Duas vertentes sobre o conceito de hegemonia: uma
análise em duas obras de Martins Pena
Zora Zanuzo
Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense
Resumo:
O presente artigo visa estabelecer uma relação do teatro de Martins Pena com a conjuntura sócio-econômica, política e cultural do pós-Golpe da Maioridade. O autor utiliza suas peças como uma forma de comentar o que se passava naquela primeira década do Segundo Reinado, num contexto em que os Saquaremas se fortaleciam em detrimento dos Luzias, que vinham perdendo cada vez mais espaço por conta dos fracassos dos movimentos de 1842 e de 1848. Martins Pena, neste sentido, seria o que Gramsci chama de intelectual orgânico, uma vez que ele foi um dos pilares do espírito de associação promovido pelos adeptos do conservadorismo. Palavras-chave: História Social da Cultura, Teatro Brasileiro, Martins Pena
Abstract: The present paper is willing to stablish a relation between the Martins Pena’s theater with the
economic, social, political and cultural conjuncture after the Emperor’s Coups Majority. The author uses his theater works as a way to comment about the the things on the first decade of the Second Reign row, in a context which the Saquaremas were getting stronger politically instead of the Luzias, which were losing their space because of their weak struggles in 1842 and in 1848. Martins Pena, in this sense, would be what Gramsci would call an organic intellectual, because he was one of the people that were looking for a association, promoted by the conservatives adepts. Keywords: Social Cultural History, Brazilian Theater, Martins Pena
1- O contexto da produção de Martins Pena: a Primeira
Geração do Romantismo
Martins Pena fez parte do que Antônio Cândido1 chama de Geração Niterói.
Esta primeira geração do Romantismo surgiu em 1836, com a fundação da Revista
Niterói, por Gonçalves de Magalhães e Araújo Porto Alegre, em Paris. Esta revista
simboliza o que, segundo o autor, é conhecido como a nossa independência literária.
Contudo, de acordo com a obra de Pena2, podemos dizer que ele fez parte deste grupo
apenas cronologicamente, pois, se na prosa e na poesia veríamos o patriotismo
exacerbado, o teatro seria um meio de complementar, pois educaria3 a população
brasileira, tendo como parâmetro a construção da classe senhorial4, onde Ilmar Mattos
diz que se compreende a rede estabelecida por senhores de terras, seja por
negociações ou matrimônios entre as famílias que compunham esta teia. Portanto, ao
passo que autores como Gonçalves de Magalhães ultravalorizam aspectos nacionais,
Martins Pena utiliza expressões que só serão vistas na geração sucessora, pois, além
das obras em que ele tenta se adequar ao modelo padrão do Romantismo serem
consideradas um malogro, o riso é uma forma em que se pode atingir o objetivo da
crítica diretamente.
Neste sentido, a literatura demonstrava o elemento indígena como o bom
selvagem, um elemento a ser civilizado pelo homem branco e símbolo do patriotismo
brasileiro, enquanto o teatro, sobretudo o de Martins Pena, demonstrava como era o
comportamento da sociedade da Corte e sugeria aquele que se pretendia ideal. É
importante frisar que a literatura é a legitimação de um idioma e este, por sua vez, é
um dos agentes legitimadores da soberania nacional. O Romantismo seria esta forma,
uma vez que, se o colocarmos aos moldes europeus5, o estilo, em sua versão brasileira,
1 CANDIDO, Antonio; Formação da Literatura Brasileira (momentos decisivos); 4ª edição; SP: 1971 (2º
volume). 2 As peças que são aqui citadas se encontram online na Biblioteca Digital da Universidade Federal de
Uberlândia e no site do Núcleo de Educação à Distância da Universidade da Amazônia. 3 SÁ, C.M.; GALVÃO, A.M.O; O teatro como estratégia educativa no Segundo Império: características de
uma dramaturgia idealizada pelo Conservatório Dramático Brasileiro. Artigo – 15p. 4 MATTOS, I.R.; O Tempo Saquarema; SP: HUCITEC, 1987.
5 Segundo autores como Alfredo Bosi e Antônio Cândido, o Romantismo europeu viria de forma a
romper com os padrões do classicismo francês. Assim, é importante lembrar que este estilo teve seu início na França revolucionária.
rompia com os parâmetros portugueses. Vale destacar, segundo Lukács6, que o
Romantismo viria de forma a atender os anseios da burguesia, tendo em vista que as
bandeiras levantadas pelo movimento na Europa contemplavam aqueles jovens que,
naquele momento, contestavam o Antigo Regime, culminando em revoluções como a
francesa. Podemos dizer, com base nisso, que o Romantismo europeu tem relações
com o Iluminismo. Porém, nosso foco é a inspiração que causou nos escritores
brasileiros.
