através de

seus textos.

Page 49: Revista escrita n 3

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O POVO

Conheço um povo engraçado...

Vive entre as serras de Minas, onde saboreia o doce do café e o queijo

branco.

A enxada é alternada entre a viola amiga e companheira.

É dia de festa! E esse povo sabe disso...

Enquanto o sertanejo toca o cateretê, os caboclos apresentam-se à

beira da fogueira.

A lua afaga a felicidade estampada de simpatia nos rostos, aquecendo

o frio da noite.

O chimarrão combina com as gélidas temperaturas do sul e acalenta os

enamorados na época de festa escondendo seus mais singelos

sentimentos.

Há tantos lugares para se descobrir! Cada canto de peculiaridade é

enriquecido em rostos cheios de vida.

O reflexo nos olhos da moça é o da verde mata que abriga libertadores

regentes da floresta, são infindáveis controvérsias que apreciam os

costumes de cada espaço.

O velho Chico chora entre os paredões da Canastra e abriga a riqueza

esvanecida. Campos acolchoados da rica simplicidade de um vilarejo...

Os botos brincam nas mentes incessantes dos medrosos e na taipa do

fogão à lenha os avós contam histórias de assombrações. É a

experiência da cultura de uma vida.

Page 50: Revista escrita n 3

50

A miscigenação é a alegoria na época de carnaval e em resposta o

folclore arraiga-se em forma de lenda.

Lendas de causos de pescadores e verdades compreendidas que

atravessam as correntezas dos rios.

Várias histórias, um só povo.

Povo que se mistura com o barroco, que acolhe e inventa seu próprio

sotaque.

Uns dizem uai, outros tchê! Mas juntos são somente um.

Costumes que se entrelaçam entre formas de criatividade.

Conheço um povo...

Quem me dera conhecer outros povos como este. É esse povo que

também ri e chora, mas sobrevive...

Conheço um povo, é esse povo que difere de tantos outros...

É esse povo que também sou eu, é este O Povo: O POVO BRASILEIRO.

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Estrela

Revelou-se como a mais sórdida confiança que eu pudera ter

conquistado de alguém.

Vi o brilho que enobrecia sua beleza, e encantei-me desde o primeiro

momento. Quiz saber quem era e com muito esforço sem que ela

soubesse descobri seu nome. Era muito frágil para ser revelada.

E pela primeira vez chamei-a pelo nome, Estrela, como a mais brilhante

de qualquer céu que eu já tinha visto até aquela noite.

Os dias eram imensos à espera de minha amada. E quanto mais o

tempo passava mais ela se apagava. Não pra mim, pois não se ofusca

o brilho de quem tem luz própria. Mas para o mundo.

Era a guia do meu universo encantado. Entre tantas, única! Meus olhos

a acompanhavam misteriosamente...

Mas um dia a nuvem escura cercou-a com todo pudor e não a

encontrei mais...

Tanto tempo contemplando-a e de repente a perdi.

-Estrela cadê você? Onde se escondeu?

Mas ela não ouviu...

A nuvem derramou gotas ácidas de sentimentos.

Senti em meu rosto os pingos atravessarem atingindo a minha alma.

Escondeu-se em algum lugar, pois não a vejo mais...

Hoje as noites são serenas, não tristes.

Tenho comigo o brilho cultivado de pequenos instantes.

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Contemplo o céu com a esperança de vê-la. Mesmo tendo a certeza

do contrário.

Em algum lugar dentro de mim ela brilha reluzindo...

Não a vejo, mas ela existe...

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Minha história...

Quero ver quem vai compreender quando as lágrimas rolarem em meu

rosto, e se sentar ao meu lado pra escutar toda a minha história.

Aspiro saber quem olhará além das minhas roupas desbotadas pelo

tempo e me dizer um oi ou transbordar um sorriso mesmo que seja de

mentira, ou até me ajudar a levantar das sarjetas escuras onde caminho

toda noite. Mas eu não mereço!

Sinto frio.

Todos olham com piedade para mim, mas me ignoram. A geada das

madrugadas é o meu cobertor, os calafrios me lembram das épocas

em que as folhas de Bordo tocavam o meu rosto nos outonos passados.

