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A Amazônia e os novos paradigmas de desenvolvimento rural ...

Date post: 16-Oct-2021
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A Amazônia e os novos paradigmas de desenvolvimento rural: uma breve reflexão teórica. The Amazon and the new paradigms for rural development: a brief theoretical reflection BEZERRA, Nicolle Rafaella Costa. 1 1 Universidade Federal do Pará, Belém/PA - Brasil, [email protected]. RESUMO O presente artigo é uma revisão de literatura elaborada a partir de uma olhar sobre os reflexos da política de modernização agrária na Amazônia no sistema tradicional de uso da terra de agricultores familiares da comunidade São João onde foram implantados sistemas agroflorestais (SAF´s) através do projeto Raízes da Terra. A metodologia utilizada mesclou abordagens quantitativas e qualitativas com a realização de entrevistas, questionários, observações e revisão de literatura em um estudo de caso constituído por 15 famílias de agricultores. As principais conclusões mostram que a implantação de SAF´s foi uma proposta idealizada e organizada por agentes externos à comunidade São João e conhecedores da realidade local, que através do projeto Raízes da Terra, aprovado com metas previamente estabelecidas, promoveram a intervenção agroflorestal visando o desenvolvimento rural e sustentável da agricultura familiar local. PALAVRAS-CHAVE: Agricultura familiar, Raízes da terra e sistema agroflorestal. ABSTRACT: This article is a review of the literature produced from an eye on the reflexes of modernization policies land in the Amazon in the traditional system of land use for farmers in the community where São João were implanted agroforestry (SAF's) by Raízes da terra Project. The methodology blended quantitative and qualitative approaches conducting interviews, questionnaires, observations, literature reviews and case study of fifteen families. The main conclusions show that the implementation of agroflorestry systems was a suggestion idealized and organized by external agents. This agents know the local reality and through the Project Raízes da Terra (approved with predetermined marks). They promoted the agroflorestry intervention long for rural development and sustainable of the local family agriculture. KEY WORDS: Family agriculture, Raízes da Terra and agroflorestry system. Revista Brasileira de Agroecologia Rev. Bras. de Agroecologia. 6(2) : 40- 2011 ISSN: 1980-9735 Correspondências para: [email protected] Aceito para publicação em 19/03/2011
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A Amazônia e os novos paradigmas de desenvolvimento rural: umabreve reflexão teórica.The Amazon and the new paradigms for rural development: a brief theoretical reflection

BEZERRA, Nicolle Rafaella Costa.1

1 Universidade Federal do Pará, Belém/PA - Brasil, [email protected].

RESUMOO presente artigo é uma revisão de literatura elaborada a partir de uma olhar sobre os reflexos da políticade modernização agrária na Amazônia no sistema tradicional de uso da terra de agricultores familiares dacomunidade São João onde foram implantados sistemas agroflorestais (SAF´s) através do projeto Raízesda Terra. A metodologia utilizada mesclou abordagens quantitativas e qualitativas com a realização deentrevistas, questionários, observações e revisão de literatura em um estudo de caso constituído por 15famílias de agricultores. As principais conclusões mostram que a implantação de SAF´s foi uma propostaidealizada e organizada por agentes externos à comunidade São João e conhecedores da realidadelocal, que através do projeto Raízes da Terra, aprovado com metas previamente estabelecidas,promoveram a intervenção agroflorestal visando o desenvolvimento rural e sustentável da agriculturafamiliar local.

PALAVRAS-CHAVE: Agricultura familiar, Raízes da terra e sistema agroflorestal.

ABSTRACT:This article is a review of the literature produced from an eye on the reflexes of modernization policiesland in the Amazon in the traditional system of land use for farmers in the community where São Joãowere implanted agroforestry (SAF's) by Raízes da terra Project. The methodology blended quantitativeand qualitative approaches conducting interviews, questionnaires, observations, literature reviews andcase study of fifteen families. The main conclusions show that the implementation of agroflorestry systemswas a suggestion idealized and organized by external agents. This agents know the local reality andthrough the Project Raízes da Terra (approved with predetermined marks). They promoted theagroflorestry intervention long for rural development and sustainable of the local family agriculture.

KEY WORDS: Family agriculture, Raízes da Terra and agroflorestry system.

Revista Brasileira de AgroecologiaRev. Bras. de Agroecologia. 6(2) : 40- 2011ISSN: 1980-9735

Correspondências para: [email protected] para publicação em 19/03/2011

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Contextualização teórica da região amazônicae os projetos de desenvolvimento.

Estudos sobre as políticas públicas para odesenvolvimento econômico da Amazôniaimplementadas na década de 1980 mostraram queele foi caracterizado pela criação de um aparatoinstitucional voltado para o crescimento de setoresconsiderados estratégicos na época como omineral, agropecuário e o hidrelétrico. Estemomento amazônico foi denominado por Costa(1992p. 50) de “fúria modernizadora da ditaduramilitar nos anos 80”.

Hurtiene (2001) ressalta que nos últimos 35anos a estrutura econômica, demográfica eecológica da região Amazônia sofreu alteraçõessignificativas devido à execução dos programasgovernamentais de desenvolvimento, uma vezque:

“a construção de rodovias, os programas decolonização oficiais e privados, a migraçãoespontânea e os incentivos fiscais levaram aodesmatamento de mais ou menos 14% da áreaamazônica e à criação de paisagens agráriasvariadas perto de eixos viários, onde seconcentra a maioria de sua população rural(HURTIENE, 2001, p. 177)”.

Para Monteiro e Coelho (2004, p. 10), estemodelo de desenvolvimento econômico repercutiunas dinâmicas sociais e ecológicas da região,acelerando a substituição das florestas e aampliação da concentração fundiária no Estado doPará, desencadeando, então, problemasambientais e sociais.