De acordo com Vilma Arêas, Martins Pena teve uma formação não-linear,
destacando sua curvatura para as artes e música. Assim como outros autores de sua
geração, Pena também exerceu atividade política, sendo amanuense da pasta de
Negócios Estrangeiros entre outubro de 18477 até seu óbito, datado de 1848. Além
disso, foi membro fundador do Conservatório Dramático Brasileiro, no cargo de
Segundo Secretário. Segundo Rondinelli8, sua obra não se concentra apenas no teatro,
tendo em vista que a sua linguagem popularesca pode ser vista nos contos publicados
em periódicos que eram voltados, de acordo com a mesma, para as mulheres9. Além
disso, como Arêas nos aponta, Martins Pena escreve críticas teatrais no semanal
Folhetins – A Semana Lírica, sua contribuição para o Jornal do Commercio10, entre os
anos de 1846 e 1847, comprovando um grande conhecimento das artes cênicas e nos
dando ferramentas para que possamos compreender sua obra. Contudo, visamos fazer
uma reflexão em cima das obras teatrais deste autor, tendo em vista que suas peças
serão um elo para a compreensão da formação do Estado nacional brasileiro,
utilizando Ilmar Mattos11 como base para este diálogo. Este trabalho se baseia em
autores de diversas formações, por compreender, neste tema, que a Literatura não
deve se desligar da História. Outro ponto a se destacar é que há poucos registros na
6 LUKÁCS, Gÿorg; Arte e Sociedade: escritos estéticos – 1932-1967; RJ: EdUFRJ, 2011, 2ª edição.
7 Fonte: Diário do Rio de Janeiro, 05 de outubro de 1847. Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional. 8 RONDINELLI, Bruna G.R.; Martins Pena, o comediógrafo do Teatro de São Pedro Alcântara: uma leitura
de O Judas em Sábado de Aleluia, Os Irmãos das Almas e O Noviço; Campinas: UNICAMP, 2012. Dissertação, 291 p. 9 De acordo com a dissertação mencionada, Martins Pena tem contos publicados no Gabinete de
Leituras e no Correio das Modas. 10
As críticas foram organizadas e editadas pelo INL/MEC e foram publicadas em 1967. 11
MATTOS, I.R., op.cit., 1987
historiografia sobre a relação dos autores literários com a sociedade em que o mesmo
vivia, sobretudo aqueles que escreviam para o teatro12.
Tendo as peças Os Dois ou O Inglês Maquinista e As Casadas Solteiras como
parâmetro, trabalhamos com o conceito de hegemonia de duas formas. Na primeira, o
conceito está inserido nacionalmente, pois, apesar de termos um personagem inglês, a
peça aborda questões mais voltadas à relação escravista, onde a hegemonia é
estabelecida pela classe senhorial, que dissemina a sua cultura e ideologia em todas as
esferas do país, conforme Ilmar Mattos nos descreve no Tempo Saquarema13. Neste
caso, o dominado é o trabalhador escravo, que é subjugado. Se, conforme Polanyi14
nos diz, o sistema capitalista acaba por se impor sem dar alternativas, colocando
também o mercado de escravos naquele século XIX, acreditamos que, ao longo do
Antigo Sistema Colonial, o sistema escravista tenha se colocado da mesma forma15.
Devemos lembrar, ao trabalhar com Gramsci, que o capitalismo e, no caso do Brasil, o
sistema escravista também se impõe enquanto hegemonia, pois se insere não apenas
no mercado, mas na política e na economia. Com a obra de Martins Pena, temos
exemplos de como esta hegemonia se impõe no cotidiano, quando ele expõe as
relações escravagistas na perspectiva da classe senhorial.
Por conseguinte, apontamos questões abordadas em peças de Martins Pena,
estabelecendo um diálogo da Literatura com a História. Sendo assim, pretendemos
usar as composições Os Dois ou O Inglês Maquinista e As Casadas Solteiras, pois são
dois exemplos do que seria a satirização do elemento inglês, mencionado no parágrafo
anterior. A primeira peça retrata as relações naquilo que Gorender chama de modo de
produção escravista16. Devemos lembrar, pois, que a estreia da peça, em 1845, ocorre
em um contexto em que é promulgada a Bill Aberdeen e, se o teatro é uma forma de
12
Uma das poucas referências que me recordo é a de Lilia Moritz Schwarcz, bem como alguns destaques de Ilmar Mattos. 13
MATTOS, I.R.; O Tempo Saquarema; SP: HUCITEC, 2004. 14
POLANYI, Karl; A Grande Transformação – as origens da nossa época; RJ: ed. Campus, 2000. 2ª edição. 15
O próprio Ilmar, quando vai estabelecer o que é a Moeda Colonial, nos diz que a noção do “ser civilizado” ia em paralelo com a questão da escravidão. Por isso, ele define o que seria a Cara e a Coroa do Brasil imperial. Cf. MATTOS, I.R.; op.cit.; 2004. 16
Tese também defendida por Nelson Werneck Sodré e Ciro Flamarion Cardoso. Este último propõe a tese em seu doutoramento sobre a Guiana Francesa. cf MAESTRI, Mário; O Escravismo Colonial: a revolução copernicana de Jacob Gorender – a gênese, o reconhecimento e a deslegitimação. In: História & Luta de Classes; RJ: pp. 77-102, 2005; MATTOS; I.R.; op.cit.; 2004.
educar, a peça vem para lembrar aos espectadores que a legislação não era cumprida,
uma vez que o tráfico de escravos ainda era comumente praticado e era um ofício
rentável, como o personagem Negreiro nos mostra. A obra também é um claro
exemplo da rede de poder em que a classe senhorial se encontrava. Logo na primeira
cena, Clemência mostra ao pretendente da filha o escravo que acabara de adquirir
através de um Ministro, que era conhecido de um deputado, que, por sua vez, era
marido de sua comadre. O inglês, no que diz respeito à peça, representa o domínio da
Inglaterra sobre o Brasil. Se, no arquétipo romântico, o nacionalismo é bradado aos
quatro ventos, a obra do autor não seria diferente, pois Gainer é tido como aquele que
quer ter vantagens através de suas maquinarias.