Os doutores passam nas calçadas e fixam olhares enojados, mas é fácil

ser como algum deles, difícil é se tornar alguém de verdade no meio de

tanto ego. Nenhum desses senhores conhece a minha vida.

Momentos que vivi, onde tinha tudo e não entendia porque existiam

tantas pessoas nas ruas mendigando por restos.

Tanta coisa! Os episódios dançam em minhas lembranças.

Sinto saudade não dos banhos quentes com perfumes excêntricos, mas

a falta que minha filha faz, quando me abraçava e me dava um beijo

todo melado de doce e dizia: papai vem brincar comigo? E eu limpava

aquele mel deixado pela inocente criança, e não olhava naqueles

olhinhos tristes que deixei por sonhar...

Se eu pudesse voltar e recomeçar. Pois todos têm uma segunda

chance, porém esgotei as três que tive.

Estou sozinho perambulando...

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Perdi tudo! Não falo dos carros, nem das casas ou de ações. Mas o que

era tudo pra mim, e eu não valorizei quando pude: minha família.

Talvez eu tenha ficado pra me redimir. Mas o que me importa?

Não posso mais pegar minha filha no colo, ou dá-la um beijo de boa

noite: e dizer filha eu te amo. Quer brincar? E falar à minha esposa

como ela é bonita. E quanto seu perfume é doce.

Já é tarde. Nada importa mais.

Estou aqui, acho que não mereço a moeda que cai na caneca que

deixo ao meu lado, pra comprar um pão francês amanhecido na

padaria da esquina e saciar minha fome.

Hoje entendo o que é viver em função de sobras, se essas pessoas me

ouvissem queria falar para elas: Não percam tempo! Acordem para o

que realmente é digno de apreço nessa vida.

Não quero compaixão, pois estou onde deveria.

Se todos soubessem a minha história talvez existissem mais lares e menos

pessoas solitárias, assim como eu...

Mas o que importa?

Já é tarde...

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Prece

Brisa tranquila que viaja, diga para o vento voltar...

Pra que ele sopre o amor aonde passe, que este permaneça pra

confortar o sopro da vida...

Vida que se espalha e que esgota como faíscas de rojões em tempo de

festa...

Ó Brisa que caminha na calmaria cumprimentando as folhas nos

bosques, traga de volta o que precisa retornar.

Não se esqueça de tão somente ser parte deste caminho...

Ó doce perfume misterioso expulsado das flores... Brisa! Se embebede

deste mel... Mas traga o vento.

Ó Brisa, cante com os riachos... Eles precisam ouvi-la para que a água

jorre mais pura pela sua delicadeza... Talvez o vento esteja dormindo

entre as rochas...

Não demore em voltar, correrei ao seu encontro...

Brisa perfumada de amor... Sentirei meus braços serem tocados pela

suavidade do seu abraço...

Vá sem demora e volte com pressa, mas não se esqueça do vento...

Ó Brisa! Vem e traga o que o vento levou de mim...

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Dia de domingo...

Tão natural como a simplicidade estampada num sorriso de um idoso.

Que pega uma espiga de milho e começa a alimentar as aves. E ao

debulhar a espiga as aves se achegam aos seus pés, e sem dentes ele

solta um enorme sorriso, contemplando seus súditos.

É um rei entre tanta beleza esvoaçante. Suas pernas fracas saltitam a

riqueza da felicidade enobrecida entre seus gestos concretos.

Mais uma etapa do dia... Hora de entrar no palacete e contemplar a

beleza de uma rainha.

O fogão à lenha aceso aguarda o banquete dos herdeiros, de uma

herança infinita de amor.

A fumaça escurece a parede do castelo daquela majestade que com

sua coroa branca pega a viola para afinar.

Os meninos chegam eufóricos com suas máquinas de metal, deixando

marcas naquele chão nutrido com os diamantes do carinho da boa

educação dada a cada um deles...

Um a um acariciam a coroa do rei e puxam a saia da rainha que

esquenta a barriga no fogão...