Segundo Oliveira e Araujo (2003), instituiçõescomo a Superintendência para o Desenvolvimentoda Amazônia (SUDAM), o Banco da Amazônia(BASA) e os projetos de exploração de recursosminerais (Carajás, Trombetas, Jarí, dentre outros)foram criados para incentivar o desenvolvimentoeconômico da região amazônica. Mas os autoresapontam a problemática de que, nos espaços

rurais, a relevância da agricultura familiar foisistematicamente ignorada pelos governos,embora as constatações feitas pelos movimentossociais e estudos realizados em outros países eno Brasil demonstrassem a relevância dosagricultores familiares para o desenvolvimentorural .

Coadunando com os autores citados acima,Santos (2000), baseado nas análises feitas porFearnside (1998, 1997, 1990); ProjetoCUT/CONTAG (1998) e Serrão et al. (1998),ressaltou que:

“os planos de desenvolvimento da Amazôniaforam direcionados para favorecer aimplantação dos grandes projetos, através desubsídios e incentivos fiscais oferecidos pelogoverno federal e do acesso facilitado as terraspara grandes grupos privados, que causaramprofundas transformações ao meio ambiente”(SANTOS 2000, p.9)

O mesmo autor salienta que a introdução dapecuária no final dos anos de 1960 foi patrocinadatambém pelos incentivos governamentais atravésda SUDAM e da Superintendência da Zona Francade Manaus (SUFRAMA), que privilegiaram osempreendimentos pecuários através da isenção doimposto de renda e de financiamentos diretospara implantações de pastagens com adecorrente prática dos desmatamentos (SANTOS,M., 2000, p.10).

Os argumentos do autor apontam que, nacontrabalança dos privilégios, a agricultura familiar,baseada no modelo da agricultura itinerante, tevesaldo negativo. No final dos anos de 1980,segundo Costa (1998b apud SANTOS, M., 2000)aconteceu uma crise relacionada à falta derecursos para financiar a produção agroindustrial eo debate sobre a possibilidade de outro modelo dedesenvolvimento para região veio à tona.

Segundo Hurtiene (1999, 2001), o modelo de

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agricultura itinerante ou migratória, praticadotradicionalmente por agricultores familiares - foi abase da agricultura familiar no nordeste paraensenos anos de 1950- grupos indígenas e extrativistasna Amazônia, simbolizava uma atividadeeconômica primitiva cuja principal tecnologia parapreparo da área e fertilização do solo era osistema de corte e queima da vegetação. Essa foiconsiderada a característica dosubdesenvolvimento socioeconômico daAmazônia e embora seja identificada como osistema de uso da terra mais utilizado poragricultores familiares é responsável por 80% daprodução de alimentos da região amazônica.

Hurtiene (2001) analisou, através de dados docenso agropecuário do IBGE no ano de 1998, acomplexidade e interdependência dos sistemas deuso da terra da agricultura familiar amazônica econstatou que, embora ela seja predominante nosestados da região Norte, ficou numa situaçãoinferior às empresas capitalistas e grandeslatifúndios em relação à ocupação de terrasprivatizadas e ao valor da produção pecuária. Oque predominava até então era a idéia de “atraso”dessas diversas formas de produção daagricultura familiar. Mas, os dados de Hurtienerevelaram que agricultores familiares, fazendeirose grandes empresas agropecuárias possuíamvalores de produção por hectare de R$ 240,00, R$71,00 e R$ 40,00, respectivamente, eevidenciaram a superior eficiência na utilização deterras no Pará pelos agricultores familiares. Osdados do censo agropecuário de 2006 sobre aagricultura familiar brasileira ratificaramestatisticamente que embora a área cultivada sejaacentuadamente menor quando comparada aoagronegócio os 17,7 milhões de hectarescultivados pelos agricultores familiares brasileirosforam os principais fornecedores de alimentosbásicos para a população brasileira. (MDA, 2010).

Ainda que, para Hurtiene (2001) o significado

da maior eficiência na utilização das terras pelaagricultura familiar e sua relação com odesmatamento seja controverso, é possívelanalisar, através desse estudo, que (considerandoessa vertente de pensamento), o debate sobre osproblemas ambientais e, por conseguinte aculpabilidade dos diferentes atores envolvidos, foiproblematizado e evidenciado doutrinariamentepelo viés da ideologia do desenvolvimentoeconômico da Amazônia. Segundo este autor(2001), os enfoques dominantes acerca damodernização agrícola acusaram os camponesesde serem agricultores itinerantes poucos eficientese com um grande impacto destrutivo sobre osecossistemas primários. Nessa vertente sãoressaltadas as dúvidas sobre a viabilidade daagricultura de subsistência e a possível tendênciaao declínio por conta das diminuições daexpansão da fronteira agrícola devido às restriçõesaos desmatamentos (WALKER, 1998; HOMMA,1998; KITAMURA, 1994 apud SANTOS, M., 2000).

Na visão dominante do ciclo de fronteira daagricultura itinerante, a insustentabilidade éapontada tanto no nível econômico, quanto noecológico. Dentre os condicionantes estão: 1) osecológicos - relacionados a solos pobres e ácidos,chuvas fortes com alto potencial de lixiviação,invasão de ervas daninhas e pragas; 2)econômicos - falta de infraestrutura, alto custo decomercialização devido à interligação dosmercados de fatores e produtos via venda nafolha, falta de acesso ao crédito e à assistênciatécnica e os 3) jurídicos - falta de títulos depropriedade e sociais - tradições agrícolasadaptadas. Essas condicionantes citadaspermitem somente sistemas de produção simplese de curta permanência devido à queda dafertilidade do solo e à demanda por terra jáderrubada por novos agentes mais capitalizados(HURTIENE, 2001, p. 192).