Neste sentido, Os Dois ou O Inglês Maquinista, que é uma das últimas obras do
dramaturgo, é didática quanto o uso da Bill Aberdeen (ou, na versão em inglês,
Aberdeen Act) no Brasil. Sendo uma demonstração do que era comumente chamado
de “lei para inglês ver”, a legislação estabelecia que os ingleses se autoproclamavam
com o poder de aprisionar os navios suspeitos de pirataria17 em quaisquer partes do
mundo. Através desta comédia, podemos fazer um paralelo entre o que seria a
escravidão em termos econômicos e sociais. No entanto, antes de entrarmos na
temática aqui proposta, compreendamos o enredo da peça. Felício e Mariquinha são
os personagens centrais, envolvidos direta ou indiretamente nas discussões ali
apresentadas.
Um dos nomes da peça, Os Dois, ocorre pelo fato de Mariquinha ter dois
pretendentes, Negreiro e Gainer, este último dando o nome de O Inglês Maquinista. O
casal principal trama uma forma da mocinha não contrair matrimônio com nenhum
dos dois pretendentes. Martins Pena, neste sentido, demonstra que Felício, o herói da
comédia, seria o exemplo de homem honesto, ao passo que Negreiro e Gainer são as
máscaras da corrupção e da ferida à soberania, respectivamente.
Em tempo: o eixo principal da trama é a tentativa de Felício em contrapor
Negreiro e Gainer, para que ambos se afastem de sua amada Mariquinha, e, assim,
percebem-se diversos aspectos que ilustram a primeira metade do século XIX. Na
17
O Bill Aberdeen insere o tráfico negreiro no crime de pirataria, que era condenado no Direito Internacional.
encenação com Gainer, por exemplo, Martins Pena, através de Felício, destaca a
hegemonia inglesa naquele contexto, uma vez que processos envolvendo ingleses no
Brasil poderiam ser tratados por um tribunal inglês. Gainer, ao tomar conhecimento
sobre as referências que Negreiro lhe fizera, ameaça denunciar o traficante ao
“commander do brigue Wizard”18. No diálogo com o traficante de meias-caras, por sua
vez, se fala sobre as relações com o Juiz de Paz, que também eram exploradas em
outra peça do nosso autor, O Juiz de Paz da Roça19, pois ele se preocupa mais com o
ato da denúncia do que com as ações que o processo poderia gerar. Os sete anos que
separam a estreia de O Juiz de Paz da Roça da d’Os Dois ou O Inglês Maquinista
mostram uma pequena mudança de conjuntura, uma vez que, se, institucionalmente,
o poder do juiz de paz diminui por conta do Ato Adicional de 1834 e da sua Lei
Interpretativa, em 1840, a prática demonstra que as relações de poder se mantêm
intactas.
Voltando a falar da escravidão, Martins Pena, como membro da Primeira
Geração romântica e um intelectual orgânico daquele momento, nos termos de
Gramsci, foi um dos poucos escritores a abordar este tema de forma aberta e direta.
Os Dois, inclusive, é uma das atrações em que se vê o escravo ganhando um pequeno
destaque, ao lado de Os Ciúmes de um Pedestre ou O Terrível Capitão do Mato20.
As Casadas Solteiras tem outro viés do conceito estudado pelo pensador
italiano e aplicado diretamente quando se estuda o termo, o internacional, pois, ainda
que o inglês seja comum nas duas peças, aqui é que o autor colocará a forma em que
as relações internacionais funcionavam no período oitocentista, dentro de sua
perspectiva, pois, se na primeira peça, o escravo era o subjugado, aqui temos o próprio
brasileiro como um elemento subalterno ao inglês. Podemos dividir estas correlações
em políticas e econômicas, representadas pelas irmãs Virginia e Clarice e pelo
malandro Jeremias, respectivamente. Martins Pena nos dá a entender, de acordo com
18
Um dos navios que a Coroa inglesa designou para a fiscalização de possíveis navios negreiros. Seu comandante era o responsável por julgar processos ingleses, segundo as informações que a peça nos fornece. 19
PENA, Martins; O Juiz de Paz da Roça; 1838. Disponível em: http://www.bdteatro.ufu.br/download.php?pid=TT00149. 20
Alexandre, pretendente de Balbina, uma das mocinhas da peça, se disfarça de escravo para adentrar a casa de sua amada sem suspeitas. In: PENA, Martins; Os Ciúmes de um Pedestre ou O Terrível Capitão do Mato; 1845. Disponível em: http://www.bdteatro.ufu.br/download.php?pid=TT00154.
