Date post: | 26-Feb-2023 |
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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
DÉBORA CRISTINA LONGO ANDRADE
UM ESTUDO DO MAL-ENTENDIDO EM INTERAÇÕES NA REDE
SOCIAL DIGITAL TWITTER
São Paulo
2021
DÉBORA CRISTINA LONGO ANDRADE
UM ESTUDO DO MAL-ENTENDIDO EM INTERAÇÕES NA REDE
SOCIAL DIGITAL TWITTER
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial à obtenção do título de Doutora em
Letras.
Orientador: Prof. Dr. José Gaston Hilgert
São Paulo
2021
Dedicar significa oferecer algo, com carinho, a
alguém. É como prestar uma homenagem... Assim,
dedico esta tese aos seus leitores. Para mim, não
há sentido em fazer diferente, uma vez que a
escrevo para ser lida e compreendida por todos
aqueles que são apaixonados, assim como eu,
pelas nuances da linguagem em uso no ambiente
da “rede”. Então, caso seja capturado(a) pelas
tramas desse trabalho, é a você que o estou
oferecendo.
AGRADECIMENTOS
À Divina Providência, pela minha vida e ainda por me abençoar do início ao fim desta
trajetória.
Ao meu esposo Roberto e ao meu filho Leonardo, pelo muito que são na vida que
compartilhamos.
Aos meus pais, Valentim e Luzia, por me apoiarem e vibrarem constantemente com as
minhas conquistas.
Aos meus irmãos, sobrinhos e familiares que, sempre ou em algum momento, me
desejaram êxito neste percurso.
Ao Prof. Dr. José Gaston Hilgert, pela acolhida generosa do meu projeto e pelo aceite
em orientar este trabalho, pelas indicações de leitura precisas e até mesmo desafiadoras (em
alemão!) que me deram a clareza e o direcionamento necessários para a realização dessa
pesquisa. Muito obrigada pela parceria e, principalmente, por compartilhar seus conhecimentos,
em uma agradável convivência. Agradeço ainda por sua compreensibilidade nos momentos
adversos que atravessei e, sobretudo, pela confiança em mim depositada durante o
desenvolvimento da tese.
À Prof.ª Dr.ª Diana Luz Pessoa de Barros, pela leitura atenta desta investigação e por
suas relevantes considerações durante o Exame de Qualificação. Muito obrigada por enriquecer
esse trabalho com contribuições valiosas. Minha gratidão à Prof.ª Dr.ª Vanda Maria da Silva
Elias, por também oferecer uma interlocução sábia, significativa e acolhedora, colaborando para
o refinamento dessa tese. Agradeço-lhe, de maneira especial, pela amizade cultivada desde o
Mestrado em Língua Portuguesa e, principalmente, por me encorajar a prestar o processo
seletivo do PPGL-UPM e concretizar, enfim, o sonho de me tornar doutora (tenho fé!).
Aos Professores Membros da Banca Examinadora de Defesa, pela solicitude com que
aceitaram o convite para compô-la. Sinto-me honrada e profundamente grata pela presença.
À Coordenadora, Prof.ª Dr.ª Regina Helena Pires de Brito, e a todo o corpo docente do
PPGL, por serem tão competentes e generosos. Agradeço, em especial, à Prof.ª Dr.ª Maria
Helena de Moura Neves, o partilhar do conhecimento, as recomendações e conselhos,
ministrados durante a disciplina Seminário de Teses, que me levaram a refletir sobre questões
importantes deste trabalho.
Ao Pedro A. Zambon, secretário do PPGL, pela presteza no atendimento aos meus
questionamentos.
Aos colegas de curso, pela troca amiga e produtiva. Em especial, à querida amiga Juliana
Pádua, com a qual compartilhei boa parte deste percurso e que, inclusive, se tornou mais leve
quando dividido com ela.
Ao Instituto Presbiteriano Mackenzie, pela concessão da bolsa de estudos, que me
proporcionou a oportunidade e o privilégio de realizar este trabalho.
Às amigas irmãs, Valéria Cardozo e Fátima Andrade, por serem tão presentes nos
momentos em que precisei da ajuda e do olhar do outro. Obrigada também pelo encorajamento
durante esta jornada.
A todos aqueles que, direta ou indiretamente, incentivaram-me nesta empreitada.
E, por fim, um afetuoso agradecimento aos professores e alunos que fizeram parte da
minha história. Vocês foram essenciais para eu chegar até aqui.
RESUMO
Considerando-se que os problemas de compreensão são inerentes às trocas comunicativas, seja
no âmbito das conversações face a face seja nas interações que ocorrem em redes sociais
digitais, propusemo-nos, neste estudo, a investigar particularmente o fenômeno do mal-
entendido em um corpus constituído de mensagens publicadas e veiculadas na rede social
digital Twitter. Pretendemos, portanto, examinar o mecanismo de organização das sequências
discursivas em que ocorre o mal-entendido; especificar suas causas; como também descrever
os processos interacionais que procuram resolvê-lo. Para a análise, selecionamos doze
segmentos conversacionais, constituídos por tuítes – pequenas mensagens de até duzentos e
oitenta caracteres – postados por perfis de diferentes esferas de atividade humana, os quais
interagem espontaneamente no Twitter. Os tuítes são analisados com base em estudos
realizados nos campos da Análise da Conversação e Linguística Interacional. Obtidos por meio
de procedimentos metodológicos centrados numa abordagem qualitativa, verificamos que os
segmentos analisados expõem o mesmo padrão estrutural que se revela nas conversações face
a face, isto é, o fenômeno do mal-entendido manifesta-se predominantemente no intervalo entre
o turno de origem e o turno de reparo do problema. Quanto às causas que o desencadeiam,
observamos que elas são de diversas naturezas envolvendo, em especial, aspectos semânticos-
lexicais. Constatamos, ainda, que os parceiros comunicativos tendem a adotar procedimentos
de reformulação, como repetições e paráfrases, na tentativa de esclarecer os mal-entendidos e,
eventualmente, alcançar a (inter)compreensão em suas práticas discursivas no contexto digital.
Palavras-chave: conversação; tuítes; mal-entendido; (inter)compreensão.
ABSTRACT
Considering that comprehension problems are inherent to communicative exchanges, whether
in face-to-face conversations or in interactions that occur in digital social networks, we
proposed, in this study, to investigate particularly the phenomenon of misunderstanding in a
corpus consisting of messages published and disseminated in the digital social network Twitter.
We intend, therefore, to examine the mechanism of organization of discursive sequences in
which misunderstanding occurs; to specify its causes; as well as to describe the interactional
processes that seek to resolve it. For the analysis, we selected twelve conversational segments,
consisting of tweets - short messages of up to two hundred and eighty characters - posted by
profiles from different spheres of human activity, which interact spontaneously on Twitter. The
tweets are analyzed based on studies conducted in the fields of Conversation Analysis and
Interaction Linguistics. Obtained through methodological procedures focused on a qualitative
approach, we found that the analyzed segments expose the same structural pattern that is
revealed in face-to-face conversations, that is, the phenomenon of misunderstanding manifests
itself predominantly in the interval between the shift of origin and the shift of repair of the
problem. As for the causes that trigger it, we observed that they are of various natures involving,
in particular, semantic-lexical aspects. We also found that communicative partners tend to adopt
reformulation procedures, such as repetitions and paraphrases, in an attempt to clarify the
misunderstandings and eventually achieve (inter)understanding in their discursive practices in
the digital context.
Keywords: conversation; tweets; misunderstanding; (inter)understanding.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Proposta do Twitter.......................................................................................... 27
Figura 2 Primeiros rascunhos do Twitter........................................................................ 29
Figura 3 Logotipo do Twitter.......................................................................................... 31
Figura 4 Tuíte simples.................................................................................................... 32
Figura 5 Tuíte com inserção de link............................................................................... 33
Figura 6 Perfil de usuário................................................................................................ 36
Figura 7 Timeline de usuário.......................................................................................... 39
Figura 8 Comando do retuíte ......................................................................................... 40
Figura 9 Tuíte retuitado ................................................................................................. 41
Figura 10 Hashtag no Twitter.......................................................................................... 42
Figura 11 Hashtag no Facebook ..................................................................................... 43
Figura 12 Thread............................................................................................................. 44
Figura 13 Tuíte (aspecto composicional) ....................................................................... 46
Figura 14 Tuíte I (aspecto estilístico) ............................................................................. 48
Figura 15 Tuíte II (aspecto estilístico) ................................................................................... 49
Figura 16 Tuíte III (aspecto estilístico) .......................................................................... 50
Figura 17 Tuíte (aspecto temático) ................................................................................ 51
Figura 18 Tuíte (captura de tela/print screen) ............................................................... 55
Figura 19 Conversa como processo colaborativo.......................................................... 84
Figura 20 Tuíte (adjacência) .......................................................................................... 140
Figura 21 Representação dos principais emoticons....................................................... 147
Figura 22 Exemplos de emoticons (ou smyles) .............................................................. 147
Figura 23 Meio e concepção: contínuo entre oralidade e escrita.................................... 154
Figura 24 Oralidade e escrita: meio de produção e concepção discursiva...................... 155
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 Ciclo de negociação do mal-entendido...............................................................96
Quadro 2 Relação entre estratégias de manipulação e (des)cortesia verbal......................124
Quadro 3 Correlação entre elementos constituintes da CFF e e-conversação.................150
Quadro 4 Texto na rede (concepções)..............................................................................160
Quadro 5 Níveis e fatores desencadeadores do ME........................................................170
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABRALIN Associação Brasileira de Linguística
AC Análise da Conversação
ACE Análise da Conversa Etnometodológica
CASA Cadernos de Semiótica Aplicada
CEM Comunicação eletronicamente mediada
CFF Conversação face a face
CINT Conversação na internet
CMC Comunicação mediada pelo computador
CMD Comunicação mediada digitalmente
CNR Conversação na rede
COVID Coronavirus disease (Doença causada pelo vírus SARS-CoV-2,
popularmente conhecido como coronavírus)
DID Diálogo entre informante e documentador
DM Direct message (Mensagem direta, no modo privado)
E-book Livro eletrônico ou digital
E-conversação Conversação eletrônica ou digital
E-mail Correio eletrônico ou digital
E-texto Texto eletrônico ou digital
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio
EUA Estados Unidos da América
FFA Face Flattering Act (Ato Valorizador da Face)
FTA Face Threatening Act (Ato de Ameaça à Face)
GAT Gesprächsanalytisches Transkriptionssystem (Sistema de Transcrição
Analítica da Conversação)
GIF Graphic Interchange Format (Formato de intercâmbio gráfico)
LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgênero
LI Linguística Interacional
ME Mal-entendido
ME-L Mal-entendido, em sentido lato
ME-S Mal-entendido, em sentido estrito
MLA Modern Language Association (Associação de Linguagem Moderna)
NURC Norma Linguística Urbana Culta
RT Retuíte
SMS Short Message Service (Serviço de mensagem curta: “torpedo”)
TBT Throwback Thursday (Quinta-feira para relembrar)
WEB Sistema que permite ao usuário acessar uma infinidade de conteúdos por
meio da internet
WEBSITE Conjunto de páginas da rede (hipertextos) acessíveis geralmente pelo
protocolo HTTP (base para comunicação de dados na internet)
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................................. 18
CAPÍTULO 1
TWITTER: NAVEGANDO PELA REDE E COLETANDO OS DADOS ....................... 26
1.1 Twitter: ambiente da conversação ...................................................................................... 26
1.2 Criação da rede social digital Twitter ................................................................................. 28
1.3 Funcionalidades do Twitter ................................................................................................ 34
1.3.1 Perfil do participante ....................................................................................................... 34
1.3.2 Timeline ........................................................................................................................... 37
1.3.3 Retuíte (RT) ..................................................................................................................... 39
1.3.4 Hashtag (#) ...................................................................................................................... 41
1.3.5 Thread .............................................................................................................................. 43
1.4 Tuíte: aspectos prototípicos em focalização ....................................................................... 45
1.5 O corpus de pesquisa e sua constituição ............................................................................ 52
CAPÍTULO 2
CONVERSAÇÃO FACE A FACE: DEFININDO CONCEITOS E FUNÇÕES ............. 57
2.1 Contributos para o estudo da conversação ......................................................................... 57
2.2 Da Etnometodologia aos princípios da Análise da Conversação (AC) .............................. 59
2.3 Reflexão sobre a pesquisa em Análise da Conversação ..................................................... 61
2.4 Constituição da organização estrutural da Conversação Face a Face ................................ 65
2.4.1 A organização da tomada de turnos ................................................................................. 65
2.4.2 A organização das sequências ......................................................................................... 67
2.4.3 Os pares adjacentes .......................................................................................................... 68
2.4.4 A organização do sistema de reparo ................................................................................ 70
2.4.5 O sistema de reparo em terceira posição ......................................................................... 73
2.5 A contribuição da Linguística Interacional (LI) ................................................................. 75
CAPÍTULO 3
MAL-ENTENDIDO: ENTENDENDO O FENÔMENO NA CONVERSAÇÃO ............. 80
3.1 Sobre a compreensão .......................................................................................................... 80
3.2 Sobre os problemas de compreensão .................................................................................. 92
3.3 Sobre os mal-entendidos ..................................................................................................... 94
3.3.1 Origem do mal-entendido .............................................................................................. 102
3.3.2 Atividades de reformulação ........................................................................................... 105
3.4 Sobre a cortesia verbal ...................................................................................................... 114
3.4.1 Relação entre o mal-entendido e o trabalho de face (face work)................................... 114
CAPÍTULO 4
CONVERSAÇÃO NA REDE: RESSIGNIFICANDO CONCEITOS E FUNÇÕES ..... 126
4.1 A conversação face a face e seus desdobramentos na internet ......................................... 126
4.2 A comunicação mediada pelo computador: breves conceitos .......................................... 128
4.3 O ambiente conversacional: redes sociais na internet ...................................................... 130
4.3.1 A organização da conversação na rede: turnos e pares ................................................. 134
4.3.2 A e-conversação: entre marcas e texto .......................................................................... 141
4.3.3 O texto na rede: contínuo fala-escrita ............................................................................ 151
CAPÍTULO 5
MAL-ENTENDIDO EM TUÍTES: ANALISANDO OS DADOS .................................... 162
5.1 Procedimentos metodológicos .......................................................................................... 162
5.2 Análise e interpretação dos dados .................................................................................... 163
5.2.1 Análise quanto à organização da sequência conversacional em que ocorre o mal-entendido
................................................................................................................................................ 164
5.2.2 Análise quanto às causas do mal-entendido .................................................................. 170
5.2.3 Análise quanto aos processos linguístico-discursivos que esclarecem o mal-entendido
................................................................................................................................................ 180
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 188
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 193
18
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A conversação face a face é o gênero mais básico da interação humana, constituída na
troca verbal espontânea e ligada à esfera do discurso cotidiano (BAKHTIN, 2011[1953]).
Constitui-se em uma prática social e remete-nos à ideia de estarmos reunidos com outras
pessoas, num mesmo local, em um determinado tempo, trocando ideias acerca de um assunto
específico. Ao mesmo tempo, consiste em um evento organizado estruturalmente e
constantemente negociado pelos participantes, na tentativa de alcançar um objetivo comum: a
compreensão.
No entanto, a partir da década de 1990, com o advento das tecnologias de informação e
comunicação e posteriormente com a sua acessibilidade (smartphones, tablets, notebooks,
computadores etc.), o diálogo cotidiano (bate-papo, conversa informal, entre outros) passa a ser
materializado, de modo abrangente, no espaço virtual, permitindo a conexão entre as pessoas e
possibilitando, inclusive, a troca de mensagens instantâneas, sem obstáculos, tampouco
diferenças geográficas e temporais.
Nessa direção, nosso foco de atenção recai principalmente sobre o ambiente das redes
sociais digitais de comunicação que, cada vez mais populares, tornam-se, de acordo com
Recuero (2012, p. 16), “espaços conversacionais”, isto é, “espaços onde a interação adquire
contornos semelhantes àqueles da conversação, buscando estabelecer e/ou manter laços
sociais”. São, a princípio, lugares virtuais em que as conversações são compartilhadas num
tempo muito rápido e de modo amplo, liberando os indivíduos das limitações de espaço e
tempo, tornando a comunicação mais flexível. Elas vêm sendo usadas como uma plataforma
online para o compartilhamento de informações, opiniões, experiências e perspectivas, em
mensagens que utilizam, de modo geral, o texto escrito. Entre as mais conhecidas estão o
Facebook, WhatsApp e o Twitter.
No que concerne à conversação no contexto digital, Crystal (2004) preconiza que ela
surge a partir dos princípios que regem a conversação oral, uma vez que os usuários, enquanto
interagem, recorrem aos seus conhecimentos linguísticos provenientes de experiências
adquiridas como falantes nas variadas situações de interação face a face, como também se
utilizam de diversos recursos disponíveis no teclado do computador para produzir suas
19
mensagens na rede, as quais normalmente exigem dinamicidade, bem como permitem a
autonomia e espontaneidade para a expressão do pensamento.
Ademais, os sinais não verbais, prototípicos da conversação face a face, como gestos,
jogo dos olhares, atitudes e posturas transformam-se em signos criados por meio da combinação
de caracteres do teclado, os chamados emoticons. “São explorações criativas e engenhosas dos
recursos das novas tecnologias” (MARCUSCHI, 2005, p. 65).
É possível constatar ainda que a conversação nas redes sociais adquire contornos
semelhantes à dinâmica organizacional da interação face a face, no que diz respeito ao sistema
de gerenciamento dos turnos, em que os participantes reagem às contribuições uns dos outros.
Para Condon e Čech (2010), tal estratégia parece ser complexa, no entanto é flexível o suficiente
para se adaptar a uma variedade infinita de contextos, inclusive, ao meio digital. Recuero (2012)
chama a nossa atenção para o fato de que há uma organização intrínseca de turnos e pares, que
provém do próprio sistema eletrônico, quanto a padrões de envio e recebimento das mensagens.
Diante do exposto, somos levados a caracterizar, a princípio, as mensagens produzidas
e veiculadas na rede1, estabelecidas via conversação, como texto conceptualmente falado,
apesar de sua configuração no meio gráfico. Buscamos, nos estudiosos alemães Koch e
Öesterreicher (2007 [1990]) e, posteriormente, em Marcuschi (2010), a base teórica para definir
esses critérios. Nessa linha de condução, trazemos também à consideração a ideia de “texto
‘falado’ por escrito” (HILGERT, 2000, p. 17) ou, em outros termos, de “escrita falada” ou
“oralizada” (RECUERO, 2012, p. 45). Ainda, valendo-nos de investigações teórico-práticas,
voltadas para a relação fala-escrita, particularmente, no que concerne às interações que ocorrem
na rede, incorporamos também a noção – proposta em estudos realizados por Barros (2000,
2015, p. 21) – de texto que se define pela “complexidade”, ou seja, texto que “ora é mais fala,
embora sem deixar de ser também escrita, ora é principalmente escrita, mesmo mantendo
atributos da fala”. Essa imbricação fala-escrita nos permite atestar a especificidade desse objeto
sob o ponto de vista linguístico e organizacional.
Até aqui, tratamos da organização e formas de textualização da conversação no meio
eletrônico. A partir deste ponto, é oportuno discorrer acerca das práticas comunicativas numa
perspectiva interacionista, ou seja, considerar que as pessoas, ao interagirem, tanto face a face
quanto virtualmente, elas o fazem com a intenção de serem compreendidas. Isso envolve
1 Neste trabalho, “rede” é utilizado como sinônimo de “internet”, isto é, sistema de comunicação criado a partir da
rede mundial de computadores.
20
coordenar não apenas o “conteúdo” de suas proposições, como também o “processo” (CLARK
e BRENNAN, 1991, p. 128). Significa dizer que os participantes em suas interações não apenas
produzem um enunciado, mas monitoram continuamente seus interlocutores, a fim de garantir
que suas mensagens sejam ouvidas ou lidas e compreendidas. O processo de produção dos
sentidos não é, portanto, uma ação decodificadora, e sim um incessante trabalho colaborativo
dos interlocutores em busca da compreensão mútua.
Entretanto, o desdobramento da ação comunicativa está sujeito a toda ordem de
turbulências interpretativas (SCHEGLOFF, JEFFERSON e SACKS, 1977; FIEHLER, 2002),
uma vez que o simples fato de a interação ocorrer entre pessoas diferentes já os coloca diante
da constante possibilidade de se depararem com problemas de compreensão, mais
especificamente, mal-entendidos.
Nesse sentido, Dascal (2006, p. 314, grifo do autor) declara que:
[...] o empenho em se comunicar, assim como qualquer outro esforço humano de
similar complexidade, pode, de inúmeras maneiras, fracassar ou tomar um mau
caminho. O mal-entendido é um desses caminhos.
Tomando por base essa perspectiva, importa mencionar que não estamos inclinados,
nesta pesquisa, a encarar o mal-entendido por esse prisma, ou seja, a olhá-lo como um “mau
caminho”, mas como um fenômeno intrínseco ao ato comunicativo, já que bases diferentes de
conhecimento se encontram no processo dialógico. E os interlocutores, ao reconhecerem uma
divergência interpretativa, podem “naturalmente” esclarecê-la no desdobramento
conversacional, observando a necessidade de construir interacionalmente a compreensão.
Concordamos com Berthoud (2016, p. 4) quando argumenta que:
Longe de ser visto como um simples fracasso do discurso, o mal-entendido nos leva
ao âmago da atividade linguística, impondo-se como um fenômeno privilegiado pelos
linguistas, em busca do discurso no fazer, em busca do discurso na ação, em busca do
discurso na interação.2
Nessa direção, Weigand (1999, p. 769-70), uma das principais estudiosas do fenômeno,
identifica o mal-entendido como uma “forma de entendimento parcial ou totalmente divergente
do que o enunciador tencionou comunicar e que poderá ser corrigida normalmente no
desenvolvimento do jogo de ação dialógica”. Sendo assim, o parceiro comunicativo, ao se dar
2 Tradução da autora para o trecho original: “Loin d’être vu comme un simple raté du discours, le malentendu nous
conduit aujourd’hui au cœur de l’activité langagière, s’imposant comme phé-nomène privilégié pour des linguistes
en quête de discours en train de sefaire, en quête de parole en action, en quête de parole en interaction.”
21
conta de que seu enunciado foi interpretado equivocadamente por seu interlocutor, pode
recorrer às práticas de reparo (por exemplo, paráfrases), na tentativa de delimitar de modo mais
preciso o que foi dito ou escrito e, caso tenham disposição e interesse, de chegar, na medida
exigida, à intercompreensão.
A autora (Ibid., p. 769) ainda permite caracterizar um tipo particular de mal-entendido
como standard case, cuja estrutura padrão é representada esquematicamente a seguir:
i. 1ª posição (turno 1): o falante [A] formula seu enunciado.
ii. 2ª posição (turno 2): o ouvinte [B] apresenta um entendimento em relação ao enunciado
anterior, o qual considera coerente do seu ponto de vista.
iii. 3ª posição (turno 3): o falante [A] denuncia o mal-entendido, ao afirmar que a resposta
de [B] não está de acordo com que ele [A] tencionou comunicar e, em seguida,
reformula o turno fonte do problema, dando-lhe uma contextualização mais precisa, a
fim de que o equívoco de compreensão seja resolvido e a sequência interacional possa
prosseguir.
Hilgert (2005, p. 141) endossa a opinião de Weigand (1999) quanto ao “standard case”,
no entanto considera também como uma das formas de mal-entendido a seguinte ocorrência:
(i) o falante [A] formula seu enunciado; (ii) o ouvinte [B] apresenta uma hipótese de
compreensão, isto é, uma interpretação manifestada sob condições de incerteza, a ser ou não
confirmada pelo interlocutor; (iii) o falante [A] não aceita o enunciado de [B] submetido à sua
consideração, aspecto que evidencia a ocorrência de um mal-entendido.
Na verdade, para o autor (2005, p. 141), “mal-entendido é toda e qualquer forma de
compreensão total ou parcialmente desviante, manifesta por um interlocutor, em relação à
expectativa de compreensão do outro”. E, uma vez identificado esse desvio interpretativo, os
interlocutores têm a chance de interromper o fluxo temático, procedendo à uma iniciação de
reparo, ou melhor, desencadeando uma sequência especificamente destinada a resolver o
problema, no desdobramento interacional.
Ademais, espera-se que, na denúncia do mal-entendido, o falante tome precauções,
procure cumprir o que lhe compete: que seja minimamente cortês, já que a sinalização do
equívoco interpretativo constitui um risco para seu interlocutor, que pode se sentir humilhado,
ofendido e/ou criticado; daí a necessidade da utilização de estratégias compensatórias como as
atenuações e manifestações de cortesia, a fim de preservar a imagem do outro. Entretanto, em
interações na rede, as coordenadas espaço-temporais assumem outra dimensão e exercem forte
22
influência, permitindo que os parceiros comunicativos não se preocupem com a manutenção de
suas “faces” e se valham também de atitudes descorteses, o que normalmente não acontece nas
interações do texto falado.
Enfim, são questões complexas e intrigantes como essas que nos levam à investigação
do nosso objeto de estudo: o mal-entendido. A nosso ver, representa um fenômeno intrínseco
às interações e, portanto, cabe-nos tratá-lo cientificamente, de modo que não haja apenas uma
descrição deste, mas ferramentas de análise e explicações epistemologicamente coerentes
acerca desse segmento particularmente controverso nas conversações, tanto em situações
comunicativas orais quanto em interações digitais dialógicas.
Nessa linha de condução, pretendemos, então, detectar a ocorrência do mal-entendido
no interior da dinâmica organizacional das conversações produzidas e veiculadas no ambiente
digital, bem como descrever os processos interacionais que procuram resolvê-lo. A orientação
geral vai no sentido de explicitar a interface que os mal-entendidos mantêm com o processo de
construção interativa da compreensão, tendo por base os pressupostos teóricos da Análise da
Conversação e da Linguística Interacional, num contexto específico de comunicação, a saber,
a rede social digital Twitter.
Para tanto, estabelecemos os seguintes objetivos específicos: (i) a princípio, verificar se
há apropriação de características organizacionais prototípicas da conversação face a face em
conversações na rede social; (ii) explicitar as noções de compreensão e de problemas de
compreensão, à luz das quais o conceito de mal-entendido se esclarece; (iii) observar e
descrever o mecanismo de organização das sequências discursivas em que ocorre o mal-
entendido; (iv) especificar suas causas, procurando constituir uma classificação que vai
necessariamente para as relações entre níveis de ocorrência do fenômeno e aspectos que o
desencadeiam, no corpus de análise; (v) afinal, verificar de quais estratégias de reparo –
mormente as de natureza linguística – valem-se os participantes na denúncia e possível solução
do problema.
Como vimos, os objetivos específicos apontados constituem um percurso, por meio do
qual se chega à hipótese geral que norteia esta investigação, isto é, a de que os trabalhos
desenvolvidos pelos analistas da conversação – na perspectiva interacionista da língua – que
têm como objeto de estudo a conversação natural, ou, em sentido mais amplo, as interações
face a face, do ponto de vista de sua realização linguística, fornecem-nos o aporte teórico
necessário para a investigação e análise do mal-entendido – fenômeno inerente à interação
verbal – em conversações no meio digital, em particular, na rede social Twitter.
23
As demais hipóteses, que se arrolam a seguir, estão relacionadas aos objetivos
específicos apresentados: (i) a primeira hipótese é a de que o sistema de reparo em terceira
posição3 seja predominante no corpus a ser investigado; (ii) a segunda hipótese formulada é a
de que aspectos semântico-lexicais sejam os mais produtivos em equívocos de compreensão;
(iii) a terceira hipótese é a de que os usuários da rede, no ciclo de negociação do mal-entendido,
tendem a utilizar reformulações parafrásticas para solucioná-lo. Nossa investigação será
orientada no sentido de validar ou não as suposições apresentadas.
O corpus deste trabalho é composto por segmentos conversacionais constituídos por
tuítes,4 ocorridos entre sujeitos-usuários de diversas esferas de atuação, os quais interagem,
espontaneamente, por escrito, na rede social digital Twitter, entre os anos de 2018 e 2021.
Convém mencionarmos que as interações nesse ambiente de conversação normalmente
envolvem muitos participantes. Realizamos, então, um recorte criterioso no material
selecionado, com o intuito de analisarmos interações diádicas e/ou curtas, pois quando a troca
comunicativa ocorre entre poucos parceiros, os mal-entendidos, segundo Dannerer (2004), são
passíveis de serem identificados e analisados.
Fica assentado que a metodologia adotada no desenvolvimento deste trabalho comporta
duas grandes etapas: (i) uma primeira, de levantamento bibliográfico, que constrói o aporte
teórico que fundamenta o objeto de investigação desta tese; (ii) uma segunda, de análise, que
possibilita confrontar a perspectiva teórica previamente levantada com as realizações atestadas
do fenômeno, no corpus selecionado.
Apresentado o âmbito geral de nossa pesquisa, o contexto em que ela se insere, os
objetivos geral e específicos, as hipóteses que norteiam este trabalho e os procedimentos
metodológicos adotados, passamos à apresentação da estrutura geral desta tese, por meio da
descrição dos objetivos principais de cada capítulo que a compõe.
No primeiro capítulo – Twitter: navegando pela rede e coletando os dados – tratamos
do corpus da pesquisa, sua origem e contexto de produção. A princípio, descrevemos o Twitter,
ambiente virtual que possibilita a conversação entre os usuários da rede. A seguir, discorremos
3 A organização do sistema de reparo em terceira posição corresponde ao tratamento padrão que os mal-entendidos
recebem, na maioria das vezes, em interações face a face: no segundo turno, o problema é detectado e, no turno
seguinte (em terceira posição), procede-se à estratégia de reparo, conforme já apresentado em Schegloff (1987,
1992). Acreditamos que esse quadro seja também predominante no corpus de análise. 4 Tuítes = constituem-se geralmente de pequenas publicações de até 280 caracteres na rede social Twitter.
24
acerca da constituição dos tuítes. Finalmente, apresentamos os procedimentos utilizados para a
seleção do corpus de análise.
No segundo capítulo – Conversação face a face: definindo conceitos e funções –
indicamos a concepção de linguagem que permeia o nosso trabalho e, em seguida, o referencial
teórico que embasa a pesquisa, destacando estudos advindos da Análise da Conversação (AC)
e da Linguística Interacional (LI), como nucleares nessa fundamentação. Nesse sentido, as
contribuições de Sacks, Schegloff e Jefferson (1974); Marcuschi (1991); Kerbrat-Orecchionni
(2006); Selting & Couper-Kuhlen (2001) e Mondada (2008) foram de considerável importância
para pensarmos acerca da organização estrutural da conversação face a face e das ações
realizadas linguisticamente pelos participantes, a fim de garantir o bom andamento do processo
interacional.
No capítulo 3 – Mal-entendido: entendendo o fenômeno na conversação – tratamos
do tema central desta tese – o mal-entendido. Para tanto, vamos definir, em primeiro lugar,
alguns princípios teóricos, nomeadamente, a noção de compreensão e de problemas de
compreensão, à luz das quais o conceito de mal-entendido se esclarece. A partir dessa
fundamentação, passamos a discutir os fatores que o caracterizam, bem como os procedimentos
interacionais que concorrem para solucioná-lo, tendo como aporte teórico as pesquisas
realizadas principalmente por Clark (1992, 1996, 1996a); Bazzanella e Damiano (1999);
Weigand (1999); Fiehler (2002); Depperman (2008) e Hilgert (2003, 2005, 2008). Neste
capítulo, há ainda uma seção própria, na qual procuramos examinar como o mal-entendido se
relaciona com a teoria da cortesia verbal, na perspectiva do face work, visto que o uso de
estratégias que visam à negociação das faces assume importância considerável no tratamento
do mal-entendido e, por conseguinte, na construção da compreensão em uma atividade
conversacional.
No capítulo 4 – Conversação na rede: ressignificando conceitos e funções –
apresentamos as principais características da conversação na internet, especificamente, na rede
social digital Twitter, verificando sua capacidade de simular, sob muitos aspectos, elementos
da conversação face a face. Para tanto, são abordados alguns conceitos trazidos pelos principais
estudiosos da Comunicação Mediada pelo Computador (CMC), a partir da perspectiva dos
estudos da fala-em-interação. Dentre eles, estão Herring (1996, 1999, 2010); Crystal (2004,
2005) e Recuero (2009, 2012).
O capítulo 5 – Mal-entendido em tuítes: analisando os dados – dedicamos
especificamente à análise e interpretação dos dados coletados, dando ênfase à descrição das
25
causas que desencadeiam o mal-entendido, como também das atividades realizadas
interacionalmente pelos sujeitos-usuários para resolver o problema e, eventualmente, chegar ao
processo de intercompreensão.
Nas considerações finais, apresentamos as observações significativas que, no decorrer
de cada capítulo, foram sendo delineadas, como também algumas reflexões acerca do
desenvolvimento das análises.
Por fim, é oportuno dizer que este trabalho se justifica, na medida em que auxilia a
ampliação do estudo do mal-entendido, visto que uma parcela significativa das pesquisas
desenvolvidas pelos estudiosos do fenômeno concentra-se na investigação de textos orais,
principalmente, da conversa natural (do diálogo, em sentido estrito), de maneira que favorece
a análise das estruturas linguísticas específicas da fala.
Neste estudo, nossas análises limitar-se-ão a segmentos conversacionais compostos por
tuítes. Desse modo, esperamos que essa pesquisa se constitua em mais um referencial que possa
a vir explicar o fenômeno, levando-se em conta propriedades específicas do texto produzido e
veiculado na internet, especificamente, na rede social digital Twitter, tendo em vista a sua
inegável influência nas práticas discursivas da sociedade contemporânea.
26
CAPÍTULO 1
TWITTER: NAVEGANDO PELA REDE E COLETANDO OS
DADOS
“O Twitter é como o seu bar favorito funcionando dia e
noite: a hora que você aparecer encontrará alguns
frequentadores habituais e mais outras pessoas
relacionadas a eles. Você poderá ficar para um dedo de
prosa durante um intervalo no trabalho ou passar horas
interagindo e trocando ideias.”
(@jasper; @ferla; @moriael; @abilaamorim)
Neste capítulo, faremos, a princípio, uma breve apresentação do Twitter, ambiente
virtual que possibilita a conversação entre os usuários da rede. Em seguida, trataremos da
constituição dos tuítes – pequenas mensagens, de até duzentos e oitenta caracteres – publicados
por perfis de diferentes esferas de atividade humana, os quais interagem espontaneamente na
rede social digital Twitter. Por fim, elucidaremos os procedimentos de coleta e análise dos
dados.
1.1 Twitter: ambiente da conversação
De modo geral, o Twitter é um site de rede social em que os usuários podem construir
perfis e publicar mensagens instantâneas. É popularmente conhecido como um serviço de
microblogging5, visto que permite a produção de pequenos textos, de até no máximo 280
caracteres, a partir da pergunta “O que está acontecendo?”.
Em sua página oficial na internet, o Twitter se apresenta como uma ferramenta de
comunicação, que conecta seus usuários em “conversas saudáveis”. Nas palavras de Santaella
Excerto extraído da publicação online: Tudo o que você precisa saber sobre o twitter (você já aprendeu em uma
mesa de bar): um guia prático para pessoas e organizações, de Juliano Spyer (@jasper); Luiz Alberto Ferla
(@ferla); Moriael Paiva (@moriael); Fabiola Amorim (@bilaamorim). Disponível em:
<https://ensinodelinguascomtic.files.wordpress.com/2010/03/livro_tudo_o_que_voce_precisa_saber_sobre_twitt
er.pdf>. Acesso em 17 jun. 2020. 5 Microblogging: possui uma estrutura semelhante aos blogs (diário pessoal na ordem cronológica com anotações
em tempos regulares que permanecem acessíveis na rede), porém com mensagens curtas e possibilidade de
comentários. O Twitter foi o pioneiro em disponibilizar essa facilidade aos usuários. Atualmente, é um dos mais
famosos serviços do gênero. Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/web/805-microblogging-saiba-tudo-
sobre-eles.htm>. Acesso em: 06 abr. 2020.
27
e Lemos (2010, p. 66), esse ambiente conversacional serve como “[...] um espaço colaborativo
no qual questões, que surgem a partir de interesses dos mais microscópicos aos mais
macroscópicos, podem ser livremente debatidas e respondidas”, o que pode ser comprovado
por meio da proposta inserida em uma das páginas da plataforma:
Figura 1 – Proposta do Twitter
Fonte: Twitter.6
Com 186 milhões de participantes ativos por mês,7 todo usuário do Twitter é um
enunciador potencial de conteúdo e suas publicações são passíveis de serem comentadas por
qualquer “tuiteiro” em um dado momento. Ademais, essa rede torna-se muito atraente aos
usuários, por oferecer um grande número de recursos e possibilidades de interação.
A nosso ver, o Twitter se apresenta como um importante espaço virtual de comunicação,
porque possibilita conhecer as opiniões e tomada de posições de seus participantes. Nessa
direção, Mischaud (2007, p. 38, tradução nossa) argumenta que, “[...] na sua pura função, o
Twitter contempla um desejo humano inato de conversar e ser ouvido.”8
É oportuno dizer que, embora existam inúmeras plataformas digitais para se realizar
uma investigação como esta, a escolha dessa rede social, em detrimento de tantas outras
disponíveis na web9, consiste, sobretudo, na sua popularidade e abrangência de público, pois
conforma, em uma plataforma online de relacionamento, sujeitos de diferentes regiões do
mundo, de diversas faixas etárias e de todas as classes econômicas, com interesses diversos.
6 Disponível em: <https://about.twitter.com/en/our-priorities/healthy-conversations>. Acesso em 24 set. 2021. 7Twitter tem aumento recorde em número de usuários no 2º trimestre de 2020. Disponível em:
<https://tecnoblog.net/354247/twitter-tem-aumento-recorde-em-numero-de-usuarios/>. Acesso em 22 abr. 2021. 8 Tradução da autora para o trecho original: “[...] in its pure function, Twitter addresses an innate human desire to
converse and to be heard.” 9 Web consiste em um “sistema que permite ao usuário acessar uma infinidade de conteúdos por meio da internet.”
Disponível em: <https://www.significados.com.br/web/>. Acesso em 12 set. 2021.
28
Ademais, Recuero e Zago (2009, p. 87), em trabalho intitulado Em busca das “redes
que importam”: redes sociais e capital social no Twitter, mencionam que um dos principais
valores do Twitter está relacionado ao seu uso para a conversação. “Essas conversações estão
diretamente ligadas a valores relacionais, com ‘a criação e o aprofundamento de laços sociais’”.
Inclusive, elas “podem auxiliar a gerar empatia, intimidade e suporte social para os atores
envolvidos.”
Enfim, para se obter uma visão geral das propriedades que caracterizam o Twitter, nosso
próximo passo é tecer algumas considerações acerca dessa rede, enfocando dois aspectos: sua
concepção e principais funcionalidades.
1.2 Criação da rede social digital Twitter
O conceito da rede social Twitter foi desenvolvido por uma pequena empresa de serviço
comercial de podcasts10, a startup Odeo, Inc. (localizada em South Park, São Francisco, Estados
Unidos da América) que, na primeira década do século XXI, enfrentava uma grave crise
econômica, devido à concorrência de grandes companhias de serviços e produtos tecnológicos,
como a Apple e o Google.
Na tentativa de superar tal concorrência, um seleto grupo de programadores da Odeo
Inc. trabalhou numa espécie de “maratona de programação” (hackathon), a fim de desenvolver
um projeto, que pudesse dominar o mercado tecnológico. Tais profissionais formariam duplas
e trabalhariam por duas semanas para criar o que desejassem. Foi, então, que o programador
Jack Dorsey apresentou ao parceiro Biz Stone um programa de celular que oferecia um recurso
chamado status, por meio do qual os amigos daquele poderiam dizer o motivo de não poder
responder às mensagens uns dos outros, por exemplo: “estou em uma reunião”.
Jack disse que gostava de saber como os amigos estavam se sentindo ou o que estavam
fazendo só de olhar para essas mensagens de status. Ele me perguntou se deveríamos
construir algo parecido, um jeito de postar uma mensagem de status e ver as
mensagens de status de nossos amigos (STONE, 2014, p. 59).
10Podcast consiste em um arquivo digital de áudio, que é transmitido por meio da internet, cujo conteúdo pode ser
variado, normalmente com o propósito de transmitir informações. Disponível em:
<https://www.significados.com.br/podcast/>. Acesso em 06 abr. 2020.
29
A partir daí, surgiu a ideia de criar um serviço, no qual alguém pudesse trocar
atualizações simples de status por SMS11. Para Jack Dorsey, o software poderia captar e refletir
o comportamento humano. Para Biz Stone, permitiria a comunicação entre as pessoas.
A seguir, uma página de rascunho do projeto de Dorsey:
Figura 2 – Primeiros rascunhos do Twitter
Fonte: Página do site TecMundo.12
Nesta figura, é possível verificar que os programadores queriam propor um serviço no
qual as pessoas se conectassem por telefone usando apenas o texto escrito. A ideia era tornar
tudo tão simples que bastava digitar uma pequena mensagem e enviá-la. O segundo passo era
11 SMS (Short Message Service) é um serviço de mensagens curtas (até 160 caracteres), conhecidas popularmente
como mensagens de texto ou torpedos, disponível em telefones celulares digitais. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Servi%C3%A7o_de_mensagens_curtas>. Acesso em 05 abr. 2020. 12 Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/rede-social/3667-a-historia-do-twitter.htm>. Acesso em: 05
abr. 2020.
30
dar um nome ao projeto, isto é, uma designação que proporcionasse a sensação de “rapidez” e
“urgência” (Ibid., p. 62).
Stone (2014) menciona que os programadores passaram a sugerir nomes como “jitter”
(agitação), “flitter” (fragmento), “twitter” (pio) ou “skitter” (escorregão). O nome escolhido por
ele foi Twitter, em razão de lembrar o trinado suave dos pássaros, como também significar uma
conversa rápida ou trivial em inglês. Noah Glass – um dos cofundadores da rede – sugeriu
“jitter” ou “jitterburg” (pessoa agitada), pois queria ter as crianças como público-alvo. Contudo
Biz Stone não desejava mirar o público infantil. Assim, mantiveram o nome Twitter para o
projeto, lançado em 2006.
Outra decisão tomada pelos programadores foi determinar o número de caracteres para
as publicações. O limite padrão internacional para as mensagens de texto era de 160 caracteres.
Decidiram, então, limitar as mensagens até no máximo 140 caracteres, sendo que os 20 restantes
ficariam para um espaço, uma vírgula e o nome do usuário. De acordo com Stone (2014), tal
limite inspiraria a criatividade dos usuários na produção das mensagens, além de facilitar a
leitura e o acompanhamento das postagens. Vejamos o que ele diz a respeito disso:
Cento e quarenta não é um número mágico, mas impor um limite uniu as pessoas. Era
um desafio. Você está escrevendo a história da sua vida. Edite durante o processo. Em
140 caracteres, o que vale a pena dizer? Como podemos nos expressar uns para os
outros neste espaço? Quanto pode ser dito e quanto é possível deixar no ar? [...] O que
vale a pena dizer? (STONE, 2014, p. 81).
O programador (2014, p. 159) explica, ainda, que “tweets” foi o nome dado pelos
próprios usuários para essas curtas publicações e “tweetar” para o ato de postá-las na rede.
Inclusive, o logotipo escolhido para o Twitter foi um pássaro azul, desenvolvido justamente
para representar a comunicação por meio de tuítes, ou seja, “pios”.
A figura, a seguir, ilustra o logotipo desenvolvido para o Twitter:
31
Figura 3 – Logotipo do Twitter
Fonte: Twitter.13
Neste ponto, é interessante acrescentar que o momento de efetivação do Twitter no
mercado tecnológico corresponde à eleição de 2008 – quando o democrata americano Barack
Obama foi eleito o primeiro presidente negro dos Estados Unidos da América (EUA) – abrindo
caminho para um novo uso da tecnologia, no que diz respeito à transmissão de mensagens
(STONE, 2014).
Nessa ocasião, o programador (2014, p. 136-7) mandou o seguinte e-mail para a sua
equipe:
Pessoal,
Os pássaros quando voam têm a incrível capacidade de se mover como se fossem um,
pois a junção de feedback imediato e as regras simples criam algo graciosamente
fluido e que parece até coreografado. Na primavera de 2007, pudemos enxergar de
relance as pessoas utilizando uma força parecida com essa para criar uma nova forma
de comunicação. A South by Sothwest de 2007 nos apresentou a incrível relevância
do Twitter durante um evento coletivo. Agora o mundo está assistindo a um dos
maiores eventos da história dos EUA se desenrolar diante de nós. O Twitter está em
posição de atuar neste processo eleitoral como nada visto: 37 integrantes do congresso
estão tweetando, os dois candidatos têm contas ativas, milhões de cidadãos estão
reagindo às questões de campanha em tempo real e ativistas políticos estão
organizando protestos, tudo isso usando o Twitter. Todos se movendo como um só.14
Outro momento marcante para a equipe de programadores da rede foi a aterrisagem de
um avião da companhia US Airways, no Rio Hudson, em 2009. “Quando um avião pousa bem
13 Disponível em: <https://logodownload.org/wp-content/uploads/2014/09/twitter-logo-1.png>. Acesso em 05 abr.
2020. 14 Devido à sua popularidade e flexibilidade de uso, o Twitter ganhou, em 2007, o Web Award na categoria blog,
no South by Southwest Conference, realizado em Austin, no Texas.
32
na sua frente, é um tweet. É o ápice do tweet. Você não manda isso por e-mail para um amigo,
você tweeta” (STONE, 2014, p. 141).
Ainda, é oportuno dizer que, até o ano de 2009, a pergunta a ser respondida no Twitter
era “O que você está fazendo?”, uma vez que as interações previam apenas atualizações de
status entre amigos e familiares. Em decorrência da publicação desses eventos históricos na
plataforma, a pergunta passou a ser “O que está acontecendo?”, levando o Twitter a funcionar
também como um espaço de notícias, pontos de vista, informações e compartilhamento de
ideias.
Um ponto importante a ser destacado é que, como toda e qualquer rede social, o Twitter
passa por atualizações. Em 2017, os programadores estenderam o limite de 140 para 280
caracteres, com o intuito de levar as pessoas à melhor compreensão dos tuítes. No entanto, os
usuários da rede, nos idiomas japonês, coreano e chinês, continuaram a manter o máximo de
140 caracteres como padrão em suas publicações, já que a falta de espaço nunca foi um
problema para eles, devido à forma de escrita.15
Observemos, a seguir, a ilustração de um tuíte, produzido e veiculado por um sujeito-
usuário que atua no campo de atividade artística e publicitária:
Figura 4 – Tuíte simples
Fonte: Twitter.16
Como vimos, esse tuíte apresenta um breve comentário por meio do texto escrito. Cabe
enfatizar que, nos tuítes, além da mensagem de até 280 caracteres, os usuários também podem
postar fotos, inserir links, vídeos, GIFs (Graphic Interchange Format – pequenas animações
ou imagens em cores compactadas em um só arquivo) – como também promover enquetes.
Vejamos a inserção de um desses dispositivos na figura que segue:
15 In: Cossetti, M. C. Twitter aumenta oficialmente o limite de 140 caracteres para 280. Novembro 07, 2017.
Disponível em: <https://www.techtudo.com.br/noticias/2017/11/twitter-aumenta-oficialmente-o-limite-de-140-
caracteres-para-280.ghtml>. Acesso em: 06 abr. 2020. 16 Disponível em: <https://twitter.com/username>. Acesso em 06 abr. 2020.
33
Figura 5 – Tuíte com inserção de link
Fonte: Twitter.17
Na figura 5, notamos que o tuíte traz um comentário acerca de cassação da liminar, que
permitia a apreensão de livros (com temática LGBT18) na Bienal do Rio de Janeiro. A fim de
que os leitores pudessem ficar cientes do assunto, o sujeito-usuário também insere, em sua
mensagem, o link do Jornal G1 (online), que, ao ser clicado, direciona os leitores ao conteúdo
integral da notícia.
Ainda, é oportuno dizer que a inserção de links ganha importância na produção dos
tuítes, uma vez que o limite de 280 caracteres impossibilita, por exemplo, a divulgação
completa de uma reportagem. No Twitter, caso o usuário (leitor) se interesse pelo assunto, ao
clicar no link, ele será redirecionado para a página de publicação da notícia (website, ou melhor,
site eletrônico) e poderá ter acesso à toda informação.
Como vimos, o Twitter permite a publicação de conteúdo, seja na forma de imagens e
vídeos, seja na de links que possibilitam o acesso a sites externos ao ambiente, extrapolando,
assim, a inclusão do simples texto linear. Entretanto, diferentemente de outras redes como
Instagram e Youtube, em que há uma grande quantidade de publicações em vídeos e imagens,
17 Disponível em: <https://twitter.com/username>. Acesso em 12 set. 2021. 18 LGBT (ou LGBTTT) é a sigla de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, que
consistem em diferentes tipos de orientações sexuais. Disponível em: <https://www.significados.com.br/lgbt/>.
Acesso em: 20 set. 2021.
link
Texto
produzido
pelo usuário
34
consideramos que a produção do famoso e pequeno texto (tuíte) de até duzentos e oitenta
caracteres continue a ser a principal característica da rede social digital Twitter.
1.3 Funcionalidades do Twitter
Santaella e Lemos (2010) explicam que, dentre todas as plataformas sociais de uso
generalizado e globalizado, o Twitter é aquela que permite a multiplicação mais acelerada de
nodos de conexão vinculados a temáticas específicas. Isso ocorre devido ao fato de que existem
possibilidades de inter-relacionamento entre usuários da rede, por meio de algumas de suas
principais funcionalidades: busca de um perfil (@usuário), RT (retuíte) e hashtag (#).
A seguir, teceremos algumas considerações acerca dessas funcionalidades, bem como
da timeline.
1.3.1 Perfil do participante
Define-se uma rede social pelos atores e suas conexões. Os atores são as pessoas
conectadas à rede. No Twitter, a presença do “eu” se dá por meio da construção do perfil do
participante, uma vez que “é preciso ser ‘visto’ para existir no ciberespaço”19 (RECUERO,
2009, p. 27, grifo da autora).
Nessa “construção virtual do eu” (ou simplesmente “perfil”), o Twitter permite a
publicação de uma foto, como também oferece a possibilidade de adicionar uma breve
biografia, isto é, uma descrição pessoal curta, que serve para caracterizar a identidade do
usuário na rede (idade, profissão, gostos, entre outros aspectos). Tais informações são
importantes para gerar empatia, bem como proporcionar pistas para a interação social.
Inclusive, é por conta desses dados pessoais que os atores na rede social podem ser
identificados e compreendidos como indivíduos que agem por meio de seus perfis. “Como
apenas é possível utilizar o sistema com um login e senha que automaticamente vinculam um
ator a seu perfil, toda e qualquer interação é sempre vinculada a alguém” (RECUERO, 2009, p.
19 Segundo Lévy (1999), o ciberespaço corresponde a um espaço virtual, constituído pelo fluxo de informação e
comunicação, provenientes de fontes digitais ou destinadas à digitalização. No dizer de Recuero (2012, p. 40) é
também “um espaço construído e negociado pela participação dos atores através da conversação.”
35
28). No entanto, alguns usuários optam por criar perfis ficcionais para utilizá-los nas interações
em que não desejam ser reconhecidos pelos demais. Nesse sentido, cabe registrar que a falsa
identidade online com intenção de enganar outras pessoas é proibida pelas normas do Twitter20.
Com base nessa perspectiva, Bays (1998) argumenta que, com a popularidade e
evolução das comunicações mediadas pelo computador (CMCs), o anonimato tem desaparecido
e a forte relação entre o eu e a face/outro (fato que ocorre nas interações presenciais) tem
também se apresentado nas interações em rede, uma vez que, para a autora, há um fascínio por
estar envolvido em uma conversa online. Por exemplo, ao verem os rostos de seus
interlocutores, os participantes, que estão geofisicamente distantes, sentem-se engajados e
atraídos para interagir nesse ambiente conversacional.
Em suma, entendemos que o perfil, no Twitter, estabelece a presença do indivíduo e,
portanto, facilita a troca comunicativa. É por meio dele que o usuário cria uma presença não-
física, levando os interlocutores a acreditar que as mensagens estão sendo trocadas com alguém,
que está à frente do computador, em algum lugar. Em outros termos, o perfil atua como um
marcador que individualiza esse “eu”, indicando a copresença do participante no momento da
interação.