Como exemplo, pode ser citado o estudo de

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Cardoso et al. (2003, p. 279) sobre a prática do“feijão do abafado”- técnica que consiste emplantar o feijão e em seguida cobri-lo com resíduosorgânicos de vegetação rebaixada- comoalternativa agroecológica à agricultura familiar paraeliminar a etapa da queimada no cultivo de milhono sistema de plantio direto no resíduo dacapoeira. Para esses autores, a agricultura familiarna Amazônia se caracteriza pelo emprego depráticas tradicionais como o sistema de corte equeima feito manualmente, acarretando desgastedo solo, poluição ambiental e grande dispêndiofísico dos agricultores. Ao mesmo tempo em queeles consideram essa prática mais acessível aosagricultores, interpretam como inconvenientes:

“a poluição ambiental causada pela liberaçãode gases para atmosfera quando da queima davegetação, a perda de matéria orgânica e denutrientes, principalmente nitrogênio e enxofre,a possibilidade de fogo adentrar em outrasáreas com cultivos perenes e causar sériosprejuízos; a drástica redução da atividademicrobiana na camada arável do solo, além detratar-se de um trabalho muito penoso comgrande desgaste físico do agricultor, pois todasas etapas são feitas manualmente (CARDOSOet al., 2003, p. 295)”.

Na outra vertente estão os críticos às políticasde modernização da Amazônia que identificavamos agricultores familiares como vítimas nas váriasfronteiras agrárias, condenados à expulsão pelapecuária ou por outros sistemas modernos(HURTIENE, 2001). Na contraposição a visãodominante do ciclo de fronteira, este autor sustentaa tese de uma estabilização relativa doscamponeses nas diversas fronteiras no Pará. Seusdados demonstram que a pequena produção sebaseia cada vez mais na complexação dossistemas de produção (integração pelo menos

econômica de culturas perenes, pequena criação egado) e, por isso, na superação da agriculturaitinerante como forma predominante (COSTA,1994 apud HURTIENE, 2001, p. 193)

Essa perspectiva de análise está relacionada àhistória de ocupação da terra na Amazônia. Nocaso do Estado do Pará existem tendênciasdiferentes para as zonas de colonização maisantigas e mais recentes, naquelas prevalece a daestabilização relativa, e nesta, provável maiorvalidade do ciclo de fronteira (HURTIENE, 2001).

Além disso, considerando os aspectos culturaisdos agricultores familiares, vale ressaltar a análiseantropológica de Woortmann e Woortmann (1997).Os seus estudos mostram o significado simbólicoe prático do fogo que ultrapassa o consenso dedegradação ambiental, pois a queima permite atransição do espaço natural para o cultural onde ofogo doma a terra, uma vez que:

“Concluído o aceiro, inicia-se a queima,momento crucial na transição do espaço aindanatural para um espaço cultural, onde seconstituirá pelo trabalho, a terra de cultura(cultivos). É o fogo que opera essa mediaçãoentre natureza e cultura, como que lheatribuindo um significado simbólico comum aoutras culturas o que nada diminui seu sentidoprático (WOORTMANN e WOORTMANN,1997, p. 57)”.

Schmitz (2007) estudou a transição daagricultura itinerante na Amazônia para novossistemas de produção e sintetizou os principaisentraves e possibilidades identificados dessesistema de uso da terra na Amazônia. O autorconsidera a agricultura itinerante:

“econômica em termo de trabalho e ecológicaem termos de manutenção da fertilidade dosolo enquanto os períodos de pousiu ficam

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mantidos por tempo suficiente. Porém, quandose usa a terra por mais tempo e o período depousio diminui, observa-se uma perda defertilidade do solo e um aumento da infestaçãocom "ervas daninhas" (vegetação espontânea,mais adaptada ao lugar que nem sempreprejudica a cultura plantada), tornando-senecessário mais tempo de trabalho para aprodução da mesma quantidade de alimentosbásicos (SCHMITZ, 2007, p. 2)”.

Se de um lado existe a vertente de pensamentoque correlaciona a agricultura familiar aodesmatamento por causa da tendência àinsustentabilidade ambiental, por outro lado existea outra análise que considera a diversidade dasformas de uso da terra das agriculturas familiaresamazônicas ligadas a diferentes graus desustentabilidade ambiental. Nesse segundo caso amaioria dos estabelecimentos agrícolas familiarespossui sistemas de produção agrícolas complexosque incluem culturas perenes, árvores frutíferas,extração vegetal de produtos florestais nãomadeireiros e pequenas criações (HURTIENE,1998; COSTA, 1992, 1994 apud HURTIENE, 2001,p. 185).

Assim, é possível inferir que as principaiscríticas ao modelo político de desenvolvimentoagrário na Amazônia se fundamentaram nosinsucessos ambientais e sociais, tais como, adegradação ambiental, perda de recursos naturaiscom as atividades madeireiras, mineradoras epecuárias, a concentração de terra, êxodo rural eos conflitos agrários. Estes, direta ou indiretamente,provocaram alterações nas dinâmicas agrárias erefletiram negativamente no contexto dosagricultores familiares amazônicos que de formageral não foram favorecidos com as estratégiasdesenvolvimentistas do governo naquele momento.

Segundo Albaladejo e Veiga (2002, p. 1), asconsequências dos problemas ambientais desse

modelo de desenvolvimento agrário na Amazôniaforam evidenciadas no cenário nacional einternacional e são alvo de múltiplas e diversasinterpretações, sobretudo por atores que não seencontram nos lugares do debate, mas que estão,ao menos alguns dentre eles, envolvidos emrelações de força, tendo a questão agrária comopano de fundo, entre os quais estão instituiçõescomo:

“O Ministério do Meio Ambiente, e o estadofederal de maneira geral; a imprensa; asinstituições de pesquisa (brasileiras eestrangeiras; diferentes organizações nãogovernamentais; sindicatos de trabalhadoresrurais; os grandes proprietários de terra(ALBALADEJO; VEIGA, 2002. p.2)”.