o comportamento dos ingleses na peça, que, aparentemente, a Inglaterra se mostra
como solícita, disposta a contribuir para a libertação das antigas colônias. Aqui,
podemos fazer uma analogia com a forma que John e Bolingbrok tratavam suas
amadas antes de se casarem com elas, pois, se, no primeiro ato, os vemos esforçados,
buscando estar ao lado de suas amadas de qualquer forma; no segundo, o cenário é de
indiferença e de subjugação, já após o casamento. Em relação a Jeremias, o
comediógrafo nos dá a entender que, se estávamos submetidos à Inglaterra
economicamente, cabia ao Império21 se organizar financeiramente para nos libertar,
uma vez que os britânicos, detentores do poder, não se moveriam para tal. Outra
perspectiva do autor pode ser no fato de que os ingleses, no segundo ato, estão
majoritariamente em estado ébrio no jogo de cena.
Ainda que, conforme Arêas22 nos diz, o público romântico fosse composto por
jovens e alheios às questões sociais e políticas, o gênero da comédia se coloca de uma
forma que, através do riso, facilmente se percebe a intenção do autor. Apesar da
faceta avançada e questionadora, as comédias de Martins Pena demonstravam o seu
conservadorismo, ainda que em leves dosagens. A observação do dramaturgo sobre o
cotidiano da classe senhorial dentro do tempo saquarema era a receita principal de
suas peças. Acreditamos, portanto, que isso nos ajude a compreender como aspectos
políticos e econômicos podem se inserir e se naturalizar na cultura, pois é desta forma,
conforme Gramsci, que um sistema se legitima de fato, apesar de Thompson23
compreender que a cultura tem dinâmica própria. Não pretendemos questionar a
análise do historiador inglês, mas devemos ter em mente que, no caso da elite, a
política e a economia influenciam na cultura, pois é a partir das classes dominantes
que a cultura padronizada por elas vai tentar se estabelecer nas classes populares,
que, por sua vez, aceita – ou não – e a adequa à sua maneira, conforme ocorre na
cultura popular brasileira.
21
Neste sentido, ao desenvolver o que seria a função de cada setor na hierarquia imperial, Mattos novamente nos dá uma luz, ao mostrar que os Saquaremas reduziram inclusive o poder do Imperador. Apesar deste seguir como detentor do Poder Moderador, suas atribuições internas se reduziram drasticamente, sendo a Coroa responsável basicamente pelas relações exteriores. Apud. MATTOS, I.R.; Luzias e Saquaremas: Liberdades e Hierarquias. In: O Tempo Saquarema; SP: HUCITEC, 2004. 22
ARÊAS, Vilma; A Comédia no Romantismo Brasileiro – Martins Pena e Joaquim Manuel de Macedo; in: Novos Estudos, n.76, nov.2006. 23
THOMPSON, E.P.; Costumes em Comum; SP: Companhia das Letras, 1991.
2- Os Dois ou O Inglês Maquinista
Neste ponto, devemos iniciar identificando dois personagens que determinam
a divisão nas relações com os escravos, de acordo com a proposta previamente
definida: Negreiro, que simboliza as relações econômicas; e Clemência, a dona da casa,
que representa as relações sociais. Ao longo da peça, o primeiro menciona diversas
vezes as maneiras em que ocorrem as negociações de escravos, sendo o próprio,
conforme já dito, um traficante de meias-caras24. Na primeira cena, o personagem
demonstra como a fiscalização deveria se portar diante do tráfico, denunciando a já
mencionada corrupção no sistema judiciário:
“FELÍCIO - Sr. Negreiro, a quem pertence o brigue Veloz Espadarte, aprisionado ontem junto a Fortaleza de Santa Cruz pelo cruzeiro inglês, por ter ao seu bordo trezentos africanos? NEGREIRO - A um pobre diabo que está quase maluco... Mas é bem feito, para não ser tolo. Quem é que neste tempo manda entrar pela barra um navio com semelhante carregação? Só um pedaço de asno. Há por ai alem uma costa tão longa e algumas autoridades tão condescendentes!... FELÍCIO - Condescendentes porque se esquecem de seu dever! NEGREIRO - Dever? Perdoe que lhe diga: ainda está muito moço... Ora, suponha que chega um navio carregado de africanos e deriva em uma dessas praias, que o capitão vai dar disso parte ao juiz do local. O que há-de êste fazer, se for homem cordato e de juízo? Responder do modo seguinte: Sim senhor, Sr. Capitão, pode contar com a minha proteção, contando que V.Sa. ... Não sei se me entende? Suponha agora que êste juiz é um homem esturrado, desses que não sabem aonde tem a cara e vivem no mundo por ver os outros viverem, e que ouvindo o capitão, responda-lhe com quatro pedras na mão: Não senhor, não consinto! Isso é uma infame infração da lei e o senhor insulta-me fazendo semelhante proposta! - E que depois deste aranzel de asneiras pega na pena e oficie ao Govêrno.