Vejamos, então, como se caracteriza o perfil de usuário. É pertinente acrescentar que a
figura, a seguir, diz respeito à captura de imagem (print screen) da página do perfil da autora
desta pesquisa, no Twitter:
20 Disponível em: <https://help.twitter.com/pt/glossary>. Acesso em 18 abr. 2020.
36
Figura 6 – Perfil de usuário
Fonte: conta da autora no Twitter.21
Em nosso perfil, podemos reconhecer que, na coluna lateral da esquerda, aparece a
imagem (foto), seguido do nome de exibição (Débora Andrade). Abaixo, temos o sinal @
acrescido do nome de usuário na rede (conhecido como username: @deboracla1969). Em
seguida, há a descrição da principal atividade exercida, a data de ingresso na rede, o número de
pessoas que seguimos e o número de seguidores que possuímos até o momento de acesso ao
perfil. Ainda, é possível inserir uma foto de capa, também chamada de banner.
No Twitter, alguns perfis são qualificados como figuras públicas (artistas, políticos,
jornalistas, celebridades, instituições, entre outros). Esses perfis recebem um selo azul de
verificação (ver Figura 7), que oferece ao participante o direito de ter sua credibilidade atestada
dentro da rede. Para tanto, o usuário (pessoa ou empresa) de uma conta verificada22 precisa
atender a alguns pré-requisitos, tais como: possuir número de telefone e um endereço de e-mail
válidos; apresentar uma breve descrição em até 160 caracteres; personalizar o perfil com foto;
21 Disponível em: <https://twitter.com/deboracla1969>. Acesso em: 02 fev. 2021. 22 A conta verificada recebe, do Twitter, um ícone azul, com o intuito de indicar que o produtor dos tuítes é uma
fonte legítima. Como tais contas pertencem a figuras públicas, são consideradas, pela rede, possíveis vítimas de
falsa identidade (construção de perfis falsos ou fakes). Disponível em: <https://help.twitter.com/pt/glossary>.
Acesso em 18 abr. 2020.
Capa do
perfil ou
banner
Imagem/foto
do usuário
Breve descrição
do usuário
Data de ingresso no Twitter
Número de seguidores e seguidos
username
Nome de exibição
37
informar a data de aniversário (para pessoas físicas); possuir uma página própria na web; manter
o perfil com tuítes abertos. Ademais, é interessante que esses usuários criem um perfil cativante
e que tuitem com frequência, atraindo, cada vez mais, um número maior de seguidores.
Neste ponto, importa mencionar que algumas das informações fornecidas na construção
do perfil de determinado usuário são sempre públicas, como biografia, localização, site e foto.
No que diz respeito a outras informações pessoais, por exemplo, data de nascimento, o Twitter
fornece a opção de selecionar quem pode acessá-la. Vejamos, a seguir, as configurações de
visibilidade disponíveis na rede: (i) pública: a data de nascimento do usuário poderá vista por
qualquer pessoa, no mundo todo, instantaneamente; (ii) seguidores: somente as pessoas que
seguem determinado usuário poderão ver tal informação; (iii) seguidos: somente as pessoas que
o usuário segue poderão acessar essa informação inscrita no perfil deste; (iv) seguidores e
seguidos: somente as pessoas que o usuário segue ou que são seguidas por ele terão acesso à
sua data de nascimento; (v) apenas o usuário: somente ele poderá ter conhecimento disso.23
Por fim, gostaríamos de deixar sinalizado o fato de que, por padrão, o Twitter é público
e os tuítes, quando publicados, são imediatamente visíveis e pesquisáveis por qualquer pessoa
em todo o mundo.24 Contudo, a comunicação pode ocorrer também no modo privado. Para
tanto, basta que o usuário acesse as configurações de privacidade de sua conta e ative a opção
“proteção de tuítes”, a fim de que eles se tornem visíveis somente para os perfis que o seguem.
1.3.2 Timeline
A timeline – também chamada de página inicial – exibe um fluxo de tuítes publicados
pelo usuário, como também das contas que o participante optou por seguir no Twitter, em ordem
cronológica de publicação. Nela, é possível responder, retuitar ou “curtir” um tuíte, como
também visualizar mensagens, selecionadas pela rede, tomando por base as contas com as quais
o usuário mais interage.
Nessa página, o Twitter ainda adiciona conteúdo considerado popular ou relevante, a
fim de que o usuário possa se atualizar quanto aos temas e tópicos mais discutidos em dado
intervalo de tempo e em determinado lugar. Por exemplo, alguns usuários preferem se atualizar
23 Disponível em: <https://help.twitter.com/pt/safety-and-security/birthday-visibility-settings>. Acesso em 12 set.
2021. 24 Disponível em: <https://twitter.com/pt/privacy>. Acesso em 12 set. 2021.
38
quanto aos assuntos mais populares no Brasil, enquanto outros preferem escolher qualquer
região do mundo, a fim de acompanhar as tendências globais.
Ademais, a plataforma sugere, em Talvez você curta, alguns perfis para serem seguidos.
De acordo com os desenvolvedores da plataforma, o objetivo é mostrar, na timeline, perfis
confiáveis e seguros, de interesse do usuário que, inclusive, possam contribuir para o
desdobramento de uma conversa significativa25.
É também na timeline que aparece a pergunta inicial do sistema: “O que está
acontecendo?” Essa questão, de acordo com Teixeira (2011, p. 121), leva os tuiteiros a
extrapolar a “mera capacidade de publicação de trivialidades de suas vidas cotidianas” e a
utilizar o Twitter como “uma poderosa e inigualável ferramenta para disseminação, obtenção
de informações, interação e colaboração”. Tudo isso no mesmo espaço e com o dinamismo de
280 caracteres.
A figura que segue ilustra a timeline da autora desta pesquisa:
25 Disponível em: <https://help.twitter.com/pt/using-twitter/twitter-timeline>. Acesso em: 12 abr. 2020.
39
Figura 7 – Timeline de usuário
Fonte: Twitter.26
É oportuno dizer que não é praxe entrarmos diretamente na timeline de uma pessoa para
ver o que ela escreve. Basta escolher segui-la e todas as postagens dela aparecerão na página
inicial de seu seguidor, ou seja, ao seguir alguém, o usuário passa a acompanhar os tuítes
publicados por esse perfil.
1.3.3 Retuíte (RT)
Uma das singularidades do Twitter em relação a outros sites de rede social é possibilitar
a troca de informações entre seus usuários, por meio do ato de repassar conteúdo, isto é, de
26 Disponível em: <https://twitter.com/home>. Acesso em 13 set. 2021.
Assuntos do
momento
Sugestão de
perfis a serem
seguidos
Pergunta mote da
página inicial
Conta que recebe o selo azul
de verificação
Fluxo de
tuítes das
contas
seguidas
40
retuitar (RT). Inclusive, a primeira motivação para se retuitar é retransmitir uma informação
que o usuário considera relevante para o seu grupo de seguidores, com ou sem comentário
pessoal. É importante ressaltar que, ao retuitar uma mensagem, o usuário dá o devido crédito
ao autor original.
Mediante tais considerações, Stone (2014, p. 162-3) enfatiza que, no início, os usuários
editavam o conteúdo do tuíte original e acrescentavam o “RT” para indicar que era um retuíte.
Por essa razão, os programadores decidiram desenvolver um comando, de maneira a impedir
essa edição. “Além disso, por ser um botão, deixaria o ato mais fácil do que o deselegante copiar
e colar”. Então, transformaram o retuíte em ação de um só clique, com o intuito de facilitar o
controle, trazer à tona os assuntos mais populares e, principalmente, de preservar a integridade
do usuário que publicou o tuíte original.
As palavras de Paveau (2021, p. 378) vêm corroborar essa informação:
O retuíte tornou-se [...] uma forma editorialmente otimizada, pois a partir de então
uma janela específica se abre para o comentário eventual do retransmissor, sendo o
conteúdo retuitado totalmente preservado em sua janela original; os limites entre
discurso citante e discurso citado são, portanto, assumidos e garantidos pelo programa
de computador, e não pelo locutor on-line.
Observemos, na figura 8, o comando que promove o RT:
Figura 8 – Comando do retuíte
Fonte: Twitter.27
Vejamos, ainda, a ilustração de uma publicação retuitada pela autora desta pesquisa:
27 Disponível em: <https://twitter.com/username>. Acesso em 17 jun. 2020.
Comando de retuíte. No caso, esta
publicação foi retuitada 19 vezes.
41
Figura 9 – Tuíte retuitado
Fonte: Twitter.28
Como vimos, a Figura 9 indica que a postagem foi retuitada 10 vezes, isto é, difundida
na rede por outros usuários, os quais reconhecem que nela há um conteúdo relevante que merece
a audiência dos demais. Para Santaella e Lemos (2010), a função de retuitar está atrelada,
principalmente, à conservação e distribuição do tuíte original, como também ao envio da foto
de quem o publicou, preservando e ressaltando, assim, a autoria do tuíte. Além de que, quanto
maior o alcance da postagem dentro da rede social, maior a visibilidade do autor e, por
conseguinte, maior o número de seguidores alcançados.
Por último, enfatizamos que, de acordo com Boyd, Golder e Lotan (2010), os retuítes
produzem uma infraestrutura conversacional valiosa. Na opinião dos autores, se os participantes
comentam ativamente ou simplesmente curtem o RT, estão, de alguma maneira, participando
de uma conversa. Ao repassarem o conteúdo de um tuíte para um público mais amplo, estão
engajando diversos usuários em uma interação. Inclusive, os tipos de conversa que surgem no
Twitter por meio do ato de retuitar são tão diversos quanto as convenções em que residem.
Algumas conversas são pequenas e locais, enquanto outras levam a uma enorme discussão e a
uma multiplicidade de contextos de conversação ao mesmo tempo.
1.3.4 Hashtag (#)
28 Disponível em: <https://twitter.com/username>. Acesso em 17 jun. 2020.
A informação de que se trata de um
retuíte.
Número de vezes que o tuíte
foi retuítado.
Foto do
perfil
42
A hashtag é uma palavra-chave ou frase imediatamente precedida do símbolo #
(cerquilha). É utilizada para identificar determinados temas ou ideias e, por conseguinte,
aumentar o alcance de tal conteúdo nas redes sociais. Inclusive, Moura (2017) argumenta que
os tuítes com hashtags têm duas vezes mais engajamento do que aqueles que não possuem.
Diante disso, é natural que o usuário use esse indexador (#) tanto para classificar algum
tópico quanto para facilitar a busca e exibição dele no Twitter. Por exemplo, o tuiteiro, ao buscar
a #FiqueemCasa (ideia que incentiva a quarentena durante a pandemia do coronavírus em todo
o mundo), será direcionado para uma página com tuítes que compartilham a mesma hashtag,
podendo, então, participar da discussão do tema ou divulgar informações sobre o assunto.
A figura, a seguir, ilustra um tuíte, como resultado de busca na rede, que utiliza a
hashtag #linguistweets, palavra-chave que corresponde à primeira Conferência Internacional
de Linguística no Twitter, organizada pela Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN):
Figura 10 – Hashtag no Twitter
Fonte: Twitter.29
Neste ponto, é interessante comentar que as hashtags foram incorporadas ao Twitter,
em julho de 2009, com o intuito de agrupar usuários que participavam de eventos ou que se
interessavam por temas específicos. Segundo Stone (2014), parecia uma boa forma de reunir
pessoas para discutir determinado assunto.
Ainda, importa dizer que o Twitter foi pioneiro ao criar essa tecnologia, ou seja, a de
indiciar palavras precedidas de #, no entanto a hashtag se tornou tão popular que pode ser
encontrada em outras redes de relacionamento, como Instagram ou Facebook. Para Stone
(2014, p. 161), “as hashtags ficaram tão comuns que passaram a ser usadas ironicamente, em
contextos que nada têm a ver com o Twitter ou com criar um link para um determinado
assunto.”
29 Disponível em: < https://twitter.com/username/status/1335539406611111936 >. Acesso em 02 fev. 2021.
Hashtag
43
A figura 11 ilustra o uso da #Escorpião e #ficaadica em uma publicação, extraída do
Facebook:
Figura 11 – Hashtag no Facebook
Fonte: Facebook.30
Notamos que, no Facebook, a hashtag aparece principalmente como forma de se
condensar sentimentos ou frases. Outro exemplo muito popular ocorre no Instagram (rede
social online de compartilhamento de fotos e vídeos entre seus usuários) e diz respeito ao uso
da #ThrowbackThursday (ou #tbt), traduzida como “quinta-feira para relembrar”. Essa
hashtag serve para marcar fotos antigas, normalmente, postadas às quintas-feiras.
Em suma, quando a combinação (#) antes da palavra-chave, frase ou expressão é
utilizada na rede social Twitter, transforma-se em um hiperlink que, ao ser clicado, redireciona
o usuário a postagens relacionadas ao mesmo tema. Convém enfatizar que, nessa rede, tal
funcionalidade é bastante explorada, de modo que as interações se ampliam e se intensificam,
uma vez que o Twitter organiza, em diversas páginas (principais, mais recentes, perfis, fotos e
vídeos), os tuítes publicados ao redor de determinada hashtag.
Ainda, de acordo com Santaella e Lemos (2010), o uso dessa funcionalidade tornou-se
um hábito entre os tuiteiros, em razão de detectar lideranças e tendências, engajar os membros
de uma comunidade ao redor de uma ideia, como também aferir o entendimento coletivo do
grupo sobre determinado conceito.
1.3.5 Thread
30 Disponível em:<https://www.facebook.com/search/top/?q=%23ficaadica&epa=SEARCH_BOX>. Acesso em
13 abr. 2020.
Hashtags
44
Em virtude do limite de 280 caracteres por postagem, o Twitter desenvolveu uma nova
forma de publicar mensagens na timeline, a qual permite tuitar em sequência, a partir do fio
que a materializa na tela. Tal função é denominada thread (fio). Vejamos a ilustração que segue:
Figura 12 – Thread
Fonte: conta da autora no Twitter. Acesso em: 20 set. 2021.
Fio que
materializa a
thread
45
Na figura 12, a função thread foi utilizada pela autora desta tese na primeira Conferência
Internacional de Linguística no Twitter, organizada pela ABRALIN, cuja regra do evento
consistia em montar a apresentação do trabalho (resumo) em uma sequência de, no máximo,
seis tuítes. Para tanto, produzimos o primeiro tuíte, em seguida, teclamos em um botão (+) para
adicionar os tuítes restantes. Assim, que todos os tuítes foram produzidos, acionamos o
comando “tuitar tudo”. É oportuno dizer que, na timeline, os tuítes aparecem separadamente,
mas podem ser visualizados em uma janela única, ao clicar o recurso “Mostrar esta sequência”.
Como vimos, essa ferramenta, a mais atual da plataforma, organiza a informação,
ligando-a por um traço vertical de tuíte a tuíte, e facilita a interação do público. Inclusive, os
seguidores podem retuitar apenas o primeiro tuíte da sequência e, ao clicar nele, os usuários
poderão ver todo conteúdo produzido. Convém comentar ainda que, de acordo com Paveau
(2021, p. 378), desde que essa função foi desenvolvida na plataforma, é possível encontrar
“anúncios de threads que se inscrevem em formas linguageiras fixas, como ‘segue o fio’ ou,
mais explicitamente, ‘[assunto x]: a thread’, ou icônicas, como inserir setas.”
Enfim, discorremos até aqui acerca da rede social digital Twitter e de suas
funcionalidades. A partir deste ponto, é relevante tecer, ainda que brevemente, algumas
considerações sobre o “tuíte”, o qual nos possibilitou, nesta pesquisa, a investigação do mal-
entendido.
1.4 Tuíte: aspectos prototípicos em focalização
Esta seção tem por objetivo discorrer acerca de aspectos “relativamente” comuns na
constituição dos tuítes. Para esse propósito, sem a pretensão de discutir a natureza genérica do
tuíte, revisitaremos Bakhtin (2011 [1953]) e suas ideias e tomaremos por base três critérios
teóricos – aspecto composicional, estilo e tema – tão somente por reconhecer que esse
procedimento, seja por alinhamento teórico seja por viabilidade metodológica, apresenta-se, a
nosso ver, como o mais adequado.
Nesse direcionamento, destacamos, no que concerne ao aspecto composicional dos
tuítes, os seguintes traços em sua configuração:
i. Foto do perfil.
ii. Nome de exibição.
46
iii. Nome do usuário precedido pelo sinal @ (username).
iv. Data e/ou horário da publicação do tuíte em relação ao momento presente (1h – leia-se
1 hora atrás).
v. Texto inscrito em espaço específico: o texto em geral é curto, pois não ultrapassa o
limite máximo de duzentos e oitenta caracteres, com a possibilidade de inserção de
elementos multimidiáticos (imagens, fotos, vídeos, GIFs), de links ou indicação de
posturas com os conhecidos emoticons, ao lado de uma espécie de netiqueta, que traz
descontração e informalidade, tendo em vista a volatilidade do meio e a rapidez da
interação. Cabe mencionar também que não é possível editá-lo após a publicação.
Ainda, a nosso ver, pode ser caracterizado como turno (tópico abordado na seção 4.3.1
deste trabalho), quando olhado nas relações que se estabelecem no contexto da interação
em andamento.
vi. Comandos principais: indicados por ícones abaixo do texto. São eles: (i) responder; (ii)
retuitar; (iii) curtir; (iv) enviar DM (direct message), isto é, mensagem privada (no caso,
só quem envia e recebe tem acesso a essas mensagens), salvar o tuíte e/ou copiar link
para o tuíte (isto é, para compartilhar a publicação por SMS ou e-mail); e, por último,
(iv) exibir estatística, por meio das Impressões (número de vezes que as pessoas viram
o tuíte) e Engajamento (número de vezes que as pessoas interagiram com o tuíte).
vii. Ícone representado por três pontinhos, com as seguintes operações: excluir o tuíte, fixá-
lo no perfil do usuário, adicionar ou removê-lo da lista, selecionar quem pode respondê-
lo, incorporar o tuíte, por exemplo, em um site, blog ou declaração de imprensa.
Vejamos a figura que segue:
Figura 13 – Tuíte (aspecto composicional)
Fonte: conta da autora no Twitter. Acesso em: 18 jun. 2021.
É possível verificar que o tuíte apresenta um padrão formal, facilmente reconhecível
pelos usuários da rede. Contudo, é pertinente esclarecer que uma das especificidades do tuíte e
do próprio Twitter é a volatilidade, tanto que, em 2020, a plataforma liberou mais um recurso
Nome de exibição
e de usuário
Texto
Data
Cinco comandos
Foto do
perfil
Ícone:
operações
47
(ainda em fase de teste no Brasil, disponível apenas para aparelhos celulares do tipo iPhone),
que permite adicionar mensagens de áudio, de até 140 segundos, aos tuítes. O tuíte de voz ainda
pode vir acompanhado de texto. O processo é bem simples de ser realizado e muito parecido
com a ferramenta disponibilizada no WhatsApp. Entretanto, parece-nos que tal funcionalidade,
até o momento, não ganhou muitos adeptos, pois, diferentemente do WhatsApp, em que o foco
da interação social está nos contatos (família, amigos, colegas de profissão, entre outros) e, de
modo geral, em mensagens de cunho pessoal; no Twitter, o foco está no conteúdo do que é
postado e na visibilidade alcançada por ele, visto que a pergunta mote da página inicial é: “O
que está acontecendo?”, culminando numa oferta de informações acerca de temas específicos.
A título de curiosidade, cabe mencionar ainda que o Twitter está realizando, em 2021,
outros testes relacionados a um novo recurso, denominado Spaces, que permite aos usuários
criar salas de bate-papo, em áudio, ao vivo. As conversas podem ser abertas ou controladas, de
acordo com o desejo do moderador. Segundo o site Tecmundo31, parece que o recurso é bem
limitado, visto que permite apenas seis interações. No quesito segurança, o Twitter Spaces deve
oferecer ferramentas para o moderador realizar denúncias, bloquear ou excluir usuários de uma
conversa, caso o comportamento seja inadequado na plataforma. Outro detalhe importante é
que as mensagens só podem ser observadas enquanto a sala estiver aberta; uma vez que o
moderador encerrar a sala, todo o conteúdo publicado ficará indisponível. Ademais, as
conversas no Twitter Spaces vão contar com algumas opções de emoticons. Diante dessas
inovações, a pergunta que se faz presente é a seguinte: Será que os usuários vão se apropriar
definitivamente dessas novas funcionalidades? Não sabemos. Apenas, pressupomos que o
fascínio dos tuiteiros ainda recaia sobre o famoso texto limitado a 280 caracteres.
Quanto ao aspecto estilístico, podemos identificar certos traços que são incorporados às
produções enunciativas no Twitter, estabelecidos pela relação entre seguidores e seguidos e
pela conversação mantida entre esses usuários. São elas: (i) hashtag: uma espécie de indexador
para determinada palavra ou expressão (por exemplo, #Butanvac, nome dado ao primeiro
imunizante contra a Covid-1932, fabricado integralmente no Brasil), tal como mencionado na
seção 1.3.4 deste capítulo; (ii) menção: constitui-se em um marcador de estilo (@mentions, em
português, @nomedousuário) comum nos tuítes, com o intuito de direcionar mensagens
31 Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/internet/211366-twitter-spaces.htm>. Acesso em: 30 set. 2021. 32 Covid = doença infecciosa causada pelo vírus SARS-CoV-2 (“novo coronavírus”). Disponível em:
<https://www.who.int/news-room/q-a-detail/coronavirus-disease-covid-19-how-is-it-transmitted>. Acesso em 20
set. 2021.
48
públicas a um usuário específico (por exemplo, @jairbolsonaro), possibilitando até uma breve
interação verbal entre os participantes.
A seguir, vejamos a presença desses elementos em dois tuítes:
Figura 14 – Tuíte I (aspecto estilístico)
Fonte: Twitter.33
Ainda, com relação ao estilo, há a questão da (in)formalidade dos enunciados que, a
nosso ver, está condicionada à esfera de comunicação em que o usuário se insere; o tipo de
relação existente entre ele e o(s) seu(s) interlocutor(es); e à forma como o usuário percebe o
destinatário da mensagem.
Bakhtin (2009 [1929], p. 118) já afirmava que “a situação e os participantes mais
imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação”. Portanto, enunciados
pertencentes à perfis da esfera do cotidiano tendem a apresentar um grau de informalidade
superior àqueles pertencentes a outros campos de atuação humana.
Observemos, a seguir, a interação entre um usuário que atua no campo político e seu
seguidor, participante da esfera cotidiana:
33 Disponível em: <https://twitter.com/username>. Acesso em 28 mar. 2021.
O usuário fez uso de três
menções neste tuíte
Uso da hashtag
49
Figura 15 – Tuíte II (aspecto estilístico)
Fonte: Twitter.34
Notamos que, no primeiro tuíte, o usuário da rede utiliza uma linguagem formal,
característica do uso da língua na modalidade escrita, realizada por um sujeito inserido no
campo de atuação política, no entanto, ele não deixa de utilizar em sua publicação, frases em
caixa alta, isto é, em maiúsculas, como “O BRASIL NÃO PODE PARAR!” e “VAI TER
ENEM!”, com a intenção de simbolizar uma entonação expressiva, isto é, indicar um grito do
enunciador ou que ele está falando alto (característica prototípica do texto falado).
Já em relação ao segundo e terceiro tuítes, verificamos que o interlocutor expressa seu
contentamento em razão da realização do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) no ano
de 2020 e, em seguida, do fato de seu tuíte ter sido curtido pelo ministro. Para tanto, verificamos
a repetição de letras (infartarrrrrrrr) como forma de simular uma entonação oral e a utilização
de emoticons para substituir a palavra (“coração”), como também para suprir elementos
paralinguísticos, por exemplo, gestos e expressões faciais.
A seguir, mais um exemplo de uso da linguagem em tuíte produzido por um participante
que atua no campo jornalístico:
34 Disponível em: <https://twitter.com/username>. Acesso em: 18 abr. 2020.
50
Figura 16 – Tuíte III (aspecto estilístico)
Fonte: Twitter.35
Podemos observar, nesse tuíte, a menção que o jornalista faz ao cientista Miguel
Nicolelis e ao canal de notícias Globo News, por meio do recurso @mentions. Notamos um
processo de escrita formal, uma vez que o usuário está inserido numa esfera de comunicação
que exige essa modalidade (por exemplo, quando comenta a pauta de sua entrevista: cenário da
Covid-19 no Brasil e nos EUA), entretanto ele se utiliza dos emoticons (figuras de cabeça para
baixo), com a intenção de promover certa descontração, ao dizer que ambos abordaram ainda
aspectos mais leves do que a pandemia, isto é, relacionados ao futebol (“E, ainda, em um
momento de descontração, falamos do título Mundial do Palmeiras em 1951”). Tal prática, a
nosso ver, permite uma aproximação maior do jornalista com seus seguidores.
No que diz respeito ao aspecto temático, observamos que uma variedade de temas se
confirmam em nossa página inicial (timeline). Ademais, a limitação de 280 caracteres
permitidos por tuíte chama a nossa atenção pela diversidade de formas que as publicações
assumem na rede, especialmente, em razão do perfil de quem as produz. Nesse sentido,
constatamos que o tuíte pode se configurar em mais de uma tipologia textual, condicionando-
se à ordem do narrar, argumentar, expor, descrever ou injungir. E a partir do propósito
comunicativo do usuário, alguns padrões discursivos (contos, piadas, receitas, anúncios,
notícias “linkadas”, entre outros), ainda, são mobilizados e incorporados na composição dos
tuítes. É oportuno dizer que esses “arranjos textuais” são acolhidos e validados no interior da
rede, adotados normalmente como fórmulas e reutilizados pelos demais usuários na produção
de seus tuítes.
Vejamos, a seguir, a Figura 17 que ilustra um tuíte produzido por um sujeito-usuário
inserido na esfera política:
35 Disponível em: <https://twitter.com/search?q=username&src=typed_query>. Acesso em 18 abr. 2020.
51
Figura 17 – Tuíte (aspecto temático)
Fonte: Twitter.36
Na figura 17, observamos que o usuário procura disseminar, ainda que brevemente, a
informação de que a maioria do povo brasileiro é contrária à demissão de Luiz Henrique
Mandetta (Ministro da Saúde, na época da publicação do tuíte) e, a seguir, questiona se os
interlocutores concordam com o resultado da pesquisa. Ainda, insere o link, que permite o
acesso ao site da revista Exame (online), caso o interlocutor queira se aprofundar no assunto.
A nosso ver, apesar desse tuíte ser composto por um “enunciado acrescido de um link
jornalístico”, para os atores sociais, no plano cognitivo, isso continua sendo um tuíte e não uma
notícia.
Diante do exposto, notamos que a rede apresenta um ambiente consideravelmente
heterogêneo em relação ao conteúdo temático. Desse modo, pressupomos que o tuíte se
constitua não pelo propósito específico dos mais variados tipos/gêneros textuais, e sim pelo
propósito geral da enunciação que é o ato de “tuitar”. É oportuno dizer que a confirmação ou
não dessa suposição é especialmente singular, uma vez que suscita diversos questionamentos e
perspectivas de estudo, dependendo, portanto, de um vasto exercício de pesquisa e análise que
proporcione uma visão panorâmica do comportamento dos tuítes na rede.
36 Disponível em: <https://twitter.com/username>. Acesso em 16 abr. 2020.
52
Nessa direção, gostaríamos de deixar sinalizado que a rede social Twitter funciona, para
nós, como suporte37do tuíte, já que o torna acessível para fins comunicativos. E, tomando por
base os aspectos levantados acerca do tuíte, verificamos que, embora o conteúdo temático
varie bastante, a construção composicional e o estilo baseiam-se numa certa regularidade de
práticas e, por isso, somos levados a caracterizá-lo como “gênero emergente” no contexto das
tecnologias digitais. Mais uma vez, enfatizamos que não nos aprofundaremos nessa questão,
porque o tema é amplo e foge ao escopo deste trabalho. Apenas, consideramos pertinente
esclarecer nossa posição a respeito do assunto.
Até então, foi propósito deste capítulo descrever o Twitter, ambiente virtual que
possibilita a conversação entre seus usuários, bem como tratar dos principais aspectos que
configuram os tuítes na rede. De agora em diante, buscaremos evidenciar o corpus e a
metodologia empregada à sua constituição para, sequencialmente, analisar, com base no
referencial teórico e na observação empírica, o fenômeno do mal-entendido.
1.5 O corpus de pesquisa e sua constituição
Como vimos, o lócus da presente investigação é a internet, mais especificamente, o
Twitter. A escolha dessa rede social se justifica, no sentido de que o Twitter funciona para nós
como um espaço privilegiado para (re)pensar questões teóricas e práticas, principalmente, no
que tange às possibilidades comunicacionais que esse ambiente conversacional evidencia.
Inclusive, Santaella e Lemos (2010, p. 79) afirmam que a “conversação e a discussão de ideias
em tempo real” são os principais diferenciais no uso dessa plataforma.
É oportuno enfatizar que, antes de iniciarmos a explanação acerca dos procedimentos
de análise adotados nesta pesquisa, gostaríamos de esclarecer como se deu a nossa entrada no
ambiente pesquisado. A nossa inscrição no Twitter ocorre em abril de 2018, quando criamos o
perfil de usuária na rede. No entanto, a nossa imersão, imprescindível para a execução da
pesquisa, acontece a partir do ingresso no Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Presbiteriana Mackenzie (nível Doutorado) e se estende até a conclusão deste
trabalho, isto é, entre agosto de 2018 e outubro de 2021 respectivamente. No decorrer desse
período, participamos da plataforma in loco, no intuito de conhecer o espaço virtual no qual se
37 Marcuschi (2008, p. 174-5) define suporte como: “[...] um lócus físico ou virtual com formato específico que
serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto.”
53
situa esta pesquisa e entender as principais funcionalidades da rede. Ainda, mediante
observação participativa, buscamos uma melhor compreensão das práticas comunicativas
realizadas, pelos usuários, por meio dos tuítes.38 Essa etapa foi importante para a adequação
dos métodos de pesquisa aos objetivos propostos neste trabalho e, consequentemente, no
processo de coleta dos dados.
Quanto ao período de coleta dos textos que compõem o corpus desta pesquisa, optamos
por trabalhar com amostras selecionadas num intervalo de tempo de, aproximadamente, dois
anos. Importa mencionar que os dados foram coletados manualmente, dada a nossa prévia
familiaridade com o Twitter, bem como a simplicidade de funcionamento e manuseio dessa
plataforma. Alcançamos, assim, um acervo de 40 segmentos conversacionais produzidos e
veiculados na rede, compilando um corpus que nos parece bastante representativo, uma vez que
cobre um total de 258 tuítes. Acrescentamos que, ao longo dos Capítulos 3 e 4, foi realizada
ainda a análise de 17 excertos, pertencentes também ao nosso corpus de pesquisa. Tal
procedimento foi possível uma vez que está baseado nos objetivos e metodologia deste trabalho.
A nosso ver, um aspecto importante na abordagem de um corpus de pesquisa é produzir
recortes decisivos para análise. Nessa direção, três critérios foram utilizados para o primeiro
recorte: (i) os tuítes terem sido escritos em português; (ii) os tuítes terem sido publicados por
usuários, cujos perfis fossem públicos;39 (iii) os tuítes não possuírem mídias ou recursos
semióticos (GIFs ou vídeos, por exemplo) que engendrassem movimento e som, o que nos
levou a trabalhar com amostras predominantemente escritas; (iv) os tuítes estarem inseridos em
sequências conversacionais.
A partir daí, fizemos o segundo recorte, mapeando 2 a 3 perfis de diferentes esferas
comunicativas, a saber, jornalística, política, religiosa, do cotidiano e artística, os quais
interagem espontaneamente com seus seguidores, tratando os mais variados temas.
Sequencialmente, ao debruçarmo-nos na exploração de nosso objeto de estudo nas interações
selecionadas, verificamos que, além de se configurar em um volume excessivo de dados,
normalmente, elas envolviam muitos participantes e, por isso, nem todos reagiam verbalmente
38 Concordamos com Paveau (2021, p. 36) quando argumenta: “De fato, parece necessário que o pesquisador tanto
seja um usuário de internet e da web, quanto tenha um conhecimento mínimo das interfaces técnicas e do
funcionamento da máquina.” 39 Os tuítes compartilhados na rede, no modo público, são de livre acesso a qualquer pessoa na internet, tendo o
usuário abdicado de controlar sua propagação a partir do momento que os difunde dessa maneira, podendo,
inclusive, ser utilizados para fins acadêmicos, como os desta pesquisa. Do ponto de vista ético, optamos por
ocultar, neste trabalho, informações como foto, nome de exibição e nome de usuário na rede, para fins de
preservação da identidade dos sujeitos-usuários.
54
às contribuições uns dos outros. Desse modo, não tínhamos a possibilidade de reconhecer se o
tuíte fora compreendido ou não. Ratificamos, assim, a opinião de Dannerer (2004), quando
argumenta que o linguista, ao analisar interações poliádicas40, terá provavelmente pouca chance
de detectar a ocorrência de mal-entendidos. Dentro dessa perspectiva, operamos um terceiro
recorte, concentrando-nos em detectar o mal-entendido apenas em interações diádicas41 e/ou
curtas, pois, segundo a autora (2004), quando a troca comunicativa ocorre entre um pequeno
número de participantes, o fenômeno é passível de ser identificado e, por conseguinte,
analisado. Feito mais esse recorte, chegamos efetivamente ao corpus de análise.
O armazenamento dos dados ocorreu da seguinte maneira: a partir de nossa timeline,
verificamos as sequências conversacionais que preenchiam os critérios de seleção assumidos
para este corpus e, ao acionarmos um comando disponível nos tuítes (ver Figura 18), tais
postagens eram salvas em um espaço (Itens salvos), disponível em nossa página inicial. Após
esse tratamento preliminar, as publicações salvas, foram copiadas, pelo emprego do recurso de
captura de tela (print screen), disponível no teclado do computador, e adicionadas ao OneDrive
– um serviço de armazenamento de arquivos na nuvem da Microsoft.42
Passemos, agora, à explanação de como o material coletado é apresentado neste
trabalho:
i. Para a ilustração de recursos, características e funcionalidade dos tuítes, optamos pela
recuperação da imagem (captura de tela) salva na nuvem, salvaguardando a identidade
do participante (isto é, foto do perfil, nome de exibição e nome de usuário).
ii. Para a análise de segmentos conversacionais, utilizamos, por uma “questão de
legibilidade”, o modelo de citação de tuítes proposto pela Modern Language
Association (MLA), que contém informações na seguinte ordem: Último nome,
primeiro nome (nome de usuário). “Tuíte por completo”. Data, horário. Tuíte. Convém
ressaltar que o nome dos participantes foi substituído pelo termo Usuário, seguido por
letras maiúsculas, em ordem alfabética (Usuário A, Usuário B etc.), a fim de
40 Crystal (2004) denomina a interação que envolve muitos participantes como “interação multipartidária”
(multiparty interaction). Herring (1999) a define como “multiparticipativa” (multiparticipant interaction).
Sugerimos, neste trabalho, o termo interação poliádica. 41 Diádica: “que é relativo a um grupo de duas pessoas (ex.: ajustamento diádico, interação diádica)”. Dicionário
Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2020. Disponível em: <https://dicionario.priberam.org/di%C3%A1dica>.
Acesso em 17 jun. 2020. 42 Informações adicionais estão disponíveis em: <https://www.techtudo.com.br/tudo-sobre/onedrive.html>.
Acesso em 16 set. 2021.
55
resguardar-lhes as identidades. Informamos que a ausência dos dados pessoais não
constitui obstáculo para o desenvolvimento de nossas análises.
Consideremos os exemplos, a seguir, em caráter de ilustração:
Figura 18 – Tuíte (captura de tela/print screen)
Fonte: Twitter.43
A citação dos três tuítes ilustrados na Figura 18 corresponde ao seguinte padrão proposto
pela MLA:
Excerto 1
Usuário A: “Parabéns, Débora, ficou bem esclarecedora a sua sequência de tuítes :)”. 05/12/2020,
7h06. Tuíte.
Usuário B: “Obrigada! <3
Feliz em fazer parte deste evento e saber que vc está participando também!!!”.
05/12/2020, 7h09. Tuíte.
Usuário C: “Tamo junto! <3”. 05/12/2020, 7h14. Tuíte.
Fonte: Twitter: @deboracla.
Neste ponto, é oportuno esclarecer que nossas análises estão naturalmente limitadas a
uma pequena amostra de um fenômeno muito mais amplo. Não há, portanto, nenhuma pretensão
por resultados definitivos. Inclusive, esse caráter provisório de pesquisas voltados às ciências
humanas foi, ao contrário do que se possa imaginar, nossa maior motivação durante a
43 Disponível em: <https://twitter.com/deboracla1969/status/1335162716219125761>. Acesso em: 22 abr. 2021.
Comando
para salvar
o tuíte
56
elaboração desta tese. Quando nos propusemos a discutir a ocorrência do mal-entendido em
tuítes, tivemos, simultaneamente, que assumir a responsabilidade e o risco inerente de
trabalharmos com elementos essencialmente mutáveis, complexos e dinâmicos, sobre os quais
estaremos sempre fadados a rascunhar sem jamais chegarmos perto de apreendê-los ou finalizá-
los. Inclusive, em decorrência do efervescente processo de atualização da plataforma, dados
novos foram surgindo e nos levaram a substituir os antigos a todo momento.
Feitas essas considerações e, enfim, com o corpus de pesquisa selecionado, empregamos
para a organização da análise – fundamentada na confluência das perspectivas teóricas da
Análise da Conversação e da Linguística Interacional – uma subdivisão em torno de três
categorias centrais: (i) o mecanismo de organização das sequências discursivas em que ocorre
o mal-entendido; (ii) causas que desencadeiam o fenômeno no desdobramento interacional; (iii)
procedimentos linguístico-discursivos, explicitamente interacionais, por meio dos quais os
interlocutores procuram esclarecer o problema, na tentativa de alcançar a intercompreensão.
Sublinhamos ainda que não é nosso propósito apresentar, de maneira pormenorizada o
corpus, mas, grosso modo, trazer, no quinto capítulo desta tese, as percepções extraídas em
nossas análises, por meio de alguns exemplos ilustrativos, visto que nosso objetivo não é operar
com uma análise quantitativa dos dados, e sim qualitativa. De acordo com Neves (1996, p. 2),
tal método traz como “contribuição ao trabalho de pesquisa uma mistura de procedimentos de
cunho racional e intuitivo capazes de contribuir para a melhor compreensão dos fenômenos.”
Por fim, reconhecemos que não é possível travar um percurso analítico apartado de uma
discussão teórica. Cabe-nos, então, apresentar os pressupostos teóricos que embasarão esta
pesquisa e, por conseguinte, sustentarão nossas análises. Entretanto, não é nossa pretensão,
tampouco seria dentro dos limites deste trabalho, explorar minuciosamente a teoria.
Pretendemos, na verdade, discutir aspectos essenciais que fundamentarão nossas reflexões no
decorrer desta tese. Será esse o foco dos capítulos subsequentes.
57
CAPÍTULO 2
CONVERSAÇÃO FACE A FACE : DEFININDO CONCEITOS
E FUNÇÕES
“Queira eu ou não, estou preso num circuito de
troca.”
(ROLAND BARTHES)
Neste capítulo, trataremos brevemente da concepção de linguagem, que norteia este
trabalho e, posteriormente, indicaremos o referencial teórico que fundamenta esta pesquisa,
destacando os estudos advindos da Análise da Conversação e da Linguística Interacional, para
investigar o mal-entendido, tema central desta tese.
2.1 Contributos para o estudo da conversação
Nesta seção, apresentaremos a concepção de linguagem que permeia o nosso trabalho
de pesquisa. Para tanto, adotaremos uma postura diante da língua proposta pelas colaborações
teóricas advindas do círculo bakhtiniano44, visto que têm se mostrado ricas no desenvolvimento
de várias noções e ainda encontra eco em diversos segmentos de estudos, como a Análise da
Conversação e Linguística Interacional.
Assim, com a possibilidade de olhar a teoria bakhtiniana e nela encontrar respostas
possíveis para o procurado, buscamos, nesta breve reflexão, trazer as principais características
sobre a concepção de linguagem proposta por Bakhtin, a partir de um eixo básico: o dialogismo.
Em primeiro lugar, a compreensão do princípio dialógico da linguagem exclui qualquer
possibilidade de abordagem individualista, pois se instaura na língua como um processo
interacional, realizado na enunciação. Para Bakhtin (2009 [1929]), o fenômeno linguístico
fundamenta-se num caráter dialógico, pois é determinado tanto pelo fato de que parte de alguém
Tradução da autora para o excerto original: “Que je le veuille ou non, je suis pris dans un circuit d'échange”
(BARTHES apud KERBRAT_ORECCHIONI, 1986, p. 7). 44 O Círculo de Bakhtin é formado por um grupo de estudiosos, cujos principais integrantes são Mikhail Bakhtin,
o líder, V. N. Volochinov e P. N. Medvedev, que tinham interesses filosóficos comuns e se reuniam para debater
suas ideias, principalmente entre 1920 e 1930, na Rússia, período de grande produção intelectual do grupo
(CLARK & HOLQUIST, 1998 [1984]).
58
(eu) em direção a outro alguém (tu). A enunciação constitui justamente o produto da interação
entre falante e ouvinte e serve de expressão de um em relação ao outro e, em última análise, em
relação à coletividade.
Disso decorre que a verdadeira essência da língua para Bakhtin não é constituída por
um sistema abstrato e estável de formas linguísticas, nem pela enunciação monológica fechada
totalmente desvinculada de um contexto, nem pelo ato de criação individual, mas pela
interação verbal, um fenômeno social que se realiza por meio da enunciação ou das
enunciações e só pode ser explicado em relação à situação concreta de produção.
Ainda, para o teórico (2011), os enunciados são definidos pela alternância dos sujeitos,
ou seja, o falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro. Tal alternância é
evidente na forma mais simples e clássica da comunicação discursiva, o diálogo real, em que
se alternam as enunciações dos interlocutores. Outra peculiaridade diz respeito a uma ativa
compreensão responsiva, cuja forma se estabelece por meio de uma resposta/réplica ao
enunciado do outro.
Nessa direção, Bakhtin nos permite entender que a linguagem é constituída na e pela
interação entre os parceiros comunicativos e necessariamente é essa interação que determina a
compreensão do texto45. Em outros termos, a construção de sentidos sempre se dá de forma
dialógica, de modo que qualquer enunciado é intrinsecamente uma resposta a enunciados
anteriores e, uma vez concretizado, abre-se à resposta de enunciados futuros, num processo
contínuo de significação e ressignificação.
Contudo, no entendimento do Círculo, a linguagem não se instaura apenas em termos
de alteridade e de responsividade, mas também reflete as condições discursivas, ou seja, para
Bakhtin (2011), o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos)
concretos e únicos, organizados pelos gêneros do discurso e proferidos pelos integrantes dos
diversos campos de atividade humana.
Em suma, gênero do discurso é compreendido, na perspectiva teórica bakhtiniana, como
“tipos relativamente estáveis de enunciados”, pois refletem as condições específicas e as
finalidades de cada esfera de atividade humana não só pelo conteúdo (temático) e estilo da
45 Dentro dessa perspectiva, Koch (2009, p. 33, grifo da autora) argumenta que o texto “passa a ser considerado o
próprio lugar da interação e os interlocutores, sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são
construídos.”
59
linguagem, mas, acima de tudo, por sua construção composicional (BAKHTIN, 2011, p.262,
grifo do autor).
É importante assinalar, contudo, que a concepção de gênero de Bakhtin não é estática,
como poderia parecer à primeira vista. Pelo contrário, como qualquer outro produto
social, ele reconhece que os gêneros estão sujeitos a mudanças, decorrentes não só das
transformações sociais, como devidas ao surgimento de novos procedimentos de
organização e acabamento da arquitetura verbal, em função de novas práticas sociais
que os determinam (ver, por exemplo, os gêneros da mídia eletrônica) (KOCH, 2009,
p. 161).
Enfim, consideramos que os estudos bakhtinianos contribuem para esta pesquisa, no que
diz respeito à compreensão dos mecanismos de uso da língua nas práticas sociais, apreendidos
na observação e análise de material linguístico produzido em situações concretas de interação,
por exemplo, réplicas do diálogo cotidiano, marcado por intensa alternância de turnos,
semelhantemente, ao que se desenrola no Twitter. Importa mencionar ainda que, no caso desta
pesquisa, o trabalho de investigação opera com conversações autênticas, constituídas por tuítes,
com características – temáticas, composicionais e estilísticas – que lhe são próprias.
Tomando em consideração os fundamentos brevemente expostos, tornam-se claros, para
nós, os pontos de contato entre estes e as questões circunscritas na pesquisa em Análise da
Conversação, sob a perspectiva interacionista da língua46, as quais serão apresentadas na seção
a seguir, a fim de embasar este trabalho e, em especial, para compreender o objeto de estudo
desta investigação.
2.2 Da Etnometodologia aos princípios da Análise da Conversação (AC)
O presente estudo está inserido na perspectiva teórico-metodológica da Análise da
Conversa Etnometodológica (ACE), que advém de uma corrente dissidente da Sociologia da
Comunicação e da Antropologia cultural americana, a chamada Etnometodologia. O trabalho
precursor dessa abordagem é o de Harold Garfinkel, Studies in Ethnomethodology, publicado
em 1967. Nesta obra, o autor (1967, p. 1), respondendo à pergunta “O que é Etnometodologia?”
afirma que a recomendação central desse estudo é a de que “[...] as atividades pelas quais os
46 Cabe enfatizar que a abordagem interacionista confirma e reforça a ideia de que, na comunicação real, a
linguagem é constituída na e pela interação e no interior de uma sequência de enunciados que não são encadeados
ao acaso (KERBRAT-ORECCHIONI, 2005).
60
membros produzem e gerenciam situações de afazeres cotidianos organizados são idênticas aos
procedimentos empregados por eles para tornar essas situações ‘relatáveis’”47.
Nessa direção, Silva (2005, p. 37) assevera:
A Etnometodologia de Garfinkel tinha em vista a análise de realidade social a partir
do comportamento social e propunha estudar os procedimentos que os membros de
uma sociedade utilizam para interpretar as ações cotidianas que constituem a
realidade. Nas situações cotidianas, manifestam-se os comportamentos dos indivíduos
de uma comunidade. Na interação, os indivíduos dispõem de técnicas e mecanismos
de produção regulamentados por regras gerais e pertencentes a uma ordem comum.
Como vimos, a Etnometodologia, do ponto de vista de seu objeto de estudo, investiga
as atividades práticas realizadas pelas pessoas no dia a dia, as quais são concebidas como
processos, ou seja, diz respeito à forma estruturada, ordenada e metódica de como os indivíduos
de uma sociedade realizam seus afazeres (FÁVERO et al., 2010). Em outros termos, reconhece-
se a conversa como uma forma básica de organização social, entendida como uma atividade
prática e cotidiana, facilmente relatável e explicável em relação a outras formas.
Ainda, quanto aos objetivos da Etnometodologia, Hilgert (1989, p. 80) sintetiza que essa
ciência:
investiga as atividades práticas cotidianas dos indivíduos de uma sociedade. Essas
atividades são concebidas como processos, o que implica a sua realização estruturada,
ordenada e metódica. Do ponto de vista metodológico, a investigação é de caráter
empírico, isto é, da análise minuciosa dos fatos concretos se revelarão os
procedimentos adotados na construção da realidade social. A instituição social,
portanto, não é mais vista isolada dos seus autores (ou atores), como se fosse um
conjunto de normas impostas a eles e passível de ser descrita, simplesmente, à luz de
matriz de categorias preestabelecidas.
É, portanto, na tradição da Etnometodologia de Garfinkel que nasceram e se formaram
as orientações da corrente que recebe o nome de Análise da Conversa Etnometodológica – a
ACE48, em que a conversa torna-se objeto de investigação sistemática.
O sociólogo americano Harvey Sacks49 foi o primeiro a vislumbrar todas as
possibilidades analíticas das conversações (a partir da investigação de trechos das gravações de
47 Tradução da autora para o trecho original: “[...] the activities whereby members produce and manage settings of
organized everyday affairsare identical with members' procedures for making those settings ‘account-able.’” 48 De acordo com Silva (2005), em virtude da relação existente entre a Etnometodologia como método e a particular
aplicação que fazem Sacks e seus seguidores da análise da interação verbal humana, tornou-se habitual denominar
a ACE de Análise da Conversação. Doravante, referir-nos-emos à ACE por AC (Análise da Conversação). 49 Pomerantz e Fehr (2000 apud Silva, 2005) relatam que Sacks chegou a conhecer Garfinkel em 1959 durante um
ano sabático deste último em Harvard. O sociólogo americano encontrou pontos de convergência entre seus
estudos e os de Garfinkel e passou a manter contatos com ele. De certo modo, assim nasceram os estudos da AC
de linha etnometodológica.
61
pessoas que ligavam para o Centro de Prevenção ao Suicídio de Los Angeles) e descreveu,
juntamente com Garfinkel, os métodos que as pessoas comuns utilizavam para realizar ações
no mundo por meio da fala-em-interação. Convém mencionar que seu interesse era sociológico
e não linguístico, o que pode ser comprovado por meio das palavras do autor (SACKS, 1992,
p. 25-6):
Comecei a trabalhar com conversas documentadas em gravador. Tais materiais tinham
uma única virtude, a de que eu poderia reproduzi-las. Eu poderia transcrevê-las e
estudá-las extensivamente. Os materiais gravados constituíam um registro
“suficientemente bom” da situação comunicativa. Não foi por grande interesse em
Linguagem ou por alguma formulação teórica que comecei com conversas
documentadas em gravador, mas simplesmente porque eu poderia manipulá-las e
poderia estudá-las repetidas vezes, e também, consequentemente, porque outros
poderiam apreciar o que eu havia estudado e fazerem o que lhes permitisse sua
capacidade se, por exemplo, pretendessem discordar de mim.50
Sua morte prematura, em novembro de 1975, provocou a interrupção de seus estudos,
mas a transcrição de suas aulas proferidas entre 1964 e 1974 na Universidade da Califórnia
foram compiladas, no início dos anos 1990, na obra Lectures in Conversation, organizada em
dois volumes por Gail Jefferson, com texto introdutório de Emanuel Schegloff (GÜLICH e
MONDADA, 2008). Na verdade, foi principalmente pelo empenho de Jefferson e Schegloff
que as propostas de Harvey Sacks foram perpetuadas.
2.3 Reflexão sobre a pesquisa em Análise da Conversação
Em 1974, Sacks, Schegloff e Jefferson publicaram na revista Language um trabalho
denominado A simplest systematics for the organization of turn-taking for conversation, em
que propuseram uma descrição dos mecanismos de organização da conversação e das relações
intersubjetivas51 que nela se estabelecem, a partir da gestão de turnos, sua principal
característica.
50 Tradução da autora para o trecho original: “I started to work with tape-recorded conversations. Such materials
had a single virtue, that I could replay them. I could transcribe them somewhat and study them extendely – however
long it might take. The taped-recorded materials constitued a “good enough” record of what happened. It was not
from large interest in Language or from some theorical formulation of what should be studied that I started with
tape-recorded conversations, but simply because I could get my hands on it and I could study it again in again,
and also, consequentially, because others could look at what I had studied and make of itwhat they could if, for
example, they wanted to be able to disagree me.” 51 Sem prejuízo da ideia de que o eu se constitui no outro, intersubjetividade tem a ver aqui com o fato de os
participantes estarem ambos em um mesmo plano de entendimento quanto ao que estão fazendo em conjunto no
aqui e agora interacional. Caso certas ações não prescindam de referentes comuns, os participantes têm, então, a
62
Com base na pesquisa realizada com o uso de gravações em áudio de conversações de
ocorrência natural, os estudiosos (1974) observaram que a conversação não era um sistema
caótico, desordenado, mas sim organizado sequencialmente, de natureza regulada e passível de
descrição e análise. Disso decorre um estudo fundamental sobre o sistema de tomada e
distribuição de turnos como um recurso metodológico central para a investigação, isto é, um
recurso fornecido pelo caráter absolutamente interacional da conversação, visto que “descreve
a ordenação de regras observadas na organização da fala-em-interação sob o ponto de vista da
alocação das oportunidades de falar” (FREITAS; MACHADO, 2008, p. 59).