Então, a partir da Eco 92, e levando-se emconsideração a destruição dos recursos naturais, aalternativa dos cultivos diversificados, dentro deuma abordagem ecológica, passou a serconsiderada, já que era preciso desacelerar odesmatamento, que foi um dos principaisproblemas ambientais divulgados. Assim, umaparato institucional foi criado tanto para fiscalizare aplicar sanções legais, como o Instituto Brasileirode Meio Ambiente (IBAMA), quanto para pesquisara introdução de novos sistemas de produçãodiversificados, a exemplo da Empresa Brasileira dePesquisa Agropecuária. Nas entrelinhas, não épossível afirmar que a criação de tais instituiçõesfoi uma iniciativa do governo brasileiro oudemanda local, mas uma imposição ecológicaresultante da ECO 92 e das pressõesambientalistas à Amazônia Brasileira (COSTA,1992).

Costa (1992, p.73) ressaltou que o pressupostoda nova atuação do governo foi agir sob omarketing da repressão policial e burocrática aodesmatamento e desincentivo à pecuária naAmazônia. Segundo o autor, essa é a lógica do

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ecologismo, que se tornou elemento de mediaçãopolítica e ideológica em favor da propriedadelatifundiária da terra no embate que se trava entrecamponeses e latifundiários no Brasil, no contextoda privatização de terras na Amazônia.

Mudanças paradigmáticas com relação aosmodelos de desenvolvimento

Dentro desse cenário de debates sobre omodelo da política de modernização agrária daAmazônia dos anos de 1980 e suainsustentabilidade socioambiental nos espaçosrurais, principalmente onde atuam os agricultoresfamiliares, existem correntes de pensamentos quepreconizam a possibilidade de mudanças nossistemas de uso da terra através de uma transiçãopara um modelo de desenvolvimento ruralsustentável, ou seja, menos dependente dosrecursos naturais e mais acessíveis e praticáveispor agricultores familiares descapitalizados. Seráum modelo idealizado de uma nova revoluçãoverde?

Esse novo debate ambiental que se iniciou nosanos de 1990, teve abrangência mundial ebaseava-se em críticas ao modelo dedesenvolvimento destrutivo e excludente. Sobreisso Reis (2005, p. 32) argumentou que:

“Em 1992, os debates ambientais mundiais e apreocupação com o esgotamento dos recursosnaturais renováveis e não renováveis,culminaram com a realização de primeiraConferencia das Nações Unidas para o MeioAmbiente e Desenvolvimento Humano (Eco 92)no Rio de Janeiro, que teve em seus resultadosa elaboração da Agenda 21 pelos paísespartícipes, visando um novo modelo dedesenvolvimento”.

Segundo Reis (2005), nos debates e naspreocupações ambientais decorrentes, foramevidenciados os modelos de desenvolvimento que

se instalaram na Amazônia para beneficiar aselites econômicas e políticas, ameaçando abiodiversidade natural e cultural (REIS, 2005, p.33). A partir dessa mobilização mundial, surgemno Brasil, por exemplo, experiências ambientaisalternativas que se multiplicaram, principalmentenos anos de 1990, propondo conjugar apreservação da biodiversidade com as demandaspopulares locais (REIS, 2005 p. 33). Destas, osprogramas agroflorestais, e no caso o projetoRaízes da Terra, são exemplos.

No âmbito dessa abordagem temática estão osprogramas agroflorestais das instituiçõesgovernamentais e não governamentais naAmazônia para a difusão da tecnologiaagroflorestal através do sistema de cultivoagroflorestal que vem crescendo em todas asregiões do país. Instituições governamentais comoo Ministério do Meio Ambiente, Embrapa,universidades e congressos científicos têm espaçoreservado ao debate e ao tema. Uma rede deorganizações não-governamentais debatem otema e vêm articulando o desenvolvimento deespaços para discussão, pesquisa, divulgação eexperimentação da tecnologia agroflorestal tantono Brasil como no exterior. Em destaque entre asorganizações não governamentais de âmbitomundial está o Center for Research InAgroflorestry (ICRAF) sediado na áfrica, atuandointernacionalmente em regiões que têm florestastropicais (ICRAF, 2008).

A tecnologia agroflorestal, através dos sistemasde cultivo agroflorestais, está inserida naproblemática do manejo sustentável dos sistemasde produção. Considerando esta preocupação,surgiram pesquisas para promover alternativas àtransição da agricultura tradicional (migratória)para uma agricultura permanente intensiva (maiortempo de uso na mesma área) como sistemasmelhorados com pousio da capoeira quecontinuam praticando a agricultura itinerante,sistemas de agricultura permanente com o uso da

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mecanização nas operações agrícolas deenriquecimento (trituração da capoeira), uso datração animal e destoca seletiva e sistemaagroflorestal (SCHMITZ, 2007; HURTIENE, 1999).

O programa florestal da Embrapa-CPATU/PNPF(Amazônia Oriental), iniciado no Brasil em 1979,partiu de preocupações detectadas com o avançoda exploração florestal na Amazônia, objetivandotentar recompor áreas degradadas e abandonadasem decorrência das atividades agrícolas epecuárias (SANTOS, M., 2000). Os estudos desseprojeto foram concentrados no Estado do Pará, nascidades de Santarém, Capitão poço, Tomé Açu eBelterra, a partir de 1980. Para isso, primeiro foramidentificados os sistemas usados pelos agricultoresda região e após algumas modificações foramintroduzidos no campo os experimentos com asespécies consideradas potenciais para seremutilizadas em sistemas agroflorestais na Amazôniaconforme os diferentes sistemas de cultivosassociados, como os cultivos de ciclo curto,cultivos de ciclo médio, cultivos perenes e espéciesflorestais (SANTOS, M., 2000, p. 24).