O que lhe acontece? Responda.”25
24
Meia-cara é o escravo trazido ilegalmente para o Brasil. 25
PENA, Martins; Os Dois ou O Inglês Maquinista (1845); ato único – cena 1. Peça disponível em: http://www.bdteatro.ufu.br/download.php?pid=TT00169. Grifos meus.
Na cena 13, podemos fazer uma interseção entre os dois pontos que a peça
sugere, pois é a que Negreiro, tentando agradar Mariquinha, traz um pajem26, que vem
coberto por conta da fiscalização.
“NEGREIRO - Boas noites! CLEMÊNCIA- Oh, pois voltou? O que traz com êste prêto? NEGREIRO - Um presente que lhe ofereço. CLEMÊNCIA- Vejamos o que é. NEGREIRO - Uma insignificância... Arreia, pai. NEGREIRO AJUDA AO PRETO A BOTAR O CESTO NO CHÃO. CLEMENCIA, MARIQUINHA CHEGAM-SE PARA JUNTO DO CESTO, DE MODO QUE ÊSTE FICA A VISTA DOS ESPECTADORES. CLEMÊNCIA- Descubra. NEGREIRO DESCOBRE O CESTO E DÊLE LEVANTA-SE UM MOLEQUE DE TANGA E CARAPUÇA ENCARNADA, O QUAL FICA EM PE DENTRO DO CESTO. Ó gentes! MARIQUINHA - AO MESMO TEMPO Oh! FELÍCIO - AO MESMO TEMPO Um meia-cara. NEGREIRO - Então, hem? PARA O MOLEQUE - Quenda, quenda! PUXA O MOLEQUE PARA FORA CLEMÊNCIA- Como é bonitinho. NEGREIRO - Ah, ah! CLEMÊNCIA- Pra que o trouxe no cêsto?
NEGREIRO - Por causa dos malsins...”27
Ali, podemos ver um exemplo do resultado daquilo que Negreiro explicara na
primeira cena para Felício, uma vez que ele dependia da falta de fiscalização para que
pudesse agradar à moça a quem ele fazia a corte. A seção que demonstra este pajem
como um fruto de relações econômicas se encontra à cena 18, quando o traficante
acredita que será trocado pelo inglês, ao ouvir secretamente os planos de Clemência.
26
À época, o menino escravo tinha esta denominação. Geralmente, aparece no teatro como transmissor de recados. 27
PENA, Martins; op.cit.; 1842; ato único – cena 13.
Ele se sente agredido, pois entende que poderia ter vendido o moleque por duzentos
mil-réis.
Quanto às relações sociais, a cena 6 apresenta uma vivacidade no diálogo, com
a proposta de que isso seja reproduzido no palco. Ao longo da peça, a mãe de
Mariquinha se apresenta como uma pessoa de personalidade, que toma a iniciativa em
arranjar o casamento da filha e – por que não? – para si própria, uma vez que ela era
viúva. É notório, portanto, que ela é quem toma as decisões da casa, o que não era
muito comum para uma mulher do século XIX.
No teatro, o fio condutor de uma cena pode ser a partir de um ou de mais
personagens. Mesmo com quase todo o elenco ativo nesta cena, Clemência é quem se
destaca aqui, pois, enquanto as atividades das quatro senhoras em cena alegorizam28 o
palco, ouve-se o barulho de louça quebrando na cozinha, pois suas escravas faziam o
chá que a dona ordenara. Apesar da ironia do nome (Clemência), ela perde a
compostura perante suas visitas e castiga suas mulheres:
“CLEMÊNCIA- (...) OUVE-SE DENTRO BULHA29
DE LOUÇA
QUE SE QUEBRA30
. O que é isso lá dentro?
VOZ LÁ DE DENTRO - Não é nada senhora. CLEMÊNCIA- Nada? O que é que se quebrou lá dentro? Negras!... VOZ LÁ DE DENTRO - Foi o cachorro. CLEMÊNCIA - Estas minhas negras!... Com licença. CLEMÊNCIA SAI EUFRÁSIA - É tão descuidada esta nossa gente! JOÃO DO AMARAL - É preciso ter paciência. OUVE-SE DENTRO BULHA COMO DE BOFETADAS E CHICOTADAS Aquela pagou caro.. EUFRÁSIA - GRITANDO - Comadre, não se aflija. JOÃO DO AMARAL - Se assim não fizer nada tem.
28
A própria marcação exige movimento dos atores em cena, de forma que ela fique bem viva. 29
Barulho. 30
As letras garrafais que não são os nomes se chamam de marcas, no jargão teatral. Elas definem como os atores devem se posicionar, o modo como eles devem falar e a cena que deve estar ao redor da sua fala/ação, podendo ser mudada de acordo com as condições da atuação no palco. Estas em destaque são as que Martins Pena definiu, pois, no século XIX, não havia a função de diretor, sendo o autor da peça ou o primeiro ator da companhia de teatro responsáveis pela condução dos atores.