Tal estudo preconiza que o participante da fala-em-interação, ao produzir a sua
elocução, precisa fazê-lo de tal modo que revele o seu entendimento do que foi dito em turno
anterior e sempre tem a chance de suspender o andamento da conversação para proceder a
ajustes quanto ao entendimento do outro, procedendo à iniciação de reparo sobre alguma fonte
de problema na sua própria fala ou na fala de seu interlocutor (GARCEZ, 2008). Desse modo,
o analista da conversação busca evidências de como os participantes se orientam em relação às
produções uns dos outros, inclusive no que possa estar ausente quando seria esperado. Dito de
outro modo, “[...] nesse processo são os próprios interlocutores que fornecem ao analista as
evidências das atividades por ele desenvolvidas” (MARCUSCHI, 1991, p. 8).
Nessa perspectiva, um aspecto determinante da postura analítica em AC é não
sustentar afirmações calcadas em ilações relativas ao que os participantes têm em mente e que
não são expostas aos interlocutores. É sempre necessário articular as análises a partir do que
eles efetivamente dizem e fazem por meio de suas elocuções e outros sinais observáveis e
demonstráveis na sua conduta, que se submeta a alguma forma de descrição ou transcrição. De
modo análogo, não se faz recurso ao fato de que o participante seja isso ou aquilo em termos
de pertencimento a certas categorias identitárias, a menos que se possa demonstrar que os
participantes estão sustentando essa identidade conjuntamente, no aqui e agora interacional
(GARCEZ, 2008).
Outro aspecto a ser destacado, sob a perspectiva da AC, é a análise de interações
naturalísticas. Assim, exemplos inventados e convenientes, técnicas experimentalistas e/ou
metáforas de ação teatral para explicar comportamentos humanos, são rejeitados. Inclusive, a
palavra “naturalística” indica que os dados não são experimentais ou gerados a partir de um
roteiro prévio, mas que foram coletados em situações de ocorrência natural e da maneira como
possibilidade de criar ocasiões e recurso para o entendimento, por exemplo, por meio do acionamento da
organização de reparo (SCHEGLOFF, 1992).
63
elas aconteceriam, sem a intervenção dos pesquisadores. Nesse sentido, Loder (2008, p. 127)
pontua que “a busca é, na verdade, por encontros que ocorrem naturalmente, sem serem
motivados pelo pesquisador, e o ideal é tornar a tarefa de observação minimamente invasiva”.
Atkinson e Heritage (1984) reforçam essa concepção, ao esclarecer que, no trabalho
com dados naturalísticos, há a preocupação, por parte do analista, com a não manipulação,
seleção ou reconstrução dos dados baseados em noções pré-concebidas daquilo que é provável
ou importante. Nas palavras dos autores (1984, p. 1):
O objetivo central da conversa é a descrição e a explicação das competências que os
falantes comuns utilizam e de que se valem para participar de uma interação inteligível
e socialmente organizada. Basicamente, o objetivo é descrever os procedimentos
pelos quais os participantes produzem seu próprio comportamento e entendimento, e
lidam com o comportamento dos outros. Uma concepção básica é a de Garfinkel
(1967: 1), de que essas atividades - produzir comportamento, entendimento e lidar
com isso - são realizadas como produtos de um conjunto de procedimentos comuns.52
Como vimos, a AC procede com base em material empírico, reproduzindo conversações
reais e, portanto, considera detalhes não somente verbais, mas prosódicos, paralinguísticos,
entre outros. É por essa razão que as interações situadas, de ocorrência natural, a serem
analisadas necessariamente são gravadas em áudio e/ou em vídeo, para que as pesquisas não se
centrem apenas no que foi dito, mas primordialmente detenham-se no como as coisas foram
ditas.
A transcrição dos dados obedece, assim, a uma série de convenções que sinalizam os
diferentes aspectos que permeiam uma conversação (ou trecho de conversa) em determinada
hora e local. Dentre alguns aspectos frequentemente marcados nas transcrições estão: pausas;
falas simultâneas; sobreposição de vozes; dúvidas e suposições; truncamentos; entonação
contínua, ascendente ou descendente; palavras proferidas de forma incompleta; silabação;
repetições; entre outras que se mostrarem relevantes.
No sentido de atender aos interesses analíticos da AC, surgiu, então, o chamado sistema
Jefferson de transcrição53, inicialmente desenvolvido pela analista da conversa Gail Jefferson
na ordenação dos primeiros materiais de análise de Sacks e Schegloff e atualmente empregado
por analistas da conversação em todo o mundo. Tal modelo foi ganhando corpo à medida que
52 Tradução da autora para o trecho original: “The central goal of conversation analytic research is the description
and explication of the competences that ordinary speakers use and rely oin in participating in intelligible, socially
organized interactions. At its most basic, this objective is one of describing the procedures by which
conversationalists produce their own behavior and understand and deal with the behavior of others. A basic
assumption throughout s Garfinkel´s (1967:1) proposal that these activities – producing conduct and understanding
and dealing with it – are accomplished as the accountable products of common sets of procedures.” 53 A esse respeito, ver Sacks, Schegloff e Jefferson (1974, p. 731-734), Jefferson (1983) e Jefferson (1996).
64
a própria AC foi se estruturando. Por essa razão, encontram-se pesquisas na área que
apresentam algumas variações atendendo a propósitos teóricos específicos.
Ademais, há um sistema de transcrição, desenvolvido por estudiosos alemães e
utilizado para pesquisas nos campos da Análise da Conversação e Linguística Interacional,
denominado GAT – Gesprächsanalytisches Transkriptionssystem (sistema de transcrição para
análise da conversação) – o qual utiliza princípios do sistema Jefferson de transcrição, contudo
propõe algumas convenções mais compatíveis para análises linguísticas e fonéticas da língua
falada, principalmente para a representação da prosódia na fala-em-interação.
É oportuno dizer que a primeira versão do GAT (SELTING et al., 1998) foi
desenvolvida em 1988. Alguns anos depois, devido ao avanço de pesquisas no campo da
prosódia e multimodalidade, à propagação da Linguística Interacional e ao surgimento de novas
possibilidades computacionais de gravação e armazenamento de dados, tornou-se aconselhável
a adaptação desse sistema de transcrição. Assim, em 2009, surge uma versão revisada (GAT
2), que introduziu pequenas modificações em falhas que se tornaram evidentes no uso diário do
GAT original.
Cabe salientar que o GAT 2 é acessível para pesquisadores principiantes em transcrição
e compreendido facilmente pela comunidade dos falantes de português. Ademais, o tutorial em
alemão do GAT 2 está disponível online, bem como o software FOLKER para editar
transcrições em alemão, inglês e francês.54
Nessa linha de condução, importa mencionar ainda que um sistema de transcrição
largamente adotado nos estudos sobre o texto falado no Brasil foi desenvolvido pelo Projeto da
Norma Linguística Urbana Culta (NURC), programa de pesquisa que ocorreu por volta dos
anos 1970 em cinco capitais brasileiras – Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e
Recife – e que resultou em vários estudos sobre a conversação. Contudo, tendo por foco de
interesse nesta pesquisa a conversação em contexto digital, faz-se necessário apontar aqui que
a transcrição das interações não será realizada de acordo com essas convenções, visto que elas
ocorrem em ambiente virtual, as quais empregam registros e especificidades próprias da
conversação na rede, assunto que será abordado no Capítulo 4 desta pesquisa.
54 As convenções do GAT 2 encontram-se disponíveis no artigo: Um sistema para transcrever a fala-em-
interação: GAT 2, o qual apresenta a tradução portuguesa da versão revisada do GAT. Disponível em:<
https://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2016/12/GAT_Completa_Final_11_2016-2.pdf>. Acesso em 19 fev.
2021.
65
Diante dessa breve apresentação acerca das principais características da pesquisa em
AC, passaremos, a seguir, a destacar as principais características da organização estrutural das
conversações face a face.
2.4 Constituição da organização estrutural da Conversação Face a Face
Tomando como base a análise quantitativa de um grande corpus, constituído por
conversações espontâneas, Sacks, Schegloff e Jefferson, em trabalhos publicados entre as
décadas de 1970 a 1990, observaram a conduta ordenada da conversa e descreveram fenômenos
multifacetados e recorrentes na organização da fala-em-interação. Dentre eles, destacam-se: a
sistemática de tomada de turnos, a sequencialidade, os pares adjacentes e a organização do
reparo.
2.4.1 A organização da tomada de turnos
O princípio de alternância é seguramente uma característica evidente da conversação,
isto é, uma operação de revezamento em que os participantes se alternam nos papéis de falante
e ouvinte. Isso ocorre por meio dos turnos, cuja estrutura pode corresponder a sentenças,
orações, palavras isoladas, locuções frasais ou mesmo recursos prosódicos (SCHEGLOFF,
1992). De acordo com Marcuschi (1991, p. 19), a tomada de turno pode ser vista, então, “como
um mecanismo-chave para a organização estrutural da conversação”.
Observemos essa sistemática da tomada de turnos no segmento interacional a seguir:
Excerto 2
L1 tem saído ultimamente ... de carro?
L2 ((risos)) tenho mas você diz sair ... fora ... sair
normalmente para a escola essas coisas?
L1 pegar a cidade ( )
L2 tenho se bem que eu acho que eu conheço pouco a cidade né?... por exemplo se eu for
comparar com...
Fonte: Projeto Nurc/SP, Inquérito 343, linhas 2-5.55
55 Tipo de inquérito: Diálogo entre dois informantes: L1=homem (26 anos); L2=mulher (25 anos). Tema: A cidade,
o comércio. Disponível em:< https://drive.google.com/file/d/12f9TzpEdNHdvr-K6mG1-AdedyUBL0NcD/view>.
Acesso em: 02 mai. 2020.
66
Como vimos, o fragmento evidencia o sistema de troca de turnos, que assegura a vez de
falar de cada participante, ou seja, quando [L1] termina seu turno, passa a palavra a [L2], que a
assume, exibindo o entendimento que teve em relação ao turno anteriormente produzido. Desse
modo, a tomada de turnos aloca, como ponto de partida, um turno por falante e toda transição
ocorre de forma coordenada.
De modo sucinto, dentre as principais características observadas por Sacks, Schegloff e
Jefferson (2003 [1974]) no sistema de tomada de turnos na conversa destacam-se:
i. A troca de falante se repete ou, pelo menos, ocorre. Ou seja, uma interação se
constitui pela alternância na vez de falar entre os participantes.
ii. Na maioria dos casos, fala um de cada vez, pois o sistema aloca um turno único
para cada falante. De acordo com Marcuschi (1991), as violações a essa regra são
frequentes e bem toleradas.
iii. Ocorrências de mais de um falante por vez (ocorrência de fala simultânea) são
frequentes, mas breves.
iv. A vasta maioria das transições (de um turno para o próximo) sem intervalos são
comuns.
v. A ordem dos turnos não é fixa, mas variável, ou melhor, na conversa cotidiana,
a ordem dos falantes é administrada localmente, na medida em que a conversa avança.
vi. A extensão dos turnos não é fixa, mas variável, restringindo-se a uma palavra ou
prolongando-se até uma cadeia de sentenças complexas.
vii. A extensão da conversa não é pré-determinada no sistema de tomada de turnos.
Tal aspecto é negociado pelos interlocutores no desenrolar da interação.
viii. O conteúdo dos turnos não é previamente especificado. O sistema opera qualquer
conversa independentemente do assunto.
ix. A distribuição dos turnos não é previamente especificada.
x. O número de participantes é variável, uma vez que existem mecanismos para a
entrada de novos participantes e saída dos participantes atuais.
xi. A fala pode ser contínua, com um mínimo de intervalo e de sobreposição, ou
descontínua, quando ocorre a ausência de fala, isto é, um lapso (silêncio).
xii. Os participantes lançam mão de técnicas de alocação de turnos. Isso significa
que um falante corrente pode selecionar um falante seguinte (como quando ele dirige
uma pergunta à outra parte) ou as partes podem se autosselecionar para começar a falar.
67
xiii. Diversas unidades são empregadas na construção dos turnos: palavra, sintagma,
sentença etc.
xiii. Mecanismos de reparo existem para lidar com erros e violações no sistema de
tomada de turnos.
Referindo-se ao trabalho dos analistas da conversação (1974), é oportuno dizer que as
observações foram baseadas em análises de diálogos corriqueiros e que não são, em absoluto,
regras de caráter prescritivo, mas justamente buscava-se descrever os mecanismos utilizados
pelos interlocutores na organização de suas interações. Marcuschi (1991, p. 18, grifo do autor)
afirma ainda que “este conjunto de propriedades transforma a tomada de turno numa operação
básica da conversação, e o turno passa a ser um dos componentes centrais do modelo”, deixando
claro que a fala-em-interação é socialmente organizada, constituída por ações administradas
interacionalmente pelos diferentes participantes da conversa.
2.4.2 A organização das sequências
Outra noção que está na base dos pressupostos desenvolvidos em AC diz respeito à
sequencialidade, cujo conceito está relacionado às ações constituídas pelo uso da linguagem
em interação social, organizadas em sequências de elocuções produzidas por diferentes
participantes (LODER et al., 2008), ou seja, quando uma pessoa fala, ela não o faz de modo
desordenado, mas sempre levando em conta o que o outro disse anteriormente.
Analisemos um segmento, que se dá na extensão de três turnos em uma conversação:
Excerto 3
L1 passei ali em frente …:: Faculdade de Direito...então
estava lembrando... que eu ia muito lá quando tinha sete
nove onze...(com) a titia sabe?... e:: está muito pior a
cidade... está ... o aspecto dos prédios assim é bem
mais sujo... tudo acinzentado né?
L2 uhn:: poluição né?
L1 ruas mais ou menos sujas... ali perto da Praça da Sé da
Praça da Sé tudo esburacado por causa do metrô né?...
achei horrível... feio feio feio... e toda segunda … á noite
eu passo ali do lado da faculdade certo?
Fonte: Projeto Nurc/SP, Inquérito 343, linhas 20-28.
68
Notamos nesse fragmento a interação entre [L1] e [L2]. Na primeira elocução, [L1]
comenta sobre o aspecto da cidade de São Paulo, que se encontra suja e acinzentada. Ao tomar
a palavra, [L2] sinaliza o entendimento de que o turno de fala do seu interlocutor possivelmente
acabou, estando aberta a possibilidade dele [L2] proferir: “uhn:: poluição né?”. Tal elocução
indica sua relação sequencial com a proposição anteriormente produzida por [L1] que, em
seguida, toma legitimamente a palavra e complementa seu turno, ao comentar sobre o aspecto
desagradável à vista (“feio feio feio...”) das ruas da cidade.
Podemos dizer que a sequencialidade tem, portanto, em seu cerne três elementos: (i)
elocuções produzidas sucessivamente; (ii) alternância ordenada na vez de tomar a palavra e,
principalmente; (iii) elocuções demonstravelmente inter-relacionadas, isto é, na observação do
excerto 3, é possível notar como os interlocutores sinalizam para si próprios a natureza
sequencial de suas interações, na medida em que a fala de um participante cria expectativa sobre
a ação que será, em seguida, produzida por seu interlocutor.
Schegloff (1968) pôde observar ainda que muitas dessas ações representam uma
coocorrência obrigatória, como no caso dos cumprimentos. Ou seja, quando alguém o
cumprimenta com um “Bom dia!”, a resposta a essa elocução seria: “Bom dia!”, tornando-se
inadequado introduzir algo diferente, por exemplo, “Por nada”, entre um turno e outro. Esse
tipo de relação sequencial é denominado adjacência. Isso implica que a convites seguem-se
aceitações ou rejeições, a perguntas seguem-se respostas, a cumprimentos seguem-se
cumprimentos em retorno, entre outros.
2.4.3 Os pares adjacentes
Sacks (1992, p. 522) denominou “organização de par adjacente” (adjacency pair
organization) a duas elocuções (por essa razão, par), posicionadas uma em seguida da outra
(daí, adjacente), produzidas por falantes diferentes. Marcuschi (1991) pontua que essas
características são de natureza estrutural e controlam o encadeamento de ações.
Vejamos o excerto abaixo, o qual ilustra tais características:
69
Excerto 4
Doc. agora já deu o tempo
L2 acabou?
Doc. acabou...
L2 nossa... ((risos))
Fonte: Projeto Nurc/SP, Inquérito 343, linhas 1755-58.
Na observação do excerto 4, evidenciamos duas características importantes do par
adjacente: (i) há um ordenamento entre as elocuções que o formam, isto é, “ há uma coisa que
vem em primeiro lugar e outra que vem em segundo lugar [...], isso é óbvio para perguntas e
respostas”56; (ii) podemos notar que o par adjacente se compõe de uma primeira parte – que
coloca o ponto relevante para a transição do turno, seleciona o falante e determina sua ação (ou
seja, a pergunta “acabou?”) – e de uma segunda parte do par, que é esperada (neste caso, a
resposta “acabou...”).
As palavras de Sacks (2011, p. 96) vêm garantir a pertinência de nossas observações:
A sequência básica é uma sequência de duas unidades; os dois turnos em que as partes
da sequência ocorrem estão localizados adjacentemente um ao outro; e, para todos
eles, você pode discriminar o que chamaremos de ‘primeiras partes do par’ de
‘segundas partes do par’, de modo que as partes são relativamente ordenadas [...]. E
uma característica adicional que pode ser extraída entre primeiras e segundas partes
do par é que elas são “conectadas por tipo”, observação pela qual eu quero dizer
apenas algo tão simples quanto isto (embora seja suficiente para muita coisa): se uma
das partes realiza, por exemplo, uma primeira parte do par de algum tipo, tal como um
cumprimento, uma pergunta, uma oferta, um pedido, um elogio, uma reclamação, e
coisas desse tipo, então a parte que realizará uma segunda parte do par para aquela
primeira parte do par seleciona-a a partir dos tipos de alternativas que se encaixam
nesse tipo.
Com base nessa perspectiva, Marcuschi (1991, p. 35) aponta os seguintes exemplos de
pares adjacentes: (i) pergunta-resposta; (ii) ordem-execução; (iii) convite-aceitação/recusa; (iv)
cumprimento-cumprimento; (v) xingamento-defesa/revide; (vi) acusação-defesa/justificativa;
(vii) pedido de desculpa-perdão.
Vejamos mais um exemplo bastante comum de par adjacente ilustrado no segmento
abaixo:
56 Tradução da autora para o trecho original: “there is something that goes first and something that goes second
[...] that’s obvious for questions and answers” (SACKS, 1992, p. 521).
70
Excerto 5
A: oi Vera
B: oi Ana
Fonte: Marcuschi (1991, p. 35).
No excerto 5, podemos observar uma ação do falante [A] (cumprimento: “oi”), que
requer um tipo específico de resposta, como a dada pelo interlocutor [B] (“oi”). Dificilmente
haveria, por exemplo, a presença de um sinal indicativo de atendimento ao telefone (“Alô!”).
Observamos, então, que há uma relação entre as duas elocuções tal que “[...] dada uma primeira
parte do par, não se segue uma segunda parte do par qualquer, mas dada uma primeira parte,
apenas algumas segundas partes são admissíveis e produzidas” (SACKS, 1992, p. 521).57
Nas palavras de Marcuschi (1991, p. 36, grifo do autor):
Sob o aspecto semântico-pragmático (Dittman, 1979, p. 10), os pares podem ser
tomados como indícios da existência de compreensão ou pelo menos de uma
compreensão existente, na medida em que a segunda parte do par só pode ser
produzida se a primeira parte foi, de alguma forma, entendida.
Essa relação sequencial entre pares adjacentes está sintetizada na noção de relevância
condicional, isto é, a relação sequencial de que uma resposta adequada – a segunda parte do
par – é requerida pela ação que a deflagrou e orientada para ela. Quando isso não ocorre é visto
como oficialmente ausente, ou seja, a relevância condicional criada pela primeira elocução não
foi atendida, de modo que sua ausência é notada (SCHEGLOFF, 1968).
2.4.4 A organização do sistema de reparo
Como vimos, na seção 2.4.1 deste trabalho, Sacks, Schegloff e Jefferson, em artigo
publicado em 1974 na revista Language, focalizaram sua investigação no funcionamento básico
das trocas de turno na conversa cotidiana, apontando o “reparo” como um mecanismo existente
57 Tradução da autora para o trecho original: “Which is to say that given a first pair part, not anything that could
be a second pair part goes, but given some first, only some seconds are admissable and are done.”
71
para lidar com erros e violações, que se operam na organização e distribuição dos turnos de
fala.58
Já, em estudo posterior, Schegloff, Jefferson e Sacks (1977) examinaram mais
detidamente a organização do sistema de reparo, apresentando-o como um conjunto de
práticas destinadas a resolver problemas de produção, escuta e entendimento, apontados
pelos participantes ao longo da interação, ou seja, é provável que, durante a conversação, um
participante possa não ouvir bem o que seu parceiro comunicativo acabou de dizer (problema
de escuta), ou possa se enganar ao dizer alguma palavra (problema de produção) ou ainda não
interpretar adequadamente aquilo que o outro disse (problema de entendimento); todos esses
problemas podem dificultar o andamento da interação, ou melhor, pôr em risco a
intersubjetividade da fala-em-interação, levando os interlocutores a suspender o curso de suas
ações para tentar resolvê-los.
Além disso, os autores (1977, p. 362), quando sistematizaram suas observações sobre a
organização de reparo, descreveram que essa prática é primordialmente constituída de duas
partes: a “iniciação” (initiation) e o “resultado” (outcome), sendo que a iniciação (apontar o
problema) ocorre dentro de um espaço sequencialmente restrito de oportunidades próximas à
fonte do problema e, uma vez realizada, o resultado (tentativa de resolver o problema) pode
ocorrer no turno problemático ou em turnos imediatamente seguintes.
Consideremos o exemplo a seguir em caráter de ilustração:
Excerto 6
L1 isso é bem de cidade grande né?
[
L2 oi?
L1 cidade que não dá para ter planejamento ela está
crescendo desordenadamente
Fonte: Projeto Nurc/SP, Inquérito 343, linhas 72-75.
No fragmento 6, podemos notar que, após a pergunta de [L1] “isso é bem de cidade
grande né?”, segue uma ação de reparo, iniciada por [L2], ao proferir “oi?”, elocução que não
especifica onde está a fonte do problema na fala de [L1], mas apenas indica genericamente que
há algum problema a ser reparado no primeiro turno produzido por este. Como vimos, os
58 Barros (2001, p. 139) caracteriza tal mecanismo como “reparação” – correção de uma infração conversacional.
Os atos de reparação não serão abordados neste trabalho, tendo em vista que nossas análises se baseiam em
segmentos conversacionais predominantemente escritos, produzidos e veiculados na rede social Twitter.
72
interlocutores, por meio de uma atividade de reparo, procuram resolver uma determinada
elocução considerada problemática no curso da interação.
Reparo é, portanto, entendido aqui como uma ação empreendida por um participante
para apontar alguma fonte de problema, com o intuito de que venha a ser tratada mediante a
utilização de diversos procedimentos. Para tanto, pode haver uma suspensão ou interrupção das
ações até então em curso, que só serão retomadas após ter sido resolvida.
Ademais, há duas principais categorias de reparo: (i) autorreparo, isto é, reparo
iniciado e realizado pelo próprio responsável pelo turno de fala problemático ou (ii) reparo
efetuado pelo outro. Levando-se em conta, ainda, a produção conjunta de iniciação e
resultado do reparo, apresentamos a seguir, em ordem de oportunidade de ocorrência, as
possíveis combinações desses dois movimentos:
(i) reparo iniciado e levado a cabo pelo falante da fonte de problema (o falante
interrompe a construção de seu turno e refaz parte do que disse); (ii) reparo iniciado
pelo falante da fonte de problema e levado a cabo pelo outro (por exemplo, o falante
interrompe a produção de seu turno para procurar o nome de alguém sobre quem está
falando, e o interlocutor produz um item que preenche essa lacuna); (iii) reparo
iniciado pelo outro e levado a cabo pelo falante da fonte de problema (o interlocutor
aponta um problema no turno anterior, e o próprio falante da fonte de problema
resolve o problema no turno seguinte ao da iniciação); (iv) reparo iniciado e levado a
cabo pelo outro (o interlocutor aponta um problema no turno anterior e oferece
resolução para o problema) (LODER, 2008a, p. 113-115).
Em seu artigo seminal, Schegloff, Jefferson e Sacks (1977) constataram que, entre as
quatro trajetórias de reparo apresentadas, há uma preferência pelo reparo levado a cabo pelo
falante da fonte de problema, ou seja, a maioria dos problemas apontados (tanto pelo falante
quanto por seu interlocutor) é resolvida pelo próprio falante que produziu o turno problemático.
Feitas essas considerações, importa mencionar que os estudiosos (1977, p. 362-3), de
início, apresentaram um esclarecimento terminológico importante quanto ao procedimento de
“reparo” (repair), isto é, que ele necessariamente não se iguala à prática da “correção”
(correction), comumente entendida como substituição de um item considerado errado por outro
considerado correto. O reparo se caracteriza sobretudo pela identificação (realizada pelos
interlocutores) de um determinado problema e alguma (tentativa de) resolução dele, mediante
diversas práticas possíveis, entre elas, a correção.59
59 Tendo em consideração nosso objeto de estudo e o contexto no qual o fenômeno do mal-entendido se realiza, é
oportuno dizer que nossas análises recaem basicamente nas práticas de reparo (de orientação retrospectiva), dentre
elas, correções propriamente ditas, repetições e alguns tipos de paráfrases, atividades reformulativas vinculadas
ao processo de construção da compreensão (assunto abordado na seção 3.3.2 deste trabalho).
73
Finalmente, cabe registrar que Schegloff (1987, 1992), dando continuidade ao estudo
da organização do sistema de reparo, descreveu ainda uma prática denominada “reparo em
terceira posição”, a qual merece destaque neste trabalho, visto que constitui um recurso do qual
os participantes de uma conversa lançam mão para resolver o mal-entendido – foco de nossa
investigação.
2.4.5 O sistema de reparo em terceira posição
De acordo com Schegloff (1992, p. 1301-3), o “reparo em terceira posição” (third
position repair) é constituído de uma sequência de ações em três posições: no primeiro turno
(T1), o falante produz a sua elocução. No turno seguinte (T2), o interlocutor produz um
enunciado. Por meio do que é transmitido em (T2), o falante de (T1) percebe que a interpretação
do interlocutor em (T2) é problemática. Assim, no terceiro turno (T3), o falante refaz o seu
turno inicial, a fim de que o problema seja resolvido.
Nas palavras de Loder (2008a, p. 118, grifo da autora):
O reparo em terceira posição se caracteriza pela resolução de um problema de
entendimento do que um dos interlocutores disse/fez com seu turno e, tipicamente, se
apresenta como não foi isso o que eu quis dizer ou eu não disse isso, eu disse aquilo.
O sistema de reparo em terceira posição é ilustrado no fragmento a seguir:
Excerto 7
A: Qual foi o número residencial que o senhor disse =
B: Não. Não é do telefone.
A: Senhor, eu pedi para repetir o número da casa,
[Trinta e oito...
B: zero um.
A: Ok, trinta e oito zero um.
Fonte: Schegloff, (1992, p. 1318 – adaptado).
Podemos observar, nesse segmento conversacional, que o problema de entendimento se
configura da seguinte maneira: em primeira posição, o falante [A] pede que o interlocutor [B]
repita o número da casa onde este reside. No turno seguinte, na posição 2, [B] informa que o
número não é do telefone. O falante [A] evidencia que [B] não interpretou adequadamente o
que foi dito e busca ajustar a quebra da intersubjetividade, iniciando um reparo em terceira
posição, de modo a explicitar o que foi inicialmente solicitado: o número da residência em que
74
[B] mora. O interlocutor, então, reconhece o mal-entendido e produz uma nova resposta (“zero
um”), resposta que corresponde à expectativa de [A].
Como vimos, o sistema de reparo em terceira posição consiste em uma retificação,
em relação ao problema de entendimento revelado no segundo turno, de maneira a produzir um
entendimento mais aceitável (SCHEGLOFF, 1992). Assim, é sequencialmente relevante que
o turno, no qual se realiza o reparo, esteja posicionado após o turno do mal-entendido. O autor
(1992) apresenta ainda alguns procedimentos de reformulação que são utilizados pelo falante
para resolver o enunciado fonte de problema. São eles: repetição (clearer repeat), paráfrase
(resaying of the same thing in different words), especificação (specification), explanação
(explanation), caracterização (characterization), entre outros.
Nessa direção, Hinnenkamp (2008) argumenta que, quanto mais distante estiver uma
tentativa de reparo – seja de algum termo ou de uma sequência mal interpretada – da sua suposta
fonte, menos explícita será sua manifestação e mais difícil a resolução do equívoco. Portanto,
essa ordenação sequencial dos turnos é ainda essencial, no sentido de que haja evidências
empíricas de que estamos realmente diante de um mal-entendido.
Cabe mencionar que Schegloff (1992) ainda considera o envolvimento de quatro turnos
numa operação de reparo. No primeiro turno, está a fonte do problema de compreensão, que
poderá se arrastar até o quarto turno, no qual o reparo se realiza. Inclusive, ao descrever as
operações de reparo em terceira e quarta posições, o autor as aponta como a última fronteira de
ajustamento da intersubjetividade, ou seja, essa afirmação implica o reconhecimento de que os
problemas de compreensão devem ser negociados tão logo ocorram, já que as posições 3 e 4
ainda permitem a negociação dos dados de uma sequência em andamento ou em conclusão.
Como vimos, a Análise da Conversação traz uma importante contribuição ao estudo
do mal-entendido, no que diz respeito, principalmente, à investigação da dinâmica
organizacional das sequências em que o fenômeno ocorre, é sinalizado e, consequentemente,
resolvido.
Sob essa perspectiva, merecem também a nossa atenção as contribuições da Linguística
Interacional, visto que essas duas correntes teóricas mantêm o mesmo material investigativo
(dados empíricos em situações reais, por exemplo, as conversas), como também procedimentos
metodológicos similares, permitindo que “categorias e estruturas linguísticas, por meio das
quais a interação se realiza, sejam efetivamente analisadas, definidas e redefinidas a partir da
75
linguagem em uso nas situações comuns e recorrentes da vida dos falantes de uma língua”
(HILGERT, 2013, p. 75).
2.5 A contribuição da Linguística Interacional (LI)
Diante do exposto, é oportuno dizer que os trabalhos de Sacks, Schegloff e Jefferson
(1974, 1977) sobre a ação humana mediante o uso da linguagem em interação social tiveram
inúmeros desdobramentos, dentro e fora do enfoque etnometodológico da conversação,
reorientando interesses em âmbitos tradicionais da Linguística, que passaram a descrever e
analisar a conversa, ou melhor, as interações faladas, do ponto de vista não só de sua dinâmica
organizacional, mas também do ponto de vista de sua realização linguística, seja no âmbito
restrito das interações face a face, seja no quadro mais amplo das interações institucionais
(HILGERT, 2019).
Assim, as décadas de 1990 e 2000, assistiram à emergência de um novo campo de estudo
denominado Linguística Interacional que, para Kern e Selting (2013, p. 1), constitui-se em
um programa de pesquisa “baseado na premissa de que a linguagem não deve ser analisada em
estruturas linguísticas livres de contexto, mas como um recurso para a realização de ações na
interação.”60
Selting & Couper-Kuhlen, linguistas alemãs, situam a LI na interface entre a AC e a
Linguística, em especial. Nas palavras das autoras (2000, p. 77):
Grande parte das pesquisas atribuídas à “Linguística Interacional” é realizada por
linguistas europeus e americanos, que são fortemente influenciados pelos analistas de
conversas e que visam a estabelecer a perspectiva etnometodológica e a metodologia
analítica da conversa no contexto da Linguística, bem como no contexto de outros
campos de estudo.61
Ainda, Kern e Selting (2013, p. 2-3), ao tratar do método de validação da pesquisa em
LI, afirmam que este é estritamente empírico, baseando-se principalmente nos princípios de
60 Tradução da autora para o trecho original: “Interactional linguistics is grounded on the premise that language
should not be analyzed in terms of context-free linguistic structures but as a resource for the accomplishment of
actions in social interaction.” 61 Tradução da autora para o trecho original: “Ein Großteil der Forschung, die wir als 'interaktionale Linguistik'
bezeichnen, wird von europäischen und amerikanischen Linguisten betrieben, die stark von der
Konversationsanalyse beeinflusst sind, und die es sich zum Ziel gesetzt haben, der ethnomethodologischen
Sichtweise und der konversationsanalytischen Methodologie im Rahmen der Linguistik, aber auch im Rahmen
anderer Disziplinen, zu mehr Bedeutung zu verhelfen.”
76
organização de tomada de turnos e sequências interacionais62. As categorias analíticas são
entendidas como parte integrante do contexto sequencial em que ocorrem e são “justificadas”,
isto é, demonstradas como realmente relevantes para as ações dos participantes. Na visão das
autoras, a análise gramatical, por exemplo, não deve ser guiada por conceitos tradicionais a
priori, como “cláusula” ou “sentença”, mas como resultado de um processo contínuo de
coordenação e interação entre os parceiros comunicativos, subprodutos da construção de suas
práticas e ações em conversação.
Nessa direção, Mondada (2001) reconhece que a contribuição teórica proposta pela LI
implica um olhar particular voltado para o uso dos recursos de linguagem, na intenção de
construir sentido, garantir a intercompreensão e tornar possíveis as atividades interacionais.
Para a estudiosa, esse campo de estudo não se propõe a investigar unidades mínimas definidas
a princípio por suas características estruturais e combináveis segundo regras pré-definidas, mas
a examinar unidades plásticas, dinâmicas, emergentes, constituídas na temporalidade das
sequências interacionais e adequadas à situação comunicativa. Dessa abordagem específica,
surge uma visão particular da linguagem, que se constitui “na” e “por meio da prática
linguística dos falantes” e, portanto, não pode ser definida independentemente desta.
Para a autora (2001, p. 8):
A língua pertence aos falantes - antes que pertença ao linguista; é o "eu" que a
reapropria em cada ato de enunciação, que a reinventa para melhor se adequar à
situação em questão. A codificação e a padronização não são, portanto, os únicos
aspectos que definem a linguagem; são o resultado de práticas sedimentares, a serem
descritas em termos de seus efeitos constitutivos e não devem ser consideradas em
termos de suas evidências constituídas [...].63
Sob essa perspectiva, Kern e Selting (2013) explicam que há basicamente duas
possibilidades de investigação em LI. A primeira é selecionar um tipo de ação/atividade como
ponto de partida e metodicamente reconstruir os mecanismos linguísticos com os quais ela é
realizada. A segunda maneira é selecionar uma estrutura linguística específica como ponto
62 Segundo Kern e Selting (2013, p. 4): “Desde o início dos anos 2000, numerosos estudos empíricos demonstraram
que a construção e a interpretação de práticas e ações de conversação dependem tanto de sua estrutura linguística
quanto de seu posicionamento dentro de uma sequência de ações”. Segue o trecho original: “Since the early 2000s,
numerous empirical studies have demonstrated that the construction and interpretation of conversational practices
and actions depend on their linguistic structure as much as on their positioning within an action sequence.” 63 Tradução da autora para o trecho original: “La langue appartient aux locuteurs - avant qu’au linguiste; c’est le
“je” qui se la réapproprie dans chaque acte d’énonciation, qui la réinvente pour mieux s’ajuster à la situation en
cours. La codification et la standardisation ne sont donc pas les seuls aspects définissant la langue; elles
sont le résultat de pratiques sédimentées, à décrire dans leurs effets constituants et non pas à considérer
dans leur évidence constituée [...].”
77
inicial e investigar metodicamente seu uso e funcionamento para a realização de ações na
interação.
Nas palavras de Selting e Couper-Kuhlen (2000, p. 79):
a pesquisa na Linguística Interacional pode começar de dois pontos de partida
diferentes: ou começa com uma função interativa ou conversacional e examina os
meios linguísticos que são usados para o cumprimento desta tarefa - ou se inicia com
um elemento linguístico e examina o papel que ele desempenha na interação
conversacional. A semelhança de ambas as abordagens reside na descrição das
estruturas da linguagem como recursos para a ‘fala-em-interação’.64
Essa posição encontra reforço na seguinte reflexão de Lindström (2009, p. 98):
(i) a pesquisa pode partir das estruturas linguísticas e explorar sua associação com
funções interacionais ou (ii) pode partir de uma função interacional em particular e
especificar quais formas e estruturas linguísticas contribuem para realizá-la.65
Para o autor (2009), essas duas estratégias fornecem diferentes resultados, mas ambas
são relevantes. A primeira orientação propicia um meticuloso relato do potencial uso de um
elemento da linguagem (por exemplo, um determinado marcador conversacional). A segunda
abordagem fornece uma rica descrição dos recursos linguísticos utilizados para realizar uma
determinada ação (por exemplo, recusar uma oferta).
Nessa direção, Selting & Couper-Kuhlen (2001, p. 3) pontuam que a LI pretende
responder a duas questões:
(i) que recursos linguísticos são utilizados para articular estruturas conversacionais e,
assim, realizar funções interacionais? e (ii) que funções interacionais ou estruturas
conversacionais advêm da utilização de determinadas formas linguísticas?66
Dito de outra forma: o que é interacional em termos da linguagem? E o que é linguístico
em termos interacionais? Em resposta à primeira questão, Selting & Couper-Kuhlen (2001)
afirmam que as estruturas ou formas linguísticas são adaptáveis à diversidade dos contextos de
enunciação, isto é, (re)adequadas de acordo com as exigências da interação em curso. Nesse
64 Tradução da autora para o trecho original: “Die interaktionslinguistische Forschung kann von zwei
verschiedenen Ausgangs-punkten ausgehen: Entweder beginnt sie mit einer interaktionalen oder konversa-
tionellen Aufgabe oder Funktion und untersucht die sprachlichen Mittel, welche als Ressource für die Erfüllung
dieser Aufgabe verwendet werden – oder sie be-ginnt mit einem linguistischen Element oder einer Konstruktion
und untersucht, welche Rolle dieses Phänomen in konversationeller Interaktion spielt. Die Ge-meinsamkeit beider
Ansätze besteht in der Beschreibung von Sprachstrukturen als Ressourcen für ‘Rede-in-der-Interaktion.’” 65 Tradução da autora para o trecho original: “(i) the research can start from a particular linguistic form and explore
its association with interactional function(s) or (ii) it can start from a particular interactional function and then
specify which interactional linguistics form(s) typically realize that function.” 66 Tradução da autora para o trecho original: “(i) what linguist resources are used to articulate particular
conversational structures and fulfil intercational functions? and (ii) what interactional functions or conversational
structure is furthered by particular linguistic forms and way of using them?”
78
sentido, as produções linguísticas devem ser concebidas como algo que surge ou emerge do
uso. Para responder à segunda questão, as autoras levam em conta o componente central das
interações – os turnos de fala, unidades que podem ter a extensão de um item lexical, sintagma,
uma cláusula ou sentença. O conhecimento dessas formas ou estruturas linguísticas permitem
aos participantes uma projeção do tipo de unidade em andamento e, grosso modo, o quanto
faltará para que uma ocorrência desse tipo seja completada.
Como Lerner (1991) advertiu, unidades linguísticas, como sentenças, também podem
ser produzidas em conjunto pelos participantes na conversa: a construção sintática é
‘distribuída’ para os falantes cooperantes. Isso mostra que não devemos considerar as
unidades e categorias linguísticas como produtos da competência de um falante
individual, mas sim como desempenhos verdadeiramente interacionais que emergem
como epifenômenos no desempenho de atos e atividades de fala durante a interação
(SELTING E COUPER-KUHLEN, 2000, p. 81).67
Mondada (2008) argumenta ainda que esse campo de estudo permite questionar
constantemente a relação entre: (i) a utilização de determinados estruturas linguísticas (formas
lexicais, construções sintáticas, entre outras) e multimodais68 (por exemplo, certas formas
verbais em associação com fenômenos gestuais ou visuais); (ii) a organização sequencial na
realização de determinada atividade e (iii) as ações realizadas pelos participantes no aqui e
agora interacional.
Para tanto, exige-se do linguista a adoção de determinadas estratégias, tais como: (i)
concentrar-se na estrutura e, em seguida, explorar o mecanismo sequencial, a fim de caracterizar
como se dão as ações dos participantes; (ii) focar em sequências específicas (por exemplo, as
numerosas trajetórias de reparo e, por exemplo, sua contribuição para o estudo de um aspecto
gramatical); (iii) tomar como ponto de partida uma ação ou a estruturação de uma atividade, a
fim de analisar os tipos de recursos mobilizados para realizá-las.
67 Tradução da autora para o trecho original: “Wie Lerner (1991) gezeigt hat, können sprachliche Einheiten wie
Sätze darüber hinaus von den Gesprächsteilnehmern gemeinsam hergestellt wer-den: die syntaktische
Konstruktion wird auf die kooperierenden Sprecher ‘verteilt’. Dies zeigt, dass wir linguistische Einheiten und
Kategorien nicht als Produkte der Kompetenz eines einzelnen Sprechers betrachten sollten, sondern vielmehr als
wahrhaft interaktionale Leistungen, die als Epiphänomene beim Vollzug von Sprechhandlungen und Aktivitäten
während der Interaktion in Erscheinung treten.” 68 De acordo com Kern e Selting (2013), recentemente, pesquisadores em Linguística Interacional começaram a
incluir sistematicamente aspectos multimodais do uso da língua em suas análises. É oportuno mencionar que nossa
pesquisa abordará a utilização de alguns aspectos multimodais (re)adaptados das interações face a face para o
meio digital.
79
A autora (2008) esclarece que essas diferentes estratégias não se contradizem em
princípio, mas produzem desenvolvimentos cumulativos distintos, com diferentes implicações
teóricas para o pensamento e abordagem da língua em interação.
Quanto às perspectivas teórico-metodológicas desse campo de estudo, Hilgert (2019, p.
24) acrescenta:
O fundamento geral de uma Linguística Interacional está, portanto, no fato de que as
categorias e estruturas linguísticas se conformam às necessidades e funções das
inúmeras atividades realizadas no desdobramento conversacional e de que, portanto,
as referidas categorias e estruturas precisam ser identificadas, analisadas, descritas e
definidas na perspectiva dessas atividades.
O autor (2019) ainda aponta que cabe aos pesquisadores ter a flexibilidade e
sensibilidade necessárias para perceber e admitir as nuances da dinâmica conversacional, na
identificação das categorias e estruturas linguísticas emergentes das especificidades da
conversa em análise.
Por fim, cabe mencionar que, à luz dos fundamentos da Análise da Conversação
articulados com os da Linguística Interacional, pretendemos, neste trabalho, detectar e
descrever a ocorrência do mal-entendido, levando-se em conta o mecanismo de organização
das sequências discursivas, desde o enunciado de origem do problema até o de sua solução e,
consequentemente, investigar o tipo de procedimento de que se valem os participantes, no
gerenciamento e/ou (re)solução do equívoco interpretativo, na interação em curso.
80
CAPÍTULO 3
MAL-ENTENDIDO: ENTENDENDO O FENÔMENO NA
CONVERSAÇÃO
“O mundo só funciona por meio de mal-
entendidos. É em razão de um mal-entendido
universal que todos concordam. Porque se,
infelizmente, nos entendêssemos, jamais
poderíamos concordar.”
(CHARLES BAUDELAIRE)
Neste capítulo, trataremos do tema central desta tese – o mal-entendido. Para tanto,
iremos definir, em primeiro lugar, alguns princípios teóricos, nomeadamente, a noção de
compreensão e de problemas de compreensão, à luz das quais o conceito de mal-entendido se
esclarece. A partir dessa fundamentação, passaremos a discutir os fatores que o caracterizam,
bem como os procedimentos interacionais que concorrem para solucioná-lo. Há, ainda, uma
seção própria, na qual iremos examinar como o mal-entendido se relaciona com a teoria da
cortesia verbal, na perspectiva do face work, visto que o uso de estratégias que visam à
negociação das faces é significativo no tratamento do fenômeno, tendo em vista a construção
da compreensibilidade no decorrer da atividade conversacional.
3.1 Sobre a compreensão
As reflexões a serem desenvolvidas, nesta seção, a respeito da noção de compreensão
terão como ponto de partida a perspectiva apresentada por Kindt (2002, p. 19), que a explica
por meio da seguinte fórmula: “P: x → a e R: a → y”, em que P (falante) traduz o tópico “x”
pela formulação “a” e R (interlocutor) entende “a” como “y”. Em termos gerais, “[...] a
aplicação simplificada dessa fórmula resulta numa compreensão desejável, quando x coincide
com y (x = y) ou quando são, pelo menos, suficientemente semelhantes (x y).”69
Tradução da autora para o trecho original: “Le monde ne marche que par le malentendu. C´est par le malentendu
universel que tout le monde s´accorde. Car si, par malheur, on se comprenait on ne pourrait jamais s´accorder”
(BAUDELAIRE, 1949, p. 98). 69 Tradução da autora para o trecho original: “[...] bei naiver Betrachtung als wünschenswertes
Verständigungsresultat, daß x identisch mit y ist (abgekürzt x = y) oder daß x und y relativ zum kommunikativen
Ziel zumindest hinreichend ähnlich sind (abgekürzt (abgekürzt x y).”
81
Quanto a essa concepção, Hilgert (2003, p. 225) argumenta:
A fórmula de Kindt [...] não deve levar à ingênua noção de que a P (produtor/falante)
caberia o papel atribuidor de sentidos e a R (receptor/ouvinte), o fazer interpretativo,
o que conflitaria com a concepção, que aqui se preconiza, de produção interativa dos
sentidos na comunicação. Na verdade, “as fases da emissão e da recepção estão em
relação de determinação mútua.
Nesse fundamento, está inscrito o fato de os interlocutores investirem, na construção de
seus enunciados, diversos métodos para manter o engajamento mútuo na conversa, seja face a
face, seja a que se desenrola na rede. Na interação, o falante, que detém o turno, constrói seu
enunciado, buscando palavras, estruturando a sintaxe, repetindo, insistindo, parafraseando,
corrigindo, conduzido por sinalizações do ouvinte, no aqui e agora interacional. É por meio
desse desdobramento de determinações mútuas que os parceiros comunicativos, no processo de
produzir sentidos, vão construindo a compreensão entre si (HILGERT, 2011).
Nessa direção, um dos princípios propostos por Clark (1996, p. 328) é de que o falante
se empenha numa “produção enunciativa adequada” (optimal design). Para tanto, “[...] tenta
produzir seus enunciados de tal maneira que tenha boas razões para acreditar que os
destinatários possam prontamente interpretar o que está sendo dito.”70
O autor (1996, p. 326) ilustra essa condição por meio do exemplo a seguir:
Suponha que Anne aponte para um grupo de árvores e pergunte a Burton: “O que você
sabe sobre aquela árvore?” Anne se utiliza da expressão “aquela árvore”, para se
referir a uma árvore específica, supondo que Burton a conheça. Eles estão frente a um
problema de co-ordenação, ou seja, Burton precisa alcançar a significação proposta
por Anne para construir sentido.71
O referido “problema de co-ordenação” (co-ordination problem) está atrelado a um
segundo princípio proposto por Clark (1996), que se baseia na concepção de que atos
comunicativos são atos conjuntos, ou seja, atos desencadeados por um conjunto de pessoas
agindo em coordenação umas às outras, ou seja, atos comunicativos compreendidos nesses
termos são algo muito mais distinto do que “[...] a soma de uma falante que fala e de um ouvinte
que ouve”72, pois não há como conceber um sujeito autônomo, cuja vontade e intenção
70 Tradução nossa para o trecho original: “[...] try to design their utterances in such a way that they have good
reason to believe that the addressees can readily and uniquely compute what they mean on the basls of the
utterance”. Cabe mencionar que, em Hilgert (2011, p. 244), encontra-se a tradução de “optimal design” por
“configuração ótima” de um enunciado. 71 Tradução da autora para o trecho original: “Suppose Anne points to a clump oftrees and asks Burton, ‘What do
you think of that tree?’ Anne is using ‘that tree’ to refer to a particular tree that she intends Burton to identify.
They are faced with a co-ordination problem: to get Anne's meaning and Burton's construal of her meaning to
match.” 72 Tradução da autora para o trecho original: “[...] the sum of a speaker speaking and a listener listening.”
82
determinam o sentido do discurso (CLARK, 1996a, p. 3). É do esforço oriundo das
contribuições de ambas as partes (falante/locutor e ouvinte/interlocutor) que resulta, de fato,
uma interação bem-sucedida. Disso decorre que as ações de linguagem são concebidas como
ações participativas que, no processo interacional, integram-se de modo a constituir uma ação
conjunta.
Desse modo, reiteramos o fato de que o falante, em uma conversa, não produz uma
expressão isolada. Ele projeta um enunciado (optimal design), levando em conta aquele a quem
se dirige e, a partir daí, busca sinais de entendimento. Da mesma forma, o ouvinte não recebe
passivamente as declarações. Ele procura entender o que o que foi dito e responde de acordo
com o que sabe ou conhece sobre determinado assunto.73 Nesse sentido, Hilgert (1989, p. 147)
acrescenta: “A compreensão nunca se realiza na perspectiva de um dos interlocutores. É preciso
que a ação de ambos convirja para que ela ocorra.”
Ainda, na tentativa de explicar a natureza dessa coordenação, Depperman (2013, p. 2)
argumenta que “a compreensão é revelada continuamente na interação”74, pois, para o autor, o
entendimento é uma ação retrospectiva, isto é, sempre antecedente. Isso significa que o
interlocutor procura indicar, em seu turno, se compreendeu o que foi dito por seu parceiro
comunicativo em turno anterior. Ou seja, “nas interações dialogais, a compreensão do
enunciado de cada interlocutor depende do pronunciamento do outro sobre esse enunciado”
(HILGERT, 2011, p. 269).
Essa estrutura sequencial seria, normalmente, constituída por três operações:
a) o falante [A] constrói um enunciado suficientemente compreensível (optimal
design, cf. Clark, 1996) para o interlocutor [B]; b) [B] apresenta o seu entendimento
acerca do que foi dito; c) o falante [A] indica a [B] se a mensagem foi interpretada de
acordo com os propósitos comunicativos dele [A] (DEPPERMAN, 2008, p. 231, grifo
nosso).75
Para Depperman (2008, p. 230-1), a primeira operação constitui o “objeto de
compreensão” (verstehensobjekt), o “interpretandun” primeiro da interação. A sua
compreensibilidade decorre de uma “produção enunciativa adequada” (optimal design)
73 Esse entendimento está fundamentado no preceito da co-enunciação, segundo o qual, no dizer de Fiorin (2003,
p. 163), “o enunciatário, como filtro e instância pressuposta no ato de enunciar, é também sujeito produtor do
discurso, pois o enunciador, ao produzir um enunciado, leva em conta o enunciatário a quem ele se dirige.” 74 Tradução da autora para o trecho original: “Verstehen wird in der sozialen Interaktion fortlaufend angezeigt.” 75 Apresentamos aqui uma adaptação do esquema originalmente proposto por Depperman (2008): “a) ego muss
einem Gesprächsbeitrag konstruieren, der für alter vermutlich hinreichend verständlinch ist; b) alter muss
dokumentierem, wie alter ego verstanden hat; c) ego muss anzeigen, ob ego sich durch alter hinreichend verstanden
füht.”
83
produzida pelo falante [A], levando-se em conta o conhecimento partilhado entre os
participantes. A segunda operação é denominada registro de compreensão de “primeira ordem”
(erste position), visto que o interlocutor [B] assume a enunciação para documentar o seu
entendimento quanto à formulação anterior. Já a terceira operação é considerada como registro
de compreensão de “segunda ordem” (zweite position), em que o falante atesta se a
interpretação de [B] corresponde ou não ao esperado.
Clark (1992, p. 151; 1996, p. 330) caracteriza a primeira operação (a) como “fase de
apresentação” (presentation phase), na qual o falante apresenta um enunciado à consideração
de [B]. A segunda operação é denominada “fase de aceitação” (acceptance phase), em que [B]
aceita o enunciado de [A], dando evidências de que ele acredita entender o que foi dito por este.
Na terceira operação, o falante [A] avalia se a interpretação da operação anterior é apropriada.
É somente no conjunto de sua relação de dependência que essas duas fases vão
constituir uma contribuição discursiva, uma unidade enunciativa em condições de
promover a evolução coerente da interação em curso (HILGERT, 2011, p. 251, grifo
do autor).
A fim de dar evidência a essas duas fases, observemos o fragmento a seguir:
Excerto 8
A. você vai para a América?
B. sim
A. m
Fonte: Clark (1992, p. 160).