O autor ressalta que os sistemas agroflorestaissão técnicas para o aproveitamento contínuo dosolo com grandes potencialidades para a regiãoda Amazônia, embora recomende-se bom-sensoem sua aplicação pois é necessário analiasar cadasituação.

A partir de 1990, a Embrapa AmazôniaOcidental (CPAA), sediada em Manaus, instalouquatro experimentos com sistemas agroflorestaisdiferentes em um de seus campos de experimento(SANTOS, M., 2000, p. 24).

Miller e Nair (2006), pesquisando sobre ahistória dos sistemas agroflorestais indígenas naAmazônia, mostraram que esta forma de uso daterra vem-se desenvolvendo desde períodos pré-colombianos com os conhecimentos tradicionais eque persiste até hoje com a herança cultural dospovos indígenas. Desde o passado, os índios já

cultivavam frutas somadas aos produtosalimentícios, e nos arredores das suas moradias,existiam os quintais constituídos como espaçopara o exercício da diversificação de cultivos.Segundo eles:

“Os sistemas agroflorestais dos povosindígenas atuais da Amazônia representam umgrande estoque de conhecimentos sobreplantas cultivadas, que foi aprimorado aopassar de séculos, se não milênios.Provavelmente estes sistemas agroflorestaisrepresentam tecnologias que evoluíram passoa passo com a domesticação de plantassilvestres e da sua incorporação em sistemasde produção de alimentos” (MILLER; NAIR,2006, p. 6).

O termo “agrofloresta” surgiu na Amazônia nofim da década de 1970 e se popularizou no inícioda década de 1990 (VAN LEEUWEN et al., 1994;CURRENT et. al., 1995b; DUBOIS, 1996; CANTOet. al., 1997 apud SANTOS, M., 2000, p. 20).

Os sistemas agroflorestais sãoagroecossistemas ou ecossistemas complexosque permitem a combinação de árvores ouarbustos em associação com cultivos agrícolase/ou com animais numa mesma área de maneirasimultânea ou numa sequência temporal. E aindapossibilita otimizar os efeitos benéficos dasinterações que ocorrem entre os componentesagrícolas, florestais e animais, obter a maiordiversidade de produtos para diminuir asnecessidades de insumos externos, reduzir osimpactos negativos das práticas agrícolas e trazerbenefícios sociais, econômicos e ambientais aosagricultores (DUBOIS, 1996; GLIESSMAN, 2001;ICRAF, 2008).

No campo teórico, principalmente no âmbitoacadêmico da agroecologia, surgiram estudos queevidenciaram a possibilidade de uma agricultura

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sustentável, ou seja, a construção de um padrãoprodutivo menos degradante ao ambiente (solo,água, flora, fauna, ar) sem prejuízos financeirospara os agricultores. Para isso, a literaturaespecífica recomenda o manejo sustentável dosagroecossistemas pela adoção de práticaspautadas nos princípios da agroecologia(PRIMAVESI, 1980; GLIESSMAN, 2001, ALTIERI,2002).

Os sistemas agroflorestais são consideradosimportantes para os ecossistemas tropicais eassim adequados à região amazônica (DUBOIS,1996; GLIESSMAN, 2001; ICRAF, 2008). Têm sidorecomendados como uma solução e/ou alternativapara a recuperação de áreas degradadas, compotencial de gerar maior produtividade agrícola,florestal e pecuária, e como mecanismo redutor derisco para o agricultor (VILAS BOAS, 1991;MONTAGNINE et al. 1992 apud SANTOS, M.,2000, p. 11).

Os pesquisadores dos sistemas agroflorestaisapontam nos seus estudos aspectos favoráveis edesfavoráveis dessa prática, principalmente, noque refere à biologia de tais sistemas (DUBOIS,1996; ALTIERI, 2002; KATO, 2008).

Segundo Santos (2000), diante dos impactosda utilização por vários agricultores, as viabilidadesbiológicas dos sistemas agroflorestais foramapontadas, baseadas no ponto de vistaagronômico, as quais são indicadas por Kato(2008); Santos (2000); Glover e Beer (1996, apudSANTOS, M., 2000, p. 21) da seguinte forma:

a) propriedades físicas, químicas e biológicasdo solo: as árvores têm sistemas radicularesdesenvolvidos e por isso exploram melhor o solo eassim conseguem capturar os nutrientes do solo ese desenvolver melhor. O sistema radicular dasespécies perenes se distribui em camadas maisprofundas do solo promovendo ciclagem denutrientes desde as camadas mais profundas dosolo para as camadas superficiais via translocaçãode nutrientes e também podem evitar sua a

lixiviação, melhorando a absorção earmazenamento;

b) conservação do solo: a consorciação comespécies que ocupam diferentes extratos de copapodem reduzir os impactos das chuvas e assimpermitir o controle da erosão do solo e assimajudar a manter ou melhorar a capacidadeprodutiva da terra devido a proteção do solo contraerosão e também melhorar a atividade biológicado solo, retenção de umidade e adubaçãoorgânica do solo pela matéria orgânica dasárvores;

c) possibilidade de aumento da renda familiarna sua fase de plena produção e assim contribuirpara a melhoria da alimentação dos agricultoresatravés dos produtos dos quintais;

d) ajuda ao agricultor a manter-se na terra eorganizar melhor sua vida, assim como melhorarsua qualidade de vida com a conservação dafloresta, devido à possibilidade de manter asfontes de água potável, continuar a caça e pesca,o equilíbrio climático da região e a conservação dabiodiversidade;

e) menor risco para os produtores, devido auma maior diversificação da produção em casapropriedade;

f) melhorar distribuição de mão de obra aolonge do ano, nas tarefas de implantação, manejoe manutenção, quando comparado aos cultivosagrícolas anuais ou bianuais;

g) mais conforto no trabalho na roça, pois namaioria dos sistemas agroflorestais o agricultortrabalha na sombra, diminuindo assim o cansaçodo agricultor que trabalha em regiões de pleno sol,melhorando o seu o desempenho.