EUFRÁSIA - Basta, comadre perdoe por esta . CESSAM AS CHICOTADAS Êstes nossos escravos fazem-nos criar cabelos brancos. ENTRA CLEMÊNCIA ARRANJANDO O LENÇO DO
PESCOÇO E MUITO ESFOGUEADA.”31
Na cena, percebe-se as reações dos personagens à volta, onde o autor coloca
duas posições divergentes em relação à punição das escravas, representadas por João
do Amaral e Eufrásia, sua esposa. Enquanto o primeiro entende que o castigo é
correto, apesar do autor sugerir que o personagem aja como se tivesse pedindo
piedade, sua cônjuge lhe roga que seja mais paciente com suas cativas, dizendo que é
comum as escravas se descuidarem às vezes. Neste sentido, a peça vem ilustrar como
seria a vida de uma família proveniente da elite e da relação desta com os seus
escravos, demonstrando como seria a relação hegemônica entre o senhor branco e o
escravo.
3- As Casadas Solteiras
Esta obra, uma adaptação feita por Martins Pena de Le Trois Dimanches32, tem
Sr. Narciso como o personagem que se coloca enquanto nacionalista, pois ele é
insatisfeito com os amores das duas filhas, Virgínia e Clarice, por dois comerciantes
ingleses, John e Bolingbrok. Esta peça foi escrita em 1845, com estreia no mesmo ano.
Por conta da dificuldade em achar o texto original, seguiremos direto com a
adequação feita pelo nosso autor.
Neste sentido, destacamos que a obra não relata sobre a escravidão, conforme
a outra analisada, mas sobre a dominação inglesa no país. Ao longo da peça, podemos
ver que a relação estabelecida entre os ingleses John e Bolingbrok com as brasileiras
Virgínia e Clarice, respectivamente, é, em si, análoga à hegemonia inglesa no Brasil.
Devemos lembrar que, no contexto em que a peça é escrita e encenada, estamos em
31
PENA, Martins; op.cit.; 1845; ato único – cena 6. 32
ARÊAS, Vilma; Na Tapera de Santa Cruz – uma leitura de Martins Pena; SP: Martins Fontes, 1987; p.203; apud. RONDINELLI, B.G.; Martins Pena, o comediógrafo do Teatro de São Pedro Alcântara: uma leitura de O Judas em Sábado de Aleluia, Os Irmãos das Almas e O Noviço; dissertação, UNICAMP, 2012
plena expansão da primeira Revolução Industrial, assim como a transição para o
capitalismo se encontra em sua fase final, tendo em vista que este sistema, na forma
em que conhecemos atualmente, se instaura em 1848 na Europa. Sendo assim, a
política do século XIX estabelecia uma divisão internacional do trabalho, no qual o
Brasil se encontrava em uma posição subordinada aos ingleses, tendo em vista que,
segundo a tese proposta por Florestan Fernandes, de que havia um padrão de
dominação inglesa na América Latina33, influenciando a política externa do Império do
Brasil ao longo do Oitocentos. Os personagens ingleses, politicamente falando,
representavam o país de origem enquanto nação hegemônica, ao passo que suas
esposas representavam os países subordinados àquela potência, sobretudo o Brasil. A
seguir, veremos um exemplo de como funcionava a política inglesa na ótica de Martins
Pena, quando Clarice e Virginia falam de suas relações com seus maridos, Bolingbrok e
John, respectivamente, para a amiga Henriqueta.
“Clarice — Henriqueta, somos muito desgraçadas, muito... Henriqueta — Vocês, desgraçadas? Virgínia (chorando) — Sim, e muito. Henriqueta — Oh, e por quê? Clarice — Nossos maridos tratam-nos como fôssemos suas escravas. (Chora.) Henriqueta — É possível... Virgínia — Nós é que pagamos as cabeleiras que tomam. Não temos vontade nem deliberação em coisa alguma. Governam-nos britanicamente. Henriqueta — E o que fazem vocês? Virgínia — O que havemos fazer, senão sujeitarmo-nos?
Henriqueta — Nada, isso lhes dá razão!”34
33
Segundo Ilmar Mattos, isso fica mais claro quando a antiga Metrópole assina os tratados de 1810 com a Inglaterra, que teriam amplos poderes políticos e comerciais. Cf. MATTOS, I.R.; op.cit.; 1987; p.107. 34
PENA, Martins; op.cit.; 1845; ato II – cena VIII.