Ali agradecem pela vida que lhes é dada, pelo pão de cada dia e

repartem aquele alimento temperado com a essência do amor.

Uma tarde onde as crianças de 30,40 anos voltam a ter 5 anos de idade

e sentam para ouvir as modas de viola daquele magnânimo ser,

esplêndido em sabedoria.

Entre erros de notas, risadas e cascas de laranja, restos de uma

sobremesa deliciosa, o domingo vai se encurtando...

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Chega a hora das crianças crescerem novamente, se tornarem

responsáveis. Assim acaba o domingo...

Na estrada fica as marcas de pneus, no coração de cada filho o aperto

da despedida de uma semana de espera. Nos olhos das realezas a

calmaria, mas a certeza de um novo domingo próximo. E a riqueza do

amor que é a fortuna de um império feito de simplicidade.

É a vida na nobre simplicidade o tesouro para ser rico sem ter muito. É

milionário aquele que vê nas pequenas coisas o sentido para sorrir.

E fecharam as portas e janelas daquele castelo de tijolos batidos e

foram descansar.

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TOMAS FAVA

A poesia pode salvar uma manhã, destruir um prédio e

espantar urubus. Às vezes ela da de comer, a maioria das

vezes passa fome e dificilmente será reconhecida. Agradeço

ao poeta Daniel pelo reconhecimento e insistência de

publicar meus versos. Esses versos são minha vida.

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RIOCORRENTE

Aqui subimos uma ponte

e posso enxergar

rio mais cidade

se sobrepondo no horizonte

as margens de um único conceito:

Brasil

nem rio nem cidade propriamente brasileiros

nem sequer deixam de sê-los

o rio

que antes de ser rio

não tinha pátria, não tinha lixo

e nem beijava esse concreto

quando nem tamanduá

tinha bandeira

pra virar carcaça

na sola dos caminhões

a cidade

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trazida na tempestade

tragada por construções

servil a tantos patrões

veio de fora

e pra fora escoa os milhões

assim

longe de ser rio ou cidade

Brasil é fluxo de uma enxurrada

identidade e carteira roubada

lágrimas de um guarani

é aquilo que ainda não veio

E já anda tão longe daqui.

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E lá?

Ela vai ser amada onde for

Ela que fala de mim nos poros

Das cobras na represa

Ela e esse seu jeito de pisa-flor

Ela cujas letras são longa jornada

E as estrofes com cheiro de mar

Grudam no cabelo

Como porra ou cantigas de amor

Ela com tanto pra dar

Recebe pouco

E com tão pouco me deixou

Como quem já teve tudo

(A mão, o tempo, as estrelas)

E tudo se evaporou

Ficando a essência

Um rio que se aventura

Perfume que nos perdura

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Na linha tênue

Entre amor e dor.

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Querida ferida

Crocodilos me devorem

Lhes arranco o couro

Nos consumindo

Afetos-paixões

Nos devorando

Arrancam crocodilos

De nossa moral

Eu que nunca havia sido um réptil

Travei com um de sangue frio

Batalha mortal

Nenhum de nós saiu inteiro

Ninguém ali agiu por mal

Tudo por um pouco de calor

Amor, ardor e luz do sol.

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Líder da matilha

Tudo em ti pelanca amor

E liberdade reboluda

Transborda pelas trilhas

Desse Brasil proibido

Tua alegria de guiar

De ser guiada e

Manguear comida

Espantando os urubus

E as afrontas a tua

(Nossa) mãe

Como vamos pela mata cinza

Na baleia preta onde os homens

Queimam seus pés

Sabíamos que ia na frente

Sabíamos mas tentávamos esquecer

E agora que caminhas cabe a nós que aprendemos tanto contigo

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Arrancar pedaços de nossa carne

Pra que leves com você.

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Cordatos

Além de como reconhecem

enxergam

ou vibram

ao plantear o solo

com seus passos

seres humanos

emitem

tal uma corda

emite um violão

'quando eu entro na roda

peço ao berimbau para ser

instrumento da capuera'

entre idades

entidades

entram e saem

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buscam e compram

propagam

feliz de quem

se sente

reverberação


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