Quanto aos aspectos desfavoráveis ao sistemade cultivo agroflorestal, Kato, (2008) e Santos(2000, p. 23) apontam as seguintes:

a) competitividade entre os componentesvegetais: competição por nutrientes, espaço decrescimento, luz e umidade podem prejudicar aprodutividade das plantas perenes e anuais. O

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componente florestal pode diminuir o rendimentodos cultivos agrícolas e pastagens dentro dosistema e a mecanização fica dificultada;

b) prejuízos causados pelo componente animal:no caso de uso de sistemas agrosilvipastoris podeocorrer desequilíbrio na interação entre plantas eanimais;

c) alelopatia: inibição da germinação ecrescimento de plantas por compostos liberadosnaturalmente por raízes ou parte aéreas de outrasespécies;

d) aumento dos riscos de erosão: ocomponente arbóreo apresenta um dossel muitoalto e o sombreamento interfere na vegetaçãorasteira e ocorre acumulo de água das chuvas emgrande quantidade nas folhas cujas partículaspodem provocar erosão quando caem diretamenteem solo desprotegido;

e) conhecimentos limitados dos agricultores,técnicos e pesquisadores sobre sistemasagroflorestais;

f) o manejo é mais complicado do que oscultivos de espécies anuais ou de ciclo curto, aindacomo o custo de implantação e do processo decertificação é alto.

Os sistemas agroflorestais em relação aosaspectos agronômicos, florestais e ecológicospossuem notória viabilidade enquanto sistemas decultivos alternativos e sustentáveis. Ainda que osbenefícios agroecológicos apresentados possamser refletidos também na realidade social dosagricultores, é fundamental aprofundar os estudossocioeconômicos para entender melhor as práticasagroflorestais dos agricultores e considerar seuspontos de vistas e conhecimentos.

Elaboração do projetoO presente estudo objetivou compreender, na

comunidade São João/PA, os reflexos da políticade modernização agrária na Amazônia no sistematradicional de uso da terra de agricultoresfamiliares. Para tanto partimos do pressuposto de

que as políticas públicas voltadas para odesenvolvimento econômico da Amazônia tiveramum alto impacto na dinâmica do espaço rural, sejapelo surgimento de grandes latifúndios ou deempresas agroindustriais.

Principais características da localidadeestudada

A comunidade São João, local do estudoapresentado, fica localizada ao sul do municípiode Marapanim, distante 150 km da sede domunicipal, o acesso é difícil principalmente noperíodo chuvoso. Por causa dessa distância apopulação local se descola com muito maisfreqüência ao município de Igarapé Açu, distante18 km.

O município de Marapanim fica localizado noEstado do Pará na zona fisiográfica do Salgado,aproximadamente a 110 km de distância da capitalBelém. O nome da cidade tem origem tupi (Maraou mbara e panin ou panã + i) e significaborboletinhas d‘água ou do mar (IBGE, 2009). Éreconhecido pelo forte potencial turístico e atraimuitos visitantes todos os anos seja beleza desuas praias com localização privilegiada no litoralparaense, ou por ser conhecida como a cidade docarimbó, ritmo e dança folclórica típica do Pará.Anualmente acontece na sede do município ofestival do carimbó onde vários grupos de músicado Estado do Pará se apresentam.

O contexto político e institucional deemergência do Projeto

O nordeste paraense, região do Estado do Paráonde fica localizado o município de Marapanim e acomunidade São João, é caracterizado por umaimigração antiga cuja colonização aconteceudesde o início do século XX na zona bragantina,onde a agricultura itinerante de pousio foi a basedo campesinato, e serviu como exemplo clássicopara a validade do ciclo de fronteira, de altainstabilidade econômica e insustentabilidade

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ambiental. (HURTIENE, 2001, p. 201).A agricultura itinerante, principal sistema de uso

da terra de agricultores familiares do nordesteparaense, foi interpretada ao longo da historia deforma pessimista e depreciativa. A visãopredominante apontava esse tipo de agriculturacomo empírica e irracional e causadora dedesequilíbrio ambiental e social, onde a tendênciaao aumento populacional na região a inviabilizaria.( HURTIENE, 2001).

Assim, a própria historia de colonização daregião do nordeste paraense e os seus reflexosnas dinâmicas agrárias apontam um cenárioamazônico minado de interpretações baseadas emestudos, principalmente aqueles relacionados aodesmatamento da Amazônia. Por isso, essacaracterística regional é traduzida como sendo“naturalmente” propicia às estratégias elaboradasem projetos de desenvolvimento e ações deprogramas de pesquisa e extensão para introduçãode novos sistemas agrícolas, por exemplo, oProjeto Raízes da Terra, que é um doscomponentes dos Projetos AlternativosDemonstrativos do Programa Piloto para Proteçãodas Florestas Tropicais (PPG7), da Secretaria dePolíticas Públicas para o DesenvolvimentoSustentável do Ministério de Meio Ambiente (MMA)e tem como objetivo apoiar iniciativas inovadorasda sociedade civil organizada e dos governosfederais e estaduais em termos de manejo dosrecursos naturais na busca do desenvolvimentosustentável da Amazônia.