Este trecho nos demonstra como seria a relação da Inglaterra com o Brasil, na
ótica da divisão internacional do trabalho, pois, se havia um padrão de exploração para
a América Latina por parte da burguesia inglesa, a fala de Virginia é bem clara ao dizer
que este trato era unilateral, no sentido de que o Brasil não tinha voz nas relações
diplomáticas com a Inglaterra. Neste âmbito, Luiz Augusto Estrella Faria35, assim como
a própria personagem aqui citada, nos define bem um dos aspectos da hegemonia
gramsciniana, que é o uso da violência simbólica. Para o autor, a Inglaterra foi uma das
nações a trabalhar com esta vertente. Ainda que previsível, em sua opinião, o uso
deste modelo era importante para a manutenção de seus negócios, uma vez que a
aparente democracia é fundamental para que a economia capitalista se estabeleça,
como, de fato, ocorre ao longo do século XIX. Não obstante seu início não tenha
conhecido a “paz” que prevaleceria a partir da segunda metade, foi importante este
comportamento da Inglaterra, para que a sua dominação sobre os antigos colonizados
fosse plena, pois, ao passo que submetia a América Latina como um mercado
exclusivamente seu, o país se sobressairia perante a França, com quem rivalizava o
posto de país mais poderoso. A fala de Henriqueta, mulher de Jeremias, complementa
esta teoria, pois o Brasil nada podia fazer, senão aceitar e se subordinar à política
inglesa. Gramsci36, desta forma, compreende que uma nação pode subjugar a outra
através da ordem econômica, além de ideológica e politicamente. Ilmar também
discorre sobre a política britânica, quando diz que esta subordinação era um novo
modelo do Pacto Colonial, uma vez que não havia dominação direta e a Inglaterra
controlava a maior parte das exportações por meio do sistema de crédito37, o que
explica alguns aspectos sobre os personagens ingleses da peça, uma vez que ambos
são especuladores, assim como Gainer, da peça anterior. Na citação a seguir, os
britânicos de As Casadas Solteiras nos fazem perceber que os brasileiros,
representados por Jeremias, são relapsos no que diz respeito a ganhar dinheiro, bem
como não conseguem conceber a forma como o brasileiro lidava com suas dívidas.
35
FARIA, L.A.E.; O valor do conceito de hegemonia para as relações internacionais; in: Austral: Revista Brasileira de Estratégia e Relações Internacionais; v.2, n.3, jan-jul 2013; pp.209-232. 36
GRAMSCI, Antonio. 1976; Maquiavel, a política e o Estado moderno; Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976; apud. FARIA, L.A.E.; op.cit.; v.2, n.3, jan-jul 2013; pp.209-232. 37
MATTOS, I.R.; op.cit.; 2004; p.28.
“John — Vê lá, Bolingbrok, como são os brasileiros, quando tratam de seus interesses pecuniários. Jeremias vendeu tudo quanto possuía: uma fazenda de açucar que lhe deixou o pai... Jeremias — Não rendia nada; tudo era pouco para os negros comerem, e morrerem muitos. Bolingbrok — Porque não sabe trabalha. John — Vendeu duas belas propriedades de casa... Jeremias — Das quais estava sempre mandando consertar os telhados, por pedido dos inquilinos. Só nisso iam-se os aluguéis. John — E sabes tu, Bolingbrok, o que fez ele de todo esse capital? Bolingbrok — Dize. John — Gastou metade em bailes, passeios, carruagens, cavalos... Bolingbrok — Oh! John — E a outra metade emprestou a juros. Bolingbrok — Este está bom; boa firma, jura doze per cento... Jeremias — Qual doze, homem! Bolingbrok — Quante? Jeremias — A oito por cento ao ano. Bolingbrok — Oh, Jeremias está doido! A oito per cento? Oh! John — Assim é que se estraga uma fortuna. Bolingbrok — Brasileiros sabe mais gasta do que ganha.
Jeremias — Ora, adeus! A vida é curta e é preciso gozá-la.”38
Assim, compreendemos que a forma como os ingleses viam a maneira como
Jeremias cuidava de suas finanças pode ser análoga a como o autor, como membro do
Romantismo, resumia seu país: rico, de forma a não conseguir administrar a própria
riqueza, pois, ao passo que possuíamos um imenso patrimônio natural, não éramos
civilizados o suficiente para administrá-lo, pois a corrupção, no seu modo de pensar,
concordando com a análise destas duas peças e das outras que abordam o tema da
política, não permitia o desenvolvimento do Império. Por isso, agora usando a opinião
dos ingleses de Martins Pena, seria um país fadado à dependência. Interpretamos esta
crítica de duas formas: como a) baseada nos viajantes estrangeiros que mostravam a
38
PENA, Martins; op.cit.; 1845; ato II – cena IV.
sua visão sobre o país; ou b) uma forma de demonstrar que não havia possibilidade de
sermos civilizados, de acordo com o que o Império do Brasil se pretendia, pois estes
tipos de descuidos causariam danos irreparáveis, como ocorre dentro da peça. Sendo
uma típica obra com estilística romântica, Jeremias seria o alvo da lição de moral que o
autor daria, pois ele acaba pobre, tendo apenas a mulher ao seu lado e, assim, deveria
se regenerar.
Devemos ter em mente que o estilo de escrita do nosso autor é ácido, o que
pode nos dar diversas interpretações sobre suas peças, não apenas as analisadas, mas
a sua obra, enquanto comédia. Tal acidez pode ser vista nos seus Folhetins, bem como
nos contos, que não são tão conhecidos como suas comédias. No entanto, de acordo
com os críticos literários, seus dramas não foram tão bem recebidos quanto as suas
comédias, pois seu talento estava justamente na forma irônica de escrever. Contudo,
apesar de seus dons, não podemos deixar de destacar que ele foi um homem de seu
tempo, com seus hábitos, costumes e pensamentos próprios. Neste sentido, ele estava
de acordo com a política do Império, em se estabelecer como uma nação civilizada
com a perspectiva da direção saquarema39, mas ele mostrava que não havia civilidade
enquanto houvesse corrupção e desrespeito às leis, que, por sua vez, não era para
todos. Não vemos o autor questionando a escravidão em si, ou falando abertamente
contra o trabalho forçado, mas ele coloca a sua opinião sobre as relações escravistas,
ao contrário dos autores de sua geração.