No excerto 8, observamos que [A], no primeiro turno, faz uma pergunta a [B]: “você
vai para a América?”, realizando, assim, a fase de apresentação. No turno seguinte, [B] acata o
enunciado de [A], respondendo prontamente “sim”. Temos aí, a primeira contribuição
discursiva. Ainda, podemos observar que [B], no segundo turno, inicia uma nova fase de
apresentação com a sua réplica “sim”. E [A], como detentor do turno seguinte, aceita a resposta
de [B], proferindo “m”. Constatamos, então, a segunda contribuição discursiva.
Esse processo proporcionou, sucintamente, uma operacionalização do conceito, que
pode ser visualizada na figura a seguir:
84
Figura 19 – Conversa como processo colaborativo
Fonte: elaborado pela autora (2020).
Sob essa perspectiva de construção conjunta e colaborativa da compreensão, é possível
dizer que as conversas não se processam por enunciado, mas sim por contribuição.
Observemos, a seguir, como a conversa se processa colaborativamente em uma
interação na rede social Twitter:
Excerto 9
Usuário A: “Tenho muito bom gosto pra crush e pra marido! Hahahaha” 05/06/2020, 21h51. Tuíte.
Usuário B: “eu tbm tenho gosto bom pra crush meu crush eh seu irmão” 05/06/2020, 21h55,
09/06/2020. Tuíte.
Usuário A: “Hahhahah tem mesmoooo” 05/06/2020, 21h55. Tuíte.
Usuário B: “ ” 05/06/2020, 22h. Tuíte.
Fonte: Twitter76.
Notamos, neste segmento, que as contribuições surgem, à medida que os participantes
as constroem como atos conjuntos e em colaboração. A função de cada declaração é
determinada retrospectivamente na conversa, ou seja, “cada intervenção por escrito é um turno,
cujo sentido depende inteiramente da relação com turnos anteriores e subsequentes, formando-
76 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1269069472066949121>. Acesso em 22 jun. 2020.
85
se um todo de sentido, o texto, somente na inter-relação de vários turnos” (HILGERT, 2000, p.
25).
Em relação ao excerto 9, constatamos que o usuário [A] produz, na fase de apresentação,
a seguinte declaração: “Tenho muito bom gosto pra crush e pra marido! Hahahaha”, que é
aceita pelo usuário [B], cuja réplica consiste praticamente na repetição do enunciado anterior:
“eu tbm tenho gosto bom pra crush”, acrescentando a informação de que seu crush (alguém por
quem esteja apaixonado) corresponde ao irmão de [A]. O segundo turno caracteriza-se também
como uma fase de apresentação, que é aceita pelo usuário [A], por meio da confirmação de que
[B] tem bom gosto ao escolher o irmão daquele como crush (“Hahhahah tem mesmoooo”).
Observamos, inclusive, que os nomes não foram citados por nenhum dos usuários, tendo em
vista que possuem um conhecimento mútuo acerca das pessoas sobre as quais estão
comentando: esposo e irmão de [A] respectivamente.
Acerca dessas considerações podemos dizer que ocorre, no primeiro turno, a
configuração de uma “produção enunciativa adequada” (optimal design), no âmbito de uma
“base comum” (common ground), presumida naquele momento em que se realiza a interação,
a qual levou o interlocutor [B] a realizar apropriadamente a fase de aceitação e, assim,
sucessivamente.
De modo geral, base comum representa “[...] a soma de conhecimentos, crenças e
suposições em comum”77 entre os parceiros comunicativos. Em outros termos, diz respeito ao
conhecimento partilhado (ou comum, de objetos e processos) que é, para Clark (1996, p. 327),
condição sine qua non para que a compreensão seja alcançada. O autor (1996, p. 332) enfatiza
ainda que a base comum entre duas pessoas é constituída por duas partes principais: (i) base
comum comunal (communal common ground), que “representa todos os conhecimentos,
crenças e suposições que eles consideram universalmente aceitas nas comunidades em que
ambos mutuamente acreditam pertencer”; (ii) base comum pessoal (personal common
ground), que “representa todos os conhecimentos, crenças e suposições pessoais que eles
inferem um em relação ao outro.”78
77 Tradução da autora para o trecho original: “[...] the sum of their mutual knowledge, mutual beliefs and mutual
suppositions at the moment.” 78 Tradução da autora para o trecho original: “The common ground [...] can be divided conceptually into two main
parts: communal common ground represents aIl the knowledge, beliefs, and assumptions they take to be
universally held in the commumties to which they mutually believe they both belong. Their personal common
ground represents all the mutual knowledge, beliefs, and assumptions they have inferred from personal experience
with each other.”
86
Diante disso, Hilgert (2011, p. 251, grifo do autor) argumenta:
Na verdade, a base comum envolve conhecimentos que se estruturam num continuum
que se estende do âmbito abrangente das comunidades culturais aos aspectos que
caracterizam a individualidade de cada interlocutor. Esse caráter de continuidade
revela-se também no fato de que o conhecimento comum da instância inicial da
conversa vai se acumulando com a evolução dela. Cada novo passo na construção
interativa dos sentidos amplia a base comum e solidifica a compreensão.
Em síntese, para contribuir discursivamente com a conversa, os participantes geralmente
fazem mais do que apenas produzir o conteúdo adequado no momento certo; eles coordenam,
num esforço colaborativo, em um tipo de ação conjunta, a fase de apresentação e aceitação de
seus enunciados para estabelecer, manter e confirmar o entendimento mútuo no decorrer da
conversação. Tal processo coletivo é denominado, por alguns linguistas (Clark e Brennan,
1991; Clark e Schaefer, 1989; Clark e Wilkes-Gibbs, 1990), de “embasamento” (grounding)79.
Clark e Brennan (1991) definem “critério de embasamento” (grounding criterium)80
como o grau de entendimento mútuo alcançado pelos participantes na conversa, ou melhor,
quando os interlocutores estabelecem um nível desejável de intercompreensão. Depperman e
Schmitt (2008, p. 222) esclarecem que, no desdobramento interacional, há “sinalizações” ou
“registros” (verstehensdokumentationen) que “levam o analista a inferir que os participantes,
numa conversa, alcançaram o entendimento e/ou chegaram a uma determinada compreensão.”81
No fragmento, a seguir, observemos o funcionamento desse critério de embasamento,
levando-se em conta o sistema de turnos e reparos proposto por Sacks, Schegloff, Jefferson
(1974; 1977) e Schegloff (1982), e as ações realizadas pelos interlocutores na busca pela
compreensão:
Excerto 10
Alan: Você e seu marido têm um carro?
Bárbara: têm um carro?
Alan: Sim.
Bárbara: Não.
Fonte: Clark e Brennan (1991, p. 129, grifo nosso).
79 Informamos que é de fato difícil encontrar um termo em português que abarque todas as ações da família do
ground e que seja ao mesmo tempo idiomático, de modo que embasamento aqui é apenas uma tentativa de solução.
Outras possibilidades a considerar seriam fundamentação ou certificação. 80 A proposta de tradução do termo grounding criterium como “critério de embasamento” é nossa. 81 Tradução da autora para o trecho original: “Als 'Verstehensdokumentationen' bezeichnen wir alle Aktivitäten,
mit denen Gesprächsteilnehmer Verstehen thematisieren oder anzeigen bzw. mit denen sie präsupponieren, dass
sie zu einem bestimmten Verständnis gelangt sind.”
87
No primeiro turno, Alan questiona se Bárbara e o esposo dela possuem um carro. No
segundo turno, Bárbara dá evidências de que não compreendeu bem a pergunta, ao repetir o
enunciado “têm um carro?”. No turno seguinte, ele confirma que essa foi realmente a pergunta
produzida por ele, ao responder “Sim” à sua interlocutora. Em seguida, no quarto turno, Bárbara
declara que ela e o esposo não possuem um carro. Alan acata a resposta dela como uma
evidência positiva, isto é, a certeza de que ela o tenha compreendido.
Ainda, nessa linha de condução, Clark e Brennan (1991, p. 131) argumentam que, ao
longo de uma conversação, os interlocutores estão atentos ao que chamamos de evidências de
compreensibilidade, exibidas publicamente pelos participantes. As evidências positivas
(positive evidence) indicam que fomos ouvidos e compreendidos e as negativas (negative
evidence) indicam que fomos indevidamente compreendidos e, por conseguinte, procuramos
agir, de modo a solucionar o problema. Esse processo pode exigir reparos, expansões e
substituições de parte ou da totalidade de uma determinada elocução. Tais mecanismos
mostram que a conversa oferece oportunidades sistemáticas para restabelecer a compreensão
mútua a todo momento.
De acordo com os autores (1991), as três formas mais comuns de evidência positiva
são: sinais de continuidade; lugar transicional relevante; sinais de atenção. Vejamos:
a) Sinais de continuidade (continuers): De acordo com Schegloff (1982, p. 82 apud
Clark e Brennan, 1991, p. 131), tal evidência consiste em sinais verbais (por exemplo, uhn, sim,
claro, realmente, de acordo etc.), isto é, intervenções breves que servem para indicar que o
interlocutor está acompanhando as palavras de seu parceiro conversacional.
Observemos como esses recursos (destacados em negrito) funcionam no segmento
interacional a seguir:
88
Excerto 11
L2 se você continuar com a analogia... inclusive se
[
L1 esse saneamento
L2 você pensar::...
[
L1 é o seguinte seria uma PARte... sei lá ou um governo ou
alguma coisa que imPÕE... alguma coisa
L2 uhn uhn
L1 ao que é subordinado na ciDAde...
[
L2 tá...
L1 ou seja... na hora que o indivíduo vai procurar... um::...
uma terapia o superego dele está levando o corpo dele...
para a terapia...
L2 sim tudo bem
Fonte: Projeto Nurc/SP, Inquérito 343, linhas 226-236.
Verificamos, nesse fragmento conversacional, que a própria noção de “continuidade”
(uhn uhn, tá) se relaciona diretamente à ideia de progressividade na interação, isto é, ao caráter
da conversa em andamento, em que o interlocutor concorda com as palavras do outro. Inclusive,
essa função de concordância é bem mais nítida no turno inserido “sim tudo bem”. É oportuno
dizer ainda que tais sinais de confirmação de entendimento são denominados por Clark e
Brennan (1991, p. 132) de back-channel responses.
b) Lugar transicional relevante (relevant next turn): Clark e Brennan (1991, p. 132)
asseveram que o lugar relevante para a transição do turno ocorre quando o ouvinte não tem
dificuldade para compreender que o enunciado da fase de apresentação está completo. É o
momento em que se configura a conclusão do turno e, por conseguinte, a alternância de falante.
Tal circunstância indica uma evidência positiva e ocorre, especialmente, em pares adjacentes,
por exemplo, a resposta a uma pergunta, a resposta a uma solicitação ou a aceitação de um
convite, conforme ilustrado neste segmento:
Excerto 12
A. Qual é a distância entre Huddersfield e Coventry?
B. Hum. Cerca de umas cem milhas.
Fonte: Clark e Schaefer (1989, p. 270).
Observamos, no excerto 12, que [B] fornece três tipos de evidências de entendimento:
89
i. [B] não solicita o reparo do enunciado de [A];
ii. [B] reconhece que [A] fez uma pergunta (primeira parte do par), dando-lhe uma resposta
(segunda parte do par);
iii. a resposta de [B] revela que ele compreendeu prontamente a elocução de [A], cuja
produção enunciativa se configura como adequada (optimal design).
Em suma, os participantes desenvolvem suas falas ao longo da conversa pela
identificação de onde elas estão potencialmente completas e, a partir daí, pela projeção do
término do turno de seus parceiros, tomam a palavra.
c) Sinais de atenção (continue attention): Clark e Brennan (1991, p. 133) argumentam
que, “[...] em uma conversação, as pessoas monitoram seus parceiros a todo momento”82. Para
Silva (2001, p. 132), o “monitoramento” se caracteriza como uma fiscalização que o
interlocutor exerce sobre seu parceiro, no sentido de direcionar e regulamentar a conversação,
por meio da emissão de determinados elementos, tais como né?; não é?; certo?; entendeu?.
Nessa direção, Castilho e Elias (2012, p. 34, grifo dos autores) explicam que certas
expressões interrogativas (sabe? viu? entendeu? compreendeu?) são utilizadas no
monitoramento da construção do texto, sem que haja a necessidade de a elas responder, a fim
de ver tão somente se o interlocutor “está ligado”, isto é, se está acompanhando a enunciação.
Outros sinais não-verbais como gestos, meneios de cabeça, levantar de sobrancelhas, sorrisos
etc. também contribuem para esse processo. Para os autores (2012, p. 34), essas expressões de
monitoramento são conhecidas normalmente como “marcadores textuais”.
Ainda, de acordo com Marcuschi (1989), o uso dos sinais de atenção supõe um
interlocutor ativo, pois tais elementos funcionam com alto grau de cooperatividade (agir dentro
dos pressupostos de entendimento mútuo) e colaboração (agir de acordo com a natureza das
demandas conversacionais), conforme se verifica no trecho a seguir:
82 Tradução da autora para o trecho original: “[...] in conversation people monitor what their partners are doing
moment by moment.”
90
Excerto 13
L1 acontece o seguinte... quando eu estudei éh::... tive que
... éh:: aprender uma série de métodos de... cálculo uma série de métodos de... cálculo
dimensionamento de pontes
L2 ahn
L1 agora vários desses... v rios desses métodos não não não
são mais necessários... não se aprende porque:: eles estão
suplantados né? você não precisa mais calcular o compu/
o computador calcula... e cada vez mais o computador
adquire... uma:: capacidade de calcular as coisas... não
é que ELE adquire ( ) já lançaram... computadores mais
aperfeiçoados certo?
L2 ahn ahn
L1 então eu peguei uma fase em que estava mais ou menos b
bom:: sei lá eu achei bom::... que eu aprendi bastan::te...
como fazer eu mesmo... e depois aprendi como fazer pelo
computador... então eu sabia dos dois jeitos né? como
eu teria que fazer...
L2 ahn ahn
Fonte: Projeto Nurc/SP, Inquérito 343, linhas 858-875.
Podemos observar, nesse segmento conversacional, a utilização das expressões certo?
(“já lançaram... computadores mais aperfeiçoados certo?”) e né? (“então eu sabia dos dois
jeitos né”?), sendo utilizadas por [L1] como sinais verbais que testam a atenção do interlocutor
[L2] e/ou buscam aprovação discursiva, em relação à conversa em andamento.
Dentre as evidências negativas de compreensão, destaca-se, por exemplo, o “pedido de
esclarecimentos” (request for clarifications). De acordo com Duncan (1974, p. 166), “tal pedido
é geralmente realizado em poucas palavras ou em uma sentença”83, em razão da falta de
entendimento de uma determinada proposição.
Observemos o segmento conversacional entre dois parceiros comunicativos
representados por [A] e [B], no fragmento a seguir:
83 Tradução da autora para o trecho original: “Such request were usually accomplished in a few words or a phrase.”
91
Excerto 14
A. É... Quanto Norman sai?
B. Perdão.
A. Quanto Norman sai?
B. Oh, apenas sexta e segunda-feira.
A. m.
Fonte: Clark e Schaefer (1989, p. 264).
Fixemo-nos no segmento em destaque. Nele, [A] faz uma pergunta a [B], referindo-se
a quantos dias da semana Norman sai (informação implícita no enunciado). No segundo turno,
antecipa-se um possível problema de compreensão, pois [B] aparentemente parece não ter
compreendido o enunciado, já que diz “Perdão”, indicando uma evidência negativa de
entendimento e levando [A] à repetição do enunciado “Quanto Norman sai?”. Desta vez, [B]
responde “Oh”, fornecendo ao seu interlocutor uma evidência positiva, visto que, em seguida,
responde “apenas sexta e segunda”. Se ele tivesse respondido “cerca de seiscentas libras por
mês”, poderia incidir em um mal-entendido. O “m” de [A], na sequência, e o próprio fato de
não terem colocado nenhuma objeção à formulação concluída, atestam que os participantes
alcançaram o entendimento mútuo, que emerge dessa ação colaborativa explícita e, ainda, que
a construção da compreensão é ação conjunta dos interlocutores.
Fechando essas considerações, Clark e Schaefer (1989) enfatizam que um dos objetivos
principais em uma conversação é atingir o critério de embasamento e, para isso, os
participantes não devem apenas reparar os problemas que encontrarem, mas tomar todas as
medidas preventivas necessárias para legitimar uma interpretação satisfatória no decorrer da
interação, tendo em vista alcançar a construção interativa da compreensão.
Diante do exposto, convém mencionar que os mecanismos de evidências da
compreensibilidade dependem da natureza do discurso em questão. Consideramos que, no
corpus estudado, algumas evidências positivas e negativas (por exemplo, elementos não-
verbais) não são passíveis de serem observadas, portanto, nossas análises devem permanecer
incompletas quanto a esses aspectos, já que “estão diretamente ligados ao fato de, na Internet,
a conversação se dar por escrito” (HILGERT, 2000, p. 29).
92
3.2 Sobre os problemas de compreensão
De acordo com Fiehler (2002), os parceiros comunicativos normalmente se empenham
em alcançar o entendimento mútuo. Para tanto, é indispensável uma observação cuidadosa, o
esforço mútuo e o trabalho colaborativo dos envolvidos no desdobramento conversacional, a
fim de chegar, na medida exigida, à compreensão. Contudo, o fato de não entender alguém ou
o de não ser entendido é inerente ao processo conversacional.
Assim, utilizando-se da fórmula descrita por Kindt (2002, p. 21), com base na qual
introduzimos o conceito de compreensão, “há um problema de compreensão quando a
formulação de P não é totalmente compreendida por R, resultando em y ≠ x”,84 facilmente
remediado no curso da interação. Ademais, dentre as razões centrais para o surgimento de
problemas de compreensão, podemos destacar: (i) aspectos linguístico-discursivos (por
exemplo, complexidade sintática; impropriedades lexicais etc.); (ii) conhecimento não
partilhado entre os interlocutores e (iii) diferentes pontos de vista acerca de determinado
assunto.
Nessa linha de condução, Fiehler (2002, p. 9) preconiza que, caso os problemas de
compreensão sejam notados ao longo da troca comunicativa, os interlocutores precisam
sinalizar a falta de entendimento, para fins de verificação, por meio de declarações como: “Não
o entendi corretamente. Acha mesmo que estamos equivocados quanto a esse ponto?”
Sob esse aspecto, o autor (2002, p. 9) esclarece:
Com base no conhecimento de que a comunicação é suscetível a turbulências de
interpretação, os interlocutores utilizam na conversa procedimentos profiláticos para
assegurar a ação comunicativa (formulação explícita, paráfrases etc.). Recorrendo a
esses procedimentos, procuram antecipar e evitar possíveis problemas e distúrbios de
compreensão.85
Observemos a utilização de um procedimento profilático no segmento interacional a
seguir:
84 Tradução da autora para o trecho original: “Ganz analog ergibt sich ein Verstehensproblem, wenn P's
Formulierung x 6 a regulär ist, zugleich aber a von R abweichend als y mit y ≠ x oder.” 85 Tradução da autora para o trecho original: “Aus dem Wissen um die Störanfälligkeit von Kommunikation heraus
setzen Gesprächsbeteiligte aber auch schon prophylaktisch Verfahren zur Sicherung der Verständigung ein
(explizites Formulieren, paraphrasieren etc.). Sie versuchen, mögliche Probleme und Störungen zu antizipieren
und durch die Anwendung dieser Verfahren zu vermeiden.”
93
Excerto 15
L1 é porque senão seria o seguinte a cidade pequena não
tem esses problemas... não é::? não dá para fazer analogia
criança adulto...
L2 como assim?...
L1 a criança tem uma psiquê o adulto tem outra psiquê
num num num estágios diferentes... de...
[
L2 uhn
Fonte: Projeto Nurc/SP, Inquérito 343, linhas 291-298.
Notamos, no excerto 15, que, em busca de uma comunicação bem-sucedida, o
participante [L2] intervém, no segundo turno, pedindo esclarecimento (“como assim?”). Essa
indagação foi realizada porque [L2] não entendeu o conteúdo da mensagem de seu parceiro
comunicativo [L1]. Fica evidente, nesse segmento, que os interlocutores realizam atividades de
verificação sistemática do próprio entendimento, ou seja, comportamentos preventivos, por
meio de solicitações indiretas e/ou pedidos diretos de repetições, reformulações ou
esclarecimentos etc., cuja função explícita e específica é anunciar um problema de
compreensão, dissipando as possibilidades de interpretação divergentes do que é esperado, no
desdobramento comunicativo.
Vejamos o que Hilgert (2005, p. 121) pontua em relação a esse tipo de interferência:
Uma vez identificado o problema, para que o tópico em desenvolvimento ou a
interação como um todo não corram o risco de interrupção, os interlocutores
desencadeiam, então, no desdobramento interacional, uma sequência especificamente
destinada a resolver o problema evidenciado, isto é, a buscar a intercompreensão.
Assim, o alcance da compreensão na conversa depende em grande parte da identificação
de situações problemáticas, da escolha de estratégias apropriadas e de sua aplicação, com êxito,
na resolução do problema. Inclusive, do ponto de vista interacional, predomina a seguinte
dinâmica organizacional das sequências que apresentam problemas de compreensão:
i. 1ª posição (turno 1): o falante formula seu enunciado;
ii. 2ª posição (turno 2): o ouvinte identifica um problema no enunciado do falante;
iii. 3ª posição (turno 3): o falante resolve o problema, reformulando em parte ou no todo o
seu enunciado. Solucionado o problema, a interação prossegue.
Ainda, para Kindt (2002, p. 22), a dinâmica expressa nessas condições revela que todo
problema de comunicação tem dois lados: positivo e negativo. O aspecto negativo diz respeito
94
ao “reconhecimento de um desvio” (Erkennbarkeit der Abweichung) na atividade
comunicativa, isto é, de um distúrbio na comunicação, indicando que a compreensão entre os
interlocutores ainda não foi alcançada. Quanto ao aspecto positivo, o autor (2002) admite que
o problema de compreensão se caracteriza como um estágio intermediário na construção da
compreensão, de maneira que oferece aos interlocutores a possibilidade de reconhecerem com
quais procedimentos comunicativos podem alcançar o entendimento mútuo e, em seguida, de
aplicar essas estratégias na resolução do problema, a fim de dar prosseguimento à interação.
Nessa linha de condução, Hilgert (2005, p. 136, grifo do autor) argumenta que
“sugerem-se assim dois polos na manifestação da compreensão no desdobramento interacional:
a compreensão e a não compreensão”. Entre esses extremos situa-se o problema de
compreensão, que desencadeia um processo interacional de busca da compreensão, ou seja, ele
é um fator de construção do sentido e desenvolvimento da conversa.
Diante do exposto, Fiehler (2002, p. 10) argumenta, inclusive, que só se pode falar em
problema de compreensão, se “[...] os interlocutores tiverem a intenção, o interesse e a vontade
de se compreenderem e, mesmo assim, a comunicação, em determinados pontos e certos
aspectos, pode não ser bem-sucedida.”86 Em outros termos, a conversação exige dos parceiros
uma observação cuidadosa, um trabalho colaborativo constante e um esforço alternado
imprescindível em favor de uma compreensão em constante risco.
Finalmente, importa mencionar que, para efeito deste estudo, abordaremos, na seção
seguinte, um tipo específico de problema de compreensão – o mal-entendido – objeto de nossa
investigação.
3.3 Sobre os mal-entendidos
No dizer de Weigand (1999, p. 769-770), o mal-entendido (ME) se caracteriza como
“[...] uma forma de entendimento parcial ou totalmente divergente do que o enunciador
tencionou comunicar e que poderá ser corrigida normalmente no desenvolvimento do jogo de
86 Tradução da autora para o trecho original: “[...] die Gesprächspartner beide die Absicht, das Interesse und den
Willen zur Verständigung haben, die Kommunikation aber (an bestimmten Stellen und in bestimmten Aspekten)
dennoch nicht gelingt.”
95
ação dialógica”.87 A autora (Ibid., p. 769) permite caracterizar, em particular, esse tipo de
ocorrência como “caso estereotípico” (standard case)88 entre os problemas de compreensão, o
qual apresenta predominantemente o seguinte padrão conversacional, principalmente, em
situações de interação face a face: (i) turno 1 – o falante [A] formula seu enunciado; (ii) turno
2 – o ouvinte [B] apresenta seu entendimento acerca do enunciado produzido por [A]; (iii)
turno 3 – o falante [A] denuncia o mal-entendido, ao afirmar que a resposta de [B] não está de
acordo com o que ele [A] tencionou comunicar, reformulando o turno fonte do problema,
dando-lhe uma contextualização mais precisa, a fim de que o equívoco de compreensão seja
resolvido e a sequência interacional possa prosseguir.89
Em seu artigo, Weigand (1999) argumenta que a ocorrência do “caso estereotípico” de
ME pressupõe a comunicação entre membros de um mesmo mundo cultural, isto é, não estão
incluídos nessa categoria, por exemplo, mal-entendidos ocorridos em conversas entre falantes
de diferentes idiomas ou entre falantes nativos e não nativos, como também mal-entendidos
deliberadamente planejados pelo falante.
Observemos a ocorrência de um “caso estereotípico” de mal-entendido no fragmento a
seguir:
Excerto 16
A: Harry é um ótimo jogador de xadrez.
B: Jerry é um ótimo jogador, eu sei...
A: Desculpe, eu disse Harry.
Fonte: Weigand (1999, p. 774 – adaptado).
Conforme verificamos, no primeiro turno, o participante [A] apresenta seu enunciado.
O interlocutor [B], detentor do segundo turno, não consegue interpretar adequadamente o
enunciado produzido por [A], fato que decorre num caso estereotípico de mal-entendido, o
qual é, em seguida, denunciado explicitamente por [A]: “Desculpe, eu disse Harry”. Ou seja, a
87 Tradução da autora para o trecho original: “[...] a form of understanding which is partially or totally deviant
from what the speaker intended to communicate. Misunderstanding will normally be corrected in the course of the
ongoing dialogic action game.” 88 Weigand (1999, p. 768) permite caracterizar, em particular, o mal-entendido como “standard case”, traduzido
por Dascal (2006, p. 315) como “exemplo-padrão” e apresentado, por Hilgert (2005, p. 141), como “caso
standard”. Sugerimos, neste trabalho, a expressão “caso estereotípico”. Ainda, importa mencionar que, nesta
pesquisa, nosso interesse recai sobre os estereotípicos, pelo fato de que são revelados na superfície linguística e,
de alguma forma, podem ser gerenciados e interacionalmente resolvidos. 89 Ao predomínio desse padrão também fazem referência Dascal (1999, p. 754) e Bazzanella e Damiano (1999, p.
828).
96
ocorrência desse equívoco de compreensão se dá exatamente quando o ouvinte concebe uma
interpretação para algum turno, a qual considera coerente do seu ponto de vista, mas que não é
a pretendida pelo falante.
Nessa direção, Weigand (1999) argumenta que o mal-entendido é definido por algumas
características constitutivas, tais como:
i. O entendimento do interlocutor é parcial ou totalmente desviante do que o falante
pretendia comunicar;
ii. o interlocutor que entendeu mal não tem conhecimento disso;
iii. o mal-entendido pode ser corrigido na conversa em andamento.
Relacionando essas observações acerca do ME ao princípio de contribuição discursiva,
apresentamos, simplificadamente, o ciclo de negociação e/ou administração do fenômeno, no
quadro que segue:
Quadro 1 – Ciclo de negociação do mal-entendido
Fase de Apresentação Fase de Aceitação
Falante: produz x (enunciado) Ouvinte: aceita x e produz y = ME
Ouvinte: apresenta y = ME Falante: não aceita y e produz z = reparo
Falante: apresenta z = reparo Ouvinte: aceita z → intercompreensão
Ouvinte: não aceita z → ruptura/abandono
comunicacional
Fonte: elaborado pela autora (2020).
É, portanto, por meio do desdobramento de determinações mútuas que os interlocutores,
na medida em que vão produzindo enunciados, aceitando-os ou não, reajustando-os,
especificando sentidos, vão construindo a compreensão entre si. Desse modo, o ME não deve
ser visto como um processo polar (ausência/ presença de compreensão), mas sim como um
continuum. De acordo com Bazzanella e Damiano (1999), constitui-se em uma fase do processo
de construção da compreensão, ou, no dizer de Kindt (2002), pode significar um estágio
intermediário na construção da compreensão. Para Bousquet (1996, p. 2), esse fenômeno se
situa entre os polos da incompreensão e compreensão e “[...] se distingue da simples
incompreensão pela ocorrência de interpretações divergentes que causam um atraso na
negociação do sentido.”90
90 Tradução da autora para o trecho original: “En fait, le malentendu se distingue de la simple incompréhension
par l’existence d’interprétations divergentes qui provoquent le report dans le temps de la négociation du sens.”
97
Diante dessas considerações, Hilgert (2005, p. 150) enfatiza que “a compreensão é,
portanto, um vir a ser, uma busca incessante no processo de construção e de negociação de
sentidos e propósitos na comunicação”. E [...] os mal-entendidos são elementos constitutivos
dessa busca, pois o falante, ao denunciar o equívoco de compreensão, procura, em turno
específico, resolver o problema, recorrendo, por exemplo, à reformulação do que foi dito, com
o intuito de se fazer compreender pelo ouvinte, a fim de prosseguir na abordagem do tópico em
pauta na comunicação.
Ainda, nessa linha de condução, o autor (2003, p. 230-231), ao analisar um corpus
constituído de três inquéritos DID (Diálogos entre informante e documentador) do Projeto
NURC/RS, apresenta uma estrutura interacional padrão relativa ao processo de monitoramento
dos problemas de compreensão, entre eles, os mal-entendidos, conforme segue:
i. Denomina-se “enunciado de referência” o primeiro turno (T1), no qual o falante formula
o seu enunciado.
ii. O “enunciado revelador do problema de compreensão” é, em geral, o segundo da
sequência monitorada, no qual se manifesta o problema de compreensão. Essa
manifestação ocorre por meio de um marcador de problema (ver excerto 14) ou por uma
hipótese de compreensão (uma interpretação a ser ou não confirmada pelo interlocutor)
ou por ambos. É oportuno dizer que Hilgert (2003, p. 231, grifo do autor) chama a
atenção para o fato de que: “A hipótese de compreensão feita por um falante sobre o
enunciado de seu interlocutor e considerada equivocada por este constitui uma das
formas de mal-entendido.”
iii. No terceiro turno, o falante resolve o problema, reformulando o enunciado de referência
no todo ou em parte.
Cabe ressaltar que pode aparecer, comumente, um turno de quarta posição que encerra
a sequência interacional centrada no monitoramento do problema.
Vejamos, a seguir, o fragmento de um inquérito (DID), extraído do Projeto NURC/RS,
que ilustra o ciclo de negociação de um ME (revelado por meio de hipótese de compreensão),
cuja interação se dá em quatro turnos:
98
Excerto 17
Doc. e os cardíacos?... [Antes Doc. havia feito a seguinte pergunta: “quais são os problemas
respiratórios mais comuns?]
Inf. relacionados com problema respiratório?
Doc. não... os cardíacos mais comuns...
Inf. problemas cardíacos? olha isso eu não:: não vou falar porque... eu não entendo... de
cardiologia... nunca ouvi falar muito de problemas disso... lesões...
Fonte: Hilgert (2003, p. 233).
No excerto 17, observamos que o documentador faz uma pergunta no primeiro turno.
No turno seguinte, o informante lança a hipótese (“relacionados com problema respiratório?”)
de que a presente pergunta do interlocutor esteja no contexto da compreensão da pergunta
anterior. No terceiro turno, o documentador nega essa hipótese e redefine o sentido da pergunta,
reformulando-a (“não... os cardíacos mais comuns...”) e, no turno em quarta posição, o
informante declara não ter conhecimento acerca de problemas cardíacos e, por essa razão,
prefere não comentar.
Concordamos com Hilgert (2005) de que essa defasagem interpretativa consiste em uma
das formas de mal-entendido, contudo não de um “caso estereotípico”, visto que o informante
reage sob condições de incerteza, ou melhor, ele tem consciência de que manifesta uma
possibilidade de entendimento, submetida à consideração do interlocutor. Weigand (1999, p.
774) considera tal ocorrência como um “subtipo do caso padrão de mal-entendido” (subtype of
our standard case of misunderstanding).
Vejamos como esse tipo de evento difere da seguinte situação: V, uma terapeuta de
dança, estrangeira (procedente de Israel), chega para uma sessão de terapia de grupo em um
hospital psiquiátrico em Berkeley, como observadora. Ela não é apresentada pelo terapeuta que
está dirigindo a sessão. Após algum tempo de participação se desenvolve a conversa entre [V]
e um dos pacientes [P]:
Excerto 18
[...]
P: Quanto tempo vai ficar aqui?
V: Mais uns dois meses.
P: Ah... /entonação crescente expressando ‘compreensão solidária e pena’/. Eu vou ficar aqui só duas
semanas.
V: Ah, não! Estou aqui só para esta sessão.
Fonte: Dascal (2006, p. 329, grifo do autor).
99
O mal-entendido desse exemplo está centrado no termo aqui. A terapeuta [V], ao
responder à elocução do paciente (“Mais uns dois meses”), tem certeza de que ele está se
referindo aos Estados Unidos (ou Berkeley) em sua pergunta (“Quanto tempo vai ficar aqui?”).
Ela só toma consciência de que fez uma interpretação equivocada, ao perceber que [P] se refere
ao cenário do “internamento”, no qual o período de internação equivale à gravidade da doença.
Logo após, corrige a sua fala, informando que estava ali somente para aquela sessão de terapia.
Para Weigand (1999), tal exemplo ilustra o “caso estereotípico” (standard case) de mal-
entendido, visto que o interlocutor não tem ciência de que tenha feito uma interpretação
equivocada. Ele acredita que sua compreensão é pertinente e adequada e só toma conhecimento
da divergência interpretativa, a partir da sinalização e/ou denúncia do falante.
Wróblewsky (1983, p. 72 apud Dascal, 2006, p. 343), baseado numa concepção
pragmática (no Direito), distingue o termo “interpretação” em dois significados principais: lato-
sensu [interpretação-L] e stricto sensu [interpretação-S]. Para o autor, a interpretação-L
corresponde à compreensão direta e a interpretação-S à compreensão duvidosa em dada
situação comunicativa. Aproveitamos essa sugestão, alterando, entretanto, o que se considera
sentido lato e sentido estrito.
Assim, serão considerados mal-entendidos, em sentido lato [ME-L], aqueles que
apresentam uma hipótese de compreensão, ou melhor, uma “interpretação hipotética”,
duvidosa, submetida à consideração do interlocutor (por exemplo, excerto 17). Em sentido
estrito [ME-S], os “casos estereotípicos” de mal-entendido, que correspondem a toda
interpretação considerada “correta, apropriada”, entretanto equivocada e somente percebida
como tal depois de manifesta, devido à sinalização e/ou denúncia do parceiro comunicativo
(por exemplo, excerto 18).
Ainda, é oportuno mencionar que, a partir daqui, passaremos a adotar, a expressão
“interpretação ilusória”, para enfocar exclusivamente os ME-S, ou seja, casos em que o
entendimento seja “coerente” do ponto de vista do ouvinte, entretanto não compatível aos
propósitos comunicativos do falante. Essa concepção também encontra reforço no dizer de
Dätwyler (2016, p. 17): “A ilusão de entender o enunciado formulado pelo parceiro
comunicativo é fundamental para a criação do mal-entendido.”91
91 Tradução da autora para o trecho original: “L’illusion d’avoir compris l’énoncé du partenaire de communication
est fondamentale dans la création du malentendu.”
100
Nessa direção, propomos as seguintes definições dos elementos que integram,
normalmente, a sequência conversacional no ciclo de negociação do mal-entendido em
sentido estrito:
i. 1ª posição – turno de origem do ME-S: enunciado de referência, que
corresponde à proposição inicial do falante.
ii. 2ª posição – turno de ocorrência do ME-S: enunciado revelador do problema,
no qual se manifesta uma “interpretação ilusória”.
iii. 3ª posição – turno de reparo do ME-S: enunciado sinalizador (que aponta o
problema) e/ou enunciado reformulador (que tenta resolver o problema).
iv. 4ª posição – turno de feedback: enunciado-resposta, em que o ouvinte, na fase
de negociação da produção de sentido, aceita o turno de reparo.
Observemos as interações (19) e (20), extraídas da rede social Twitter, que
exemplificam tal padrão de monitoramento do ME-S, finalizadas em terceira e quarta posição
respectivamente:
Excerto 19
Usuário A: “Enxerga a situação do Brasil, cara. Enquanto tem gente morrendo a rodo, eles estão
preocupados com volta do futebol. Se você não consegue enxergar a gravidade disso, sinto muito”
18/06/2020, 23h41. Tuíte.
Usuário B: “Quem tem q se preocupar com a saúde é o presidente, sec de saúde... Ministros Não o
Gabigol, arrascaeta, eles só estão trabalhando, como eu e vc. E contribuindo com as pessoas q ficam
em casa na quarentena e poder se distrair um pouco. Futebol é um bem sim. Psicologicamente.”
18/06/2020, 23h50. Tuíte.
Usuário A: “Quando eu me referi a pessoas estarem preocupadas apenas com a volta do futebol, eu
não me referi aos jogadores porque isso não cabe a eles decidirem. Me referi aos verdadeiros
responsáveis por pensarem apenas no próprio bolso” 19/06/2020, 3h06. Tuíte.
Usuário A: “Esses caras estão pouco se importando com a saúde dos envolvidos na partida e com o
risco de contribuírem na transmissão da doença, só querem saber do dinheiro que eles não podem
perder” 19/06/2020, 3h06. Tuíte.
Fonte: Twitter.92
Quanto à estrutura organizacional, constatamos, no excerto 19, que o usuário [A] produz
um enunciado de referência, no qual comenta acerca da preocupação de alguns indivíduos
(“eles”) com o retorno dos jogos futebolísticos no Brasil, durante o período de pandemia da
Covid, no ano de 2020. Em segunda posição, o usuário [B] explicita a sua interpretação do
92 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1273810456130588675>. Acesso em: 22 jun. 2020.
101
enunciado de [A], afirmando que os cuidados das questões de saúde caberiam ao presidente,
secretário da saúde, ministros e não aos jogadores de futebol (enunciado revelador do problema,
decorrente de uma interpretação ilusória). Em terceira posição, turno de reparo, [A] denuncia
explicitamente que o usuário [B] interpretou equivocadamente o enunciado, afirmando que sua
crítica não foi dirigida aos jogadores de futebol (“Quando eu me referi a pessoas [...], eu não
me referi aos jogadores”), e sim aos verdadeiros responsáveis (possível referência aos dirigentes
de clubes). No tuíte seguinte,93 o usuário [A] ainda argumenta que estes não estão se importando
com a saúde dos jogadores e, consequentemente, com a transmissão da doença, mas com o lucro
financeiro alcançado por meio das partidas de futebol. Ainda, no que concerne à análise do
excerto 19, cabe enfatizar que essa interação não apresenta enunciado-resposta.
Excerto 20
Usuário A: “Talvez seja tarde para salvar livrarias e jornais impressos, assim como é tarde pra
ressuscitar a indústria fonográfica e as lojas de discos. Quanto mais cedo aceitarmos e entendermos a
mudança, mais cedo colonizaremos esse território digital com informação de qualidade.” 03/11/2018,
10h47. Tuíte.
Usuário B: “Eu não consigo... tentei ir pra essa mundo digital, mas nada substitui o cheiro e o contato
com as páginas de um livro. Dói em mim ver livrarias fechando.” 03/11/2018, 13h59. Tuíte.
Usuário A: “Não me refiro só a e-books e e-readers. Me refiro a repensar a maneira e os canais para
divulgar ciência e notícias. Os portais dos grandes jornais são pagos. Enquanto isso, a massa se
‘informa’ com notícias falsas no WhatsApp que é gratuito.” 03/11/2018, 18h18. Tuíte.
Usuário B: “É verdade. Acho mesmo que deveria ser repensado o sistema de leitura dos sites de
notícias.” 03/11/2018, 18h54. Tuíte.
Fonte: Twitter.94
Façamos, agora, uma breve análise do excerto 20: em um primeiro momento,
observamos que a interação não ocorre totalmente de modo síncrono, no entanto os tuítes
publicados ficam disponíveis na rede, permitindo que as trocas comunicativas possam
acontecer a qualquer momento. Em segundo lugar, notamos que o tema tratado na interação em
curso corresponde ao fechamento de livrarias e jornais impressos determinado pelo domínio de
similares digitais. Assim, a melhor saída seria aceitar o fato, a fim de suprir o território digital
com informação de qualidade. Na segunda posição, o usuário [B] lamenta o fechamento de
livrarias e confessa a sua não adaptação ao mundo digital. No turno seguinte, [A] declara, por
meio do enunciado sinalizador, que sua intervenção não se limitava a “e-books ou a e-readers”
93 O turno do usuário [A] foi dividido em dois tuítes, devido à extensão de seu enunciado. 94 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1058717308020031488>. Acesso em 05 nov. 2018.
102
e, em seguida, esclarece: “Me refiro a repensar a maneira e os canais para divulgar ciência e
notícias [...]”. Fica denunciado dessa forma que o usuário [B] só captou um aspecto do
enunciado de referência, quando, então, incorreu no mal-entendido. Finalmente, na quarta
posição, a subsequente resposta do usuário B (“É verdade.”) dá mostras de que ele de alguma
forma aceita a denúncia e o procedimento reformulador, indicando que o equívoco
interpretativo foi resolvido.
Esses excertos ilustram igualmente o fato de que o mal-entendido é “uma defasagem
entre o sentido codificado pelo locutor (sentindo intencional, que o emissor deseja transmitir
ao destinatário) e o sentido decodificado pelo receptor” (KERBRAT-ORECCHIONI, 2005, p.
62, grifo da autora). Enfim, são segmentos interacionais dessa natureza que elegemos como
objeto de investigação deste trabalho. Cabe agora uma breve abordagem dos níveis e fatores
que desencadeiam os mal-entendidos nas interações.
3.3.1 Origem do mal-entendido
De acordo com Koch (2009), mal-entendidos, conflitos e situações que desencadeiam
incompreensão mútua são inevitáveis na interação. Para restabelecer o consenso, torna-se
preciso que as dificuldades sejam identificadas e atribuídas a possíveis causas.
No que diz respeito às causas que desencadeiam o mal-entendido nas interações,
consideremos o seguinte excerto:
Excerto 21
A: O que você está fazendo?
B: Como assim, o que “eu estou fazendo”?
A: Você é muito gentil, “alimentando os pássaros!”
B: Eu não estou alimentando os pássaros, estou envenenando os bastardos! Isso vai ensiná-los a
não me acordar às 4 da manhã!!
Fonte: Yus (1999, p. 235).
Verificamos, no excerto 21, que o falante [A] faz uma interpretação equivocada ao
considerar que [B] estava alimentando pássaros. O interlocutor [B] imediatamente produz um
enunciado sinalizador, denunciando o mal-entendido, ao afirmar que não estava oferecendo
alimento aos pássaros e procura reparar o problema, ao anunciar que estava, na verdade,
103
envenenando os animais, em razão de acordá-lo às 4 horas da manhã. No caso, constatamos que
ocorre um mal-entendido de ordem pragmática (leitura/interpretação incorreta de um aspecto
do contexto), linguisticamente marcado no texto.
Bazzanella e Damiano (1999, p. 818-21), empregando um corpus de conversações
naturais do italiano falado e baseando-se, sobretudo, na teoria etnometodológica da conversa,
fornecem uma útil classificação das principais causas de ocorrência do mal-entendido,
relacionando-as a duas dimensões:
i. o “nível” (level) em que o fenômeno pode ocorrer: fonético (phonetic); sintático
(syntactic); lexical (lexical); semântico (semantic); pragmático (pragmatic).
ii. Os “fatores” (triggers) que o desencadeiam, tais como:
a) “estruturais” (structural triggers): distúrbios junto ao canal comunicativo,
ambiguidades lexicais ou sintáticas, distúrbios causados pelo uso de uma língua
estrangeira;
b) “relacionados ao falante” (triggers related to the speaker): problemas quanto à prosódia,
atos de fala indiretos, indeterminação, anacoluto, entre outros;
c) “relacionados ao interlocutor” (triggers related to the interlocutor): lacunas no
conhecimento enciclopédico, construção de falsas inferências etc.;
d) “relacionados à interação entre os participantes” (triggers related to the interaction
between the participants): diferenças culturais, diferenças entre os estilos
comunicativos, conhecimentos não compartilhados, tópico de organização, entre outros.
As autoras (1999) enfatizam ainda que alguns níveis e fatores podem convergir em um
certo momento da interação verbal, tornando o processo de negociação do mal-entendido mais
acentuado e difícil, o que implica esforço mútuo e cooperação discursiva entre os parceiros da
comunicação para a solução do conflito.
Ainda, para Dascal (2006, p. 326), o mal-entendido pode ocorrer em diferentes
“camadas de significância”, embora na maioria dos casos mais de uma camada é atingida. Entre
elas, podemos citar: grafêmica (no caso desta pesquisa, corresponde ao mal digitar), sintática,
semântica-lexical, pragmática, argumentativa.
Tomando por base o fragmento conversacional exemplificado no excerto 19, podemos
observar que o mal-entendido foi provocado porque o usuário [A] não apresentou o referente
de “eles”: “Enquanto tem gente morrendo a rodo, eles estão preocupados com volta do futebol”.
104
Se efetivamente esse referente não foi definido anteriormente na interação, o equívoco do
usuário [B] se justifica, bem como poderia ter sido usado como argumento para sustentar sua
leitura.
Nessa direção, é possível dizer que a ocorrência dos mal-entendidos em interações
(predominantemente escritas) na rede, pode ser motivada por diversos aspectos. Dentre eles,
destacam-se: a) problemas de ordem lexical: incorreção lexical ou referencial; b) de ordem
semântica: insuficiência de informação no enunciado, incompreensão dos elementos
constituintes da sentença; b) de ordem pragmática: uso inadequado de dêiticos, leitura incorreta
de aspectos do contexto; c) de ordem sintática: casos de sentenças que permanecem
sintaticamente ambíguas (frases de duplo sentido), indefinição tópica, coesão referencial, entre
outros. Claramente, tais parâmetros de classificação permitem alguma flexibilidade, de modo
que não estão estritamente posicionados em uma única categoria.
Hilgert (2005, p. 142), ao analisar inquéritos entre informante e documentador, do
arquivo sonoro do Projeto NURC/POA, destaca três fatores que merecem destaque, por sua
ocorrência mais frequente no monitoramento dos mal-entendidos. São eles: (i) “indefinição
tópica”, (ii) “ambiguidade lexical, traduzida em termos e expressões capazes de assumir
sentidos diferentes num mesmo contexto”; (iii) “complexidade sintático-lexical, identificada,
por exemplo, em enunciados demasiadamente longos”.
Convém enfatizar que cada estudo específico vai identificar outras fontes
desencadeadoras de mal-entendidos pelo simples fato de eles serem tão imprevisíveis quanto
os motivos que nos impelem a negociar sentidos no desdobramento das interações, em nossas
práticas sociais (HILGERT; ANDRADE, 2020).
Ainda, importa mencionar que, “por mais imperscrutáveis que sejam as razões dos
problemas de compreensão, eles se manifestam concretamente, na interação linguística, na
palavra, isto é, na verbalização do texto” (HILGERT, 2005, p. 120). Portanto, filiados à
abordagem teórico-metodológica e aos objetivos desta pesquisa, nosso foco recai em verificar
como o mal-entendido ocorre e é gerenciado linguisticamente no desdobramento
conversacional.
Enfim, quaisquer que sejam as razões, o mal-entendido somente se revela quando, no
decurso da interação, o enunciador sinaliza, por meio de intervenção explícita, que a
interpretação do ouvinte é divergente, ou seja, não satisfaz à expectativa esperada por ele
(falante). E por reconhecer que o desdobramento da ação comunicativa está sujeito a toda ordem
105
de turbulências de interpretação e compreensão, o falante recorre, por exemplo, a
procedimentos de reformulação, destinados a resolver o problema evidenciado, procurando
dar prosseguimento à interação.
3.3.2 Atividades de reformulação
Quanto aos procedimentos de monitoramento do mal-entendido linguístico, daremos
ênfase às atividades de reformulação, por meio das quais o interlocutor retoma um segmento
textual a fim de dar-lhe nova formulação, com o intuito de resolver algum desvio interpretativo.
Koch (2009, p. 120) caracteriza tais atividades como “estratégias metaformulativas”. Dentre
elas, destacamos as correções, repetições saneadoras e paráfrases.
Para Gülich e Kotschi (1995, p. 34-9), essas estratégias, ativadas frequentemente no
desdobramento interacional, são caracterizadas como “procedimentos de tratamento”
(treatment procedures), cuja característica é a referência a um segmento anterior por meio de
um novo enunciado que, de alguma forma, muda, modifica, reformula ou expande essa
expressão anteriormente produzida, denominada, pelos autores, “enunciado de referência”
(reference expression). Em outras palavras, por meio desses procedimentos (ou métodos,
conforme estudos etnometodológicos), o falante delimita um segmento anterior da conversa (ou
fonte do problema, termo utilizado pelos analistas da conversa), “trabalha nele” (working on it)
ou o “trata” (treating it), de modo a produzir o “enunciado de tratamento”95 (the treating
expression). Tais procedimentos têm função metalinguística retrospectiva e são nomeados
“reformulações” (reformulations).
Os autores (1995, p. 42, grifo dos autores) ainda preconizam que “[...] todo enunciado
de tratamento contém algo novo, um elemento de mudança, de ‘progressão’ comunicativa.
Como uma regra, algum tipo de ‘variação’ é pelo menos sugerido”96, ou seja, não há repetição
“pura”, sem qualquer “acréscimo” de características semânticas. Mesmo em casos de identidade
lexical e semântica entre as expressões referenciais e de tratamento, ou seja, mesmo nos casos
de “repetição”, o segmento repetido pode receber um significado diferente por algum tipo de
desvio entonacional.
95 Neste trabalho, caracterizamos o “enunciado de tratamento” como “enunciado reformulador”. 96 Tradução da autora para o trecho original: “[...] every treating expression contains something new, an element
of change, of communicative “progression”. As a rule, some kind of “variation” is at least suggested.”
106
Para Barros (2001, p. 137, grifo da autora), tais atividades de reformulação textual “têm
por objetivo levar o interlocutor a reconhecer a intenção do locutor, ou seja, procuram garantir
a intercompreensão na conversação ou em qualquer outro tipo de texto”. Inclusive, “resultam
do trabalho de cooperação dos participantes da conversação” (Id., 2006, p. 48).
Em síntese, dentre as principais atividades de reformulação, temos:
(i) Correção: está relacionada à produção de um enunciado linguístico que reformula
um anterior, considerado errado aos olhos de um dos interlocutores. “A correção é, assim, um
claro processo de reformulação retrospectiva” (FÁVERO et al., 2015, p. 243) e decorre da
necessidade de o locutor solucionar dificuldades de interpretação no segmento anteriormente
produzido.
De acordo com Barros (2001, p. 136):
A correção é, assim, um procedimento de reelaboração do discurso que visa a
consertar seus “erros”. O “erro” deve ser entendido como uma escolha do falante –
lexical, sintática, prosódica, de organização textual ou conversacional – já posta no
discurso e que, por razões diversas, ele e/ou seu interlocutor consideram inadequada.
Nessa direção, a autora (2001), ao examinar o procedimento da correção em texto
extraído do material do projeto NURC/SP, verifica que há entre o enunciado a ser reformulado
e o enunciado reformulador uma relação de contraste, ou seja, há traços semânticos opostos ou
contrários que distinguem o elemento corrigido de seu corretor. São eles: definição,
determinação, especificidade vs indefinição, indeterminação, generalidade.
No decorrer desse trabalho, Barros (2001) observa também que os mecanismos de
correção são empregados para sanar, normalmente, erros fonéticos-fonológicos (de pronúncia,
por exemplo) ou morfossintáticos (erros de gramática normativa, entre outros). Aplicam-se
ainda a erros semântico-pragmáticos, que devem ser entendidos tanto como impropriedades
informativas (resolvidas por meio de novas escolhas lexicais) quanto como imprecisões nas
expressões de sentimentos e opiniões dos interlocutores. Inclusive, a grande frequência de
correções semântico-pragmáticas reforça a ideia de que a intercompreensão é o objetivo
fundamental da atividade de correção, seja a compreensão de conteúdos informativos, seja a
compreensão de intenções do falante.