A partir da década de 1990, alguns agricultoresdaquela comunidade vêm experimentando, nosseus estabelecimentos, alternativas ao sistematradicional de corte e queima para o preparo deárea através de uma parceria com a Embrapaapoiada pelo governo Alemão através do projetoque usa a tecnologia da trituração mecanizada davegetação secundária com um trator de altapotência acoplado a um implemento responsávelpelo corte e trituração da vegetação secundária

sem destruir o sistema radicular. Assim, ao mesmotempo em que é triturado o material vai sendodistribuído uniformemente sobre o solo formandouma cobertura morta ou “mulch”(OLIVEIRA, C.,2002, p. 36). Esse projeto apontava apossibilidade de estudos sobre a adoção detecnologias inovadoras alternativas ao sistema deuso da terra tradicional de corte e queima,baseadas no pressuposto de insustentabilidadeagroecológica (OLIVEIRA, C., 2002).

A partir dessa experiência, a interlocução entreagricultores da comunidade São João e tambémdas comunidades localizadas no município deIgarapé Açu e os pesquisadores da Embrapa,passou a ser construída, fato que viabilizou aelaboração e aprovação do projeto Raízes daTerra. Sua execução se deu tanto porpesquisadores da Embrapa quanto por profissionalcontratado para prestar assistência técnica e apoioadministrativo.

Os públicos alvos do projeto eram osagricultores das comunidades parceiras daEmbrapa desde alianças construídas durante osprojetos anteriores desenvolvidos nos municípiosde Marapanim e Igarapé Açu. As mobilizações ediálogos foram facilitados, uma vez que, os atoresestavam direta ou indiretamente integrados à redesócial. Mas para participar os agricultoresinteressados deveriam ser sócios formalizados deuma associação que representasse a suacomunidade e mostrassem disponibilidade paraatuar em atividades coletivas. Essa ação visavaestimular o fortalecimento da organização socialnas comunidades envolvidas. Assim, entre ascinco comunidades locais, 42 famílias foramescolhidas para participar. As principias metas doprojeto eram:

a) instalação, monitoramento e avaliação dealternativas que evitassem o desmatamento, o usodo fogo no preparo de área, a degradaçãoambiental e aquelas iniciativas que promovessema recuperação de áreas degradadas, baseadas na

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implantação de sistemas agroflorestais, oenriquecimento de capoeira com essênciasflorestais, o melhoramento de capoeira comleguminosas arbóreas e/ou arbustivas comocobertura, o enriquecimento de quintais e culturasde subsistência;

b) definição dos instrumentos agroambientaissustentáveis, ou seja, implantar viveiros deprodução de mudas, campo de multiplicação desementes de leguminosas;

c) organização, definição e realizar atividadesde difusão dos resultados obtidos entre e dentrodas comunidades e na região através de dias decampo e intercâmbio.

A metodologia utilizada, para coleta de dadosdesse estudo, mesclou abordagens quantitativas equalitativas a partir da realização de entrevistas,questionários, observações de campo e revisão deliteratura. A população analisada foi composta de15 famílias de agricultores familiares dacomunidade São João.

Implantação do projetoAtravés dos resultados apontados pela

pesquisa foi possível contextualizar e identificar aestrutura de funcionamento do projeto Raízes daTerra na comunidade São João e a convivênciaagroflorestal dos agricultores familiares.

O projeto foi apresentado aos agricultores em2005 na oficina denominada “Diagnóstico ruralparticipativo inicial” realizada na cidade de IgarapéAçu, no campus da Fazenda Escola daUniversidade Federal Rural da Amazônia (UFRA)cuja pretensão era realizar um diagnósticoagroecológico e econômico do lugar para obter umquadro panorâmico dos recursos naturais e osprincipais sistemas de produção. O evento foiorganizado pela equipe técnica do projeto e doisrepresentantes do Ministério do Meio Ambiente ecomo convidado estava um técnico da EMATER domunicípio de Marapanim e eu enquanto estagiária

de iniciação cientifica Embrapa/UFRA. Nestaocasião, os objetivos e a fonte dos recursos foraminformados aos agricultores presentes.

As principais metodologias usadas nesta faseforam: entrevistas (estruturadas), reuniões eprocedimentos para coletar informações em grupocomo o diagrama de Venn e o diagrama de fluxo,que serviram para construir os mapas dosrecursos naturais e dos sistemas de produção.Esses últimos foram trazidos pelos doisrepresentantes do MMA, que ensinaram aospesquisadores e à técnica do projeto como utilizá-los em outras ocasiões.

A partir desse primeiro evento, outrosdiagnósticos foram feitos nos estabelecimentosagrícolas familiares das comunidades,reproduzindo o mesmo formato da primeira oficinacom entrevistas individuais, seminários e reuniões.O objetivo da equipe técnica era montar um planode utilização individual e coletivo do SAF deacordo com as características agroecológicas esociais de cada comunidade.

Assim, entre reuniões, seminários e visitas aosestabelecimentos as propostas foram construídasprogressivamente com os agricultores. Durante oseventos descritos agricultores de comunidadesdiferentes obtinham as informações coletadas e ospesquisadores restituíam e atualizavam osconhecimentos.

Durante esse processo de consolidação doplanejamento foram discutidas as atividades, ostipos de espécies, os arranjos dos cultivos e otamanho da área para implantação dos sistemasagroflorestais.

A etapa para escolha das espécies para ocultivo foi muito demorada, pois cada agricultor foiconsultado individualmente sobre como desejavacompor seu sistema. As informações eram obtidaspor meio de entrevistas com os agricultores eatravés de discussões em reuniões nascomunidades ou em espaços públicos, como a

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sede da associação e o salão de reunião dasigrejas. Além disso, outro método utilizado pelaequipe técnica do projeto para identificar aspreferências dos agricultores era representá-la emdesenhos e quadros esquemáticos.