Se as duas peças aqui trabalhadas tratam sobre a subjugação de escravos e
brasileiros40, temos em diversas outras o questionamento sobre as leis, as formas
como elas eram dadas, bem como a punição para quem era corrupto ou agia fora da
moral pregada à época. Outrossim, vemos um autor que questiona hábitos religiosos
em mais de uma peça. As Casadas Solteiras também é uma das que se encaixam nesta
situação41. Conforme mencionado, não temos seu texto original, mas, por ser uma
adaptação, compreendemos que os costumes religiosos podem ter sido adequados à
39
Adotamos a tese de Ilmar Mattos, que diz que a cultura e as associações buscavam a adesão para a direção saquarema. O próprio Conservatório Dramático Brasileiro é um exemplo disso. 40
O escravo não era considerado pessoa. 41
Abordando a temática da religião, ainda temos Os Irmãos das Almas e sua peça de mais sucesso, O Noviço.
situação de então, haja vista que o Império tinha o catolicismo como religião oficial. A
peça também nos informa que o casamento só é oficialmente aceito quando a
cerimônia ocorre dentro da religião em que a pessoa se criou. Neste caso, de acordo
com a fala de Henriqueta, apenas os ingleses contraíram matrimônio, pois o ritual
acontecera na sede da Igreja Anglicana e elas não teriam tomado a bênção do
representante católico.
“Henriqueta – (...) Mas sou vossa amiga e compadeço-me do estado e engano em que viveis... Virgínia — Engano em que vivemos? Clarice — Explica-te... Henriqueta — Sabes tu o que se diz no Rio de Janeiro? Virgínia — Tu me assustas! Clarice — Acaba. Henriqueta — Que vocês não estão casadas legitimamente. Ambas — Não estamos casadas? Henriqueta — Não. Virgínia — Tu gracejas. Henriqueta — Ora dizei-me, em que religião fostes criadas? Virgínia — Na religião de nossos pais. Clarice — Católica, Apostólica, Romana. Henriqueta — E teus maridos? Virgínia — São protestantes. Henriqueta — E aonde vos casastes? Clarice — No templo inglês do Rio de Janeiro, na Rua dos Barbonos. Henriqueta — E não fostes também receber a benção católica do vigário da vossa freguesia? Virgínia — Não. Henriqueta — Minhas amigas, sinto muito repetir; não estais legitimamente casadas.
Virgínia — Mas por quê?
Clarice — Não compreendo. Henriqueta — As cerimônias nupciais protestantes só ligam os protestantes; e as católicas, os católicos. Virgínia — Assim... Henriqueta — Assim, só eles é que estão casados; vocês, não. Clarice — Meu Deus! Virgínia (ao mesmo tempo) — Oh, é isto possível? Henriqueta — E vivam na certeza que vocês não são mais que amantes de vossos maridos, isto é, casadas solteiras. Virgínia — Que infâmia! Clarice (ao mesmo tempo) — Que traição!
Henriqueta — E agora que de tudo sabem, querem ainda viver com eles, e dar-lhes obediência? Virgínia — Nem mais um instante! Fujamos! Casadas solteiras!... Clarice — Fujamos! Que vergonha! Duas amantes!... Que
posição a nossa!”42
A situação também nos explica o nome da peça, uma vez que elas estavam
casadas na prática, ao passo que eram solteiras juridicamente, o que era considerado
amoral, uma vez que, segundo a dissertação de Carolina Mafra de Sá43, era a mulher
que conduzia a honra da família, sendo, portanto, a chave principal dos conflitos e das
resoluções dos mesmos.
4- Conclusão
Neste artigo, buscamos elucidar as relações sociais dentro do Brasil Império de
acordo com as peças citadas de Martins Pena. Por conta do seu acesso ao Jornal do
Commercio – como já dissemos, ele escrevia suas críticas teatrais para a publicação –,
ele se baseava no próprio cotidiano para escrever as suas peças. Aqui, quisemos expor
como era a hegemonia de acordo com a sua perspectiva. Neste sentido, as duas peças
citadas demonstram a importância das relações daquele Brasil que ainda se
encontrava em um momento político conturbado com uma Inglaterra que se afirmava
enquanto potência mundial. Se, na primeira, Martins Pena demonstra a aparência
libertadora que a Inglaterra queria mostrar, na segunda, no entanto, ele mostra como
se dava na prática a política inglesa com os países que dependiam economicamente
dela.
42
PENA, Martins; op.cit.; 1845; ato II – cena VIII. 43
SÁ, Carolina Mafra de; Teatro Idealizado, Teatro Possível: uma estratégia educativa em Ouro Preto (1850-1860). Dissertação: UFMG, 2009.
Referências bibliográficas
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Peças
PENA, Martins. Os Dois ou O Inglês Maquinista. 1845.
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