A autora (2001) ainda pontua que as correções têm, de modo geral, objetivos
interacionais, ou seja, os interlocutores, ao se utilizarem de tal procedimento, mostram-se
atentos e interessados no bom desenvolvimento da conversa e, por conseguinte, no
estabelecimento de laços intersubjetivos ou emocionais.
107
Nesse sentido, Fávero et al. (1999, p. 71) argumentam que “as correções apresentam a
função geral de caráter interacional, no que diz respeito à busca de cooperação,
intercompreensão, e ao estabelecimento de relações que envolvem os interlocutores.”
Um exemplo de correção encontra-se no excerto 16 deste trabalho, em que o falante, no
primeiro turno, comenta o fato de Harry ser um ótimo jogador de xadrez. O ouvinte, detentor
do segundo turno, entende que o falante fazia referência a Jerry. No turno seguinte, o falante
denuncia o equívoco interpretativo, por meio de uma marca verbal lexicalizada, utilizada na
atividade de correção (“Desculpe”), em que se introduz o elemento corrigido (“eu disse
Harry”).
As palavras de Barros (2001, p. 139) vêm reforçar essa concepção:
[...] a correção deve ser entendida como um procedimento de reelaboração do
discurso, com o fim de torná-lo mais “correto” ou “adequado”, segundo o ponto de
vista de um ou ambos os participantes do diálogo, para, dessa forma, levar o
interlocutor a reconhecer a intenção do falante e garantir a intercompreensão na
conversação. Em outros termos, tornar o discurso mais “correto” é um meio para
assegurar a compreensão no diálogo.
Neste ponto, é oportuno dizer que, no excerto 16, a denúncia feita pelo locutor [A], na
posição três, apresenta-se de modo atenuado, para evitar, por exemplo, que a imagem social do
interlocutor [B] seja posta em risco. Entretanto, a denúncia de um mal-entendido pode ser
explícita e, até mesmo, ríspida e deselegante, quando não ofensiva. De modo geral, estas vêm
acompanhadas da explicitação do equívoco, comuns em contextos em que os interlocutores
defendem publicamente suas posições em relação a um tema em foco.
Ainda, no que diz respeito às correções, Barros (2001), ao analisar uma crônica
dialogada de Drummond, observa que, na escrita, elas são poucas ou nem aparecem, uma vez
que é possível reelaborar o texto sem deixar marcas, já que elaboração e produção ocorrem em
momentos distintos. Já na fala isso não acontece, pois elaboração e produção coincidem no eixo
temporal. Em consequência, as reelaborações que se fizerem necessárias deixarão marcas no
texto, oferecendo sempre pistas, traços de revisões, de reformulações, das mudanças de
encaminhamento, sob a forma, entre outras, de correções.
Dentro dessa perspectiva, Hilgert (2000), ao examinar interações em chats, argumenta
que a correção não tende a se manifestar em bate-papos na internet, visto que essa atividade –
cuja função é anular, total ou parcialmente, o anteriormente dito – pode ser realizada por meio
do computador, isto é, pelo efetivo apagamento da formulação escrita, salvo em casos em que
108
a correção será feita por um usuário, por alguma razão, num turno futuro dele (autocorreção)
ou de outro participante (heterocorreção), quando, então, o procedimento se tornará explícito.
Inclusive, um aspecto importante a ser destacado é que, nos casos de autocorreção, os usuários
desenvolveram a prática de utilizar o asterisco (*), sinal evidente e próprio da correção de algum
termo ou expressão no ambiente virtual.
Por último, cabe enfatizar que, para Barros (2001, p. 139), há dois tipos de correção: a
reparação, entendida como a correção de uma infração às regras conversacionais e a correção
propriamente dita, que diz respeito a um ato de reformulação, cujo objetivo, ao consertar
“erros” e inadequações, é assegurar a intercompreensão na conversa.
Partimos do pressuposto que os procedimentos de reparação são próprios da
conversação face a face, situação em que os parceiros comunicativos estão presencialmente
juntos e suscetíveis a cometer infrações no sistema de tomada de turnos, dominando e
desequilibrando, por vezes, a interação. Essas falhas e desobediências às regras da conversação
são, então, reparadas pelo próprio falante (autorreparação) ou pelo interlocutor
(heterorreparação), por meio de reparações diretas (por exemplo: algo como “era eu quem
estava com a palavra”) ou indiretas (por meio de sobreposição de voz, de tomada ou devolução
de turno, de manutenção da voz etc.). Importa dizer que esse tipo de correção não será abordado
neste trabalho, uma vez que está diretamente relacionado à produção da fala-em-interação.97
(ii) Repetição: De acordo com Marcuschi (2015), a repetição é uma atividade de
formulação textual que contribui para a organização discursiva e o monitoramento da coerência
textual. Além disso, favorece a coesão e a formação de sequências mais compreensíveis, dá
continuidade à organização tópica, auxiliando nas atividades interativas. De modo geral,
consiste na produção de segmentos linguísticos duas ou mais vezes, no âmbito de um mesmo
evento comunicativo, motivados pelos mais diversos fatores, seja de ordem cognitiva, textual,
sintática ou interacional. Ainda, para o autor, a repetição, no plano da compreensão, fortalece a
intensificação e o esclarecimento.
Nessa direção, Koch e Elias (2014; 2016, grifo das autoras) afirmam que a repetição é
um poderoso recurso enfático, retórico e pode assumir função argumentativa. Ademais, é um
elemento essencial no estabelecimento da coesão referencial.
97 Julgamos relevante esclarecer que a prática de reparo que nos interessa, por estar intimamente relacionada aos
objetivos deste trabalho, diz respeito à trajetória de “reparo em terceira posição”, conforme discutido na seção
2.4.5 desta tese.
109
Ainda, no que concerne à repetição98, Gülich e Kotschi (1995, p. 46) assinalam que esse
procedimento pode ser “completo” (complete), isto é, o enunciado de referência é idêntico ao
enunciado de tratamento, ou “parcial” (partial), quando a expressão de tratamento geralmente
consiste na repetição de um léxico, de um sintagma, ou de parte do enunciado de referência. É
possível verificar a ocorrência de tais práticas, respectivamente, no excerto 14 em que a
repetição do enunciado de referência pelo falante é realizada integralmente (com identidade de
forma): “Quanto Norman sai?” e no excerto 19 desta pesquisa: “Quando eu me referi a pessoas
estarem preocupadas apenas com a volta do futebol, eu não me referi aos jogadores porque
isso não cabe a eles decidirem. Me referi aos verdadeiros responsáveis por pensarem apenas
no próprio bolso”, em que o usuário [A], em terceira posição, promove a repetição de itens
lexicais e/ou constituintes oracionais, ao reafirmar o que foi dito em seu enunciado de referência
(indivíduos preocupados com a volta do futebol) e ao denunciar, de modo objetivo e direto, a
leitura equivocada de [B], já que o alvo da crítica daquele não eram os jogadores de futebol, e
sim os dirigentes de clube.
Dentro dessa perspectiva, Marcuschi (2002, p. 107, grifo do autor) assinala que, numa
definição funcional, pode-se dizer que “repetição é a produção de segmentos discursivos
idênticos ou semelhantes duas ou mais vezes no âmbito de um mesmo evento comunicativo”.
Constitui-se “numa estratégia valiosa para o processamento textual-interativo, seja na
contribuição para o processamento informacional, seja na preservação da funcionalidade
comunicativa” (Ibid., p. 136). De modo geral, essa atividade de reformulação pode se
manifestar por meio de: (i) repetição fonológica (aliteração, alongamento etc.); (ii) repetição de
morfemas (prefixos, sufixos etc.); repetição de itens lexicais; (iv) repetição de construções
suboracionais; (v) repetição de orações.
Por último, é interessante mencionar que, nas interações em rede, a atividade de
repetição não exige nenhum trabalho de formulação. Basta clicar na parte do texto que se deseja
reproduzir, acionar os comandos “copiar e colar” (Ctrl+C, no teclado do computador) e, em
seguida, “colar” (Ctrl+V), a fim de que o conteúdo da mensagem se repita, procedimento esse
que economiza tempo e esforço dos participantes na produção e envio da mensagem,
principalmente, nas comunicações síncronas (que acontecem praticamente ao mesmo tempo).
(iii) Paráfrase: em termos simples, a paráfrase retoma, com outras palavras, em maior
ou menor grau, o sentido de um enunciado anterior. Significa, portanto, a produção de um
98 Gülich e Kotschi (1987) denominam de refrasagem (rephrasage) a repetição de uma estrutura léxico-gramatical.
110
segmento linguístico, “que possui relação de equivalência semântica” (HILGERT, 2015, p.
258) em relação ao outro enunciado, tendo em vista assegurar a intercompreensão, isto é, o
locutor utiliza-se da paráfrase quando está preocupado em fazer seu parceiro comunicativo
entender melhor o enunciado considerado não claro ou mesmo direcionar a compreensão de um
termo ou expressão segundo seus propósitos interacionais.
Fávero et al. (2005) assinalam que a paráfrase “exerce inúmeras funções, como a de
contribuir para a coesão do texto, enquanto articuladora de informações novas e antigas, mas
sua função principal é a de garantir a intercompreensão.” Koch e Elias (2014, p. 168) reforçam
tal concepção, ao argumentarem que, por meio de paráfrases, “[...] reapresentamos conteúdos
anteriores em construções sintáticas diferentes, visando a um ajustamento, uma precisão maior
do sentido.”
Hilgert (2015, p. 259, grifo do autor) afirma que, para realizarem a predicação de
identidade entre dois enunciados, os interlocutores podem recorrer a marcadores discursivos
parafrásticos (em outras palavras, como você falou, então, quer dizer etc.), no sentido de
atribuir um parentesco semântico entre o enunciado parafraseado e o enunciado de origem
(matriz).
Quanto à utilização desses recursos, o autor (2015, p. 270) explica:
A necessidade de um marcador discursivo anunciar uma paráfrase é tanto maior
quanto menor for a possibilidade de reconhecer um parentesco semântico entre dois
enunciados. E, em sentido inverso, à medida que os enunciados tiverem uma relação
de parentesco semântico forte, é suficiente anunciar a natureza parafrástica de um
enunciado por meio de mudanças entonacionais, paralelismos sintáticos e recursos
paralinguísticos, dispensando, portanto, o marcador [...].
É oportuno comentar que a presença do marcador identifica as paráfrases marcadas, e
sua ausência, as não marcadas.
Ainda, de acordo com Fuchs (1994, p. 130-1 apud Hilgert, 2015), a paráfrase pode ser
estática (fechada) ou dinâmica. Na primeira, os enunciados têm seu parentesco semântico
determinado por um núcleo de sentido comum invariável. Na segunda, o caráter parafrástico
resulta de “relações semânticas locais, do tipo associativo, construídas pelo jogo da
interpretação”. É dessa segunda concepção que se valerá este estudo, visto que os interlocutores
se utilizam de paráfrases, a fim de produzir dinamicamente referências textuais, levados pelo
principal propósito da ação interativa: a produção de sentidos (Ibid., p. 259).
111
No enunciado “Não me refiro só a e-books e e-readers. Me refiro a repensar a maneira
e os canais para divulgar ciência e notícias” (ver excerto 20), o usuário [A] lança mão de uma
atividade reformulativa, no intuito de sinalizar a leitura equivocada do usuário [B], ao dizer que
sua intervenção não se limitava apenas a e-books ou a e-readers. Fica denunciado dessa forma
que [B] captou apenas um aspecto do enunciado de referência. Então, [A] procura torná-lo mais
explícito e/ou convincente para seu interlocutor, ao afirmar que tinha em vista também uma
estruturação dos canais digitais, de modo que viabilizasse a todos o acesso à ciência e às
notícias. Como vimos, há um movimento de decomposição semântica99 (especificar
informações contidas na matriz), bem como a utilização de paralelismo sintático, com o intuito
de marcar a predicação de uma identidade semântica entre o enunciado de referência e a
paráfrase, no decurso da interação. Cabe registrar também que o modalizador “só” tem forte
presença atenuadora no enunciado de [A].
No que concerne à estrutura formal das paráfrases, Hilgert (2001, p. 124, grifo do autor)
acrescenta:
Quando, na passagem da matriz para a paráfrase, há um deslocamento de sentido do
geral para o específico, verifica-se uma tendência de a paráfrase, do ponto de vista
sintático e lexical, ser mais expandida do que a matriz. Quando, porém, nessa
passagem, o deslocamento de sentido vai do específico para o geral, nota-se uma
condensação sintático-lexical da paráfrase. No que respeita, então, à textualização da
semântica das paráfrases, identificam-se paráfrases expansivas e paráfrases
redutoras. Além disso, pode ser mantida, na paráfrase, apesar dos movimentos
semânticos referidos, a mesma dimensão textual da matriz. Neste caso, registram-se
as paráfrases paralelas.
Quanto às funções das paráfrases expansivas e redutoras, o autor (2001, p. 125-6,
grifo do autor) ainda pontua:
[...] que às primeiras são devidas as funções de: [A] dar explicações definidoras de
matrizes constituídas por noções abstratas; [B] explicitar, precisando ou
especificando, informações contidas nas matrizes. As explicações ocorrem, com
frequência, por meio de exemplificações que, então, se identificam com as
reformulações parafrásticas. As paráfrases redutoras também exercem duas funções:
[A] conferir uma denominação adequada, mais simples ou abrangente a uma
formulação complexa ou demasiadamente específica da matriz; [B] resumir o
conjunto de informações que a matriz contém. O exercício desta última função
coincide, normalmente, com o de concluir um tópico conversacional.
As paráfrases também são caracterizadas, por Hilgert (2001), de acordo com a sua
distribuição na sequência textual, distinguindo, assim, paráfrases adjacentes (são as que se
99 Convém registrar que o movimento de “decomposição semântica” tem, de modo geral, a função de definir ou
explicar, enquanto o processo inverso, de “recomposição semântica”, assume a função de denominar ou resumir
(HILGERT, 2015, p. 277).
112
seguem ao lado do enunciado-fonte ou matriz, isto é, o enunciado a ser reformulado) de não
adjacentes (não são sequenciais ao enunciado-fonte ou matriz). No que respeita às funções, as
paráfrases adjacentes exercem uma função local no desenvolvimento do texto, enquanto as
paráfrases não adjacentes, tendem a estruturar a conversação num nível mais abrangente,
conferindo coesão e coerência e, portanto, unidade de sentido.
Nessa linha de condução, Fuchs (1982, p. 49-50) nomeia a paráfrase como “[...] a
transformação progressiva do ‘mesmo’ (sentido idêntico) em ‘outro’ (sentido diferente): para
dizer novamente a mesma coisa, acaba por se dizer ‘outra coisa.’”100 A autora (1982a, p. 31)
ainda permite caracterizar a reformulação parafrástica como uma “conduta metalinguística”
(fonction méta-linguistique), que deixa traços explícitos no discurso, ou seja, o enunciado de
referência e a sequência discursiva que o parafraseia estão ligados por certas “marcas
linguísticas” (marques linguistiques).
Ademais, de acordo com Hilgert (2001), o procedimento parafrástico funciona, de modo
geral, para resolver um problema retrospectivo de formulação, já que retoma um segmento
textual para lhe dar uma nova forma que se considera mais adequada.
É significativo mencionar ainda que:
[...] o parafraseamento, embora tenha igualmente um caráter de tratamento como a
correção, reformula, não para anular enunciados antecedentes, mas sim para avançar
na construção do texto, com a finalidade de explicar, explicitar, precisar, especificar,
exemplificar, denominar, resumir. Ora, paráfrases com tais funções não ocorrem
somente em textos falados, mas são também comuns em textos escritos, o que as torna,
portanto, plenamente viáveis na CINT (HILGERT, 2000, p. 47).
Feitas essas considerações, acreditamos que seja oportuno, ainda, trazer para a discussão
algumas reflexões apresentadas por Barros (2006), em capítulo intitulado “Procedimentos e
recursos discursivos na conversação”, no qual a estudiosa examina funções assumidas pelos
processos de reformulação e pelos recursos linguístico-discursivos utilizados na construção
da conversação e no estabelecimento da interação entre sujeitos, em um corpus constituído de
dois tipos de inquéritos do projeto NURC/SP, sob a perspectiva teórica da Análise da
Conversação e da Semiótica Narrativa e Discursiva.
Em síntese, no decorrer desse estudo, a autora comenta acerca da correção que, de
acordo com os princípios teóricos da AC, tem por finalidade a adequação e compreensão
cognitivo-informativa (precisão referencial ou anafórica) do conteúdo e o bom entendimento
100 Tradução da autora para o trecho original: “[...] la transformation progressive du ‘même’ (sens identique) en l’
‘autre’ (sens différent): à redire la même chose, on finit par dire ‘autre chose’.”
113
das relações intersubjetivas. Para Barros (2006), à correção (e a outros procedimentos
reformulativos, como paráfrase e repetição) cabe também a função interacional de persuasão
e argumentação (ou seja, levar os interlocutores a certas conclusões e ações), bem como de
envolvimento afetivo-passional dos participantes da conversação (efeito de sentido de
confiança, interesse, amizade, ódio, entre outros), com o qual se reafirma e confirma, de quando
e quando, “o contrato sem o qual a conversação não poderia ter começado e não poderá
prosseguir”101 (BARROS, 2006, p. 63). Ademais, a ameaça de ruptura desse acordo pode
ocorrer, por exemplo, por meio de procedimentos agressivos ou polêmicos.
Barros (2006) examina, ainda, casos em que os recursos linguístico-discursivos têm
funções diretamente ligadas à produção e à compreensão dos procedimentos reformulativos e,
portanto, indiretamente relacionadas com a construção da conversação. De modo geral, a autora
observa que os procedimentos reformulativos são marcados por pausas, interrupções lexicais
e prolongamento de vogais, assim como por determinadas expressões verbais estereotipadas,
por exemplo, “não”, “isto é”, “quer dizer” etc., as quais contribuem para o reconhecimento de
uma correção ou de uma paráfrase do texto. “Esses marcadores têm a função de facilitar a
interpretação dos procedimentos que assinalam” (Ibid., p. 66).
É preciso ressaltar que, para a estudiosa (2006), a relação entre recursos e
procedimentos é funcionalmente variável, isto é, uma repetição pode ser considerada tanto
como um recurso que facilita a produção de uma reformulação por correção quanto como
procedimento com funções persuasivo-argumentativas e afetivo-passionais. Nessa
perspectiva, pressupomos que o conhecimento, pelos interlocutores, dos processos
reformulativos e recursos discursivos é indispensável na produção de textos e de sua
interpretação.
Sob essa perspectiva, acreditamos que, na tentativa de solucionar o mal-entendido, é
usual que os parceiros comunicativos recorram aos procedimentos reformulativos, com vistas
a alcançar a intercompreensão na conversação, o que implica competência na utilização desses
processos e dos recursos linguísticos diretamente relacionados a eles; envolvimento
interpessoal e cooperação discursiva. Inclusive, parece-nos evidente que uma certa dose de
101 De forma sucinta, o ato de comunicar, para a teoria semiótica, é visto como sinônimo de manipulação, portanto,
quem comunica algo quer fazer com que o outro faça algo ou creia em alguma coisa. Em outros termos, o
destinador (enunciador), em seu fazer persuasivo (ou fazer-crer), propõe um contrato e exerce a persuasão para
convencer o destinatário (enunciatário) a aceitá-lo e este, em seu fazer interpretativo (ou crer), aceita ou recusa-o.
Desse modo, estabelece-se entre enunciador e enunciatário o chamado contrato fiduciário (GREIMAS e
COURTÉS, 1983; BARROS, 1990).
114
cortesia linguística também é necessária na negociação do equívoco interpretativo, já que sua
sinalização pode representar uma ameaça à imagem (face) dos interlocutores.
Cabe-nos indicar, então, que este trabalho procura, numa linha conceitual
complementar, a interface entre o estudo do mal-entendido e a teoria da cortesia verbal, no que
se refere, principalmente, ao trabalho de preservação da face (face work) que se concretiza,
particularmente, pelo uso de meios linguísticos.
É desse aspecto que trataremos a seguir.
3.4 Sobre a cortesia verbal
Entendemos que a cortesia é um princípio regulador das interações, uma vez que
consiste em um conjunto de procedimentos utilizados pelos interlocutores para amenizar ou
evitar tensões nas trocas comunicativas. Tem, segundo Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 77), a
função de “preservar o caráter harmonioso da relação interpessoal”. Assim, tudo o que pode
causar incômodo àquele com quem interagimos deve ser evitado.
No dizer de Silva (2001, p. 134, grifo do autor):
Quando dois ou mais interlocutores engajam-se numa atividade conversacional, há
um esforço mútuo para que seja construído um texto verbal coerente. Para isso, o
processo interacional é imprescindível e a negociação acaba sendo “um aspecto
central para a produção de sentido na interação verbal” (Marcuschi, 1998: 19). Dessa
forma, a negociação das faces assume importância vital.
Dentre as teorias de cortesia verbal, interessam-nos, em particular, os trabalhos de
referência elaborados por Goffman (1967); Brown e Levinson (1987 [1978]); Kerbrat-
Orecchioni (2006), que parecem contribuir de forma mais relevante para este estudo, no que
diz respeito, principalmente, ao trabalho de face (face work) – perspectiva aqui adotada.
3.4.1 Relação entre o mal-entendido e o trabalho de face (face work)
Inspirados no conceito de face, proposto inicialmente por Goffman (1967, p. 5), cujo
termo “pode ser definido como o valor social positivo que uma pessoa efetivamente reclama
115
para si [...], delineada em termos de atributos sociais aprovados”102, Brown e Levinson (1987
[1978]) partem do princípio de que todos os membros da sociedade são dotados de uma face ou
imagem, que procuram defender e preservar nas interações, constituída de dois polos: positivo
e negativo.
De acordo com Hilgert (2008, p. 135), “numa interação entre um falante e um ouvinte,
quatro faces estão em jogo: a face positiva e negativa do falante e essas mesmas faces do
ouvinte”. Por face positiva, entende-se a imagem que o indivíduo deseja para si na interação
com os outros, isto é, representa o desejo de aprovação, apreciação e reconhecimento
individual. Já a face negativa constitui-se de elementos que promovem e mantêm a autonomia
do indivíduo em seu âmbito de ação; é relativa à autopreservação, desejo de não imposição ou
reserva de território pessoal, liberdade de ação e de imposições.
Numa interação comunicativa, essas faces podem ser mantidas ou valorizadas ou podem
ser também ameaçadas. Para Brown e Levinson (1987), a maioria dos atos de linguagem que
são produzidos nas conversas cotidianas são potencialmente “ameaçadores” para uma das faces
e, por conseguinte, podem pôr em perigo a imagem pública dos interlocutores, criando um sério
risco para o bom desenvolvimento da interação. Tais atos são chamados de “Atos de Ameaça à
Face” (Face Threatening Acts, doravante FTAs).
Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 79) apresenta uma síntese dos FTAs e os divide em quatro
categorias:
i. Atos que ameaçam a face positiva do falante: a confissão, o pedido de desculpa, a
autocrítica, autoconfissão, auto-humilhação, enfim, comportamentos autodegradantes.
ii. Atos que ameaçam a face negativa do falante: algo a que se propõe ou se compromete
a efetuar e que é suscetível de lesá-lo, por exemplo, a promessa ou aceitação de ofertas.
iii. Atos ameaçadores da face positiva do interlocutor: são aqueles que colocam em risco
a autoestima do outro, como a crítica, a refutação, a desaprovação, a chacota, o
sarcasmo, insultos, acusações etc.
iv. Atos que ameaçam a face negativa do interlocutor: consistem em violações
territoriais de natureza verbal e não-verbal, por exemplo, ofensas, agressões, ordem,
pedidos, proibições, conselhos, perguntas indiscretas.
102 Tradução da autora para o trecho original: “The term face may be defined as the positive social value a person
effectively claims for himself [...], delineated in terms of approved social atributes.”
116
É oportuno comentar que, segundo Kerbrat-Orecchioni (Ibid., p. 80, grifo da autora),
“um mesmo ato pode se inscrever simultaneamente em diversas categorias”, por exemplo,
ao denunciar um mal-entendido, o falante ameaça a sua face positiva quando reconhece que seu
enunciado foi mal elaborado e pede desculpa a seu interlocutor, reformulando-o. Mediante esse
procedimento cortês de acusar uma produção enunciativa problemática, o falante promove a
defesa da face positiva do ouvinte. Por outro lado, o pedido de desculpa beneficia a sua
imagem, pois, ao admitir seus próprios erros, o falante está realizando um comportamento que
é aprovado socialmente.
Sob essa perspectiva, a autora (2006) enfatiza que as faces são, ao mesmo tempo e
contraditoriamente, o alvo de ameaças e o objeto de um desejo de preservação e, por esse
motivo, a interação verbal impõe normas para que a face dos interlocutores seja respeitada.
Desse modo, na acusação de um equívoco de compreensão, espera-se que o falante tome
precauções, procure cumprir o que se espera dele: que seja minimamente cortês, já que essa
denúncia constitui um risco para o interlocutor, que pode se sentir humilhado, ofendido,
criticado; daí a necessidade de utilizar estratégias modalizadoras como as manifestações de
cortesia. Ademais, cabe mencionar que a escolha efetuada entre as numerosas estratégias
dedicadas ao exercício da cortesia depende de três fatores: o grau de imposição do FTA, a
distância social entre os interlocutores e a relação de poder.
Ainda, no tocante ao modelo proposto por Brown e Levinson (1987), Kerbrat-
Orecchioni (2006, p. 81) introduz um termo suplementar, “FFA” (Face Flattering Act, isto é,
ato valorizador da face) ou “antiFTA”, que designa atos que são de algum modo o complemento
positivo dos FTAs, por exemplo, os elogios, agradecimentos ou votos. A partir disso, duas
formas de cortesia pode ser diferenciadas: a polidez positiva,103que consiste em realizar um
FFA, de preferência reforçado e a polidez negativa, que consiste em abrandar ou evitar um
FTA. Para a autora (2005, p. 89), numa interação ocorre “um incessante e sutil jogo de pêndulo
entre FTAs e FFAs.”
Nessa direção, Silva (2013, p. 104) assinala que, de modo geral, “a cortesia é o
procedimento socialmente aceitável ou o politicamente correto.” Entretanto, há situações
comunicativas em que o conflito, a crítica e o ataque pessoal são valorizados, pois o interesse
é destruir a imagem do outro. Isso ocorre, por exemplo, no debate eleitoral face a face. Nesse
tipo de discurso, a descortesia torna-se a regra, pois se trata de uma estratégia utilizada para
103 Neste trabalho, mantemos a sinonímia entre polidez e cortesia, embora etimologicamente recebam explicações
distintas.
117
alcançar um determinado benefício, ou seja, “o ataque pessoal é preferível ao argumento, com
a finalidade de convencer os demais” (Ibid., p. 104).
No âmbito das interações no Twitter, partimos do pressuposto que, no trabalho de
imagem realizados nas ações de denúncia e encaminhamento da solução do mal-entendido,
aparecem tanto comportamentos corteses (em geral, politicamente corretos) quanto enunciados
formulados de maneira agressiva, grosseira e brutal. A nosso ver, tais reações impolidas variam
segundo a importância que os usuários da rede atribuem à natureza da “relação” estabelecida
com seu parceiro de interação (distância/hierarquia), à separação espaço-temporal, ditada pelo
contexto comunicativo e, por fim, à preocupação de enaltecer ou, pelo menos, manter a sua
própria imagem em detrimento da imagem do outro.
Como vimos, Silva (2013) tem utilizado o termo “descortesia” para se referir, de modo
geral, a atos agressivos, provocativos e de violência verbal em enunciados. É o caso também
dos trabalhos de Culpeper (1996, 2001); Rodríguez e Lara (2008) e Kaul de Marlangeon (2012).
Acrescentamos ainda os estudos realizados por Barros (2005, 2008), na perspectiva da
semiótica discursiva francesa, uma vez que tal teoria mantém um intenso diálogo com os
campos teóricos propostos neste trabalho.
Para Culpeper (2001), a principal diferença entre cortesia e descortesia está na intenção:
se a intenção for de preservar a face do interlocutor, temos a polidez, contudo se a intenção for
de atacá-la, estamos diante da descortesia linguística.
No tocante à sua teoria, o estudioso (2001) retoma o conceito de face de Brown e
Levinson (1987) e elenca cinco estratégias de descortesia (Id., 1996, p. 356), no intuito de
complementar o modelo teórico proposto pelos autores. São elas:
i. Descortesia direta: atos que ameaçam a face do ouvinte, de maneira mais clara e direta.
ii. Descortesia indireta: o FTA é realizado de maneira indireto, dissimulado, de forma
que o enunciador não se comprometa, por exemplo, a ironia e o sarcasmo.
iii. Descortesia positiva: uso de estratégias destinadas a ameaçar a imagem positiva do
interlocutor, por exemplo, ignorar o outro; selecionar um tópico indesejável para
abordar, aparentar desinteresse e antipatia com o ouvinte; procurar desentendimentos;
utilizar linguagem obscura etc.
iv. Descortesia negativa: uso de estratégias destinadas a ameaçar a imagem negativa do
interlocutor, por exemplo, ridicularizar o outro; invadir o espaço do ouvinte etc.
118
v. Ausência de cortesia: caracteriza-se pela falta de cortesia em situações na qual ela é
esperada, por exemplo, o falante se calar quando há a necessidade de agradecer o
ouvinte.
Nessa direção, Rodríguez e Lara (2008) afirmam que nem sempre as regras de cortesia
governam a conversa. Para as autoras, alguns atos descorteses afetam o sistema da troca de
turnos, ou seja, a regra básica de conversação; outros centram-se num claro desejo de denegrir
e deteriorar a imagem do interlocutor, vítima do confronto. Mas há casos ainda mais graves de
descortesia, escondidos sob a astuta aparência de ironia. Vejamos, então, alguns desses
procedimentos, presentes na estrutura interacional de alguns discursos, os quais colocam a
comunicação em risco:
i. Reter o turno, ignorando as tentativas de (re)tomada;
ii. tomar a palavra para reafirmar a mesma ideia de outro participante, não no sentido de
validar a contribuição do interlocutor, mas para obter benefício próprio;
iii. interromper explícita e abertamente o turno, mesmo que não seja reivindicado, com
objetivos claros, como o simples desejo de boicotar a intervenção do interlocutor, ou de
demonstrar desacordo com o que está sendo dito;
iv. afetar a imagem de outras pessoas e prejudicar suas próprias contribuições de produção;
v. tomar o turno de forma grosseira para expressar opiniões contrárias às expressas pelo
interlocutor;
vi. ignorar o turno de fala, negando-se a contribuir com a progressão temática do discurso;
vii. lançar insultos, relativizar ou negar a contribuição do interlocutor, alegar que o outro
mente, ameaçar;
viii. utilizar formas de tratamento agressivas e violentas etc.
Para Kaul de Marlangeon (2012, p. 78), o comportamento comunicativo descortês
ocorre, por exemplo, em manifestações hostis, “banalização de palavrões emitidos
gratuitamente” (banalización de groserías gratuitamente) e atos de descortesia indireta. Para a
autora, enquanto a cortesia, como princípio regulador de conduta, favorece o equilíbrio nas
interações, a descortesia tem efeito contrário, isto é, rompe com essa harmonia, por essa razão
a qualifica como comportamento comunicativo impróprio ou inadequado.
Quanto às interações na rede Twitter, Kaul de Marlangeon e Cordisco (2014) chamam
a atenção para a ocorrência de atos descorteses no contexto político-ideológico, especialmente
quando os atores sociais se tornam atores políticos (não necessariamente afiliados a partidos
119
políticos) e se utilizam das estratégias de acusação, insulto, calúnia, desqualificação, descasos
e ataques à imagem social do interlocutor.
Nessa direção, os autores (2014, p. 147) ainda preconizam:
Em relação à descortesia, reconhecemos dois tipos de imagem: afiliação e
refratariedade exaltadas [...]. No primeiro, o indivíduo produz atividades nas quais
ele se percebe e é percebido por outros como adepto de um grupo. O adepto assume-
se como membro com plena consciência e orgulho: ele é um defensor dos
representantes e ideais de seu grupo, ao ponto de escolher a descortesia em sua defesa.
No segundo, o indivíduo se percebe e é percebido pelos outros como um oponente do
grupo. Critica, insulta, ataca, briga, agride, quer expressar uma atitude de resistência
em relação àquele que se opõe às suas ideias.104
Quanto à esfera jornalística, Rueda (2014) argumenta que as publicações, na rede
social Twitter, tendem a ser mais corteses, tendo em vista que os jornalistas procuram
contextualizar seus tuítes, trocando informações e opiniões com seus seguidores. Embora as
coordenadas espaço-temporais entre eles sejam diferentes, o imediatismo de enviar e receber
mensagens cria a impressão de que o canal esteja permanentemente aberto. Isso é muito positivo
para a imagem do jornalista, porque o ajuda a se apresentar como um indivíduo próximo de
seus leitores, sempre disponível para responder perguntas relacionadas a qualquer notícia
publicada. Desse modo, a imagem social (face) dos jornalistas nesta rede social é reforçada,
devido à atitude colaborativa nas interações e à demonstração de suposta familiaridade com
seus leitores, aumentando assim sua necessidade de afiliação.
Na tentativa de ainda contribuir com as ideias apresentadas, trazemos à consideração os
estudos realizados por Barros (2005, 2005a, 2008) acerca de duas estratégias de manipulação105
presentes nas conversações, a saber, a sedução e a provocação e sua relação com a
(des)cortesia verbal.
Tomando por base a perspectiva teórica da semiótica discursiva de linha francesa,
Barros (2005, 2005a) considera que a sedução, além de pertencer ao campo semântico do
104 Tradução da autora para o trecho original: “En relación con la descortesía, reconocemos dos contenidos de
imagen: afiliación exarcebada y refractariedad [...]. En la primera, el individuo produce actividades en las que se
percibe a sí mismo y es percibido por los demás como adepto a un grupo. El adepto asume su calidad de miembro
con plena conciencia y orgullo: es partidario de los miembros y de las ideas de su grupo, al punto de escoger la
descortesía en su defensa. En la segunda, el individuo se percebe a sí mismo y es percibido por los demás como
opositor al grupo. Critica, vitupera, arremete, combate, agrede, quiere expresar que está en una actitud refractaria
respecto de aquello que suscita su oposición.” 105 “Como vimos, para a Semiótica, toda comunicação é uma forma de manipulação: o destinatário propõe ao
destinatário um contrato, um acordo, com o objetivo de levá-lo a acreditar em certos valores e a fazer alguma
coisa, segundo esses valores. Assim, a comunicação é também uma forma de interação entre os sujeitos destinador
e destinatário, nela envolvidos (BARROS, 2005). É oportuno mencionar que, dentre as quatro estratégias de
manipulação (tentação, intimidação, provocação e sedução), destacamos duas que nos interessam nesta tese, a
saber, a provocação e a sedução.
120
encantamento, do fascínio, da atração, também se insere no campo semântico da cortesia, isto
é, das regras socialmente estabelecidas, visto que, por meio de estratégias de sedução, o sujeito
(destinador) procura construir imagens positivas do parceiro comunicativo (destinatário) e da
competência deste, conduta que favorece o bom entendimento e o estabelecimento de laços
interacionais mais fortes entre os interlocutores.
Em trabalhos intitulados “A sedução nos diálogos” e “Polidez e sedução na
conversação”, a estudiosa examina alguns exemplos de sedução, entre eles, o “elogio”,
estratégia utilizada na construção explícita da imagem positiva do destinatário. Assim, em
enunciados como: “O que você falou é muito interessante”, “Deve ser uma delícia ter uma
família bem grande” ou “Como salientou muito bem”, observamos que o destinador elogia
claramente seu interlocutor. Para Barros (2005, 2005a), essa intensificação das imagens
positivas do destinatário empregam, em geral, elementos afetivos e sensoriais, além de éticos.
Dentre as estratégias de sedução, incluem-se, de modo geral, procedimentos de
intensificação, utilizados para acentuar a imagem positiva do destinatário, como também
procedimentos de atenuação, utilizados para amenizar afirmações, críticas, discordâncias do
destinador etc. O uso dessas estratégias favorece a construção de uma imagem negativa do
destinador e, por contraposição, uma imagem mais positiva do destinatário. Tanto a
intensificação quanto a atenuação podem ocorrer de maneira explícita ou implícita.
Em se tratando de construção explícita da imagem positiva do destinatário, a autora
(2005, 2005a) examina casos em que o destinador pede a “opinião” do destinatário. Por
exemplo, no enunciado “O que você acha disso?”, o destinador constrói uma imagem positiva
do destinatário, ao mostrar interesse pelo ponto de vista deste. Para Barros (2005, p. 116), “essa
estratégia aparece, com muita frequência, combinada com a de criar uma imagem negativa
própria para ressaltar a positiva do outro [...]”. É o caso dos enunciados: “não sei como leiga...”
ou “sei lá...”, os quais “apresentam traços negativos da competência do destinador, que não
sabe e precisa do saber do destinatário” (BARROS, 2005a, p. 236, grifo da autora). Inclusive,
notamos, nesses exemplos, que o destinador declara explicitamente a sua “ignorância” e busca,
por conseguinte, a “sabedoria” do destinatário acerca de determinado assunto.
No que diz respeito às construções implícitas da imagem positiva do destinatário,
Barros (2005, 2005a) destaca o emprego das pessoas do discurso (por exemplo, o uso de você),
como também a utilização de algumas estratégias de reformulação (paráfrases, repetições e
correções) ou, até mesmo, de complementação da fala do outro. Para a estudiosa, tais estratégias
121
indicam o interesse do destinador pelo destinatário e produzem o efeito de aproximação tanto
racional, sensorial e afetiva entre os interlocutores quanto dos assuntos tratados na interação.
Ainda, nos exemplos analisados em seu corpus de trabalho (diálogo entre informantes
do projeto NURC/SP), a autora (2005, 2005a) destaca o uso frequente de elementos fáticos
(uhn, ahn, éh), os quais apontam o contato na comunicação, como também marcam, por essa
via, de forma indireta, a concordância com o que está sendo dito; o uso de indagações pospostas
(né? certo? entende?), que buscam a participação do destinatário, ao mesmo tempo em que
atenuam o caráter do que é dito pelo destinador; a atenuação de pedidos ou ordens, com o uso
dos verbos “gostar”, “poder” e “querer”, em geral conjugados no futuro do pretérito, seguido
de verbo no subjuntivo imperfeito (“eu gostaria que desse a sua opinião...”) ou a atenuação de
afirmações impositivas e discordâncias, com o uso dos diferentes modalizadores de dúvida ou
incerteza (parece, acho, talvez etc.).
Como se percebe, a imagem é uma espécie de simulacro, que se constrói para ser
contemplada e negociada com o outro, a fim de evitar confrontos, não pôr em risco o acordo, o
respeito e a confiança entre as partes e, por conseguinte, garantir a harmonia necessária na
interação comunicativa (ÁLVAREZ; ESPAR, 2002). Nessa direção, os sujeitos escolhem
determinadas estratégias de sedução que, combinadas, intensificam ou atenuam as relações
entre eles e dão à conversação o “equilíbrio necessário à vida em sociedade, ao mesmo tempo
em que constroem os desequilíbrios criativos e renovadores dos laços sociais” (BARROS,
2005a, p. 253).
Em relação aos procedimentos de manipulação por provocação, Barros (2008), em
trabalho intitulado “A provocação no diálogo: estudo da descortesia”, examina algumas
estratégias utilizadas pelos sujeitos na construção de discursos, as quais produzem tensão e
efeitos de descortesia em certos momentos ou situações da conversação. Inclusive, a autora
(2008) enfatiza que, no quadro teórico da AC, tais procedimentos são, em geral, definidos em
oposição às estratégias de preservação da face e de atenuação da conversação ou pela falta
delas.
No tocante à sua teoria, a autora assinala que, na provocação, o destinador procura
apresentar imagens negativas do destinatário e da competência deste. Por exemplo, em
enunciados como “Você não entendeu o que eu disse” ou “Duvido que você saiba isso”, o
destinador põe em dúvida a capacidade daquele a quem se dirige, levando o provocado a reagir
à provocação, a fim de mostrar à sociedade que a atribuição a ele desses traços negativos é
122
indevida. Nesse sentido, a estudiosa (2008) explica que a provocação funciona melhor no
espaço público, visto que a “honra” precisa ser mantida.
Ainda, no decorrer desse trabalho, Barros (2008) examina casos em que o destinador
usa a estratégia de apresentar-se com uma imagem positiva para provocar o destinatário, ao
ressaltar, por oposição às suas próprias qualidades, os defeitos do outro.
Constrói-se, assim, por oposição a um destinador intensificado, valorizado,
respeitado, um destinatário mais fraco e frágil, provocado pelas estratégias do outro
e, de uma certa forma, atingido pela “descortesia’ daquele que se apresenta como mais
forte e capaz (BARROS, 2008, p.107, grifo da autora).
A autora (2008) enfatiza que procedimentos de atenuação são empregados para
apresentar, de forma negativa, o modo de ser e agir do destinatário. Já a intensificação é
empregada na construção da imagem positiva do destinador e, por oposição, da imagem
negativa do destinatário. Tanto a atenuação quanto a intensificação podem ocorrer nos discursos
de forma explícita ou implícita.
Quanto às estratégias de provocação analisadas, por Barros (2008), no corpus (diálogos
entre informantes do projeto NURC/SP) em questão, é possível evidenciar, dentre as
construções explícitas de atenuação, algumas estratégias como: desmerecer, criticar e/ou
contrapor-se claramente ao destinatário. É o que acontece, por exemplo, quando o destinador
não aceita o ponto de vista de seu interlocutor; discorda em relação a crenças, conhecimentos e
valores e diz isso claramente ou, até mesmo, insinua sob a forma de ironia ou de afirmações a
capacidade dele. Já entre as construções implícitas de atenuação estão: o emprego de
adversativas (o uso do “mas”), de negações (o “não”, frequentemente repetido), de
heterocorreção e de modalizadores negativos (“eu acho que não”). Por meio desses
procedimentos, “o destinador mostra que se distancia do destinatário, que não se interessa pelo
que ele diz ou mesmo dele discorda. São usos muito comuns [...], que criam tensão
conversacional e, em alguns casos, efeitos de descortesia” (BARROS, 2008, p. 99).
Em se tratando dos procedimentos de intensificação, a autora (2008) aponta algumas
estratégias explícitas e implícitas de construção da imagem positiva do destinador para criar,
como contraponto, a imagem negativa do destinatário, por exemplo, quando o destinador
apresenta claramente suas próprias qualidades e, por oposição, ressalta os defeitos do outro;
pede, ordena ou afirma impositivamente, por meio da utilização dos modalizadores de certeza
ou verdade e de verbos no presente do indicativo (“estou certo de que”, “eu sei”, “eu vejo”, “eu
123
noto”, “tenho certeza” etc.); discorda do destinatário ou o corrige, por meio da tomada de turno
ou sobreposição de voz, entre outros.
Como notamos, os traços do conflito, da agressividade, da polêmica também estão na
base de nossas atividades comunicativas. A nosso ver, é o que acontece frequentemente nos
“comentários” produzidos e veiculados na internet. É significativo mencionar que, de modo
geral, esses comentários não oferecem possibilidades conversacionais, uma vez que têm por
objetivo tão somente semear a confusão, por meio de intervenções violentas e inoportunas.
Nesse sentido, concordamos com Arroyo (2001), ao afirmar que “tem-se instalado a ideia de
que a agressão e o ataque pessoal é preferível à troca de argumentos”, convertendo, assim, a
comunicação interpessoal numa verdadeira discussão, na qual os sujeitos investem a maior
parte de seu esforço, de sua energia conversacional, tentando negar a opinião do outro enquanto
mantém os seus próprios pontos de vista.
Enfim, com o propósito de ilustrar, de forma sucinta e simples, as noções apresentadas
por Barros (2005, 2005a, 2008) no que concerne às estratégias de sedução e provocação e sua
relação com a (des)cortesia verbal, sugerimos, a seguir, um quadro-síntese. Seguramente, não
passa de uma tentativa muito aproximada que precisa ser mais aprofundada.
124
Quadro 2 – Relação entre estratégias de manipulação e (des)cortesia verbal
Efeito de sentido no texto Cortesia Descortesia
Estratégia de manipulação
Sedução
Provocação
Construção da imagem
Positiva do destinatário
(por oposição à imagem
negativa do destinador)
Negativa do destinatário
(por oposição à imagem
positiva do destinador)
Recursos linguísticos
Emprego de marcas de
intensificação ou atenuação, de
maneira explícita ou implícita
Emprego de marcas de
intensificação ou atenuação, de
maneira explícita ou implícita
Comportamento verbal do
destinador
Elogiar, exaltar, apoiar, colocar-
se de acordo com o outro, pedir
opinião, mostrar interesse em
colaborar com o outro, amenizar
afirmações impositivas, críticas
e discordâncias etc.
Denegrir, criticar, desmerecer,
insultar, contrapor-se claramente
ao outro, demonstrar
desinteresse, insinuar sob a forma
de ironia, intensificar pedidos,
ordens, diálogos polêmicos etc.
Fonte: elaborado pela autora (2021).
Fechando essas considerações, entendemos que, nos ambientes virtuais, mais
especificamente, no Twitter, o estatuto da relação espaço-temporal, de acordo com Lion (2006),
assume uma nova dimensão e exerce forte influência nas interações, levando os sujeitos a não
se preocuparem com a preservação da imagem do outro e a se valerem de estratégias
descorteses, o que normalmente não acontece nas interações do texto falado. Inclusive,
Márquez e Rodrigo (2015) pontuam que pesquisas, as quais abordam essa temática são, em
grande parte, derivadas da frequência com que os interlocutores costumam ser deselegantes nas
redes sociais, como o Facebook e o Twitter, fato que ocorre, de maneira inversa, nas interações
face a face, em que o habitual é se comportar de maneira cortês.
Neste ponto, convém reiterar que “a construção de uma imagem (ou face) socialmente
valorizada constitui parte do esforço cooperativo que conduz a uma conversação amigável”
(GALEMBECK, 2008, p. 351). Assim, torna-se relevante a adoção das manifestações de
cortesia, orientadas no gerenciamento das relações interpessoais e na busca do equilíbrio e
125
respeito entre os parceiros comunicativos, evitando, consequentemente, conflitos, tensões e
circunstâncias constrangedoras em situações concretas de interação.
Diante do exposto, consideramos que a rede social digital Twitter oferece aos
pesquisadores uma oportunidade, sem precedentes, de observação e análise do comportamento
sócio-discursivo dos participantes (em particular, do trabalho de imagem realizado nas ações
de denúncia e encaminhamento da solução do mal-entendido) da interação, num cenário
contemporâneo de comunicação, em que é possível testar hipóteses e recrutar com eficiência
sujeitos dos mais diversos perfis.
126
CAPÍTULO 4
CONVERSAÇÃO NA REDE : RESSIGNIFICANDO
CONCEITOS E FUNÇÕES
“[...] o avanço das comunicações mediadas pelo
computador propicia que as relações nos espaços virtuais
tenham contornos semelhantes às relações do mundo
real.”
(BARRY WELLMAN)
Neste capítulo, apresentaremos as principais características da conversação na internet,
em particular, no ambiente das redes sociais, verificando sua capacidade de simular, sob muitos
aspectos, elementos da conversação face a face. Para tanto, serão abordados alguns conceitos
trazidos pelos principais estudiosos da Comunicação Mediada pelo Computador (CMC), a
partir da perspectiva dos estudos da fala-em-interação.
4.1 A conversação face a face e seus desdobramentos na internet
Neste primeiro momento, julgamos relevante explicitar a expressão conversação
contida no título deste capítulo. Começamos por Bakhtin (2011[1953]), que analisava a
conversa como sendo um dos gêneros primários, constituída na troca verbal espontânea e ligada
à esfera do discurso cotidiano, por exemplo, um diálogo entre amigos. Para Sacks, Schegloff e
Jefferson (2003), consiste em uma atividade estruturalmente organizada.
Nas palavras de Rodrigues (2001, p. 18):
A conversação é um evento de fala especial: corresponde a uma interação verbal
centrada, que se desenvolve durante o tempo em que dois ou mais interlocutores
voltam sua atenção para uma tarefa comum, que é a de trocar ideias sobre determinado
assunto.
Nessa linha de condução, Marcuschi (1991, p. 15, grifo do autor) apresenta cinco
características básicas constitutivas da conversação. São elas:
(i) interação entre pelo menos dois falantes; (ii) ocorrência de pelo menos uma troca
de falantes; (iii) presença de uma sequência de ações coordenadas; (iv) execução numa
Tradução da autora para o trecho original: “[...] the rapid emergence of computer-mediated communications
means that relations in cyberplaces are joining with relations on the ground.”
127
atividade temporal e (v) envolvimento numa “interação centrada” (isto é, os
participantes tratam de um tema específico - tópico discursivo).
Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 8, grifo da autora) acrescenta que o exercício da
conversação “implica uma interação, ou seja, ao longo do desenrolar-se de uma troca
comunicativa qualquer, os diferentes participantes [...] exercem uns sobre os outros uma rede
de influências mútuas – falar é trocar, e mudar na troca.”
Ademais, na interação face a face, o discurso é inteiramente ‘coproduzido’, é o
produto de um ‘trabalho colaborativo’ incessante – esta é a ideia-força que embasa
o enfoque interacionista das produções linguísticas (KERBRAT-ORECCHIONI,
2006, p. 11, grifo da autora).
Hilgert (1989, p. 82) deixa claro que “a conversação representa uma atividade prática e
cotidiana, cujo desenvolvimento depende da auto-organização patrocinada interacionalmente
pelos interactantes”. Ademais, para o autor (2011, p. 243):
É indiscutível que o desdobramento bem sucedido de uma interação linguística, sejam
quais forem os propósitos comunicativos que a motivem, pressupõe a necessidade de
compreensão entre os interlocutores.
Para tanto, o falante investirá, na construção de seus enunciados, os recursos linguístico-
discursivos que, em sua avaliação, assegurem a compreensão do ouvinte.
Em síntese, consideramos a conversação como uma atividade linguística rotineira, que
prevê, pelo menos, a interação entre dois participantes. Ao mesmo tempo, consiste em um
processo organizado estruturalmente e constantemente negociado pelos parceiros durante o
desdobramento conversacional, com vistas a alcançar um objetivo comum: a intercompreensão.
A nosso ver, essas características constitutivas da organização de uma conversação
também são evidentes no ambiente da internet. Inclusive, ratificamos, aqui, nossa opinião
favorável às pesquisas que abarquem essa temática. Consideramos que, com o advento das
ferramentas digitais, as práticas de conversação, ou melhor, de interação face a face, passaram
por um processo de (re)apropriação em novos espaços conversacionais, por exemplo, o das
redes sociais (onde a comunicação mediada pelo computador adquire contornos semelhantes
ao da conversa).
Nessa direção, Recuero (2012, p. 21) argumenta que “o computador, mais do que uma
ferramenta de pesquisa, de processamento de dados e de trabalho, é hoje uma ferramenta social,
caracterizada, principalmente pelos usos conversacionais”, tendo em vista que a sua utilização
128
social e a portabilidade de outros artefatos digitais (notebooks, tablets e smartphones) permitem
a prática do gênero mais antigo da humanidade: a conversação.
A partir dessa perspectiva, pretendemos discutir, neste capítulo, como as características
da prática conversacional no espaço da mediação digital do computador é capaz de simular, sob
muitos aspectos, elementos da conversação face a face. Para tanto, apresentaremos alguns
conceitos trazidos por estudiosos da Comunicação Mediada pelo Computador (CMC),
articulados com o aporte teórico apresentado no Capítulo 2 desta tese.
4.2 A comunicação mediada pelo computador: breves conceitos
As práticas da conversação pelo computador são comumente referidas, na literatura, a
partir dos preceitos da chamada Comunicação Mediada pelo Computador.106 De acordo com
Recuero (2012, p. 23), a CMC “foi consolidada como a área de estudo dos processos de
comunicação humanos realizados através da mediação das tecnologias digitais.”
Baron (2002) define a CMC como qualquer mensagem de linguagem natural,
transmitida e/ou recebida via computador. Herring (1996) ratifica esse conceito, permitindo
caracterizá-la como a comunicação que acontece entre seres humanos mediante a
instrumentalidade dos computadores.