Assim, foram criados arranjos complexos ebiodiversos. Essa complexidade retratava o desejoem melhorar a gestão dos recursos naturais paramanter a produtividade agrícola e sua importânciapara a reprodução familiar, uma vez que osagricultores traçaram, além de estratégiasagrícolas, possibilidades de manter sua estruturasócio-cultural e sua herança histórica(CASTELLANET et al., 1994 apudCASTELLANET; HÉBETTE, HENCHEN, 2000).

A equipe técnica do Projeto Raízes da Terrapropôs aos agricultores que seria viáveleconomicamente escolher uma espécie queintegrasse a composição de todos os arranjosagroflorestais dos estabelecimentos. Naconcepção dos propositores, essa estratégiaviabilizaria a inserção do produto no mercado localconforme a demanda.

A grande demanda de açaí (Euterpe oleracea),apontada pela equipe técnica, estimulou ointeresse dos agricultores da comunidade SãoJoão a cultivá-lo nos estabelecimentos agrícolas,posto que eles já conheciam a cultura típica daregião amazônica. Por isso, essa planta foi aescolhida por todos como carro-chefe para facilitara comercialização dos seus frutos no futuro,quando produzidos em grande escala pelosagricultores.

Além do açaí, espécies frutíferas como limão(Citrus sp), mamão (Carica papaya), cupuaçu(Theobroma grandiflorum), cacau (Theobromacacao), laranja (Citrus sp) e caju (Anacardiumoccidentale), dentre outras, fizeram parte dacomposição dos arranjos agroflorestais com osmais diversos tipos de composição, espaçamentoe tamanho de áreas. Isso ocorreu porque a

escolha das espécies, a consorciação comculturas pré-existentes e o local de plantio –capoeira ou quintais – foi construída por cada umdos agricultures, dado que não foi imposto padrãoúnico no modelo de arranjo produtivo. Assim, nosestabelecimentos agrícolas das 15 famíliasestudadas foram identificados 25 tipos desistemas agroflorestais conforme mostra a tabela1.

A maioria das espécies que formaram osarranjos dos sistemas agroflorestais foi indicadapelos técnicos do projeto e negociada com osagricultores. Mas, dois agricultores aproveitaram aárea destinada ao sistema agroflorestal paradiversificar o cultivo com a plantação de Ingá eBanana entre o espaçamento do Açaí e Andiroba,respectivamente.

Os 25 tipos de sistemas agroflorestaisidentificados nos estabelecimento agrícolasindicam que a maioria das famílias cultivou até 2tipos de sistemas agroflorestais. Somente umafamília cultivou 3 tipos de sistemas agroflorestal.Os arranjos florestais mais recorrentes nosestabelecimento das famílias foram:Cupuaçu+Açaí e Cupuaçu + Açaí + Teca +Paricá+ Mogno, todas de valor econômico nomercado de produtos madeireiros e não madeiros.

Os sistemas agroflorestais, foram implantadosnos estabelecimentos das famílias através daintervenção do projeto Raízes da Terra, aprovadocom metas previamente estabelecidas, idealizadoe organizado por agentes externos à comunidadeque conheciam a realidade local e trabalhavamanteriormente com os mesmos agricultores.

Para promover a implantação dos sistemasagroflorestais, o Projeto Raízes da Terradisponibilizou insumos, mudas, sementes,máquina de trituração da capoeira, assistênciatécnica e científica aos participantes.

Os agricultores implantaram o sistemaagroflorestal visando experimentar, testar eincrementar os sistemas de produção, para com

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isso aumentar a produtividade agrícola de formasustentável em seus estabelecimentos.

O caso da comunidade pode ser consideradoum exemplo de intervenção governamental para odesenvolvimento sustentável da agricultura naAmazônia, ou seja, da adoção de um novoparadigma para o desenvolvimento da região.

Até o ano de 2009 quando a pesquisa decampo foi realizada os sistemas agroflorestaisestudados estavam na fase de implantação e porisso não foi possível analisar a produção e acomercialização. Os agricultores ainda nãopossuíam excedentes a ser comercializado e o

principal trabalho realizado era a manutenção paraconsolidação das espécies cultivadas nossistemas agroflorestais implantados como, porexemplo, a realização de tratos culturais noplantio.

A lógica dos agricultores para o plantio dasmudas foi baseada na resistência das espécies aoverão, visando a evitar o estresse hídrico,conforme elas eram disponibilizadas pela equipetécnica. No caso dos agricultores que nãopuderam resguardar uma área no estabelecimentopara esperar a vinda das mudas para formar osistema agroflorestal o calendário agrícola seguia

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Fonte: pesquisa de campo, 2009.

Tabela 1 : Tipos de sistemas agroflorestais dos estabelecimentos agrícolas das famílias estudadas.

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como de costume e, por isso, muitos arranjosagroflorestais foram plantados por entre as roçasde mandioca, milho e feijão.

Os plantios dos arranjos agroflorestais foramfeitos pelos homens das famílias com contrataçãode mão de obra predominante para aquelesmódulos compostos por açaí, cupuaçu emandioca. Os instrumentos de trabalhos usadosforam enxadas, terçados, tico-tico, os mesmosempregados nos demais sistemas de produção doestabelecimento, e a draga empregada paraplantio das mudas.

As principais dificuldades apontadas pelosagricultores quanto ao uso dos instrumentos e aforma de plantio das mudas foram as seguintes: osespaçamentos dos desenhos dos arranjosagroflorestais, a maneira do movimento de seabaixar para plantar a muda, principal queixa dosagricultores idosos, e, conseqüentemente, anecessidade de contratar mão de obra e o custodisso.

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