Recuero (2009) aborda ainda os aspectos técnicos dessa mediação, afirmando que há
inúmeras ferramentas que proporcionam a conversação no meio digital, algumas focadas
apenas em textos, outras em imagem e som, e até mesmo aquelas que compreendem todos esses
elementos107. No entanto, para a autora, a CMC não corresponde apenas a uma estrutura técnica
de suporte à linguagem, mas igualmente a um conjunto de ferramentas cujo sentido é construído
pelos interagentes. E parte dessa construção leva em conta as práticas de conversação.
Mediante tais considerações, Herring (2010), em artigo publicado na revista
Language@Internet108, explica que alguns analistas da conversa de tradição etnometodológica,
106 Outros termos foram utilizados por David Crystal, em entrevista concedida a Artarxerxes Modesto, para
caracterizar a CMC. São eles: Comunicação Eletronicamente Mediada (CEM) ou Comunicação Mediada
Digitalmente (CMD). Disponível em: <http://www.letramagna.com/davidcrystalport.htm>. Acesso em 18 set.
2021. 107 Recuero (2009) afirma que a CMC é um tipo de comunicação que ainda privilegia especialmente o texto, mais
do que o som e o vídeo (vide, por exemplo, o Twitter). 108 Herring (2010) comenta que, em 2010, foram publicados na revista eletrônica Language @ Internet, em edição
especial, artigos originais que se concentram em reunir informações teóricas e pesquisas metodologicamente
129
a princípio, rejeitaram a concepção de que as trocas textuais mediadas pelo computador estão
intrinsecamente relacionadas com a fala-em-interação. Entretanto, por volta do final dos anos
1990 e início dos anos 2000, diversos linguistas (influentes na área da comunicação mediada
por computador), por meio da análise de evidências empíricas, constataram que a CMC possui
elementos típicos da conversação face a face (CFF) e, ainda, cumpre muitas funções sociais da
comunicação oral.
Vejamos o que a autora (2010) tem a nos dizer acerca dessa última afirmação:
Em linguagem informal, os usuários da Internet geralmente se referem às trocas
textuais como conversações, utilizando verbos como ‘falou’, ‘disse’ e ‘ouviu’ em vez
de ‘digitou’, ‘escreveu’ ou ‘leu’ para descrever suas atividades de CMC. Até autores
publicados às vezes referem-se, de modo inconsciente, parece-me, aos ‘falantes’ mais
do que aos ‘escreventes’ digitais, à ‘conversa’ mais do que a ‘trocas digitadas’,
‘turnos’ mais do que ‘mensagens’, e assim por diante, quando se reportam à CMC.
Esse uso linguístico atesta o fato de que a experiência de usuários da CMC é
fundamentalmente semelhante à conversação falada, embora a CMC seja produzida e
recebida por escrito (HERRING, 2010, p. 1-2).109
Nesse direcionamento, Recuero (2012, p. 34-5) afirma que, “embora as tecnologias
digitais não tenham sido, em sua maioria construídas para simular conversações, são utilizadas
deste modo, construindo, portanto, ambientes conversacionais”, como o das redes sociais,
principalmente, no que diz respeito à sua estrutura e organização. Inclusive, convenções são
criadas também para suplementar textualmente os elementos da linguagem oral, ou melhor, os
participantes da troca comunicativa utilizam uma gama de recursos para adequar certas
manifestações linguísticas específicas da fala ao processo de escrita na rede.
Diante do exposto, Lévy (1996) acrescenta que o texto contemporâneo, que emerge do
ciberespaço, reconstitui a copresença da mensagem e do ambiente que caracteriza a
comunicação oral. Segundo o autor, os critérios se reaproximam daqueles do diálogo ou da
conversação.
Por essa razão, a proposta deste capítulo é discutir de que maneira a conversação na rede
(CNR), por meio da utilização das ferramentas de CMC, reconstitui elementos prototípicos da
rigorosas com foco em aspectos da conversação mediada pelo computador. Segundo a autora, essa coletânea revela
que, apesar da CMC ser produzida tradicionalmente por texto escrito (digitado), também compartilha numerosas
características da conversa falada (informal). 109 Tradução da autora para o trecho original: “In casual parlance, Internet users often refer to textual exchanges
as conversations, verbs such as talked,’ ‘said,’ and ‘heard’ rather than ‘typed,’ ‘wrote,’ or ‘read’ to describe their
CMC activities. Even published authors sometimes refer, unconsciously, it seems, to ‘speakers’ rather than online
‘writers’, ‘talk’ rather than ‘typed exchanges’, ‘turns’ rather than ‘messages,’ and so forth, when reporting on
CMC. This linguistic usage attests to the fact that users experience CMC in fundamentally similar ways to spoken
conversation, despite CMC being produced and received by written means.”
130
conversação face a face. Importa mencionar que essa discussão será pontuada por meio de
exemplos empíricos, que focalizam aspectos fundamentais da conversação oral, no que diz
respeito à sua aplicabilidade, em situações de comunicação concreta no ambiente da rede,
especificamente, do Twitter.
4.3 O ambiente conversacional: redes sociais na internet
O advento da internet atesta para o reconhecimento das rápidas e profundas alterações
na forma como nos relacionamos uns com os outros. Um bom exemplo é o das redes sociais
digitais, que permitem a comunicação e a interação social entre muitas pessoas. Significa dizer
que a rede social se configura em um ambiente de conversação, constituído de agrupamentos
humanos que interagem socialmente, apoiados nas tecnologias digitais de informação e
comunicação. Inclusive, entre as redes sociais mais populares do Brasil, encontram-se o
Facebook, WhatsApp, Instagram e o Twitter.
Neste ponto, é significativo mencionar que o Twitter funciona, nesta pesquisa, como um
mirante privilegiado para pensar e compreender seu potencial comunicativo no mundo
contemporâneo. Ademais, as conversações que acontecem, nessa rede social, são públicas,
permanentes e rastreáveis, permitindo-nos um estudo aprofundado e explicações
epistemologicamente coerentes sobre as questões levantadas nesta tese.
De modo geral, Boyd e Ellinson (2007 apud Recuero, 2009, p. 102) definem redes
sociais como sistemas que integram “(i) a construção de uma persona através de um perfil ou
página pessoal; (ii) a interação por meio de comentários; (iii) a exposição pública da rede social
de cada ator”, oferecendo ao pesquisador a investigação das trocas comunicativas, no tempo e
no espaço, em que foram realizadas.
Para Recuero (2009), uma rede social na internet é definida por dois elementos: atores
(pessoas, instituições ou grupos) e suas conexões (interações sociais). Em síntese, os atores são
representados nas redes sociais por meio de seus perfis, páginas pessoais que possibilitam a
construção de identidade, da apresentação de alguém que fala no espaço virtual (ver Figura 6).
Segundo a autora (2009), essas páginas funcionam de modo a transmitir a presença do “eu” na
rede. Inclusive, como o corpo físico – elemento fundamental na construção da situação de
interação – não participa do processo no espaço mediado pelo computador, há, portanto, a
necessidade – na construção desse “eu” – de colocar rostos e informações que gerem
131
individualidade e empatia, a fim de que essa identidade seja estabelecida e reconhecida pelos
demais. “Essa construção, necessária para a visibilidade daquele com quem se fala, é
fundamental à interlocução. A partir dessa construção, tem-se a presença, ainda que “virtual”,
que permite a situação de conversação” (RECUERO, 2012, p. 44).
Nesse direcionamento, pressupomos que a própria configuração do Twitter é estratégica,
no sentido de permitir uma parte sempre visível do perfil (no caso, a foto) nos tuítes produzidos
e compartilhados pelo usuário na rede. Parece-nos que o funcionamento desse recurso confere
uma impressão de estabilidade ao “eu virtual”, transparecendo que nem tudo é fluido na rede
social. Mesmo ao descer a barra de rolagem, a impressão que temos é que os conteúdos postados
foram ditos por um sujeito fixado no instante da leitura, cuja imagem, nome de exibição e nome
de usuário permanecem visíveis na tela enquanto navegamos. E, cada vez que o usuário muda
a sua foto, todo o conteúdo publicado anteriormente passa a ser exibido por essa nova
construção.
Já, no que concerne às conexões de uma rede social, Recuero (2009, p. 30-31) afirma
que, em termos gerais, elas são estabelecidas por meio da comunicação entre os atores, “onde
um constitui-se em elemento de orientação para o outro.” As palavras de Parsons e Shill (1975
apud Recuero, 2009, p. 31) vêm reforçar essa concepção:
A ação de um depende da reação do outro e há orientação com relação às expectativas.
Essas ações podem ser coordenadas através, por exemplo, da conversação, onde a
ação de um ator social depende da percepção daquilo que o outro está dizendo.
Tomando por base os pressupostos teóricos da AC e da LI, podemos dizer que os
momentos conversacionais mediados pelo computador, ou melhor – os que ocorrem nas redes
sociais – têm caráter essencialmente dialógico e desenvolvem-se também por meio de turnos
(embora com características próprias, uma vez que as trocas são predominantemente escritas).
Observemos, a seguir, uma interação diádica, isto é, aquela que acontece entre dois
atores (usuários), na rede social Twitter:
132
Excerto 22
Usuário A: “Seu pai é o Aydano André Motta?” 05/06/2020, 12h14. Tuíte.
Usuário B: “Padrasto” 05/06/2020, 13h29. Tuíte.
Usuário A: “Entendi! Estava vendo ele falando essa semana no redação Sportv sobre a pauta de
racismo no esporte e como ele aprendia bastante em casa com duas mulheres negras incríveis, hj
descobri que eram a Flávia e a Isabela!” 05/06/2020, 13h32. Tuíte.
Fonte: Twitter.110
Notamos, nesse exemplo, a organização estrutural da conversa, que se constitui na
participação de dois usuários em torno de um determinado assunto: família – referência ao
padrasto do usuário [B]. Constatamos, assim, que esse trecho conversacional se pautou pela
centração temática. Notamos a alternância na vez de se pronunciar, visto que o tuíte, no primeiro
turno, é constituído de uma pergunta realizada pelo usuário [A]. O segundo turno corresponde
à réplica/resposta do usuário [B], de modo a resgatar o que foi produzido no turno anterior. Já,
no terceiro turno, o usuário [A] acata o dizer de [B]. Verificamos também que a troca interativa
ocorre, num tempo específico, de forma coordenada, atestando similaridades com a
conversação oral.
Ainda, é oportuno dizer que as interações na rede podem ocorrer tanto de forma
síncrona (interação dos participantes em tempo real, em que a expectativa de resposta do
interlocutor é quase imediata) quanto de modo assíncrono (trocas comunicativas em que dois
ou mais atores não atuam ao mesmo tempo), de maneira que a unidade temporal se torna
elástica, pois nem sempre há a presença dos participantes, simultaneamente, na conversa
(RECUERO, 2012).
No excerto 22, verificamos que a interação se comporta de modo assíncrono, tendo em
vista que a resposta do usuário [B] à pergunta de [A] não se realiza imediatamente. Há um
espaço considerável de tempo entre o primeiro e segundo turnos. No entanto, entre o segundo
e terceiros turnos, notamos a ocorrência de uma comunicação síncrona, pois os tuítes são
publicados em sequência temporal quase imediata.
Tomando por base essas considerações, Herring (1999) observa que a reconstrução dos
pares conversacionais, na comunicação assíncrona, pode acontecer porque o ambiente registra
110 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1269091711441125377>. Acesso em 06 jun. 2020.
133
as mensagens, permitindo que os participantes o visitem em momentos diferentes, podendo dar
continuidade à conversação.
Diante do exposto, observemos o fragmento a seguir:
Excerto 23
Usuário A: “Lembram qdo a gente via filme de terror estarrecido com a burrice das personagens que
saiam pra ver o que estava acontecendo e obviamente morriam? Pois é, não parece tão inverossímil
agora, né? :P” 18/05/2020, 9h44. Tuíte.
Usuário B: “quem diria que viveríamos essa distopia...” 18/05/2020, 9h53. Tuíte.
Usuário C: “É trágico e, ao mesmo tempo, cômico!” 18/05/2020, 13h09. Tuíte.
Fonte: Twitter.111
Constatamos, nesse segmento, que se trata de uma conversação desenvolvida entre três
participantes, na qual o usuário [B] responde, num tempo relativamente curto, ao turno de [A].
Praticamente, há uma interação em tempo real (síncrona), levando-se em conta o tempo para
digitar e, às vezes, até revisar o que foi publicado. Normalmente, esse tipo de comunicação
envolve uma ação mais dinâmica na elaboração e envio das mensagens. Herring (1999) relata
que as interações em tempo real (online) são capazes de simular uma troca de informações de
modo semelhante a uma interação face a face, uma vez que há a copresença dos participantes
no ambiente da rede. Já a mensagem produzida pelo usuário [C], que também participa da troca
comunicativa, é publicada aproximadamente três horas depois, constituindo, assim, uma
interação assíncrona.
Nessa direção, a autora (2006) argumenta que os usuários podem participar das
interações na rede sem ficarem irremediavelmente perdidos ou confusos, porque existe um
registro textual persistente, para o qual eles podem voltar em momentos temporais diferentes,
a fim de acompanhar o que está acontecendo. Para Herring (1999), sem essa persistência textual
– se, por exemplo, as mensagens desaparecessem da tela imediatamente após serem lidas – a
CMC seria, sem dúvida, mais incoerente em termos de interação e muito mais limitada em seus
usos.
Passaremos, na seção seguinte, a sistematizar os elementos que organizam os processos
conversacionais na rede, a partir de suas características.
111 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1262363462405165056>. Acesso em: 06 jun. 2020.
134
4.3.1 A organização da conversação na rede: turnos e pares
Uma das principais ideias acerca da conversação é o fato de que se constitui em um
evento organizado. Tendo em vista que a CMC se assemelha à conversação oral, pretendemos
discutir, nesta seção, como a organização da conversa é ressignificada nos ambientes
conversacionais da internet (rede social), no que diz respeito a dois aspectos básicos na estrutura
da conversação: turnos e pares adjacentes.
Como discutimos no segundo capítulo deste trabalho, o estudo linguístico dos turnos
remonta a Sacks, Schegloff e Jefferson (2003), que desenvolveram um modelo, em que os
falantes adotam estratégias de alocação de turnos, buscando sustentar a regra “fala um por vez”
como o ideal. Desse modo, quem fala sustenta o piso durante o seu turno, e o piso muda a cada
troca de falante. Galembeck (2001) deixa clara a importância dos turnos para a conversação, ao
explicar que eles garantem a alternância dos participantes durante a interação, condição
necessária para que esta se instaure.
Nessa direção, Condon e Čech (2010) afirmam que um recurso compartilhado por toda
interação humana é a necessidade de gerenciamento dos turnos, a fim de que os participantes
possam reagir às contribuições uns dos outros. Para os autores, tal estratégia parece ser
complexa, no entanto é flexível o suficiente para se adaptar a uma variedade infinita de
contextos, inclusive, ao meio digital.
Ademais, os autores (2010) pontuam que, na interação face a face, os participantes
devem planejar seus enunciados, interpretar as mensagens recebidas e identificar um momento
apropriado no fluxo da conversa para produzir suas contribuições. A consequência dessas
demandas de processamento é minimizar o tamanho do turno e, por conseguinte, tornar a
interação mais eficiente.
No que se refere à interação síncrona, Condon e Čech (2010) argumentam que os
parceiros comunicativos normalmente esperam pelas mensagens direcionadas a eles, como
também pela oportunidade de se revezarem na conversa. Além disso, as mensagens não são
revisadas, porque os participantes “teclam” numa velocidade relativamente rápida. Tais
considerações nos levam a acreditar que a conversação na rede é constituída de aspectos muito
próximos aos da conversação face a face.
Nessa linha de condução, Herring (1999, p. 2) assevera ainda que a conversação
síncrona possibilita a presença de vários interlocutores ao mesmo tempo na rede, aumentando
135
a “sobreposição” (overlap) que, para a autora, é vista como a participação de vários atores em
resposta a um mesmo turno.
Nessa perspectiva, Crystal (2004, p. 159, grifo do autor) aponta que:
O efeito assemelha-se a um coquetel em que todos estão falando ao mesmo tempo -
exceto o que é pior, porque cada convidado pode “ouvir” cada conversa da mesma
forma e cada convidado precisa continuar falando, a fim de provar aos outros que
ainda estão envolvidos na troca.112
A nosso ver, esse potencial “distúrbio” é minimizado pela implementação de
tecnologias, por exemplo, os softwares – programas que executam tarefas no computador – os
quais impedem a sobreposição material daquilo que é dito, propiciando uma conversa
organizada. Nesse sentido, Recuero (2012, p. 69) afirma que, “embora um turno possa ter várias
contribuições simultâneas, elas não aparecerão sobrepostas, mas organizadas pelos sites.”
Ainda, no dizer da autora (Ibid., p. 67):
Como a maior parte das ferramentas é textual, há uma organização intrínseca, que
provém do próprio sistema de envio e recebimento das mensagens. O que alguém
escreve e envia sempre aparecerá como um turno independente, não sobreposto.
Fechando essas considerações, convém ressaltar que, no Twitter, não se observa
possibilidade de fenômenos que ensejam o assalto ao turno. Tanto em interações diádicas
quanto em interações poliádicas, a alocação dos turnos transcorre por determinação do meio
eletrônico, uma vez que eles vão surgindo na tela, na medida em que os participantes “digitam”
seus enunciados e, quando concluídas as suas proposições, acionam o comando “enviar” (enter)
no teclado do computador.
Vejamos um excerto extraído da rede social Twitter:
112 Tradução da autora para o trecho original: “The effect somewhat resembles a cocktail party in which everyone
is talking at once – except that it is worse, because every guest can ‘hear’ every conversation equally, and every
guest needs to keep talking in order to prove to others that they are still involved in the interchange.”
136
Excerto 24
Usuário A: “Republica Federativa do Turcomenistão do Brasil, onde Jair Diabo Bolsonaro tenta criar
uma realidade alternativa que lhe convenha. Nao passará” 06/06/2020, 10h37. Tuíte.
Usuário B: “Jair não, Javier!” 06/06/2020, 10h42. Tuíte.
Usuário C: “To me sentindo no mundo de 1984” 06/06/2020, 10h42. Tuíte.
[...]
Usuário D: “Pois eh... Agora este boçal, vive aqui em Goiás, juntando com cantor sertanejo (leia se
@xxxxxxxx Eh toda a ralé dos coronéis! [ ] @xxxxxxxx vá trabalhar para diminuir transmissão do
vírus e não venha fazer festa em Goiás... Como se td tivesse as mil maravilhas![ ]” 06/06/2020,
14h56. Tuíte.
Fonte: Twitter.113
Nessa interação simétrica114, os sujeitos-usuários interagem a partir do tuíte inicialmente
produzido por [A]. Há, como vimos um mecanismo intrínseco ao sistema que organiza a
contribuição de cada participante. Observamos ainda que o usuário [B] tuita praticamente ao
mesmo tempo que o usuário [C].
No que concerne à ideia de par adjacente, verifiquemos o excerto a seguir:
Excerto 25
Usuário A: “O que vc achou dá live?” 19/04/2017, 12h51. Tuíte.
Usuário B: “só ” 19/04/2017, 12h52. Tuíte.
Fonte: Twitter.115
No excerto 25, observamos que o usuário [A] faz uma pergunta que é imediatamente
respondida pelo usuário [B], formando uma unidade, ou melhor, um par conversacional.
Retomando o conceito, proposto por Sacks (1992), de par adjacente, entendemos que este se
constitui em uma sequência de turnos inter-relacionados (por tipo), por exemplo, um par é
formado por um turno que se caracteriza como uma pergunta e outro que se constitui como uma
resposta, produzidos por interlocutores distintos.
113 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1269262051907702786>. Acesso em 06 jun. 2020. 114 Em síntese, há duas modalidades básicas de interação: (i) simétrica: quando os interlocutores contribuem para
o desenvolvimento do tópico conversacional; (ii) assimétrica: quando um dos interlocutores desenvolve o tópico;
e o outro vigia ou segue seu parceiro (GALEMBECK, 2001). No Twitter, a interação costuma ser definida como
simétrica, uma vez que qualquer usuário é um produtor potencial de conteúdo e suas mensagens são passíveis de
serem comentadas por qualquer outro usuário da rede. 115 Disponível em:<https://twitter.com/username/status/854543157366751232>. Acesso em: 08 jun. 2020.
137
Sob essa perspectiva, Recuero (2012, p. 71) explica que pares adjacentes “não
necessariamente são constituídos de turnos imediatamente subsequentes na mediação do
computador”, isto é, uma determinada resposta pode aparecer vários turnos depois de seu par –
a pergunta. Essa situação implica pares que se relacionam entre si, mas que não estão dispostos
em uma sequência ordenada.
Na tentativa de resolver essa questão, a autora (2012, p. 72-3) afirma que:
O Twitter, por exemplo, passou a incorporar a função de indicar, ao se clicar em uma
resposta, a qual tuíte aquela resposta foi direcionada. Assim, a própria ferramenta
organiza os pares conversacionais, auxiliando os atores a engajar-se na conversação.
Vejamos a utilização desse recurso no fragmento, a seguir, extraído da rede social
Twitter:
Excerto 26
Usuário A: “Tô vendo o Villa mix agora, Leonardo ainda não foi né?” 07/06/2020, 18h23. Tuíte.
Usuário B: Em resposta a @usuárioA “Qual canal” 07/06/2020, 18h29. Tuíte.
Usuário C: Em resposta a @usuárioA “Ainda não!!” 07/06/2020, 18h30. Tuíte.
Usuário A: Em resposta a @usuárioB “YouTube do Villa mix” 07/06/2020, 18h31. Tuíte.
Usuário B: Em resposta a @usuárioA “Muito obrigado” 07/06/2020, 18h31. Tuíte.
Fonte: Twitter.116
Verificamos, no excerto 26, que a intervenção de [A] possui como ato inicial uma
pergunta, que somente é respondida pelo usuário [C], após a manifestação de [B]. Notamos que
o usuário [B], em vez de responder imediatamente à questão produzida por [A], encadeia sua
intervenção com outra pergunta “qual canal”, cuja função é pedir um esclarecimento ao usuário
[A]. Este, então, fornece a resposta, após a manifestação de [C].
Nessa interação imbricada, observamos que os interlocutores respondem uns aos outros
por meio de um marcador de resposta: “Em resposta a @usuárioX”. Tal prática é denominada
por Werry (1996, p. 52), de “endereçamento” (addressivity), ou seja, funciona, na rede, como
um metadado, ou melhor, um sistema de vinculação da resposta de alguém ao conteúdo de uma
mensagem anterior. É oportuno dizer que, a partir de 2014, as respostas endereçadas a um
usuário, em específico, são materializadas, na plataforma, por um “fio” que liga verticalmente
o tuíte anterior à sua réplica, ou seja, funciona como um mecanismo que permite identificar a
116 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1269741746466021376>. Acesso em 08 jun. 2020.
138
organização de turnos e pares conversacionais, ou melhor, a natureza sequencial de uma
interação.
No excerto 26, observamos ainda a utilização do “método de endereçamento”117 sob
condições de “adjacência de turno interrompida” (disrupted turn adjacency), ou seja, causada
em razão das mensagens serem postadas na ordem recebida pelo sistema. Em interações
poliádicas, isso ocorre quando uma mensagem é separada de uma mensagem anterior, caso
outras mensagens sejam enviadas nesse meio tempo. Na tentativa de compensar esse problema
causado pela adjacência interrompida, esse recurso procura orientar os “ouvintes” (listenership)
quanto à conexão entre turnos e pares na conversação (HERRING, 1999).
Conforme discutido na seção 1.4 deste trabalho, outro método de endereçamento
desenvolvido pelo Twitter diz respeito a direcionar mensagens a um sujeito específico numa
conversa, por meio da utilização do símbolo@, recurso caracterizado como “menção”:
Ilustramos, no excerto, a seguir, como os usuários da rede empregam tal método:
Excerto 27
Usuário A: “Gente: vcs deve dar PARABENS pra quem FAZ um bom programa de TV, como a
@usuárioD do Masterchef e ñ pra quem "aparece' na TV!! pfv!” 29/10/2014, 12h46. Tuíte.
Usuário B: “@usuárioA o grande público não conhece quem faz o programa, só quem aparece.”
29/10/2014, 12h41. Tuíte.
Usuário A: “@usuárioB mas dar parabéns pra quem é entrevistado? quem dá um depoimento? nao
entendo isso! 'parabens por aparecer na tv'!” 29/10/2014, 12h52. Tuíte.
Usuário B: “@usuárioA To no modo lento (sono) mas entendi o "aparece" pra quem trabalha na
frente das câmeras...” 29/10/2014, 13h02. Tuíte.
Usuário A: “@usuárioB acho que me expressei mal, mas é vdd, todos acham q o apresentador faz
tudo soziho! eu me referia a pessoas comuns q aparecem” 29/10/2014, 8h10. Tuíte.
Usuário C: “Desculpe @usuárioA não sabia... então parabéns @usuárioD não perco um programa
#MasterChefBR pra mim o melhor!!” 29/10/2014, 12h54. Tuíte.
Usuário A: “@usuárioC @usuárioD aeeeeee” 29/10/2014, 12h57. Tuíte.
Usuário D: “@usuárioA @usuárioC ” 29/10/2014, 29/10/2014, 12h58. Tuíte.
Fonte: Twitter.118
Verificamos, nesse segmento conversacional, que os usuários da rede se apropriam a
todo momento da prática do endereçamento (@usuárioX) na produção de seus enunciados, com
117 Recuero (2009a, p. 123) caracteriza tal funcionalidade como “marcador de direcionamento”. 118 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/527290243406626816>. Acesso em 08 jun. 2020.
139
o intuito de negociar a conversação entre turnos, como também compensar os problemas de
rastreamento causados pela adjacência interrompida.
Stone (2014), um dos cofundadores da rede, explica esse recurso:
Começar o tuíte por @biz, por exemplo, significa que você está falando
especificamente comigo, por mais que possa destacar uma pessoa específica numa
conversa em grupo. Começamos a dar suporte a esse comportamento em 2007,
primeiro fazendo um link entre o “@nomedousuário” e o perfil e depois a uma
determinada conversa.
Nessa direção, Bays (1998) assinala que o endereçamento pode funcionar também de
maneira semelhante ao olhar nas conversas face a face, direcionando o próximo turno para uma
pessoa em particular ou para o grupo como um todo. Como sabemos, tal prática é comum na
comunicação oral e foi, portanto, (re)adaptada, pelos usuários, para a conversação na rede.
Vejamos como os usuários do Twitter costumam se apropriar disso:
Excerto 28
Usuário A: “BDM Online [07.06.20 21:09] ++Ministério da Saúde divulgou mais 1.382 mortes nas
últimas 24 horas, para o total de 37.312 no Brasil ++Neste período, foram confirmados mais 12.581
novos casos, para o total de 685.427 casos” 07/06/2020, 21h09. Tuíte.
Usuário B: “Imagina na segunda, que m.....” 07/06/2020, 21h15. Tuíte.
Usuário C: “Terça então deve ser ou o caos supremo ou eles trabalharam esse domingo e terça não
explode tanto. fé na segunda opção” 07/06/2020, 21h20. Tuíte.
Usuário D: “@usuárioE” 07/06/2020, 21h25. Tuíte.
Usuário E: “Acabei de ver, saiu no Fantástico.” 07/06/2020, 21h26. Tuíte.
Fonte: Twitter.119
Verificamos que, neste excerto, o usuário [D] não tece nenhum comentário, apenas
participa da conversação, quando convoca, por meio do endereçamento, o usuário [E]. É como
se dirigisse o olhar para este, convidando-o a interagir com os outros participantes.
Outro aspecto que merece destaque diz respeito ao ícone “curtir”, disponível tanto na
rede social Facebook quanto no Twitter. Para Recuero (2012), tal prática leva à formação de
um par adjacente, visto que, quando o usuário “curte” uma mensagem, ao teclar o recurso no
formato de “coração”, ainda que de forma simbólica, está tomando parte na conversação e
explicitando sua aprovação.
119 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1269783639912599553>. Acesso em 08 jun. 2020.
140
Observemos a utilização desse recurso no tuíte a seguir:
Figura 20 – Tuíte (adjacência)
Fonte: Twitter.120
Diante do exposto, podemos concluir que a estrutura organizacional da conversação em
rede, mais especificamente, no Twitter segue, de modo geral, a organização da conversa face a
face com algumas (re)adaptações, tais como: (i) a alocação dos turnos obedece a uma
funcionalidade temporal intrínseca que provém do próprio sistema (isto é, o turno aparece na
tela do computador assim que o participante clica em “tuitar” ou após o pressionamento da tecla
enter no teclado do computador); (ii) os atores (usuários) frequentemente se utilizam dos meios
tecnológicos para convencionar formas de estabelecer e recuperar os pares conversacionais, no
sentido de manter a compreensão e o andamento da conversação.
Por último, mas não menos importante, é o caráter dinâmico e a condição de
temporalidade das comunicações ditas “síncronas”, ou seja, em tempo real, que levam os
participantes a, além de economizar nas formas linguísticas (fator importante para manter o
ritmo do processo comunicativo), investir “toda a criatividade para atribuir a essa manifestação
escrita as marcas da comunicação face a face” (HILGERT, 2000, p. 53).
Nessa perspectiva, Marcuschi (2005a, p. 10-11) aponta que o comportamento dos
participantes em uma comunicação síncrona “[...] interfere na forma de escrever pela
necessidade da reação em tempo real. Isso constitui algumas das estratégias de textualização da
oralidade que passam para a escrita”. Crystal (2004, p. 130) defende que são “as interações
síncronas que causam uma radical inovação linguística, [...] influenciando certas convenções
do texto falado e escrito.”121
Para Örnberg (2003 apud Recuero 2009a), a CMC (tanto em interações síncronas como
assíncronas) constitui uma nova forma de linguagem, isto é, um hibridismo entre a escrita e a
oralidade, de modo a proporcionar uma maior fluência nas conversações e, por conta dessas
120 Disponível em: <https://twitter.com/search?q=username=typed_query>. Acesso em 08 jun. 2020. 121 Tradução da autora para o trecho original: “the synchronous interactions which cause most radical linguistic
innovation [...] affecting several basic conventions of traditional spoken and written communication.”
O usuário “curte” e/ou
“aprova” o tuíte, ao teclar no
coração.
141
características, justifica-se ainda a aplicação dos princípios da AC para as trocas interacionais
produzidas e veiculadas na rede.
Ainda, parece claro que a conversação digital122 vem trazendo, numa relação íntima com
a fala, uma formatação sui generis ao texto escrito. É sobre esse aspecto que discutiremos a
seguir.
4.3.2 A e-conversação: entre marcas e texto
Para Galli (2005, p. 125), “a linguagem da Internet tem seus pressupostos que,
naturalmente, estão caminhando para um novo modelo de comunicação”, uma vez que o
desenvolvimento e a utilização da rede acabam produzindo, entre seus usuários, uma linguagem
própria, repleta de termos típicos, isto é, todo participante, de uma maneira ou outra, acaba
compreendendo o conjunto da rede e os termos que determinam seu conteúdo e funcionamento.
Halliday (2007, p. 111-3) assinala que “[...] sob o impacto das novas formas de
tecnologia”, presencia-se uma situação em que a “oposição entre a fala e escrita está sendo
desconstruída” e cuja “distância está sendo amplamente eliminada”, ou seja, “[...] a tecnologia
está criando condições materiais que permite uma interação maior entre ambas”.123
Davis e Brewer (1997, p. 19 apud Crystal, 2004, p. 47) ratificam essas afirmações,
quando consideram a linguagem na internet como um recurso eclético, já que “ao escreverem
no meio eletrônico, os indivíduos adotam convenções do discurso oral e escrito para atender
aos seus propósitos comunicativos”.124
Para Latham (2006, p. 36):
O discurso eletrônico vale-se da escrita, ou seja, de uma linguagem que é digitada por
um dos interlocutores e visualmente apresentada na tela do computador, mas não se
limita a características dessa modalidade, uma vez que pode também assumir formas
que mais se assemelham ao discurso face a face.
122 Crystal (2004) observa que o termo e- apareceu em diversos casos em 1998. Casos como e-mail (correio
eletrônico), e-book (livro eletrônico ou digital) e e-texto (texto eletrônico ou digital) já são bastante usuais. Nessa
direção, sugerimos a expressão “e-conversação” para designar as conversações que ocorrem no meio eletrônico,
virtual ou mesmo digital. Passaremos, a partir de agora, a utilizá-la neste trabalho. 123 Tradução da autora para o texto original: “[...] under the impact of the new forms of technology which are
desconstructing the whole opposition of speech and writing. [...] the gap between spoken and written text has been
largely eliminated. [...] the technology is doing is creating the material conditions for interaction between the two.” 124 Tradução da autora para o trecho original: “Writing in the electronic medium, people adopt conventions of oral
and written discourse to their own, individual communicative needs.”
142
Nessa direção, Crystal (2004, p. 34, grifo do autor) argumenta que a principal
característica da e-conversação diz respeito ao esforço dos usuários em “capturar a noção de
‘não é o que você diz, mas o modo como diz algo’.”125 Desse modo, consideramos que as trocas
no âmbito da CMC, além de se constituírem de elementos da modalidade escrita, também se
constroem em um nível próximo à oralidade, na medida em que recuperam elementos
prototípicos da conversação face a face, isto é, os diferentes sistemas semióticos que as
constituem (material verbal, paraverbal e não verbal).
Corroborando essas reflexões, Seara et al. (2018, p. 344) argumentam que, na linguagem
do ambiente virtual, “não há oposição, mas sim uma contiguidade nos registros” oral e escrito.
Ainda, nas palavras das autoras (Ibid., p.346):
[...] a ausência de marcadores de pessoa e de informação paraverbal e não-verbal é
colmatada através de determinadas convenções gráficas que simulam essas dimensões
da oralidade. Essa compensação é feita através de diferentes mecanismos que vão
desde a pontuação expressiva à utilização de maiúsculas, aos comentários
metadiscursivos e aos emojis que, para lá do valor lúdico que, de forma redutora,
muitos lhes querem atribuir, são formas de simulação que assumem a mesma função
não-verbal na comunicação face-a-face.
Vejamos, a seguir, um segmento interacional, extraído da rede social Twitter:
Excerto 29
Usuário A: “eu discutindo hj em dia:
tá bom
jae
valeu
ok
blz vou dormi” 08/11/2018, 11h57 Tuíte.
Usuário B: “Certinho Boa noite ae fui” 10/11/2018, 01h32. Tuíte.
Fonte: Twitter.126
No exemplo, verificamos que dentre os procedimentos mais comuns, utilizados pelos
usuários da rede, estão as abreviaturas, em que se preservam elementos gráficos mínimos para
identificar foneticamente o termo, por exemplo, hj (hoje), tá (está), blz (beleza). Jonsson (1997)
entende que a utilização dessas estratégias compensatórias implica não somente uma
simplificação da forma de escrita, como também a diminuição do tempo de codificação na
leitura, levando os participantes a se aproximarem ainda mais da velocidade da fala. Ainda,
125 Tradução nossa para o trecho original: “[...] capture the notion of ‘it ain’t what you say but the way that you
say it’.” 126 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1060531777519927297>. Acesso em 21 fev. 2021.
143
para Crystal (2004), se uma intervenção demorar muito, ela se torna irrelevante, à medida que
a e-conversação avança. Portanto, as abreviaturas são indispensáveis, na tentativa de
economizar tempo e esforço tanto na produção quanto no envio das mensagens.
Sob essa perspectiva, Anis (2000) propõe o termo “neografia” (néographie) para todas
as grafias que se desviam do padrão ortográfico. Para o autor, dentre as neografias mais
relevantes, destacam-se: abreviaturas (q = que); esqueletos consonantais (mt = muito; qd =
quando; cmg = comigo; smp = sempre); logografias ou palavras-sinais (demais = d+);
alongamentos gráficos (Olaaa! Muituuuuuu! Ebaaaa!).
Outra conduta observada na rede diz respeito à utilização de letras maiúsculas, e/ou a
repetição de letras, na tentativa de transmitir alterações entonacionais. Vejamos, então, o
excerto 30, em que é possível notar, além da utilização de caixa alta e repetição de letras, a
combinação de caracteres do teclado para simbolizar um coração [<3]:
Excerto 30
Usuário A: “quem diriAAA que o menino da periferiAAA iriAAA dAAAr entrevistAAA parAAA
AAA ESPN” 11/06/2020, 1h14. Tuíte.
Usuário B: “Tudo copeeraaa paaaraaa o bem que servem aaa Deus. <3” 1h16, 11/06/2020. Tuíte.
11/06/2020, 1h16. Tuíte.
Fonte: Twitter.127
Ademais, verificamos que sinais de pontuação (por exemplo, as reticências) podem
ainda ser utilizados para indicar fenômenos de hesitação e pausas nos turnos da conversação. E
formas onomatopaicas (como a reprodução de risadas) são usadas para recuperar elementos
paraverbais típicos das conversações orais, como ilustra o exemplo a seguir:
Excerto 31
Usuário A: “Bom dia! Quem quer fazer igual o cavalo do Flávio Brasil e sair correndo daqui
responde...” 11/06/2020, 10h30. Tuíte.
Usuário B: “QUERO hahahhshahahah” 11/06/2020, 10h31. Tuíte.
Fonte: Twitter.128
127 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1270932281419534336>. Acesso em 11 jun. 2020. 128 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1271072297592512514>. Acesso em 11 jun. 2020.
144
Esse breve fragmento interacional faz referência ao cantor Flávio Brasil, que passou por
uma situação inusitada durante a sua live129, transmitida pelo canal YouTube, disponível na
internet. O sertanejo do Distrito Federal resolveu inovar em seu “show” com uma ideia que não
deu muito certo: o cantor entrou ao vivo em uma charrete, mas o animal se assustou logo no
começo da primeira música e saiu em disparada, levando o cantor.
Como vimos, no excerto 31, o usuário [A] inicia seu turno com o seguinte
questionamento: “Quem quer fazer igual o cavalo do Flávio Brasil e sair correndo daqui
responde...”, fazendo uma analogia à situação vivida pelo sertanejo e ao contexto enfrentado
pelo povo brasileiro na pandemia da Covid (no ano de 2020), quando se instaura no país uma
grave crise sanitária. [A] finaliza seu turno com o uso das reticências, uma estratégia importante
para o fluxo da conversa. O interlocutor [B] responde imediatamente à pergunta de [A], com
uma elocução em caixa alta (“QUERO”), seguida da onomatopeia, que simula uma gargalhada
(“hahahhshahahah”), indicando seu intenso desejo de deixar o país.
Em se tratando das estratégias de construção do texto da CINT, Hilgert (2000) também
chama a atenção para o uso abusivo dos pontos de interrogação e exclamação, visto que:
Um só dos sinais daria conta respectivamente do sentido interrogativo e exclamativo
do enunciado. O que se acresce além deste só se explica como tentativa de evocar
impressões da interação face a face, dificilmente traduzíveis por escrito.
Observemos tal característica no segmento extraído do Twitter:
Excerto 32
Usuário A: “ACORDEEEEEM! RT @usuárioX Rio de Janeiro HOJE [...] SP bateu recorde de
mortes ontem. Mesmo assim, vai reabrir o comércio de rua amanhã e os shoppings na quinta.
Preparem-se para o caos [fotos – calçadão do RJ].” 09/06/2020, 16h05. Tuíte.
Usuário B: “É porque não viu caxias!!! Aqui não tem praticamente NINGUÉM respeitando
quarentena” 09/06/2020, 16h28. Tuíte.
Fonte: Twitter.130
No excerto 32, notamos que o usuário [A] chama a atenção, por meio do uso de caixa
alta, de seus interlocutores (“ACORDEEEEEM!”), ao compartilhar em sua página pessoal a
publicação do @usuárioX, que diz respeito ao recorde de mortes provocado pela contaminação
129 O termo live é utilizado para designar uma transmissão ao vivo de áudio e vídeo na Internet, geralmente feita
por meio das redes sociais. Disponível em:<https://www.techtudo.com.br/noticias/2020/03/o-que-e-uma-live-
saiba-tudo-sobre-as-transmissoes-ao-vivo-na-internet.ghtml>. Acesso em 20 jul. 2020. 130 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1270437756502708226>. Acesso em 11 jun. 2020.
145
da Covid. Como vimos, no primeiro capítulo desta tese, a prática de republicar a mensagem de
alguém é denominada, na rede social Twitter, de retuíte (RT)131. Em sua réplica, o interlocutor
[B] utiliza o sinal de exclamação repetidas vezes (“É porque não viu caxias!!!”), com a intenção
de expressar a sua indignação quanto à população de Duque de Caxias, município do Rio de
Janeiro, que não está respeitando a quarentena imposta pelo governo, durante a pandemia.
Nessa perspectiva, Seara (2021) comenta que “o ponto de interrogação, tal como o ponto
de exclamação, podem ser usados como recurso único para pedir mais informações, exprimir
perplexidade, surpresa ou toda uma panóplia de estados de espírito e emoções.”132
Dürscheid (2009) afirma ainda que o usuário da língua se utiliza da repetição de sinais
de pontuação como dispositivo estilístico-gramatical, a fim de compensar um “déficit de
emocionalidade” (Defizit an Emotionalität), isto é, são marcas enunciativas projetadas no texto,
com vistas a produzir efeitos de sentido de oralidade.
Pensamos que as características de oralidade relacionadas por Koch e Öesterreicher e
outras mais podem ser compreendidas nesse sentido. Quanto maior for a convergência
desses traços no texto, mais intenso será o sentido de oralidade e de proximidade por
eles produzidos (HILGERT, 2020, p. 31).
No que concerne às características dos textos que circulam na rede, Hilgert (2000, p.
50) assinala ainda que “gírias e falas coloquiais estão também fartamente representadas”, como
demonstrado no exemplo a seguir, em destaque:
Excerto 33
Usuário A: “te amo be” 06/06/2020, 2h02. Tuíte.
Usuário B: “uhum amore kkk” 06/06/2020, 2h06. Tuíte.
Usuário B: “se me ama, então pare de me encher o saco por causa desse audioooioooio” 06/06/2020,
2h07. Tuíte.
Usuário A: “ta bom, eu paro mo se eu parar voce manda mais?” 06/06/2020, 2h11. Tuíte.
Fonte: Twitter.133
No excerto 33, notamos o certo uso das pessoas, do tempo e do espaço, em especial, da
1ª pessoa do singular que se dirige à 2ª, do tempo do agora e do espaço do aqui, criando o efeito
131 Cabe mencionar que, para Recuero (2012), o RT é ainda uma forma de estabelecer pares conversacionais. 132 Informação escrita [PowerPoint slides] fornecida pela Profa. Dra. Isabel Roboredo Seara em evento totalmente
online: “Cortesia em práticas discursivo-textuais na internet”, realizado sob a coordenação da Profa. Dra. Vanda
Maria da Silva Elias, na UNIFESP, em abril de 2021. 133 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1269132432814604289>. Acesso em: 11 jun. 2020.
146
de “enunciação enunciada, de simulacro de comunicação face a face e, portanto, de oralidade”
(BARROS, 2011, p. 211). Além disso, produz efeito de aproximação, de afetividade,
cumplicidade etc. Fica evidente também a informalidade da linguagem na rede, com vistas a
reproduzir o ambiente da conversação oral. Isso significa dizer que:
embora não seja constituída de “fala” na maioria das vezes, a conversação no ambiente
virtual é constituída de interações próximas desta, que simulam a organização
conversacional oral e que têm efeitos semelhantes nas interações sociais e na
constituição dos grupos (RECUERO, 2012, p. 49).
Importa mencionar que, de acordo com Kerbrat-Orecchioni (2006, p. 36, grifo da
autora), as conversações são “construções coletivas” produzidas por meio de palavras, como
também de silêncios, entonações, gestos, posturas, isto é, de signos de natureza variada: “as
conversações exploram diferentes sistemas semióticos para se constituir”, dentre eles,
material verbal, paraverbal (prosódico e vocal) e não verbal (olhares, mímicas, expressões das
emoções, gestos, entre outros). Inclusive, os dados paraverbais e não verbais são indicadores
muito eloquentes do “estado afetivo dos participantes” (Ibid., p. 41, grifo da autora) e, na sua
diversidade, esses diferentes materiais são igualmente necessários à comunicação e a um
melhor proveito da interação.
Com base nessa perspectiva, escritores habilidosos desenvolveram uma escala de
recursos que, exploram, no contexto digital, as variadas emoções do sujeito ou o estado
psicológico de quem os emprega. São os emoticons (emotion: emoção + icon: ícone), elementos
comumente utilizados nas produções comunicativas dos usuários da rede. Para Recuero (2012,
p. 48), consistem em “signos criados a partir de convenções de uso da linguagem no ciberespaço
e fornecem o contexto para o diálogo, bem como transformam a linguagem em ação.”
Ainda, em relação ao uso dos emoticons (ou emojis)134 na linguagem da rede, Seara et
al. (2018, p. 346, grifo das autoras) argumenta:
A escrita digital, evidentemente, não acompanha a velocidade do raciocínio
comparativamente ao momento de comunicação oral. A necessidade de tempo na
troca de mensagens síncronas, as que podem decorrer em tempo real [...], acaba por
poder atribuir à conversação escrita um caráter contraprodutivo e/ou desinteressante.
Assim, diminuir o tempo de espera entre os turnos da conversação “escrita” revela-se
uma necessidade, sendo o emoji um forte aliado neste sentido.
A seguir, apresentamos uma variedade de emoticons, largamente utilizados na rede:
134 Emoji = “palavra derivada da junção dos seguintes termos em japonês: e (絵 "imagem"?) + moji (文字
"letra"?)”. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Emoji>. Acesso em 11 jun. 2020. Importa mencionar
que, nesta tese, consideramos os termos emoticons, smyles e emojis como designações similares.
147
Figura 21 – Representação dos principais emoticons
Fonte: Página do site Ecommerce na Prática.135
Como vimos, os emoticons são constituídos de pequenas imagens. No entanto, os
usuários da rede também podem se valer da digitação associada de sinais de pontuação, letras,
números e ou caracteres especiais do teclado no intuito de criar outros ícones de emoções
(alegria, medo, espanto), intenções e/ou ações (beijar, piscar etc.), conforme ilustrado na figura
a seguir:
Figura 22 – Exemplos de emoticons (ou smyles)
Fonte: Página do site diferença.com.136
Observemos a utilização de um emoticon no fragmento a seguir:
135 Disponível em: <https://ecommercenapratica.com/emojis/>. Acesso em 11 jun. 2020. 136 Disponível em:< https://www.diferenca.com/emoticons-e-emoji/>. Acesso em 23 abr. 2021.
148
Excerto 34
Usuário A: “Estou numa sala no Clubhouse a Dani, de Jaú falou do absurdo crescimento de óbitos
por Covid19. E aqui está o grafico que Dr. Luis Fernando Correia me mandou: É gravíssima a situação
de Jaú.” 26/02/2021, 11h35. Tuíte.
Usuário B: “Toda a região de Bauru (que abrange Jaú, Botucatu, Lins e várias outras cidades) está
nessa situação.” 26/02/2021, 11h56. Tuíte.
Usuário C: “ Cuidem-se todos!”
Fonte: Twitter.137
No excerto 34, verificamos que o usuário [A] comenta sobre o crescimento de óbitos,
na cidade de Jaú, devido à disseminação do coronavírus. O usuário [B] acata tal afirmação,
indicando que não só Jaú estava passando por essa situação gravíssima como toda a região de
Bauru, no interior do Estado de São Paulo. No turno seguinte, o usuário [C] insere um emoticon,
constituído por uma carinha de choro [ ], geralmente, representando a sensação de “tristeza”,
e, em seguida, solicita: Cuidem-se todos!”. Ainda, ao tratar dos emoticons, Jonsson (1997)
argumenta que o uso frequente dessas expressões semióticas indica que os participantes
pretendem transmitir suas mensagens, com base na percepção do caráter oral de suas interações.
Portanto, mais do que contar exclusivamente com a destreza dos dedos escrevendo a
mensagem, o emoticon tem a capacidade de sintetizar um pensamento, uma mensagem num
único ícone/símbolo, como também exprimir o estado de espírito dos usuários da rede
relativamente ao seu turno de fala ou do interlocutor, muitas vezes difícil de expressar em
palavras (SEARA et al., 2018).
Neste ponto, convém ressaltar que Marcoccia e Gauducheau (2007), na análise de um
corpus constituído de quinze mensagens publicadas em fóruns de discussão acerca dos mais
variados temas (cinema, esporte, atualidades, séries e programas de televisão), examinaram
quatro funções distintas dos emoticons (ou smyles138, segundo os autores), as quais destacamos
a seguir: (i) expressiva: os emoticons desempenham o papel de transmitir o estado psicológico
(alegria, tristeza, medo, nojo, raiva, surpresa, entre outros) dos sujeitos e/ou de simular a
137 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1365309471992532994>. Acesso em 27 fev. 2021. 138 A título de curiosidade, o primeiro smyle foi desenvolvido por Scott Fahlman, professor da Universidade
Carnegie Mellon, em 1982, a fim de resolver um mal-entendido. O enunciado era irônico, no entanto não foi
interpretado adequadamente pelos usuários da plataforma. O professor, então, criou o ícone :-) para revelar o tom
de brincadeira (piada) nos enunciados e o ícone :-( para identificar mensagens sérias. Disponível em:
<https://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2014/07/entenda-diferenca-entre-smiley-emoticon-e-emoji.html>.
Acesso em: 06 jun. 2021. Importa mencionar ainda que, nesta tese, mantemos a sinonímia entre os termos
emoticons, smyles e emojis.
149
mimogestualidade, presentes na conversação face a face; (ii) interpretativa: esses recursos têm
a função de decodificar/interpretar ambiguidade nos enunciados, isto é, de revelar se uma
mensagem é irônica ou engraçada, por exemplo; (iii) relacional: os emoticons procuram indicar
a relação que o sujeito deseja instaurar com seu interlocutor (seja de familiaridade, seja de
proximidade, quando o tom da mensagem é neutro, entre outras); (iv) indicador de polidez:
esses ícones são utilizados para mitigar/atenuar o caráter ameaçador ou hostil de uma
mensagem.
Ainda, como sublinha Seara et al. (2018), os emoticons podem desempenhar várias
funções simultaneamente. É preciso, pois, observar como eles se articulam tanto na produção
quanto na interpretação dos enunciados. Inclusive, esses recursos podem não só indicar
manifestações de cortesia, como também serem marcadores de agressividade, veiculando
emoções negativas ou depreciativas.
Em síntese, as marcas discursivo-textuais apontadas revelam que os usuários desejam
interagir na rede. Para tanto, veem-se compelidos a “escrever” suas mensagens, bem como
precisam investir toda a sua criatividade, por meio do acionamento de determinados recursos
linguístico-discursivos, no sentido de também atribuir marcas de oralidade ao texto –
provenientes de experiências adquiridas como falantes nas diversas situações de interação face
a face.
Mediante tais considerações, sentimo-nos autorizados a analisar a interação por meio de
tuítes como uma “conversa” (instalação do simulacro de comunicação face a face; alternância
de turnos e sequencialidade; vocabulários e expressões próprias da fala; convenções gráficas
que simulam efeitos de sentido da oralidade, entre outros) e, por conseguinte, a assumir as
categorias teóricas da análise linguística da conversação na orientação deste estudo, visto que,
concordamos com a posição de Hilgert (2020, p. 32) quando argumenta que o estudioso da
Linguística Textual ou da Análise da Conversação tem como objeto de estudo o texto, o
“produto da enunciação” posto à sua consideração. “Nele estão inscritas as marcas da oralidade
que cabem ser percebidas e identificadas pelo analista, orientado por seus fundamentos teóricos
e metodológicos.”
Portanto, a fim de fecharmos as reflexões apresentadas nesta seção, oferecemos ao nosso
leitor um quadro comparativo entre as principais unidades que constituem a conversação face
a face e sua (re)apropriação na e-conversação, o qual apresenta as relações para casos típicos,
analisados no Twitter. Precisa, portanto, ser remodelado para dar conta de demais ocorrências.
150
Quadro 3 – Correlação entre elementos constituintes da CFF e e-conversação
Unidades da conversação face a face Ocorrências na e-conversação
Turno se constitui como qualquer intervenção
oral dos interlocutores.
Turno se constitui por cada intervenção por
escrito, predominantemente curtas. No Twitter
(até 280 caracteres).
De modo geral, há uma situação de simetria
entre as falas dos participantes quanto de
assimetria.
No Twitter, verifica-se geralmente uma relação
de simetria, pois cada participante busca discutir
o tópico e expor seu ponto de vista.
A transição de turnos é marcada pela
negociação entre os interlocutores e ocorre com
pequenos intervalos (o período de tempo que
vai do fim do turno do falante para o início do
turno do ouvinte).
A alocação de turnos nas interações da rede é
determinada pelo meio eletrônico, na medida em
que o participante conclui sua elocução e aciona
o comando “tuitar”.
Predomina a prática de um falante fazer uso da
palavra por vez – princípio que pode ser violado
pelo assalto ao turno.
Falar um por vez é norma compulsória, por
determinação do próprio sistema.
Impossibilidade de assalto ao turno.
Momentos de sobreposição são comuns, mas
breves.
Não há sobreposições, pois as contribuições são
organizadas, em ordem linear, pelo sistema.
Há um ordenamento entre as elocuções que
formam o par adjacente, isto é, elas vêm
posicionadas uma em seguida da outra. Por
exemplo: pergunta-resposta; convite-
aceitação/recusa, entre outros.
É possível que a adjacência de turnos possa ser
entrecortada, em razão das mensagens serem
publicadas na ordem recebida pelo sistema.
Nesse caso, a formação do par conversacional
pode ocorrer por meio do método de
endereçamento.
Uso de marcadores prosódicos que denotam
entonações, intensidade articulatória, elocução
enfática etc. e que, normalmente, funcionam
como expressões das intenções conversacionais
dos participantes.
Compensação de recursos paralinguísticos por
meio do uso de caixa alta, repetição de letras, uso
abusivo dos sinais de interrogação e exclamação,
marcadores não lexicalizados como uhum, ahn,
ah, eh.
Presença de gestos, posturas, atitudes afetivas,
entre outros.
Compensação dos recursos não verbais por meio
da utilização dos emoticons.
Marcador prosódico (pausas, hesitações) Uso de reticências
Marcador não-linguístico (risos) Uso de formas onomatopaicas
Informalidade da linguagem Uso de gírias e falas coloquiais
Dinamicidade/velocidade da fala Utilização de formas abreviadas
Fonte: elaborado pela autora (2020).
151
Constatamos que, em muitos aspectos, a e-conversação revela um crescente processo
de transposição ou (re)apropriação de características da CFF, em favor da interação, no que diz
respeito principalmente à sua organização (turnos e pares conversacionais). Verificamos, ainda,
uma notável versatilidade linguística dos usuários quanto às possibilidades de representação
gráfica de características prototípicas da oralidade. No entanto, reiteramos que essas
possibilidades não se esgotam no quadro aqui proposto, já que os interlocutores podem
reconstruir suas práticas cotidianas, a qualquer momento, no meio digital.
Ainda, de acordo com Leite et al. (2010), quando o estudo se refere à conversação, há,
frequentemente, a necessidade de abordar as especificidades tanto da fala quanto da escrita,
bem como a complexidade das relações que se estabelecem entre essas duas modalidades de
uso da língua, principalmente, no que diz respeito aos textos produzidos e veiculados na rede,
que descartam a divisão dicotômica entre elas e propõem a ideia de contínuo.
É desse aspecto que trataremos a seguir.
4.3.3 O texto na rede: contínuo fala-escrita
Como vimos, é possível caracterizar a CMC como uma conversação, ou melhor, e-
conversação, pois favorece a interação de ao menos dois atores, que se propõem a discutir
algum tópico ou assunto, por meio do gerenciamento de turnos. Ademais, os usuários
normalmente interagem como se estivessem falando. Contudo, é preciso ressaltar que o suporte
usado para a interação na internet é, em grande parte, a escrita que, no ambiente da rede, vem
permeada de traços da oralidade.
Reconhecendo, então, que o tema é amplo e implica diversas reflexões teóricas,
trazemos à consideração algumas perspectivas amplamente difundidas em estudos realizados
por Koch e Öesterreicher (1985, 2007[1990]), Marcuschi (2010), Crystal (2004), Hilgert (2000,
2020), como também contribuições diretamente ligadas ao modo como a questão é vista pela
perspectiva da Semiótica em estudos realizados por Barros (2000, 2015), no que diz respeito às
características dos textos produzidos e veiculados no âmbito das interações na internet
(principalmente, interações por e-mail, chat e redes sociais digitais).
Para Crystal (2004, p. 163), o que torna a “linguagem virtual” (netspeak) tão
interessante, como forma de comunicação, é a maneira como se baseia em aspectos pertencentes
152
tanto à oralidade quanto à escrita, uma vez que os participantes procuram representar, por meio
do registro gráfico-visual, certos padrões rítmico-entonacionais, marcados por uma série de
características, por exemplo, descontração, espontaneidade, brevidade na comunicação, uma
certa informalidade e concisão na produção das mensagens, tendo em vista a fluidez do meio e
a rapidez da interação. Em consequência, o que se tem, em termos linguísticos, é uma
linguagem carregada de abreviaturas, com abundância de pontuação, estruturas frasais curtas e
pouco ortodoxas e ainda, a presença de emoticons (ícones indicadores de emoções). Além disso,
constata-se uma linguagem não submetida a revisões, expurgos ou correções. É pertinente frisar
que, no Brasil, netspeak é conhecido popularmente como “internetês”.
Hilgert (2000, p. 17), ao examinar a relação entre a língua falada e escrita nos chamados
bate-papos ou chats139, considera que:
Nesse tipo de interação, interlocutores estão em contato por um canal eletrônico, o
computador. Eles sentem-se falando, mas, pelas especificidades do meio que os põe
em contato, são obrigados a escrever suas mensagens, ou seja, interagem, construindo
um texto “falado” por escrito.
Ferrara et al. (1991, p. 23) considera que a e-conversação contempla características
tanto da oralidade quanto da escrita, sugerindo, assim, uma “variedade híbrida emergente de
linguagem” (emerging hybrid variety of language), funcionalmente adaptada ao seu contexto
de uso.
Nessa direção, Recuero (2012, p. 45) sinaliza que a e-conversação acontece, em grande
parte, por intermédio da linguagem escrita, ajustada de modo a indicar especificidades
prosódicas da fala e recursos cinésicos, por exemplo, gestos e expressões faciais, ou seja, a
linguagem escrita precisou ser adaptada para dar à conversação dimensões da oralidade,
estabelecendo, assim, uma “escrita falada” ou “oralizada”.
Diante do exposto, concordamos com o fato de que não se pode postular polaridades
estritas e dicotomias estanques entre fala e escrita, particularmente no que concerne aos textos
produzidos e veiculados no âmbito das interações na rede – mas compreender que suas
diferenças “se dão dentro de um continuum tipológico das práticas sociais e não na relação
dicotômica de dois pólos opostos” (MARCUSCHI, 2010, p. 37, grifo do autor).
Assim, é oportuno comentar que:
139 Chat = “trata-se dos ambientes em salas de bate-papos entre várias pessoas simultaneamente ou em ambiente
reservado. Tem vários formatos no estilo de uma conversação em tempo real” (MARCUSCHI, 2005, p. 27).
153
A pesquisa linguística, a qual contrasta comunicação oral e escrita frequentemente
utiliza o termo continuum para descrever a ausência de diferenças acentuadas nas
formas observadas, uma vez que falantes e escritores combinam características do
discurso oral e escrito, de acordo com seus propósitos comunicativos (CONDON &
ČECH, 2010, p. 3).140
Nessa linha de condução, Koch e Öesterreicher (1985, 2007[1990]) incluem-se entre os
primeiros estudiosos a considerarem a existência de um continuum entre os gêneros falados e
escritos, tendo em vista que a presença de aspectos da escrita na fala e da fala na escrita podem
ser percebidos intuitivamente por qualquer usuário da língua.
Os pesquisadores alemães (1985, p. 23) – a partir do trabalho de Ludwig Söll (1985
[1974]), que trata dos termos fala e escrita por meio de uma dupla distinção: (i) “meio” (fônico
ou gráfico) e (ii) “concepção” (falada ou escrita) – consideram o fato de que existe uma
dicotomia estrita no âmbito do “meio” (medium) e de que há um contínuo no âmbito da
“concepção” (konzeption).
Sob essa perspectiva, os estudiosos consideram, por medial, a representação gráfica e
fônica dos textos. A inovação está no caráter conceptual da oralidade e da escrita. Em resumo,
podemos dizer que se entende por conceptual a percepção que os usuários da língua têm, no
âmbito de suas práticas sociais, de um texto ser, tomando por base suas características, de
caráter oral ou escrito, independentemente de sua expressão medial. Quanto mais o texto evoca
a fala, mais ele é reconhecido como conceptualmente falado; quanto mais seus traços lembram
a escrita, mais ele é percebido como conceptualmente escrito. Nessa direção, os discursos se
distribuem num continuum que se estende do polo da oralidade prototípica (por exemplo, uma
conversa) ao polo da escrita prototípica (por exemplo, o texto de uma lei). Importa, portanto,
não mais saber se determinado discurso é oral ou escrito, no sentido medial, mas sim, identificá-
lo quanto ao grau de oralidade ou escrituralidade que o caracteriza, no continuum, em relação
aos polos prototípicos (HILGERT; ANDRADE, 2020).
Koch e Öesterreicher (2007) sugerem, portanto, a utilização dos critérios: meio, forma
de realização de um enunciado, que pode ser gráfica ou fônica e concepção, que é uma escala
gradual, um continuum limitado por dois extremos, que os autores denominam de imediatez e
distância comunicativas entre os interlocutores, fato que pode ser observado na figura a seguir:
140 Tradução da autora para o trecho original: “Linguistic research that contrasts oral and written
communication often uses the term continuum to describe the lack of sharp differences in the forms observed,
since speakers and writers combine features of oral and written discourse according to their
communicative purposes.”
154
Figura 23 – Meio e concepção: contínuo entre oralidade e escrita
Fonte: Koch; Öesterreicher (1985, p. 23 – adaptado).141
Na figura 23, é possível notar que os estudiosos definem a “oralidade” como sendo a
linguagem da proximidade; a “escrituralidade” como a linguagem do distanciamento
(HILGERT, 2000). Ainda, os triângulos representam a frequência das realizações discursivas:
o polo da imediatez discursiva é conceptualmente oral e medialmente fônico (por exemplo,
(I) conversação espontânea: familiar), enquanto o polo da distância comunicativa é
conceptualmente escrito e medialmente gráfico (por exemplo, (IX) texto jurídico). Contudo,
Koch e Öesterreicher (2007) afirmam que outras combinações intermediárias também são
possíveis, por exemplo, discursos escritos, mas conceptualmente orais (bate-papos na internet,
histórias em quadrinhos etc.) e discursos orais, conceptualmente escritos (por exemplo,
conferências científicas).
Nessa direção, Hilgert (2000, p. 19) argumenta que:
Um discurso acadêmico, por exemplo, embora seja um texto falado do ponto de vista
de sua realização fônica, é, conceptualmente, um texto escrito. Já uma carta para um
amigo íntimo, ainda que se realize por escrito, aproxima-se, conceptualmente, de um
texto falado. A noção de concepção, nesta abordagem, é definida com base [A] nas
141 I = conversa familiar, II = conversa telefônica, III = carta privada, IV = entrevista de emprego, V = entrevista
de jornal, VI = sermão, VII = palestra científica, VIII = artigo, IX = texto jurídico.
Imediatez comunicativa
(efeito de proximidade)
Distância discursiva
(efeito de distanciamento)
155
condições de comunicação do texto e [B] nas estratégias adotadas para sua
formulação.
Marcuschi (2010), considerando essas duas perspectivas e suas formas de realização: (i)
meio de produção: sonoro versus gráfico; (ii) concepção discursiva: oral versus escrita, exibe
a seguinte representação:
Figura 24 – Oralidade e escrita: meio de produção e concepção discursiva
Fonte: Marcuschi (2010, p. 39).
De acordo com o autor (2010, p. 40), os domínios “a” e “d” são classificados como
prototípicos, ao passo que os domínios “b” e “c” são mistos e neles a produção e o meio são de
modalidades diversas.
Sob essa perspectiva, Marcuschi (2005, p. 64), observa que, nos e-textos (textos
eletrônicos), as novas formas de escrita na rede, manifestam um “hibridismo”, uma vez que se
dão “numa certa combinação com a fala”. Desse modo, a partir da representação esquemática
do continuum apresentada por Koch e Öesterreicher (2007) e, posteriormente, pela
representação proposta por Marcuschi (2010), pressupomos que o texto produzido e veiculado
na rede, em particular, uma interação no Twitter, é reconhecida, de modo geral, no domínio
“b”, ou seja, possui uma concepção oral, porém, é medialmente gráfica.
156
Xavier e Santos (2000), ao abordar questões relacionadas ao texto construído no meio
digital, consideram que nele se materializam elementos próprios da oralidade e/ou guardam
marcas próprias da escrita, ou seja, o texto eletrônico: (i) reconfigura elementos tradicionais da
escrita (uso de sinais diacríticos, pontuação etc.); (ii) apresenta-se híbrido, já que mistura
elementos da oralidade e da escrita, permitindo, ainda, que outros traços semióticos (imagens
animadas e efeitos sonoros) sejam utilizados; (iii) complexifica as funções sócio-interativas de
outros gêneros, com os quais mantém certa similaridade, ou seja, possibilita ao usuário
(re)adaptar, conforme suas necessidades comunicativas, determinadas formatações linguístico-
rituais e estruturações típicas de determinado gênero (como a carta, bilhete, conversa
espontânea, entre outros).
Por último, é relevante mencionar que, de acordo com Barros e Bueno (2021, p. 18), os
diferentes desenvolvimentos teóricos e metodológicos da proposta semiótica têm sido
significativos, principalmente, no que tange ao alargamento de seu objeto de estudo e, em
decorrência, ao estabelecimento de diálogos com outros campos teóricos, por exemplo, os
estudos linguísticos e da conversação. Inclusive, “[...] os trabalhos mais recentes sobre a
programação textual, que confrontam as relações temporais, espaciais e actoriais dos textos e
discursos”, são primordiais para o estudo da linguagem na internet. Assim, trazemos à
consideração alguns estudos realizados por Barros (2000, 2015), os quais mantêm estreita
relação com a nossa proposta teórico-metodológica e, consequentemente, contribuem para uma
nova abordagem quanto à caracterização dos textos publicados e veiculados na rede.
Barros (2000), ao analisar a comunicação que se realiza pela internet, em estudo
sistematizado no capítulo “Entre a fala e a escrita: algumas reflexões sobre as posições
intermediárias” – publicado na obra Fala e escrita em questão, organizada por Dino Preti –
comenta acerca da “existência de posições intermediárias ou de certa continuidade entre os
pontos extremos em que se caracterizam idealmente língua falada e língua escrita” (Ibid., p.
57). Adicionamos ainda as reflexões contidas no artigo “A complexidade discursiva na
internet”, publicado em 2015, na revista CASA: Cadernos de Semiótica Aplicada, no qual a
autora sistematiza um conceito relevante para compreender o funcionamento do discurso que
circula na internet, o de complexidade. Em um primeiro momento, Barros (2000) retoma, na
perspectiva da Semiótica (tomando-se por base as categorias de tempo, espaço e pessoa),
critérios e características frequentemente apontados na literatura para distinguir escrita e fala.
Em seguida, revela a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de uma separação estanque entre
essas duas modalidades de uso da língua.
157
Simplificadamente, a semioticista (2000) argumenta que a elaboração e produção do
texto, na fala, coincidem no eixo temporal. Desse modo, a maior parte das escolhas temáticas e
linguísticas se faz durante a conversação, deixando traços das revisões, das reformulações
(correção, paráfrase, repetição, interrupção, hesitação etc.), mudanças de encaminhamento,
entre outros. A fala é, inclusive, caracterizada como fragmentada e, produz, em geral, efeitos
de sentido de informalidade e de incompletude. Já o texto escrito é planejado tanto do ponto de
vista temático quanto linguístico-discursivo. Ou seja, não apresenta marcas de formulação e
reelaboração, constituindo-se em unidades mais longas e complexas e, diferentemente, da fala,
pode produzir efeito contrário, ou seja, de formalidade e completude. Ainda, nas palavras de
Barros (2015, p. 16-17, grifo da autora):
Os efeitos de sentido temporais da fala e da escrita são determinados positiva ou
negativamente. Assim, informalidade e a incompletude da fala podem ser valorizadas
positivamente, pois constroem discursos mais francos, sinceros, subjetivos,
cúmplices, atuais, novos, verdadeiros, ou negativamente, porque produzem
discursos com envolvimento excessivo, incompletos, mal elaborados, efêmeros.
A formalidade e a completude dos discursos da escrita, por sua vez, fazem que eles
sejam considerados mais objetivos, completos e bem elaborados e acabados ou
excessivamente formais e rígidos. Os discursos na internet têm os atributos da fala e
da escrita com as valorizações positivas e negativas de ambos.
Na esteira desses argumentos e falando especificamente sobre as interações do Twitter,
pressupomos que, nas comunicações que se realizam de modo síncrono, o texto aproxima-se
mais da modalidade falada, pois o destinatário recebe o texto à medida que ele é digitado pelo
destinador. Portanto, é marcado pelo baixo grau de planejamento e reelaboração (enunciados
concisos, uso de abreviações, contrações, desvios ortográficos, entre outros). Nas comunicações
assíncronas, os textos, apesar de curtos, normalmente, são mais elaborados, uma vez que o
usuário tem um tempo maior para produzir e editar seus tuítes antes de publicá-los, no entanto
não são tão completos quanto à escrita ideal. Quanto aos efeitos de sentido, ora podem ser
marcados pela formalidade, ora pela informalidade, a depender da esfera comunicativa em que
o usuário esteja inserido. Ainda, é oportuno dizer que essas interações são passíveis de registro
e armazenamento, além da permanência que caracteriza o texto escrito.
Quanto à categoria de pessoa, Barros (2000, 2015) explica, de modo geral, que a fala,
em sua realização ideal, constrói-se coletivamente (a pelo menos quatro mãos ou a duas vozes).
Por exemplo, a conversação espontânea face a face produz a alternância dos papéis de falante
e ouvinte, efeitos de sentido de aproximação e tem grande probabilidade de ser simétrica.
Resultam dessas características vários procedimentos lingüísticos e discursivos – o
sistema de turnos, os marcadores da conversação, os procedimentos de reparação, as
158
hetero-reformulações, entre outros – que organizam não apenas o discurso falado, mas
as relações de interação entre os sujeitos envolvidos (BARROS, 2000, p. 68).
Já o texto escrito (pleno), por sua vez, é elaborado individualmente pelo ator escritor,
que o dirige a leitores não muito bem definidos ou determinados. Não há alternância, portanto,
dos papéis de escritor e leitor. Ademais, produz tanto efeitos de distanciamento quanto de
aproximação, é normalmente formal e pode muito provavelmente ser assimétrico.
Nessa linha de condução, Barros (2015, p. 18) acrescenta:
Os efeitos de sentido decorrentes da organização dos atores na fala e na escrita são,
principalmente, a descontração, a cumplicidade, a simetria e a reciprocidade entre
interlocutores, no texto falado, em oposição à formalidade e à assimetria dos sujeitos
da escrita. Esses efeitos são, também, valorizados positiva ou negativamente nos
diferentes discursos.
Tomando-se por base a interação que se estabelece, especificamente, na rede social
Twitter, é possível dizer que há alternância de turnos (ver seção 4.3.1), apesar das coerções
próprias da formulação escrita. No que se refere à perspectiva dos papéis sociais, tanto pode ser
formal (tuítes produzidos por perfis da esfera científico-acadêmica e política) quanto informal
(tuítes produzidos por sujeitos da esfera do cotidiano) e, por conseguinte, ora produzir efeitos
de distanciamento (com interações mais racionais e intelectuais), ora de aproximação (com
interações mais sensoriais e emocionais). Há, portanto, uma vez mais, posições intermediárias
entre a fala e a escrita no texto que circula nesse ambiente conversacional.
No tocante à categoria de espaço, Barros (2000) comenta acerca de traços que
caracterizam idealmente a fala e escrita como: presença vs ausência dos interlocutores e
presença vs ausência do contexto situacional, ou seja, a fala prevê a presença dos sujeitos
envolvidos na conversação, que interagem face a face e, por isso, pode empregar mais
facilmente dêiticos ou recursos de expressão visual, tátil etc. Além disso, eles partilham o
mesmo contexto situacional. Por sua vez, o texto escrito não tem seu destinador e destinatário
centrados no mesmo espaço e, consequentemente, faz uso de outros recursos para recuperar as
diferentes funções da gestualidade.
Como já dissemos em outros momentos, o Twitter possibilita uma “presença virtual”
dos interlocutores e, também, permite que os usuários utilizem com frequência os emoticons
nas mensagens produzidas e veiculadas na rede, com a finalidade de suprir a impossibilidade
de acesso ao tom de voz e a elementos próprios da interação face a face como gestos, expressões
faciais, entre outros. Nessa direção, Barros comenta (2000, p. 65, grifo da autora) que, por meio
159
da utilização desses ícones, mantém-se “o caráter sincrético da fala em que se juntam dois tipos
de expressão (verbal e visual)”. Enfatiza, inclusive, que, “nesses casos da internet, há uma
presença relativa ou parcial dos interlocutores pela imagem das ‘caretas’”. Explica, ainda que
a presença virtual proporcionada pela internet “constrói os mesmos efeitos de proximidade e
envolvimento da fala, mas com certo distanciamento e objetividade da escrita” (Id., 2014, p.
3661).
Como vimos, é difícil, de fato, estabelecer uma distinção rígida entre o uso das duas
modalidades da língua nas e-conversações, pois ora podem se aproximar da fala, ora da escrita.
Por essa razão, Barros (2015), a partir dos estudos de tensividade de Claude Zilberberg (2006),
permite definir boa parte dos textos que circulam na internet pela “complexidade”, uma vez que
esses discursos dão maior tonicidade a algumas características da fala, mais intensa do que a
escrita – por exemplo a interatividade – e, ao mesmo tempo, aumentam a extensão da escrita,
que dura mais, uma vez que não é passageira como a fala, e assim ampliam seu alcance
comunicacional (BARROS, 2015).
De acordo com a estudiosa (2015, p. 20), na perspectiva da Semiótica, a questão teórica
que se coloca nessa caracterização dos textos que circulam na rede é que “os traços apontados
para a língua e a fala ideais se distinguem por contrariedade (objetivo vs. subjetivo; formal
vs. informal; próximo vs. distante etc.) e não admitem, portanto, conjunção.” No entanto,
segundo Zilberberg (2006 apud Barros, 2015, p. 20), essa associação pode ocorrer nos discursos
concessivos, uma vez que os “discursos na internet operam, assim, a conjunção concessiva entre
contrários, de que resulta o termo complexo: fala (próxima, descontraída, incompleta,
subjetiva), embora escrita (distante, formal, completa, objetiva), ou escrita, embora fala”.
A seguir, sugerimos um quadro-síntese, no qual sistematizamos as principais noções até
então apresentadas, no que diz respeito à relação fala-escrita em textos produzidos e veiculados
na rede:
160
Quadro 4 – Texto na rede (concepções)
Estudos teóricos
Noções basilares
Ferrara et al. (1991) Variedade híbrida emergente de linguagem
(elementos tanto da oralidade quanto da escrita)
Xavier e Santos (2000) Texto híbrido (elementos da oralidade/escrita,
além de outros traços semióticos: imagens e sons)
Hilgert (2000) Texto falado por escrito (tomando por base a
natureza medial e conceptual dos enunciados)
Crystal (2004) Netspeak (registro gráfico-visual que recupera
aspectos prototípicos da oralidade)
Mascuschi (2005)
Texto eletrônico (e-texto), que mantém certo
hibridismo: combinação da escrita com a fala
Recuero (2012)
Escrita falada ou oralizada
Barros (2015) Texto que se define pela complexidade discursiva
Fonte: elaborado pela autora (2021).
A título de concluir esta seção, partimos do pressuposto que a conversação face a face,
ao ser transposta para o domínio da internet, foi reapropriada por determinado ambiente (no
caso desta pesquisa, a rede social Twitter) e ocorre num espaço digital de enunciação. Quanto
à formatação dos textos nesse espaço, constatamos que o sujeito-usuário, além de operar com
recursos semióticos (como imagem, som, GIFs, vídeos ou até mesmo emoticons), também se
utiliza da presença de hiperlinks. Por outro lado, um dos aspectos essenciais do texto na rede,
a favor da e-conversação, é a “centralidade da escrita” que, de modo geral, vem permeada de
“marcas de oralidade”, a fim de simular elementos prototípicos da conversação espontânea.
Percebemos, assim, que é possível caminhar na direção apontada por Crystal.
Seguindo essa linha de raciocínio, notamos que há, nesse evento, uma certa
manifestação “híbrida”, na medida em que escrita e fala se combinam, por intermédio dos traços
de oralidade que o sujeito-usuário imprime em seus textos escritos, fato que nos leva a dialogar
também com Ferrara et al., Xavier & Santos e Marcuschi. E, ainda, centrados numa possível
aplicação dos critérios conceptual e medial, parece-nos apropriado dizer que se trata de um
“texto conceptualmente falado, apesar de sua configuração no meio gráfico”, tendo em vista
que o usuário da língua o percebe, tanto na produção quanto na recepção, como caracterizado
pela oralidade. Sob essa perspectiva, é pertinente trazer à consideração a noção proposta por
161
Hilgert de um “texto falado por escrito” ou, em termos mais simples, de uma “escrita oralizada”,
como nos propõe Recuero.
Situados, até então, nesse lugar teórico reservado ao continuum, passamos a dialogar,
apesar de nossas limitações, com os estudos da semiótica tensiva e verificamos que a interação
na rede aponta uma posição intermediária entre a fala e a escrita “ideais”, tomando-se por base
as características temporais, espaciais e actoriais do discurso falado e escrito. Somos levados,
assim, a incorporar a noção, proposta por Barros, de texto que se define pela “complexidade
discursiva”, uma vez que “ora é mais fala, embora sem deixar de ser também escrita, ora é
principalmente escrita, mesmo mantendo atributos da fala”. Nas palavras da semioticista (2014,
p. 3662):
Quando definida pela complexidade, a comunicação na internet é, ao mesmo tempo,
próxima e distante; descontraída e formal; completa e incompleta, simétrica e
assimétrica; subjetiva e objetiva. Nesse caso, ela tem seus sentidos exacerbados, já
que engloba as possibilidades de interação das duas modalidades, como, por exemplo,
em sua interatividade intensa, na longa conservação de seus conteúdos e na grande
extensão de seu alcance.
Reunidas essas reflexões e estabelecidos esses diálogos teóricos, fica-nos a certeza de
que o texto na rede, em prol da e-conversação, mais especificamente, em tuítes, manifesta
uma “complexa relação entre os processos de oralidade e escrita, além da imbricação de outros
investimentos multimodais, que constituem mutuamente os sentidos do texto.” Dito isso, não
seria prudente, de nossa parte, fecharmos uma caracterização dele, pois as concepções
apontadas já são bastante claras e operacionais, permitindo-nos conferir, por último, o quanto
esse “objeto é multifacetado em sua composição estilística e organizacional”. E, ainda, está
submetido às propriedades tecnológicas do lócus físico (suporte) e é inteiramente afetado por
suas conexões (interação entre os atores).
Enfim, foi objetivo, neste capítulo, discorrer acerca de alguns parâmetros teóricos por
meio dos quais encaminhamos este trabalho de pesquisa. Entretanto, não tivemos a intenção de
fornecer um quadro completo e exaustivo dos estudos já realizados da fala-em-interação e sua
inter-relação com a CMC. Pretendemos, tão somente, apresentar alguns conceitos que irão
fundamentar nosso exercício analítico.
Concluída, portanto, a explanação dos principais eixos teóricos que sustentam nossa
tese, partimos agora para as decisões metodológicas tomadas, na intenção de operacionalizar a
análise do objeto pesquisado à luz dos conceitos escolhidos.
162
CAPÍTULO 5
MAL-ENTENDIDO EM TUÍTES: ANALISANDO OS DADOS
“A razão pela qual a conversa seja um meio de
comunicação tão eficaz, não é porque os saberes dos
participantes estão em perfeita harmonia, e sim porque
qualquer lacuna pode ser revelada e esclarecida quando
necessário.”
(RINGLE & BRUCE)
Neste capítulo, procederemos à análise do mal-entendido em tuítes, selecionados a partir
de trocas comunicativas diádicas e/ou curtas, produzidos por perfis de diversas esferas de
atividade humana, que interagem na rede social digital Twitter e discorrem acerca dos mais
variados temas, os quais buscam atender à diversificação de interesses do público.
Estruturamos, assim, o capítulo em duas partes: na primeira: descreveremos os procedimentos
metodológicos; na segunda, realizaremos a análise propriamente dita.
5.1 Procedimentos metodológicos
Considerando o objetivo da pesquisa de analisar o mal-entendido em interações na
rede social digital Twitter, realizamos estudos teóricos sobre:
▪ A organização da conversação face a face, que compõem o capítulo 2;
▪ O estudo do mal-entendido, como abordado no Capítulo 3;
▪ A organização da conversação na rede, ou melhor, e-conversação, como configurado
no Capítulo 4 desta tese.
Fundamentados no referencial teórico descrito, o qual julgamos pertinente para elucidar
o fenômeno do mal-entendido, apresentaremos nossa leitura do conjunto de dados delimitados
para esta tese, baseados nos seguintes critérios de análise:
1. o mecanismo de organização das sequências discursivas em que ocorre o mal-entendido;
2. causas que desencadeiam o fenômeno no desdobramento interacional;
Tradução nossa para o excerto original: “The reason that dialogue is such an effective means of communication is not because the thoughts of the participants are in such perfect harmony, but rather because the lack of harmony
can be discovered and addressed when it is necessary.”
163
3. procedimentos linguístico-discursivos, explicitamente interacionais, por meio dos quais
os interlocutores procuram esclarecer os mal-entendidos.
É fato que não deixaremos de tratar das atitudes linguístico-sociais dos interlocutores
na abordagem do mal-entendido, marcadas pelas estratégias atenuadoras e de cortesia ou por
manifestações descorteses e, por último, de particularidades relacionadas às modalidades de
fala-escrita nos segmentos conversacionais analisados.
A perspectiva qualitativa foi trazida para esse exercício interpretativo no intuito de
contemplar os aspectos delimitados no objeto de pesquisa. O viés qualitativo da análise
permitiu-nos identificar, a partir da leitura do corpus, quais ações são praticadas pelos usuários
da rede no ciclo de negociação do mal-entendido, isto é, desde a sua ocorrência até a uma
possível solução do problema. Esclarecemos que, ao longo da análise, procedimentos
quantitativos também foram convocados, o que não necessariamente modifica o paradigma
qualitativo da pesquisa, uma vez que tais procedimentos foram colocados a serviço do exercício
qualitativo principal.
Assim, a partir da observação minuciosa do corpus constituído de 40 segmentos
interacionais, perfazendo um total de 258 tuítes, produzidos e veiculados por sujeitos de
diferentes campos de atividade humana, que interagem espontaneamente na rede social digital
Twitter, discorrendo acerca dos mais variados temas (entretenimento, esporte, política,
economia, saúde, educação etc.), buscamos detectar a ocorrência do mal-entendido no interior
da dinâmica organizacional das e-conversações, bem como descrever os processos interacionais
que procuram resolvê-lo.
Por fim, reiteramos que não é nosso propósito apresentar, de maneira pormenorizada o
corpus de análise, mas, grosso modo, trazer as percepções extraídas em nosso exercício
interpretativo, mediante a seleção de alguns exemplos que melhor ilustram e/ou representam os
critérios estabelecidos.
5.2 Análise e interpretação dos dados
Nesta tese, tivemos o propósito de colocar em foco a construção do sentido e, portanto,
da compreensão no âmbito das interações informais, desviando-nos, assim, de textos de
caracterização mais formal, nos quais essa temática geralmente é estudada. Dentro dessa
164
perspectiva, restringimos nosso enfoque aos problemas de compreensão, mais especificamente,
aos mal-entendidos, concebidos como fenômenos inerentes à produção de sentidos nas
interações.
Como sabemos, o estudo do mal-entendido tem ocorrido no âmbito das conversações
face a face. Partindo, então, das contribuições teóricas produzidas nesse campo, procuramos
estendê-las à investigação de interações realizadas na rede social digital Twitter. É oportuno
frisar que tais conversações, além de serem constituídas em ambiente virtual, são
predominantemente escritas. Entretanto, ainda que medialmente escritas, são percebidas pelos
usuários da língua como orais. Ademais, verificamos que os usuários da rede se portam como
falantes, ressalvadas, é claro, coerções próprias da formulação escrita. Nessa perspectiva, era
de se esperar que o processo de negociação do mal-entendido ocorresse na forma como ele se
revela nas interações face a face.
Dito isso, procederemos ao nosso exercício interpretativo, à luz das contribuições
teóricas da Análise da Conversação, no contexto de sua evolução para a Linguística
Interacional, dando ênfase ao que, efetivamente, os usuários da rede “dizem” ou “fazem”, por
meio de seus enunciados, no ciclo de monitoramento do fenômeno.
5.2.1 Análise quanto à organização da sequência conversacional em que ocorre o mal-
entendido
Conforme discutido, nesta tese, o mal-entendido ocorre exatamente em razão dos
cuidados que os interlocutores têm para alcançar o entendimento mútuo, ou seja, quando o
problema surge na evolução do texto, os parceiros comunicativos tendem a desencadear um
trabalho interativo para a sua solução. Assim, tendo em vista o princípio de que a
intercompreensão é alcançada pelas contingências do desdobramento interacional, buscamos
evidenciar, em alguns exemplos representativos, como esse ciclo de negociação do equívoco
interpretativo se realiza no interior de uma sequência conversacional. A partir daí, descrever,
baseados em características reincidentes, a dinâmica organizacional dos turnos que participam
do segmento monitorado. É preciso ter em conta a peculiaridade do corpus analisado que, de
modo geral, compõe-se de interações síncronas e diádicas. E cada segmento analisado se
estende, predominantemente, de um enunciado de referência até um enunciado resposta
satisfatório.
165
Antes, porém, de proceder à análise, é importante retomar as definições dos elementos
que integram, normalmente, essa sequência conversacional, no processo de monitoramento do
mal-entendido. São eles: Em primeira posição, temos o enunciado de referência, que
corresponde à proposição inicial do falante. Em segunda posição, encontra-se, normalmente, o
enunciado revelador do problema, no qual se manifesta o ME-S. Na terceira posição,
identifica-se o enunciado sinalizador (que aponta o problema) e/ou enunciado reformulador
(que tenta resolver o problema) e, de modo geral, em quarta posição, temos o enunciado-
resposta, em que o ouvinte, na fase de negociação da produção de sentido, aceita o turno de
reparo.
A seguir, representamos esquematicamente essa dinâmica organizacional dos turnos e
suas respectivas posições:
Trataremos, a partir de agora, da análise dos dados à luz das contribuições teóricas e
decisões metodológicas relacionadas até aqui. Informamos ainda que, por uma questão de
legibilidade, o turno em que o mal-entendido ocorre será destacado em negrito em todos os
segmentos analisados.
1ª posição
Turno de origem do ME-S: enunciado de referência
2ª posição
Turno de ocorrência do ME-S: enunciado revelador do problema
3ª posição
Turno de reparo do ME-S: enunciado sinalizador e reformulador
4ª posição
Turno do feedback: enunciado-resposta
166
Segmento conversacional I (SC-I)
Usuário A: “Tem formação multisetorial e possui visão holística dos problemas. Vai surpreender mas
poderá ser pouco compreendido porque não fala uma linguagem comum [link: OGloboPolitica:
Astronauta Marcos Pontes (@Astro_Pontes) confirma que será ministro de Ciência e Tecnologia
https://glo.bo/2F0bWzM]”. 30/10/2018, 8h58. Tuíte.
Usuário B: “Particularmente, prefiro um discurso técnico a um discurso político. Quando os
resultados começarem a aparecer, todos compreenderão.” 31/10/2018, 9h14. Tuíte.
Usuário A: “A ‘arte da política é conversar e convencer’. Um argumento técnico muitas vezes não é
compreendido por muitas pessoas e então gera uma dificuldade no entendimento e na aceitação. Eu
me referi a isso.” 31/10/2018, 9h22. Tuíte.
Usuário B: “Com certeza.” 31/10/2018, 9h27. Tuíte.
Fonte: Twitter.142
Nesta interação (SC-I), verificamos que o usuário [A], em seu tuíte, faz alusão à
formação do astronauta Marcos Pontes, que seria indicado à pasta do Ministério de Ciência e
Tecnologia, caso o candidato à Presidência da República, Jair Bolsonaro, vencesse as eleições
de 2018 (fato ocorrido), no Brasil. O usuário [A] afirma que, em razão do astronauta não falar
uma linguagem acessível à população, ele poderia ser pouco compreendido. O usuário [B]
aceita o enunciado de [A], indicando, em segunda posição, a sua preferência por um discurso
técnico a um discurso político e pontuando ainda que o “futuro” ministro seria compreendido,
à medida que os resultados de sua atuação política fossem aparecendo.
Em terceira posição, notamos que o usuário [A] produz uma atividade reformulativa, ao
explicar que a referência feita à fala do ministro, no primeiro turno, não dizia respeito ao alcance
de resultados, mas ao fato de que era necessário estabelecer o diálogo entre a classe política e
a população, como também a persuasão e, frequentemente, isso não é alcançado por meio de
argumentos técnicos, ocasionando dificuldade no entendimento e na aceitação. A declaração
“Eu me referi a isso” confirma o fato de que a interpretação realizada pelo interlocutor [B] não
correspondeu às expectativas do usuário [A]. Observamos que, em quarta posição, o usuário
[B] encerra a sequência interacional centrada no monitoramento do mal-entendido, ao sancionar
o enunciado reformulador (“Com certeza”), fato que contribuiu para valorização da face
positiva de [A].
142 Disponível em:<https://twitter.com/username/status/1057602700756598784>. Acesso em: 27 jun. 2019.
167
Segmento conversacional II (SC-II)
Usuário A: “Isentões da uma investigada nas embaixadas caribenhas. Galera vivendo sob o sol do
caribe ganhando 50mil as nossas custas.” 04/06/2019, 07h23. Tuíte.
Usuário B: “Putz, mas esse pagamento não tem nada de ilegal. O pagamento de serviço no
exterior é regulado pela lei 5809/72.” 04/06/2019, 7h46. Tuíte.
Usuário A: “Legal é embaixada em países que não tem nem 10 brasileiros! Valeu! Isso que tem que
ver e não o salário, bandido Brasileiro é tão profissional que ele rouba e cria lei para justificar a
legalidade do roubo.” 04/06/2019, 7h51. Tuíte.
Usuário B: “Ah sim. Nesse ponto concordo contigo. Uma ou duas embaixadas no Caribe dariam
conta das necessidades dos interesses brasileiros. Foquei nos salários e não percebi a discrepância da
quantidade de embaixada. Fora os demais custos que implicam em tantas embaixadas abertas”
04/06/2019, 7h54. Tuíte.
Fonte: Twitter.143
Do ponto de vista da dinâmica organizacional interativa, constatamos, neste fragmento
que o usuário [A] recrimina, no enunciado de referência, o grande número de embaixadas
brasileiras implantadas no Caribe e o gasto que o governo brasileiro assume para mantê-las.
Inclusive, solicita a um perfil do Twitter (@Isentões) que investigue o caso. Em segunda
posição, o usuário [B] explicita a sua interpretação do enunciado de [A], afirmando que o
pagamento de salário dos embaixadores não é ilegal. No tuíte seguinte, o usuário [A] denuncia
a leitura equivocada de [B], afirmando que sua crítica não se refere ao pagamento de salários,
mas sim ao número de embaixadas implantadas em países caribenhos, os quais possuem poucos
habitantes de nacionalidade brasileira. Ainda, assinala que manter essas embaixadas abertas no
143 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1136035837337055233>. Acesso em: 27 jun. 2019.
168
Caribe é um desfalque aos cofres públicos e que, inclusive, uma lei é criada para justificar o
roubo. Enfim, o interlocutor [B] não só concorda com a denúncia e explicação de [A], como
também justifica a leitura equivocada que fez do enunciado de referência produzido por este
(“Foquei nos salários e não percebi a discrepância da quantidade de embaixada. Fora os
demais custos que implicam em tantas embaixadas abertas”).
No tocante à organização das sequências discursivas, a análise mostrou que a tendência
predominante é que o fenômeno do mal-entendido (destacado no segmento interacional)
manifesta-se no intervalo entre o enunciado de referência e o enunciado sinalizador e/ou
reformulador. Desse modo, as interações no Twitter expõem, em maior número, o mesmo
padrão estrutural de monitoramento do mal-entendido que se revela na CFF, com a denúncia e
encaminhamento da solução do ME em terceira posição e, consequentemente, a sua inscrição
na segunda. Ao predomínio desse padrão fazem referência Dascal (1999) e Bazzanella e
Damiano (1999).
Um outro aspecto observado, no corpus de análise, é que grande parte dos segmentos
conversacionais trazem uma quarta posição, na qual o interlocutor sanciona o enunciado de
sinalização e reparo do problema, assegurando a intercompreensão (82,5% dos casos). Esse fato
sugere que se possa talvez integrar, ao menos como tendência, tal posição na estrutura padrão
de negociação do mal-entendido, visto que é de longe a mais recorrente no monitoramento do
mal-entendido no ambiente da rede. No entanto, em sentido estrito, ela é dispensável nessa
estrutura.
Segmento conversacional III (SC-III)
Usuário A: “A Europa olha para o Brasil e diz: eu sou você amanhã [link:
https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-11-02/a-europa-olha-para-o-brasil-e-diz-eu-sou-voce-
amanha.html?ssm=TW_CC] via @elpais_brasil @MiguelNicolelis” 02/11/2020, 19h26. Tuíte.
Usuário B: “Tenho que discordar, respeitosamente... lá eles têm governantes que pedem pro
povo ficar em casa, lavar as mãos e usar máscara... Aqui tem o Bozo e seus generais que se
tornam especialistas em qq coisa que dê uma graninha extra...” 02/11/2020, 19h29. Tuíte.
Usuário C: “Se vc ler a coluna irá entender a frase e o pq a Europa de hj pode ser o Brasil de amanhã.
Eu me referi a explosão de casos ocorrendo lá agora.”
Usuário B: “Claro Dom Miguel... Meu comentário é apenas pela inveja de não termos aqui gestores
de saúde pública como lá.” 02/11/2020, 19h44. Tuíte.
Usuário C: “Entendi! Gde abc!” 02/11/2020, 19h50. Tuíte.
Fonte: Twitter144.
144 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1323397167470596096>. Acesso em 25 jun. 2021.
169
Em SC-III, verificamos que o usuário [A] faz alusão, em seu tuíte, à manchete de um
artigo escrito por Miguel Nicolelis – intitulado “A Europa olha para o Brasil e diz: eu sou você
amanhã”, publicado no jornal diário espanhol El País, em 2 de novembro de 2020. Nesse
trabalho, o cientista comenta que Boris Johnson rendeu-se às recomendações do comitê
científico e anunciou o lockdown nacional, como último recurso para tentar deter o progresso
da segunda onda de Covid no Reino Unido. Informa ainda que o Brasil cometerá um erro crasso
no manejo da crise se mantiver seus aeroportos abertos, facilitando a entrada de viajantes
europeus e americanos infectados em nosso país.
No segundo turno, o usuário [B] discorda respeitosamente da manchete, pontuando que
não há comparação entre as ações de governantes europeus (preocupados com medidas
preventivas quanto à propagação da Covid-19) e brasileiros (citados como “Bozo e seus
generais”, especialistas em receber propinas).
Em terceira posição, verificamos que o usuário [C] sinaliza o mal-entendido, ao afirmar
que não fez referência, em sua coluna, às ações de proteção individual e isolamento social (lavar
as mãos, usar máscara, permanecer em casa) determinadas pelo governo britânico, mas ao fato
de que o grande número de casos de Covid-19 ocorridos na Europa poderia levar, em breve, a
uma nova série de contágios no Brasil (caso as autoridades federais não preparassem um plano
de contingência que incluísse o fechamento do espaço aéreo internacional).
O usuário [B], em quarta posição, sanciona o enunciado reformulador de [C], ao dizer:
“Claro Dom Miguel”. Como notamos, nesse segmento, há um certo tom irônico, ameaçando a
face positiva de [C], produzindo, assim, efeitos de descortesia. Em seguida, [B] enfatiza que o
comentário feito, em segunda posição, diz respeito ao sentimento de inveja que mantém, uma
vez que o Brasil não tem gestores de saúde pública tão competentes quanto os da Europa. No
turno seguinte, o usuário [C] encerra a sequência interacional, ao afirmar: “Entendi!” e se
despede, promovendo a intercompreensão textual.
Por último, é pertinente frisar que, dentre os exemplos que alcançaram o entendimento
mútuo em nosso corpus de análise, observamos que, na maior parte dos casos, o sujeito-
usuário, em geral, desculpa-se pelo equívoco interpretativo no turno de feedback (em quarta
posição). Conforme discutido na seção 3.4.1 deste trabalho, o pedido de desculpa beneficia a
sua imagem, pois, ao admitir o mal-entendido, está realizando um comportamento que é
aprovado socialmente. Dito isso, em poucas ocorrências, notamos a necessidade de os usuários
prosseguirem o monitoramento para um quinto turno, que se traduz no fato de o interlocutor
aceitar o enunciado-resposta e, por meio de emoticons ou mesmo de expressões como: “Beijo
170
grande”; “Tranquilo, campeão”; “Abraços”, “tá de boa, pode perguntar cara...”, entre outras,
encerrar a sequência conversacional.
Ainda, importa dizer que, dentre os casos analisados, em apenas sete ocorrências os
interlocutores não alcançaram a intercompreensão (vide SC-VI). Nessas e-conversações, o
interlocutor rejeita explicitamente o turno de reparo, justificando e mantendo, em turno
seguinte, o seu ponto de vista. A sequência prossegue entre reformulação e resposta,
encerrando-se por meio de expressões como: “Desisto de tentar explicar...”; “Há muito que
discutir. Abraço”; “Fim da discussão”; “Você não entendeu o que eu disse, estou falando de...”;
“Cada um entende conforme a capacidade cognitiva que tem...”; “oq eu fiz pra merecer?????”.
Ademais, cabe enfatizar que os assuntos tratados nessas interações conflituosas pertencem,
principalmente, ao campo político-ideológico.
5.2.2 Análise quanto às causas do mal-entendido
Conforme discutido, na seção 3.3.1 deste trabalho, a ocorrência dos mal-entendidos em
interações na rede pode ser motivada por diversos aspectos, tais como: problemas de ordem
lexical, semântica, pragmática, sintática e argumentativa. É fato que tais parâmetros de
classificação permitem certa flexibilidade, de modo que não estão estritamente posicionados
em uma única categoria.
A título de esclarecimento, cabe ressaltar que, ao longo da análise, sentimos a
necessidade de organizar, em um quadro, os níveis e fatores desencadeadores do fenômeno, que
pôde servir tão somente como base ou guia para indicar o que está envolvido na interpretação
equivocada de um enunciado. A seguir, o modelo utilizado para a organização e análise dos
dados referentes a esse momento da pesquisa.
Quadro 5 – Níveis e fatores desencadeadores do ME
Níveis Semântico-lexical Semântico-
pragmático
Sintático-lexical Argumentativo
Fatores
Imprecisão de
sentido de termos
e expressões;
ambiguidade
lexical.
Dêiticos;
implícitos e
conhecimento não
compartilhado.
Coesão
referencial;
progressão tópica;
focalização;
estruturação
sintática
complexa.
Uso da ironia;
perguntas
retóricas;
entonação;
diferentes pontos
de vista.
Fonte: elaborada pela autora (2021).
171
É preciso frisar que, na maioria dos casos, como os exemplos deixarão claro, mais de
um nível é atingido, uma vez que os fatores estão inter-relacionados. As palavras de Koch e
Elias (2016a) vêm ao encontro dessa afirmação quanto argumentam que os interlocutores
cooperam e negociam significados e posições, no contexto da situação comunicativa, em um
processo discursivo, dinâmico, relacional e ativo constituído por complexas e múltiplas
camadas de significação.
A título de ilustração, destacamos, em cada segmento conversacional, um dos fatores
determinantes para a ocorrência do mal-entendido. Vejamos:
a) Imprecisão de sentido de um termo
Segmento conversacional IV (SC-IV)
Usuário A: “Doar? Um bandido entra na sua casa, rouba tudo o que você tem, mata pessoas da sua
família, destrói o seu espaço emocional, memórias, depois ele volta e diz que vai deixar um
dinheirinho para você recomeçar a vida. Que bandido caridoso! [link: @Veja: Vale anuncia que irá
doar R$ 100 mil a cada família de morto em tragédia https://wp.me/p7qnr3-cbLE].” 29/01/2019,
6h49. Tuíte.
Usuário B: “Eles deixaram bem claro que irão pagar as indenizações caso a caso. (Só para
informar quem só leu a manchete). Sim, as famílias precisam de dinheiro agora. Os processos
judiciais da indenizações demoram, nossa justiça é lenta, a tragedia de Mariana não foi
resolvida.” 29/01/2019, 7h40. Tuíte.
Usuário C: “Excelente usuário B! Fico triste ao ver um Padre da minha santa igreja Católica
promovendo discordia e talvez até sentimento de culpa nas pessoas que perderam entes
queridos e agora vão receber esta ajuda financeira pra tocar suas vidas :( ” 29/01/2019, 7h40.
Tuíte.
Usuário A: “Usuário C, você entendeu errado. Eu disse que não é doação. Doar é gesto gratuito de
quem não tem obrigação de fazer. Não é o caso.” 29/01/2019, 8h08. Tuíte.
Usuário C: “Talvez foi o termo ‘jurídico’ que usaram, mas o Padre tem razão. No mais entendo que
nao devo julgar, apenas rezar para que Deus conforte o coração das famílias e que elas recebam este
valor, seja o nome que queiram dar...” 29/01/2019, 08h19. Tuíte.
Fonte: Twitter.145
No SC-IV, observamos que o tuíte, na primeira posição, é produzido a partir de uma
manchete publicada em um perfil institucional (revista Veja) e expõe uma crítica contundente
e irônica do usuário [A] à Mineradora Vale acerca da doação de 100 mil reais para as vítimas
do rompimento da barragem de Brumadinho (região metropolitana de Belo Horizonte, no
estado de Minas Gerais), cuja vida e sonhos foram destruídos. Na sequência, em segunda
posição, o usuário [B] contesta o comentário produzido por [A], afirmando que a Mineradora
145 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1090182998258077696>. Acesso em 27 jun. 2019.
172
assumirá suas obrigações indenizatórias e essa ajuda irá cobrir os gastos das famílias, já que os
processos judiciais demoram. Por meio de um turno de apoio, [C] alia-se à leitura interpretativa
de [B] e lamenta o fato de um padre criticar esse auxílio financeiro às famílias.
O usuário [A] se volta, então, para [C] e denuncia, explicitamente, o mal-entendido
(“você entendeu errado”), atingindo a imagem positiva de seu interlocutor. Na percepção de
[A], seu interlocutor não se deu conta de que a ajuda financeira da Vale não será de forma
gratuita (doação), e sim por obrigação. Somente de modo espontâneo e desinteressado teria
constituído, em sua concepção, uma doação. Verificamos, neste caso, que o domínio da
significação de um elemento linguístico, ou seja, do verbo “doar”, foi o fator determinante do
mal-entendido.
Por fim, o usuário [C] encerra a interação, assumindo o equívoco e pondo em risco a
sua face (“mas o Padre tem razão”), sem deixar de mencionar, com certa ironia, que não lhe
cabe julgar (“No mais entendo que nao devo julgar”), deixando a entender que a manifestação
do usuário [A] foi um julgamento. Como vimos, as ironias, de modo geral, são manifestações
descorteses.
b) Imprecisão de sentido de uma expressão
Segmento Conversacional V (SC-V)
Usuário A: “Bom fazer aniversário dps do povo pq serei recíproca em tudo agr.” 30/08/2021, 15h10.
Tuíte.
Usuário B: “Ui kkkkk calma ae, q o presente do grupinho vai chegar” 30/08/2021, 16h43. Tuíte.
Usuário A: “Aí amg, não me referi a isso viu? inclusive avisei a ianka q não queria nada. Amo vocês
igual ” 30/08/2021, 16h57. Tuíte.
Usuário B: “Sei amiga kkkkk mas é uma alerta! Nenhuma ficou em branco, não era vc q ficaria agora
né, rum ” 30/08/2021, 16h58. Tuíte.
Fonte: Twitter.146
Neste fragmento, observamos que [A], em primeira posição, produz o enunciado de
referência afirmando que será recíproca em tudo a partir da data de seu aniversário. O uso da
expressão “recíproca em tudo” tem sentido vago, incompleto, e, assim, parece autorizar o
usuário [B], por inferência, a pressupor, particularmente, que [A] esteja se referindo ao fato
dela não ter ganhado um presente do grupo de amigas na comemoração de seu aniversário.
Assim, o usuário [B] produz, em segunda posição, um enunciado, no qual pede calma a [A] e,
146 Disponível em: < https://twitter.com/username/status/1432432252395442176>. Acesso em 04 set. 2021.
173
em seguida, comenta acerca do presente que seria enviado a ela pelas amigas. Como se percebe,
a falta de clareza na elocução de [A] leva seu interlocutor a ativar, erroneamente, o referente
mais relevante do seu ponto de vista.
[A] denuncia, então, o mal-entendido, ao esclarecer que não estava se referindo a isso,
visto que já havia informado alguém (Ianka) que não se preocupasse em lhe dar uma lembrança
e que, inclusive, não deixaria de amar suas amigas por essa razão. Como vimos, a interpretação
de [B] diverge do “conjunto de possíveis respostas” à elocução de [A]. Em seguida, [B] diz
que a entende (Sei amiga kkkkk), no entanto faz questão de alertá-la quanto ao fato de que o
presente seria enviado, já que todas as amigas eram agraciadas em tais ocasiões (informação
assumida como compartilhada entre [A] e [B] no desdobramento interacional). Os emoticons
[ ] são utilizados, ao final dos enunciados, com função expressiva e relacional, isto é,
expressam a relação de amor e amizade entre [A] e [B].
Ademais, verificamos que o uso repetido de formas onomatopaicas (kkkkk), em segunda
e quarta posições, representa o riso, particularmente irônico, que a ocorrência causa. Notamos,
inclusive, que, apesar do mal-entendido ter sido detectado imediatamente, o real motivo do
desagrado de [A] não foi revelado – pelo menos, de maneira ostensiva. É importante reiterar
que não temos como foco a análise do que os participantes têm em mente e que não são expostos
aos interlocutores, mas efetivamente examinar o que eles dizem ou fazem por meio de suas
elocuções. Contudo, é interessante mencionar que Weigand (1999) aponta como umas das
principais fontes de mal-entendido os meios cognitivos (hábitos e padrões inferenciais) que,
mesmo sendo, no máximo, presunções dependentes de contexto, quando aplicados
inadvertidamente, levam ao mal-entendido. É o que parece ocorrer nesse segmento
conversacional.
Ainda, concordamos com Dascal (2006), ao afirmar que a noção de mal-entendido,
(além do papel central no funcionamento de fenômenos admitidamente sociolinguísticos e
pragmáticos como a implicatura e inferência conversacional147) é necessária para a explicação
de outros fenômenos linguísticos, na realidade mais associados à semântica que à pragmática.
Em nosso exercício interpretativo – tendo por base os objetivos da pesquisa e a filiação teórico-
metodológica – substanciamos essa afirmação por meio da análise de dados empíricos, nos
147 Implicatura está relacionada à percepção do que não está sendo dito no texto. Em termos mais simples, é algo
que está implícito no texto e que depende da inferência do outro para ser compreendido. De acordo com Gumperz
(1982 apud Andrade, 2015), inferência é o processo situado ou ligado ao contexto de interpretação, por meio do
qual os participantes procuram levantar uma hipótese interpretativa viável para a enunciação e, a partir dela,
elaboram suas respostas.
174
quais mantivemos o foco no evento do fenômeno em si e pudemos averiguar, no contexto
interacional sequencial, que há um conjunto de fatores textuais-discursivos relacionados, de
forma tão profunda quanto complexa, com possíveis causas do mal-entendido.
c) Referenciação e topicalidade
Dentre as possíveis causas de mal-entendido, estão problemas de ordem referencial e
indefinição tópica. É o caso do segmento conversacional VI.
No que diz respeito a essas duas dimensões textuais, Mondada (2001) argumenta que
os objetos do discurso são entidades constituídas “em” e “pelas” formulações discursivas dos
participantes, ou seja, é “no” e “por meio do discurso” que os referentes são delimitados,
desenvolvidos e transformados. Em outros termos, eles emergem e se elaboram
progressivamente na dinâmica discursiva. Ainda, essa dinamicidade dos referentes é, em grande
parte, responsável pelo desenvolvimento do tópico discursivo.
Nessa direção, Fávero (2001) assinala que o falante precisa articular bem sua fala e
construir os enunciados de tal modo que o ouvinte identifique os elementos do tópico e
estabeleça relações que colaboram na instauração dele. O ouvinte, por sua vez, precisa
descodificar os elementos (ideias, objetos, indivíduos, entre outros) que têm função no
desenvolvimento do tópico e identificar as relações que se dão entre os referentes dele.
Entretanto, nem sempre, a identificação tópica é clara, pois pode ocorrer um tópico
implícito que, com o auxílio do contexto, é passível de ser detectado pelos interlocutores. Nesse
sentido, a autora (2001) ainda comenta que, numa conversação, há uma constante flutuação de
tópicos discursivos e os usuários da língua têm noção de quando estão discorrendo sobre o
mesmo tópico, de quando mudam, cortam, promovem digressões, retomam etc.
Há, portanto, um caráter dinâmico e localmente construídos dos referentes, que nos
convida a analisar não tanto o seu conteúdo semântico, mas os processos pelos quais os
participantes elaboram interativamente seus tópicos.
Vejamos o exemplo a seguir:
175
Segmento conversacional VI (SC-VI)
Usuário A: “Tenho estudado sobre os candidatos. Sabial q o @GuilhermeBoulos é filosofo??!”
09/08/2018, 22h15. Tuíte.
Usuário B: “Valha me Deus ! Eu vi bem filosofando na invasão em SB ,ao lado da minha casa.” 09/08/2018, 23h18. Tuíte.
Usuário A: “Não gostou? Por que exatamente?” 09/08/2018, 23h23. Tuíte.
Usuário B: “Se invadissem por 4 meses terreno ao lado da sua casa, tirando a paz e o direito de
ir e vir , queria ver se a opinião seria a mesma rsrs.” 09/08/2018, 23h34. Tuíte.
Usuário A: “Eu só perguntei sobre o Boulos! Se vc ouviu ele discursar.... to conhecendo os candidatos
e querendo ouvir outras opiniões. Só isso.” 09/08/2018, 23h36. Tuíte.
Usuário B: “Ouvia sim, com a janelas fechadas e TV no último volume ,ouvia TB as 5:00 fazendo
gritos de Guerra e meu filho pequeno chorando com sono e assustado com os fogos ... Não foi fácil
não coleguinha.” 09/08/2018, 23h41. Tuíte.
Fonte: Twitter.148
A princípio, cabe ressaltar que, “quanto mais a codificação de um conteúdo semântico
e pragmático é vaga, mais ele corre o risco de ser objeto de negociação entre os interlocutores”.
E o mal-entendido (seja involuntário ou voluntário, de boa ou má-fé, real ou simulado) é sempre
uma “defasagem” entre o sentido que o locutor deseja transmitir e o sentido decodificado pelo
receptor (KERBRAT-ORECCHIONI, 2005, p. 62).
Na análise desse segmento conversacional, notamos que o usuário [A] indaga seu
interlocutor acerca de Guilherme Boulos, candidato à Presidência da República do Brasil, pelo
Partido PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) nas eleições de 2018: “Sabial q o
@GuilhermeBoulos é filosofo??!”. O usuário [B], no tuíte seguinte, argumenta, com certa
ironia, que o viu “filosofando” ao lado de sua residência, em São Bernardo (município do estado
de São Paulo). Como se pode ver, [A] produz um enunciado que ele julga adequado; da mesma
forma o interlocutor [B] responde a esse tuíte sem julgá-lo problemático, introduzindo
espontaneamente sua avaliação.
Em seguida, o usuário [B] é questionado por [A]: “Não gostou? Por que exatamente?”.
No tuíte seguinte, [B] diz que se sentiu importunado com a “invasão” de um terreno durante a
campanha eleitoral do candidato, fato que lhe tirou a paz e o direito de ir e vir durante quatro
meses. O mal-entendido é, então, denunciado por [A]: “Eu só perguntei sobre o Boulos! Se vc
ouviu ele discursar.... to conhecendo os candidatos e querendo ouvir outras opiniões. Só isso.”
148 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1027725134793199616>. Acesso em: 20 jun. 2019.
176
Fica dessa forma denunciado que a resposta de [B] é inadequada aos olhos de [A], interessado
tão somente no “discurso” da pré-candidatura de Boulos.
Observamos ainda que [A] retoma, no turno de reparo do ME, objetos do discurso
introduzidos no enunciado de referência (“Boulos”, “candidatos”), mediante o fornecimento de
informações complementares, com a intenção de focalizar o tópico (discurso) não anunciado,
de forma explícita, em seu primeiro turno – fato esse que leva a um deslocamento tópico, no
turno em segunda posição, uma vez que o enfoque deixa de ser o “discurso” em si e passa a
incidir numa manifestação da subjetividade de [B] acerca da “invasão” do terreno ao lado de
sua casa. Em outros termos, o usuário [B], no segundo turno, recategoriza os referentes, sob
novas luzes, procurando chamar a atenção de [A] para aquilo que considera necessário enfatizar
em sua enunciação, dotada de elevada carga argumentativa. Sob essa perspectiva, Koch e Elias
(2014) explicam que diferentes focalizações são frequentemente responsáveis por problemas
de compreensão.
Há que se destacar ainda que [A] usa o procedimento de explicitação do tópico com uma
finalidade interacional, qual seja, fazer com que o assunto discutido adquira a relevância
necessária e seja inserido no universo cognitivo e conceitual de seu parceiro comunicativo
(GALEMBECK, 2005). Na verdade, por meio da digressão, o usuário [A] conduz o texto,
manifestando na materialidade linguística o quadro de relevância acionado na situação
enunciativa.
Entretanto, verificamos que [B] promove, no último tuíte, uma mudança parcial de
enfoque, que se desloca novamente do assunto em si para a esfera da subjetividade, manifestada
por sua avaliação ou ponto de vista acerca do “discurso” do candidato: “Ouvia sim, com a
janelas fechadas e TV no último volume ,ouvia TB as 5:00 fazendo gritos de Guerra e meu filho
pequeno chorando com sono e assustado com os fogos ...”. E [B] encerra a interação, de modo
irônico e descortês (“Não foi fácil não coleguinha”), ameaçando a imagem social de [A].
Constatamos, assim, uma situação de forte tensão interativa durante a atividade de
negociação do mal-entendido, resultando numa tentativa fracassada de alcance da
intercompreensão. Importa mencionar que esse segmento conversacional foi
“intencionalmente” selecionado por nós, a fim de demonstrar que o enunciado desencadeador
do mal-entendido (enunciado de referência) pode ser reformulado, contudo o processo de se
chegar à intercompreensão na conversa não é, de modo algum, fixo ou pré-estabelecido. É
preciso, pois, evitar uma visão “idealista” da comunicação e considerar o risco de abandono ou
177
ruptura instantânea, no ciclo de administração do fenômeno, como condição inerente à interação
dialógica.
Por último, é importante frisar que não nos preocupamos em obter exemplos que
parecem não operar de acordo com o fenômeno estudado. Pelo contrário, uma das
consequências de ter esse segmento, sendo “deslocado” do conjunto de dados selecionados, é
que somos levados a olhar para ele e perceber que, diferentemente do caso estereotípico de
mal-entendido, no qual os participantes mantêm um comportamento “altruísta” em relação ao
outro e no momento em que detectam o desvio interpretativo, este se torna objeto de atenção
até encontrarem uma solução; nessa interação conflituosa, em que o comportamento
predominante é muito mais de “confronto” do que de “cooperação”, notamos que eles se
alimentam do equívoco e prosseguem rumo ao abandono ou mesmo à ruptura comunicacional.
Talvez esses casos atípicos sejam marginais ou esporádicos na CFF, como supõe Weigand
(1999). Talvez sejam centrais e frequentes na e-conversação, como pressupomos. Mas isso é
tema para outro estudo.
d) Incorreção léxico-referencial
Observemos os dois exemplos a seguir:
Segmento conversacional VII (SC-VII)
Usuário A: “A Net é sui generis. Fica várias horas fora do ar toda semana. Mas a fatura jamais falha.
Deveriam botar o pessoal do financeiro na parte técnica e vice-versa. 14/07/2021, 8h14. Tuíte.
Usuário B: “Olha, chamei um técnico aqui estava demais. Disse que o meu aparelho dá muito
defeito. O cara foi show, agora está ótimo.” 14/07/2021, 8h22. Tuíte.
Usuário A: “Os técnicos não são ruins. Não foi a eles que eu me referi. O problema é ficar sem
internet várias vezes por mês e pagar sempre a fatura íntegral.” 14/07/2021, 8h24. Tuíte.
Usuário B: “Sim. Era o meu caso. Não aguentava mais. Mas o que me impressionou foi eles saberem
que o aparelho dá muito defeito, não trocarem e cobrarem por um serviço péssimo. O cara só tentou
melhorar a situação.” 14/07/2021, 8h28, Tuíte.
Fonte: Twitter.149
A interação envolve dois usuários da rede. O tema em foco é o serviço prestado pela
NET – “empresa de telecomunicações brasileira, reconhecida por oferecer serviços residenciais
como televisão por assinatura, acesso à internet e telefonia fixa.”150
149 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1415271875832434692>. Acesso em: 20 jul. 2021. 150 Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/NET_(empresa)>. Acesso em: 20 jul. 2021.
178
Como vimos, no primeiro turno, o usuário [A] comenta a frequente ocorrência de falhas
e interrupções no sinal da NET, entretanto a cobrança é efetuada com rigor. De acordo com a
opinião dele, a empresa deveria colocar o habilitado pessoal do departamento financeiro para
trabalhar na parte técnica. No turno seguinte, o usuário [B] salienta que o serviço executado por
um técnico que respondeu à sua solicitação foi excelente. O usuário [A], imediatamente,
denuncia, em terceira posição, a leitura equivocada de [B], ao comentar que não fez referência
aos técnicos especializados da NET ao enunciar “parte técnica”, mas ao fato de ficar sem o sinal
da internet e ser cobrado integralmente. Em seguida, o usuário [B] não só concorda prontamente
com a denúncia e a explicação de seu interlocutor, como afirma ter passado também por esse
inconveniente, em razão do decodificador (aparelho) apresentar defeito e não ser trocado e,
assim, encerra a interação reiterando a eficiência da visita técnica.
Fica evidente, com base na denúncia feita por [A], que se trata, por parte de [B], de um
equívoco de percepção do alvo da crítica. Enquanto [A] disse ter focalizado o serviço de acesso
à internet prestado pela NET, o usuário [B] entendeu ele ter visado o serviço de assistência
técnica da operadora.
Segmento conversacional VIII (SC-VIII)
Usuário A: “deveriam” [RT @username: vocês tem coragem de se relacionar com alguém que
acabou de terminar um namoro de anos???] 09/07/2021, 12h03. Tuíte.
Usuário B: “É trap” 10/07/2021, 13h11. Tuíte.
Usuário A: “eu n sou” 10/07/2021, 13h15. Tuíte.
Usuário B: “Não me referi a vc, amada. Nunca que diria algo assim ” 10/07/2021, 13h21. Tuíte.
Fonte: Twitter.151
Neste segmento, observamos que o usuário [A] formula um enunciado, no qual
questiona, por meio de um retuíte, se os interlocutores têm coragem de se relacionar com
alguém que acabou de terminar um longo relacionamento. Em seguida, o usuário [B] responde:
“É trap”. O usuário [A] se volta para [B] e responde: “eu n sou”. O usuário [B] denuncia, então,
o mal-entendido, dizendo que não fez referência ao usuário [A] quando utiliza a palavra “trap”
e que jamais diria algo assim.
Verificamos que o mal-entendido está centrado na dupla interpretação do lexema “trap”,
uma vez que [A] e [B] atribuem referentes diferentes a esse termo, ou seja, [B] indica que a
151 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1413896156921409536>. Acesso em 18 jul. 2021.
179
situação de se relacionar com alguém que acabou de terminar um longo namoro seja uma
“cilada”. Em termos mais coloquiais, é o mesmo que dizer: “É uma fria” ou “É uma roubada”.
Contudo, [A] interpreta o enunciado de [B] equivocadamente, ao entender que o fato de que se
relacionar com ela seja “cair numa armadilha”.
O emoticon [ ] utilizado com função expressiva, em quarta posição, procura revelar
o sentimento de chateação do usuário [B], uma vez que a interpretação de [A] é exageradamente
divergente da que [B] imaginava.
Ainda, é oportuno mencionar que esses dois exemplos demonstram a preocupação com
detectar e corrigir mal-entendidos. “Essa tentativa de alcançar o outro é inerente à comunicação
enquanto ação coordenada e é essencial para o ‘chegar a um entendimento’ requerido pela
comunicação” (DASCAL, 2006, p. 318, grifo do autor).
e) Intencionalidade irônica
Segmento conversacional IX (SC-IX)
Usuário A: “O Boris Johnson deveria tomar vergonha na cara e pentear o cabelo. Não entendo estas
pessoas que ficam descabeladas o tempo todo. Custa pentear o cabelo? ” 23/07/2019,
17h33. Tuíte.
Usuário B: “Ô Giga quando for publicar algo desse tipo, se olhe no espelho. Vc está despenteado
na foto. Jornalista dos EUA, se preocupando com isso. Me poupe.” 23/07/2019, 20h58. Tuíte.
Usuário A: “Meu Deus, será que vc não entendeu que eu estava brincando justamente pq sou
descabelado? Inacreditável a falta de inteligência. Até coloquei o Emoji para deixar claro que
estava brincando, e me auto-depreciando, ao falar do cabelo do Boris Johnson” 23/07/2019, 21h16.
Tuíte.
Usuário B: “Desculpe Guga, mas, vc é um dos únicos da emissora que até consigo ouvir e sempre
achei maneiro o seu cabelo. Mas achava que vc não percebia. Não está mais aqui quem
comentou ” 23/07/2019, 22h34. Tuíte.
Fonte: Twitter.152
Neste segmento, o usuário [A] faz uma crítica, de maneira enfática, ao desalinhamento
dos cabelos do político britânico, Boris Johnson. No turno seguinte, em segunda posição, o
usuário [B] contesta o enunciado de [A] e argumenta que, vindo de Guga (repórter e
apresentador da Rede Globo de Televisão em Nova Iorque), trata-se de um comentário
incoerente, já que o cabelo do repórter também é desgrenhado. Podemos observar, ainda, que
152 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1153765206461493252>. Acesso em 25 jun. 2020.
180
[B] utiliza estratégias de “provocação”, ao apresentar, de forma negativa, o modo de ser e agir
de seu interlocutor.
Em terceira posição, notamos que o usuário [A] reage a essa provocação, de modo
espantoso (“Meu Deus”) e até agressivo (“Inacreditável a falta de inteligência”), deixando claro
que seu interlocutor fez uma leitura equivocada. Inclusive, [A] argumenta que os emojis [ ]
foram utilizados, no enunciado de referência, com o intuito de revelar que o comentário era
obviamente irônico. Como vimos, na escrita, não é possível basear-se na entonação nem nos
gestos para identificar a ironia. Assim, os emoticons funcionam como indícios que permitem
interpretar o texto como irônico. É oportuno comentar ainda que a sinalização do mal-entendido
por [A], de modo desrespeitoso, representa uma ameaça à face de [B].
Entretanto, o usuário [B], em quarta posição, encerra a sequência interacional,
procurando resolver o conflito, ao declarar o não reconhecimento da “ironia” e, por isso,
pedindo desculpa por sua intervenção. Inclusive, ao final do turno, [B] utiliza também alguns
emojis [carinha sem boca: ], no sentido de demonstrar certo arrependimento acerca do
comentário feito. Cabe enfatizar que esse ícone é utilizado principalmente em conversas difíceis
ou embaraçosas. Concordamos, assim, com Kerbrat-Orecchioni (2005) quando assinala que a
cortesia realmente desarma, já que é um meio de debelar a agressividade que o contato com o
outro pode desencadear.
5.2.3 Análise quanto aos processos linguístico-discursivos que esclarecem o mal-entendido
Como mencionado no Capítulo 3 deste trabalho, dentre as atividades reformulativas,
que tentam desfazer o mal-entendido, destacam-se: a correção, a repetição e a paráfrase.
De modo geral, a correção tem como função anular, total ou parcialmente, o
anteriormente dito. Já o enunciado parafrástico, embora tenha um caráter de tratamento como
a correção, reformula, não para anular enunciados antecedentes, mas para os explicitar,
especificar, exemplificar, denominar, resumir. Ocorre em textos falados e são plenamente
viáveis em textos escritos na rede. A repetição está diretamente vinculada às possibilidades do
recurso eletrônico por meio do qual acontecem as interações e sua ocorrência não exige nenhum
trabalho de formulação. Esse procedimento é utilizado normalmente como recurso enfático e
argumentativo.
181
Vejamos, a seguir, como essas atividades de reformulação são utilizadas nas “e-
conversações” do Twitter:
Segmento Conversacional X (SC-X)
Usuário A: “Oi Vinícius. Por que você quer que as pessoas se expliquem o tempo todo? Obrigado e
abraço kkk” 22/09/2021, 21h30. Tuíte.
Usuário B: “Porque tem coisas que são faladas por aqui que não entendo. E é uma rede social, tipo
praça pública. Então eu pergunto. De vez em quando eu recebo resposta, de vez em quando não. É a
vida. Alguns se incomodam, outros não. Mas acho melhor perguntar antes de me precipitar.”
22/09/2021, 22h01. Tuíte.
Usuário B: “E a gente tem muito a aprender uns com os outros, ainda mais com vocês que são
jornalistas, e bons jornalistas.” 22/09/2021, 22h05. Tuíte.
Usuário A: “tranquilo. Só cuidado com a forma como vc se coloca, pq às vezes soa como uma
intimidação” 22/09/2021, 22h12. Tuíte.
Usuário B: “Valeu! Não foi minha intenção. Aliás, não sei muito como perguntar aqui sem soar
intimidatório. (Talvez eu tenha que escrever que é uma pergunta de boa, mas daí tem muito caracter).
Tentei ser direto e gentil” 22/09/2021, 23h06. Tuíte.
Usuário B: “Aliás, você poderia me dar um exemplo de quando soou intimidatorio, por favor? (E
não tô zoando não, é de boa)” 22/09/2021, 23h08. Tuíte.
Usuário A: “cara, começa que, pelo menos comigo, vc só questiona quando eu posto algo que
destoa da sua visão política (que eu assumo que é de esquerda) Aí vc chega "Mas pq vc diz tal
coisa. Dê exemplos" Como se vc quisesse me pegar de calça curta, me provar errado. Seje mais
polido” 22/09/2021, 23h12. Tuíte.
Usuário A: “dito isso, duas coisas: 1) tu não vai me pegar de calça curta, pq tem 10+ anos que
eu trabalho com o que eu trabalho e geralmente comento aqui; 2) de início eu achei q vc fosse
um bully ordinário. Só não bloqueei de cara pq vc trampa ou diz trampar com um pessoal que
eu gosto” 22/09/2021, 23h14. Tuíte
Usuário B: “Não não, André. Você entendeu errado, talvez por estar lidando com muita gente escrota.
Eu tento não ser escroto. E sim, eu pergunto pra você quando não consigo ver do jeito que você vê.
Gostaria de expandir a maneira como vejo, e é conversando que se faz isso. Mas vou parar +”
22/09/2021, 23h17. Tuíte.
Usuário B: “Desculpe aí pelo constrangimento que lhe causei. Abraços” 22/09/2021, 23h17. Tuíte.
Usuário A: “tá de boa, pode perguntar cara. Só pega leve rs” 22/09/2021, 23h19. Tuíte.
Fonte: Twitter.153
Na análise do SC-X, verificamos que [A] questiona a postura de seu parceiro
comunicativo nas interações que mantém com ele e outros usuários. Na opinião de [A], o
usuário [B] costuma pedir explicações demais a seus interlocutores e, normalmente, com tom
intimidatório. Instaura-se na interação um momento desconfortável, levando o usuário [B], no
enunciado de referência (constituído por dois tuítes), a comentar que sua intenção não é essa e,
153 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1440861663612182534>. Acesso em: 22 set. 2021.
182
em seguida, pede um exemplo de quando sua intervenção soou intimidativa. O usuário [A]
explica que [B] só o questiona quando publica algo que seja contrário à visão política deste,
destacando o hábito de [B] pedir exemplos, com o intuito de averiguar se [A] realmente tem
ciência de seus comentários. Na sequência, [A] enumera dois fatos: o primeira é que ele sabe o
que diz porque trabalha há mais de dez anos como jornalista; e o segundo é que só não bloqueou
o usuário [B], em razão de este trabalhar com pessoas que [A] gosta. No turno seguinte, [B]
denuncia explicitamente o mal-entendido (“Não não, André. Você entendeu errado...”).
Conforme salienta Barros (2006), verificamos que a repetição do advérbio “não” foi utilizado
como recurso argumentativo para enfatizar o desvio interpretativo de [A] e ainda facilitar a
produção de uma reformulação, ou seja, o usuário [B], por meio de um procedimento
parafrástico expansivo, explica que [A] o interpretou de maneira equivocada, porque este lida
com pessoas mal-educadas (“gente escrota”) e [B] tenta não ter a mesma conduta e, sim, pede
exemplos a [A] quando não entende o posicionamento deste. Em seguida, informa que a
intenção é apenas de expandir seus conhecimentos por meio da conversa. Num segundo tuíte,
pede desculpa pelo constrangimento causado a [A]. No turno de resposta, [A] assinala: “tá de
boa, pode perguntar cara. Só pega leve rs.”
Quanto às estratégias de (des)cortesia, elencamos esse segmento a título de
demonstração. A princípio, observamos que o usuário [A] mostra-se incomodado pelo fato de
sua competência ter sido colocada em dúvida pelo usuário [B] (ou seja, isso ocorre quando [B]
questiona e pede exemplos a [A], com tom intimidativo), levando o jornalista a reagir à
provocação, indicando que o traço negativo atribuído a ele é indevido, uma vez que tem
experiência em sua área de atuação e também é sagaz. Como vimos, o comportamento de [B]
provoca uma certa tensão na situação comunicativa. Contudo, este também se utiliza de certas
estratégias de sedução, ao comentar que [A] é bom jornalista. E, adiante (no enunciado
reformulador do ME), o usuário [B] diz que lida com pessoas grosseiras e tenta não ter a mesma
postura (reforça sua imagem positiva), afirmando que seu intuito, ao questionar o usuário [A],
é tão somente entender os pontos de vista deste e aprender com eles. Desse modo, [B] apresenta
um traço negativo de si mesmo, ao dizer que precisa do saber do jornalista. Ainda, ao proceder
à reformulação parafrástica, manifesta implicitamente o interesse pelas considerações feitas por
[A] e constrói, assim, uma imagem positiva deste. Inclusive, pede “desculpa” a [A] pelo
constrangimento causado, atenuando, desse modo, a situação conflitante que havia se
instaurado no desdobramento interacional, dando à conversação a harmonia necessária. Trata-
se, portanto, de uma interação em que a provocação , com efeitos de descortesia, contribui para
183
a construção da polêmica, mas que precisa das estratégias de sedução para manter o equilíbrio
de seu funcionamento.
Convém mencionar, ainda, que o sinal [+], no enunciado de reparo do ME, indica que o
usuário ultrapassou o limite da janela (280 caracteres) e prosseguirá em outro tuíte.
Normalmente, em uma conversa síncrona, o interlocutor aguarda a produção de todo o
conteúdo, antes de tuitar sua resposta. Outras formas de indicar essa continuação é por meio da
expressão “segue o fio”, do emoticon “novelo”, de setas ou numeração.
Segmento conversacional XI (SC-XI)
Usuário A: “Em 2017, Corinthians de Carille (#Quartaforça) jogava um futebol tão fraco como esse
de agora, quando passou pelo Brusque nos pênaltis - jogo muito semelhante ao de hoje, contra o
Retrô. Ninguém diria, à epoca, que ganharia Paulista e Brasileiro🧶” 27/03/2021, 12h31. Tuíte.
Usuário A: “Hoje, o Corinthians é Quinta Força em SP (atrás também do Bragantino, como time).
Difícil imaginar que esse raio caia, de novo, no mesmo lugar...” 27/03/2021, 12h31. Tuíte.
Usuário B: “É rizek, raio esse que perdurou por 19 rodadas invicto, jogando de forma segura e
com um dos melhores primeiros turnos da história do Brasileirão. Pode desmerecer o time de
2018 pra frente, mas em 2017 ainda se via algum futebol sim” 27/03/2021, 23h49. Tuíte.
Usuário A: “Luiz, você não entendeu nada do que eu disse. Não desmereci o time de 2017! Apenas
informei que o time de 2017 também começou a temporada de forma horrorosa s ninguém esperava
que fosse virar um timaço. Abs” 28/03/2021, 24h01. Tuíte.
Usuário B: “Entendi seu ponto. Realmente o começo de 2017 foi abaixo da média (ou no mesmo
nível dos últimos 3 anos rs) depois que as coisas começaram a desenrolar.” 28/03/2021, 18h58. Tuíte.
Fonte: Twitter154.
O SC-XI envolve dois participantes [A] e [B]. No primeiro tuíte, o usuário [A] comenta
acerca do desempenho fraco do Corinthians, time comandado pelo técnico Carille, em 2017
que, entretanto, venceu dois campeonatos de futebol: o Paulista e o Brasileiro. Insere, ao final
de seu turno, um ícone [🧶= novelo de lã = expressão popular “segue o fio da meada”], com o
intuito de expressar que continuaria a tecer comentários no próximo tuíte. A partir de então,
informa que, em 2021, o time não está jogando bem, contudo não acredita que o Corinthians
possa ter novamente um resultado satisfatório: “Difícil imaginar que esse raio caia, de novo,
no mesmo lugar...”
Já o usuário [B] defende a ideia de que o Corinthians jogou relativamente bem em 2017.
O usuário [A] denuncia o mal-entendido de forma direta; “você não entendeu nada do que eu
disse”, afirmando que [A] não desmereceu o time de 2017 (referente esse que vem sendo
154 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1375651686778277888>. Acesso em: 26 jun. 2021.
184
repetido durante a interação com a função básica de coesividade e colabora para a
argumentatividade) e, por meio de uma reformulação parafrástica redutora, sintetiza o
enunciado de referência, comunicando que somente ressaltou que o time não jogou bem no
início da temporada e, por isso, ninguém esperava que o desempenho do Corinthians fosse,
mais uma vez, melhorar consideravelmente. O usuário [B], então, acata o turno de reparo e
produz, em seguida, o turno de feedback, por meio da resposta: “Entendi seu ponto. Realmente
o começo de 2017 foi abaixo da média (ou no mesmo nível dos últimos 3 anos rs) depois que
as coisas começaram a desenrolar”, resolvendo o mal-entendido.
Segmento conversacional XII (SC-XII)
Usuário A: “Fazia anos que eu não via o #BBB . Realmente, esse é interessante porque a seleção de
personagens é um extrato do Brasil. Tem de tudo. Tem os pólos. Pelo jogo seria importante o menino
Prior ficar. Não acho que ele seja má pessoa, mas deu de grito, ignorância, do orgulho disso...”
01/04/2020, 12h12. Tuíte.
Usuário A: esse lado selvagem que aflorou em tanta gente nos últimos anos fez o nosso povo ficar
pior. A Manu também errou nesse jogo aí. Colou em gente que não é legal. Mas ela representa a
educação, o diálogo, o conhecimento (menos do futebol, ne Manu? Tudo bem...). Enfim, merece mais
01/04/2020, 12h18. Tuíte.
Usuário A: ...assim como a Mari, que tá ali na pureza, sobrevivendo ao confinamento, jogo, sem
magoar as pessoas (me identifico.Acho que eu seria tipo ela). Resumindo: eu achava o barraco legal
como entretenimento, mas o Brasil tá polarizado, e empoderar ainda mais a grosseria seria péssimo
01/04/2020, 12h23. Tuíte.
Usuário B: “Pra vc deve ser apenas um entretenimento. Mas pra gente a eliminação dele
mostrou que podemos enfrentar e vencer o machismo.” 01/04/2020, 12h20. Tuíte.
Usuário A: “Eu votei 100x pra tirar ele... Vc não entendeu o que eu disse” 01/04/2020, 12h23. Tuíte.
Usuário B: “Na frase ‘pelo jogo seria importante’ soa como um entretenimento, mas pra gente é
muito mais que um entretenimento. Vc entendeu que eu quis dizer.” 01/04/2020, 12h32. Tuíte.
Usuário A: “Entendi e respeito... Mas não me julgue. Foi uma reflexão pragmática de alguém
que trabalha em televisão. Eu curti muito o resultado” 01/04/2020, 12h33. Tuíte.
Usuário B: “Desculpa se eu te julguei....não era minha intenção. Obrigada, pelos votos ”
01/04/2020, 12h47. Tuíte.
Fonte: Twitter.155
O SC-XII envolve dois participantes, os usuários [A] e [B], que interagem
sincronicamente e tratam do seguinte tema: um reality show, exibido pela Rede Globo de
Televisão, denominado Big Brother Brasil. Inclusive, [A] se utiliza da hashtag (#BBB), visto
que o assunto era um dos mais discutidos na rede social Twitter, no dia 31 de março de 2020,
quando três participantes (Prior, Manu e Mari) disputavam a permanência no programa em um
155 Disponível em: <https://twitter.com/username/status/1153765206461493252>. Acesso em 27 jun. 2020.
185
“paredão” de eliminação, que se tornou histórico, por superar a marca de um bilhão de votos.
Prior foi eliminado com 52% dos votos.
Considerando que o Twitter possibilita a publicação de uma mensagem em até 280
caracteres, o usuário [A] produziu três tuítes para transmitir sua mensagem, em que comenta o
comportamento dos candidatos, afirmando que, pelo jogo, Prior merecia ficar. Em seguida, [B]
responde a essa publicação, afirmando que a preferência de [A] pelo candidato se dava em razão
de o reality se tratar apenas de entretenimento para este. No entanto, para [B], a eliminação do
participante era relevante na luta contra o racismo. Então, o usuário [A] declara explicitamente
o mal-entendido (“Vc não entendeu o que eu disse”) e, ao mesmo tempo, soluciona-o por meio
de uma paráfrase redutora, de modo que resume o conjunto de informações que o enunciado
de origem contém (“Eu votei 100x pra tirar ele...”) Então, [B] se utiliza da repetição parcial do
enunciado de referência (“pelo jogo seria importante’”) como recurso argumentativo, no
sentido de justificar a sua leitura equivocada. Em seguida, o usuário [A] aceita a declaração de
[B] e, de modo cortês, argumenta que entendeu a razão do equívoco interpretativo, preservando,
assim, a face de seu interlocutor: “Entendi e respeito... Mas não me julgue. Foi uma
reflexão pragmática de alguém que trabalha em televisão. Eu curti muito o resultado”.
No tuíte seguinte, o usuário [B] também pede desculpa pelo julgamento feito a [A],
afirmando que o enfoque dado em sua resposta não foi o pretendido: “Desculpa se eu te
julguei....não era minha intenção. Obrigada, pelos votos .” De acordo com Kerbrat-
Orecchioni (2005, p. 150-1), o pedido de desculpa visa a neutralizar simbolicamente atos
ofensivos e o agradecimento visa a anular, de modo igualmente simbólico, a dívida que se
contrai com o parceiro comunicativo, ou seja, os encadeamentos para a desculpa, assim como
para o agradecimento, são do tipo “aceitação”, o que se explica muito bem em termos de
“satisfação das faces”. Inclusive, os emoticons assumem-se como um antiFTA ou FFA.
Enfim, no intuito de não sermos repetitivos, mencionaremos, a partir de então e de modo
geral, as particularidades relacionadas às modalidades de fala-escrita encontradas nos
segmentos conversacionais analisados. Verificamos que um grande número de casos apresenta
traços que evocam o diálogo face a face e que, de certa forma, sugerem a espontaneidade e
fluidez das manifestações faladas, tais como: o alto grau de expressão da subjetividade e de
dependência do contexto situacional imediato para que ocorra a compreensão, o léxico do
cotidiano, desvios ortográficos, abreviações, uso dos sinais de pontuação, emoticons,
expressões coloquiais ou gírias, entre outros. Conforme discutido, na seção 4.3.3, essas marcas
186
produzem efeitos de sentido de oralidade, informalidade, proximidade e são valorizadas
positivamente, no sentido de que constroem textos mais francos e sinceros, no entanto podem
também assumir uma valorização negativa, no sentido de os textos parecerem incompletos e
mal elaborados (BARROS, 2000, 2015). Ainda, a longa permanência dos tuítes na rede, as
possibilidades de registro e armazenamento, bem como a grande extensão de seu alcance
comunicacional também dão maior tonicidade a algumas características do texto escrito
(pleno), o que nos leva a esse lugar teórico reservado ao continuum fala e escrita e, nessa esteira,
as reconfigurações textuais e discursivas que ele implica.
Além disso, em todos os exemplos, notamos que os usuários efetivamente se portam
como falantes, produzindo, inclusive, o efeito de uma conversação construída coletivamente,
por meio da alternância de turnos. Nesse sentido, fica evidente que uma interação no Twitter
está muito próxima de uma CFF tanto pelas evidências linguístico-discursivas inscritas no texto
quanto pela percepção de oralidade que dela tem o usuário da língua em suas práticas sociais.
É justamente por essas razões que consideramos tais interações como conversas e,
consequentemente, assumimos as categorias teóricas da análise linguística da conversação na
orientação deste estudo.
Quanto às atitudes linguísticos discursivas dos interlocutores, verificamos, de modo
geral, que, na denúncia do mal-entendido, os usuários produzem certos efeitos de descortesia,
uma vez que essa sinalização é realizada por meio das estratégias de provocação, por exemplo,
em enunciados como: “Eu não me referi a isso”, “você não entendeu nada do que eu disse”,
“Vc entendeu errado”, entre outros. Conforme Barros (2008), nessas circunstâncias, o usuário
(destinador) põe em dúvida a capacidade daquele a quem se dirige (destinatário), apresentando
uma imagem negativa deste e de sua competência. Entretanto, ao produzir a reformulação do
enunciado que gerou o ME, o usuário manifesta implicitamente o interesse por seu interlocutor,
fato que leva o destinatário, no enunciado-resposta, a reconhecer o erro interpretativo e, em
seguida, desculpar-se pelo equívoco. Por meio desse procedimento cortês, ou melhor, mediante
essa estratégia de sedução, constrói uma imagem positiva de seu parceiro comunicativo
(destinador). Por outro lado, ao admitir o próprio erro, beneficia a sua imagem, uma vez que
está realizando um comportamento que é aprovado socialmente. Como vimos, esses segmentos
conversacionais ora são marcadamente polêmicos, ora se mostram mais claramente
cooperativos, dando às interações o equilíbrio necessário à vida em sociedade.
Por último, averiguamos que, em trabalho intitulado Entendendo os mal-entendidos em
diálogos, Hilgert (2005, p. 146), ao examinar inquéritos do Projeto NURC, constata que, nos
187
casos “standard”, ou nos termos desta tese, “mal-entendidos em sentido estrito”, a denúncia do
equívoco interpretativo é realizada de forma indireta, implícita, quase em “linguagem
cuidadosa, quando não tímida, como que ‘pedindo licença para discordar’”. Pressupomos que
esse tipo de manifestação atenuada ocorra devido à natureza da conversação, uma vez que os
interlocutores interagem face a face e, por isso, tendem a ser mais corteses.
Já, em nosso corpus de análise, pudemos observar que há uma tendência de denunciar,
de forma direta e explícita ou mesmo agressiva, o mal-entendido. Acreditamos que essa postura
se deva ao fato de os usuários não só se sentirem protegidos pela tela do computador, como
também pela razão de não estabelecerem uma relação de proximidade com seu interlocutor.
Contudo, quando este pede desculpa pelo equívoco interpretativo, justifica o desvio e/ou o
reconhece, consegue, de acordo com Kerbrat-Orecchioni (2005), neutralizar parcialmente o ato
impolido com um comportamento reparador e, mais precisamente, modificar o estado da
relação interpessoal. Consequentemente, restaura o equilíbrio ritual da interação e, mais
positivamente, alcança o contentamento e entendimento mútuos.
188
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nossas considerações iniciais, pontuamos a necessidade de promover estudos
linguísticos que pudessem responder a questões intrigantes e complexas quanto ao
processamento das interações, que se realizam por meio da linguagem mediada pelas
tecnologias digitais.
Motivados, assim, pela tentativa de desenvolver análises e explicações
epistemologicamente coerentes quanto à CMC que, de acordo com Marcuschi (2005, p. 19),
ainda se encontra “em busca do seu cânone”, procuramos descrever e analisar características
dessa prática conversacional que, a nosso ver, adquire contornos semelhantes à dinâmica
organizacional da conversação face a face.
Partindo dessa premissa, apresentamos, no Capítulo 1, o Twitter – ambiente virtual que
possibilita a e-conversação entre os usuários da rede, como também discorremos acerca dos
aspectos prototípicos do tuíte, que, a nosso ver, pode ser caracterizado como turno
conversacional, quando olhado nas relações que se estabelecem no contexto da interação em
andamento.
Nessa linha de condução, tratamos, no Capítulo 2, dos aspectos seminais circunscritos
na pesquisa em Análise da Conversação, numa perspectiva interacionista da língua, sem perder
de vista o compromisso etnometodológico que está em sua base, pois consideramos que essa
vertente teórica, a qual continua profícua contemporaneamente, isto é, rendendo
desdobramentos nos séculos XX e XXI, pudesse nos garantir um entendimento preliminar de
nossas intenções teórico-metodológicas.
O capítulo seguinte foi destinado ao estudo do objeto de nossa investigação, o mal-
entendido. Constatamos que esse fenômeno pode ocorrer em duas situações: (i) na realização
de uma “interpretação hipotética”, manifesta pelo interlocutor, submetida à consideração do
falante e não aceita por este; (ii) na construção de uma interpretação considerada coerente, do
ponto de vista do interlocutor, mas somente percebida como equivocada, após a denúncia do
falante. À primeira, denominamos mal-entendido em sentido lato [ME-L]; à segunda, mal-
entendido em sentido estrito [ME-S].
189
No Capítulo 4, buscamos explicitar as teorias vinculadas à Comunicação Mediada pelo
Computador, no que diz respeito à estrutura organizacional da e-conversação, mais
especificamente, a que ocorre na rede social digital Twitter. Foi possível observar que essa
plataforma transmuta propriedades centrais do diálogo cotidiano, uma vez que promove a
discussão de variados temas numa identidade temporal, permite a participação de ao menos
dois interlocutores e possibilita a administração de turnos. Ainda, constatamos que, nos tuítes,
há um intenso uso da escrita que, por sua vez, vem permeada de oralidade, a fim de recuperar
elementos prototípicos da comunicação face a face (informalidade, proximidade,
espontaneidade etc.), fato que leva o usuário da língua a percebê-los, tanto na produção quanto
na recepção, como caracterizados pela oralidade.
Contudo, há tuítes relativamente planejados, mesmo se tratando de textos curtos e
concisos, que produzem, consequentemente, efeitos de sentido de formalidade e
distanciamento. Partimos do pressuposto que todas essas características estão, em geral,
associadas à esfera comunicativa em que o sujeito-usuário se encontra inserido, como também
ao tipo de comunicação que se estabelece na rede, isto é, síncrona e assíncrona respectivamente.
Ainda, a longa permanência dos tuítes na rede, as possibilidades de registro e armazenamento,
bem como a grande extensão de seu alcance comunicacional também dão maior tonicidade a
algumas características do texto escrito, o que nos leva a esse lugar teórico reservado ao
continuum fala e escrita.
As análises realizadas permitiram determinar algumas características do mal-entendido
em interações no Twitter, tais como: o mecanismo de organização das sequências discursivas
em que ocorre o fenômeno; os fatores que o desencadeiam no processo interacional; como
também os procedimentos linguístico-discursivos, por meio dos quais os interlocutores
procuram esclarecê-lo. Diante dos resultados alcançados, é preciso ter em conta que os
segmentos interacionais analisados se desdobram, na maior parte dos casos, numa sequência
curta de enunciados, em relações síncronas (em tempo real) e diádicas.
Diante, pois, da peculiaridade do corpus selecionado, era de se esperar que o ciclo de
negociação do mal-entendido no Twitter ocorresse na forma como ele se revela na
conversação face a face, ou seja, grande parte dos exemplos investigados apresentam
regularidades na estruturação dos segmentos conversacionais, com denúncia e encaminhamento
da solução do problema em terceira posição e, consequentemente, a sua inscrição na segunda.
Há que se destacar ainda que a maioria dos segmentos analisados traz uma quarta posição, em
190
que o interlocutor aceita o turno de reparo (é claro que, em sentido estrito, ela é dispensável
nessa estrutura).
Não poderíamos deixar de ressaltar que esse fato sugere, de acordo com Hilgert e
Andrade (2020), que se possa talvez integrar essa quarta posição na estrutura padrão de
monitoramento do mal-entendido, ao menos como tendência, na medida em que sua ocorrência
indicia uma ação convergente entre os interlocutores no processo de construção da
(inter)compreensão. Na verdade, consideramos que esse turno de feedback resulta dos cuidados
que os interlocutores têm para alcançar o entendimento mútuo.
Diante do exposto, concordamos com Weigand (1999, p. 783) ao afirmar: “A
comunicação funciona tão bem porque permite o risco de mal-entendido e confia no fato de que
ele será corrigido na interação em curso”156 e, à vista disso, também com Dascal (2006, p. 325,
grifo do autor) quando assinala: “uma parte significativa da compreensão do discurso tem a
ver com o mal-entendido”. Nessa perspectiva, esse trabalho permitiu identificar que,
aproximadamente, a maioria dos casos analisados alcançaram a compreensão mútua. A análise
inclusive revelou que, dentre os perfis selecionados, os participantes da esfera jornalística e
cotidiana são os que mais interagem com seus seguidores, bem como se esforçam no sentido de
garantir a harmonia na conversa e alcançar um nível desejado de intercompreensão. Não se
pode dizer o mesmo de sujeitos que interagem e/ou atuam no âmbito político-ideológico, visto
que os tuítes são frequentemente marcados por traços de descortesia (expressões e/ou
enunciados ríspidos, pejorativos, deselegantes e irônicos), resultando em ameaças severas às
faces e, por conseguinte, provocando, na interação, um desfecho inevitável: ruptura instantânea
ou abandono, uma vez que os usuários pretendem apenas defender publicamente suas posições
em relação a um determinado tema.
Quanto às causas que dão origem ao ME-S, que se caracteriza como uma “interpretação
ilusória”, ou seja, caso em que o entendimento em relação ao dito é adequado, do ponto de vista
do interlocutor, entretanto não compatível aos propósitos comunicativos do locutor, a análise
revela que os aspectos semântico-lexicais (imprecisões de sentido de um termo ou expressão
no enunciado de referência) são de longe os mais recorrentes. Em menor número, também
foram encontrados mal-entendidos causados por problemas de natureza sintático-lexical,
semântico-pragmática e argumentativa, como o uso da ironia, por exemplo.
156 Tradução da autora para o trecho original: “Communication functions so well because it allows the risk of
misunderstanding and trusts in the fact that it will be corrected by the ongoing dialogue itself.”
191
No que concerne à atividade de sinalização dos mal-entendidos, observamos que os
usuários do Twitter recorrem a denúncias diretas e evidentes, valendo-se de recursos mais
agressivos do tipo: “Não foi a isso que eu me referi”, “Não disse isso”, “Você não entendeu
nada”, “Você não leu direito o meu tuite”, entre outros, antes de proceder à reformulação. Em
menor número de casos, aparecem construções mais atenuadas, por exemplo, “Acho que você
não entendeu o que eu disse”, “Acho que você entendeu errado” etc. No que respeita aos
procedimentos que desfazem os mal-entendidos, averiguamos que os interlocutores se utilizam,
de modo geral, da repetição, de modo enfático e argumentativo, com a intenção de retomar
vocábulos ou estruturas sintáticas não devidamente compreendidas (“Eu disse que...”, “Eu me
referi a...”, “Quando eu me referi a...”) e ainda como recurso que facilita a produção de um
procedimento reformulativo, as paráfrases, cuja função é explicitar ou delimitar de forma mais
precisa informações contidas no enunciado de referência, com a intenção de torná-lo mais claro
para o interlocutor.
Neste ponto, importa mencionar que não tivemos o propósito de fazer um levantamento
exaustivo dos tipos de procedimentos parafrásticos que contemplam as ações de reparo.
Entretanto, mantivemos o cuidado de observar que há um predomínio absoluto de paráfrases
não marcadas, visto que o desdobramento parafrástico ocorre sem marcadores que as
anunciam, e não adjacentes, uma vez que não seguem imediatamente após o enunciado de
referência ou seja, entre o enunciado de referência e o procedimento parafrástico, encontra-se
o enunciado revelador do ME. No que diz respeito à especificidade da relação semântica entre
enunciado de referência e enunciado reformulador, as paráfrases expansivas, cuja realização se
dá por meio de um enunciado lexical e sintaticamente mais complexo do que o enunciado de
referência, foram as mais recorrentes. Esse fato se explica pelo próprio princípio da progressão
textual em que tópicos frasais são especificados, conceitos são definidos, argumentos são
expostos e detalhados, informações são exemplificadas e dados são enumerados. Em menor
número de casos, encontramos paráfrases redutoras, que se constituem em uma formulação
menos complexa em relação ao enunciado de referência, na medida em que têm caráter
preponderantemente sintetizador.
Ademais, averiguamos, nos exemplos analisados, que as atitudes linguístico-sociais dos
interlocutores, ao reconhecerem o equívoco interpretativo no qual incorreram – cujas denúncias
e reformulações se revelaram de forma direta e explícita – foram pautadas por manifestações
de cortesia, representadas abundantemente pelo pedido de desculpa (“Desculpa pelo equívoco
amigo”, “Ok, me desculpe, não entendi direito sua colocação...”, “ATA DESCULPA EU
192
REALMENTE LI ERRADO, comi o resto da frase socorro” etc.), cujo ato se insere em um dos
mais representativos do face work, como também por evidências positivas de entendimento
(“[...] agora li e entendi”, “Eu entendo e aceito”; “Sim amg, entendi...”, “Com certeza”, “É
verdade”, Nesse ponto concordo contigo”, entre outras), indispensáveis à manutenção de uma
relativa harmonia entre os parceiros comunicativos e, ao mesmo tempo, vinculadas ao processo
de construção conjunta e colaborativa da compreensão.
Enfim, os resultados obtidos, por meio dos exemplos analisados, indicam que os
objetivos propostos neste trabalho foram relativamente alcançados. No entanto, conforme
pontua Hilgert (2005, p. 151), “toda a prudência com generalizações apressadas é necessária”,
já que o nosso estudo examinou tão somente interações na rede social digital Twitter.
Nesse sentido, cabe enfatizar que as questões que promoveram a nossa investigação,
bem como as que podem levar a novas pesquisas são reveladoras de que temos muito a refletir
acerca dos fenômenos linguístico-interacionais que emergem no contexto digital. Ainda,
concordamos com Paveau (2021, p. 194), ao afirmar que essa “presença intensa dos escritos
digitais [...] é um objeto ao mesmo tempo necessário e apaixonante para os linguistas do texto,
do discurso e da interação.” Nesse sentido, esperamos que outras investigações se desenvolvam,
questionem, contraponham ou dialoguem com as nossas leituras e entendimentos aqui
apresentados, no sentido de tornar a experiência de “conversar”, no ambiente da rede, cada vez
mais cooperativa e enriquecedora.
Queremos registrar, por último, que a maioria das pesquisas acerca do mal-entendido é
produzida e divulgada principalmente por estudiosos europeus e americanos. No Brasil, o
pesquisador de referência é Hilgert (2003, 2005, 2008), que reúne em seus trabalhos discussões
acerca do fenômeno, mormente, em interações do texto falado. Desse modo, nossa intenção,
com este trabalho, é apresentar um referencial a mais quanto ao estudo do mal-entendido, no
âmbito da comunidade acadêmica brasileira.
193
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